A política Fascista

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O que define um governo Fascista não é somente seu caráter autoritário e antidemocrático. Além dessas, o fascismo tem características muito próprias: aposta no caos, na irracionalidade e, principalmente, no desmonte e na destruição do Estado Social. Por isso, o capitalismo neoliberal responde muito bem à sua proposta. E não tendo o Estado como organizador das políticas e nem as instâncias democraticas como forma sustentação do seu poder, um governo Fascista só se sustenta por meio da guerra. Daí sua necessidade constante de inimigos: internos ou externos. Fascismo, pulsão de morte e paranóia andam sempre juntos.

Mas há uma característica fundamental no Fascismo, muito bem descrita pelo psicanalista William Reich, que tem a ver com a forma de lidar com a economia libidinal ou sexual.

Com Freud, sabemos que toda energia vital é originariamente sexual – de preservação da vida – energia que pode ser destinada para fins não sexuais, igualmente potentes. Mas a libido não é uma energia meramente biológica, individual, é uma energia que se faz presente no laço social, na linguagem e na política. Assim sendo, a energia sexual é a mesma que, redirecionada para a política, pode mover um processo revolucionário.

Fonte: encurtador.com.br/gqCFY

“Toda ascensão do Fascismo atesta uma revolução fracassada” alguém já disse. É que o Fascismo surge da colonização de um processo revolucionário em marcha, e obviamente, que isso não se dará sem colonizar e reprimir a sexualidade.

Por isso, o tema da sexualidade é tão fundamental em governos Fascistas, sempre tratado numa perspectiva moral, limitada e reacionária. Ao mesmo tempo que prega a liberdade da economia de toda e qualquer regulação, aposta na regulação dos corpos, da sexualidade e da erogeneidade das pessoas.

A política Fascista é uma política de propagação do que Reich chamava de “miséria sexual e emocional das massas”. Controlar as massas, sob essa ótica, implica em controlar seus impulsos sexuais e afetivos, e, obviamente que, quanto mais empobrecidos e reprimidos, mais fáceis de arrebanhar.

Não é por acaso essa obsessão do Bolsonarismo por órgão sexual, gays e pedofilia. Essa defesa excessiva do erotismo e da energia sexual, acaba escapando como um ato falho, sendo capaz de fazer essas pessoas verem pênis até no símbolo da Fiocruz. Pura miséria sexual.

E é por isso que Eros é a maior força contra o Fascismo. O Fascismo odeia humor, tesão e poesia.

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Bolsoplanismo e o retorno do recalcado

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O que o Bolsoplanismo fez a gente entender é que o discurso que o sustenta já estava aí. Bolsonaro apenas abriu a tampa do bueiro e fez algumas pessoas terem coragem para dizer ou fazer o que estava submerso, velado.

Então não é melhor agora que as pessoas possam dizer o que realmente pensam para que nossa chaga machista, homofóbica, escravagista, violenta, misógina e fundamentalista seja tratada? – vocês poderiam perguntar. A princípio sim – eu diria. Sim, porque poderemos, desse modo, trabalhar nossos conflitos e contradições. E a democracia sempre ganha, quando o diálogo e o debate estão na ordem do dia.

Não é de hoje que teço críticas ao que se fez com o “lugar de fala” e a “linguagem politicamente correta”. Se tornaram instrumentos autoritários, práticas que interditam a fala antes que ela aconteça, e isso só produz recalcamento. O sujeito pára de falar apenas porque foi censurado, mas continua funcionando do mesmo modo e agora, sem um lugar onde possa tratar disso. E não é necessário ser psicanalista para entender o que acontece com o que foi recalcado sem ser simbolizado – com a linguagem, com a cultura, com a arte, com a política – ele retorna, e retorna como sintoma ou como passagem ao ato.

Fonte: encurtador.com.br/aswCM

O Bolsoplanismo é o nosso “retorno no recalcado”, e se não soubermos tratar disso pela via simbólica, vai nos restar passar ao ato, eternamente

Mas eu tenho uma reserva ao meu sim, sobre essa oportunidade que estamos tendo de escancarar nosso Bolsoplanismo. É que muitas das pessoas que aderiram a tal discurso, aderiram a ele movidas por adesão a uma crença. E o problema da crença é que ela não está aberta ao diálogo. Quanto mais você questiona um crente, mais ele vai precisar reforçar sua crença. A crença não é dialógica, a crença não pode duvidar, por isso, quando ela se liga a política, faz um estrago enorme. O discurso político é o reverso do discurso da crença – são excludentes. Não por acaso Bolsonaro precisa do “Deus acima de todos” para se autorizar.

Por isso, haverá sim, eu penso, um limite para o diálogo com parte da população que aderiu ao Bolsoplanismo pelo mecanismo da crença, do cinismo ou da perversão. Para esses, assim como para o próprio Bolsonaro e sua prole, só funcionará a lei interditora que determina o limite do que é tolerável. Para esses, não haverá negociação, será necessário uma interdição vinda de de fora (pela via das leis, das instituições e dos mecanismos democráticos), a fim de impedir que exibam perversamente a morte, a estupidez, homofobia, racismo, violência,  misoginia e tudo isso que nosso processo civilizatório vem tentando tratar.

Resumindo, uma parte das nossas mazelas poderá ser tratada por meio do simbólico – debate, política, ciência, educação, arte, diálogo – todas as armas serão necessárias. Mas outra parte, infelizmente, dependerá do fim do governo Bolsonaro para voltar para o esgoto, de onde nunca deveria ter saído.

Precisamos dar um fim a esse governo. Não é possível sustentar um governo que goza com nossa humilhação, morte e miséria.

Fonte: encurtador.com.br/uvA08
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O Brasil e a banalidade do mal

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A maioria dos genocídios ao longo da história se deu por meio de ações declaradamente violentas, sangrentas e por uso da força. Já o genocídio Bolsonarista acontece sem que os assassinos precisem sujar suas mãos ou se exporem. Basta não fazerem nada, basta deixarem que aconteça. Mesmo as ações utilizadas para acelerar o processo, são sutis e singelas. Podem até serem confundidas com um pequeno engano, uma piada, uma ignorância inocente ou uma preocupação legítima: “esquecer” do uso da máscara, compartilhar ou inventar mentiras, falar uma bobagem qualquer usando a si próprio como exemplo de validação,  indicar terapêuticas aparentemente inofensivas, criticar o isolamento social em prol do direito ao trabalho e a renda.

O genocídio Bolsonarista não precisa provocar muito barulho e nem se colocar na cena das mortes; é limpo e covarde. Sua perversão e crueldade está sobretudo, na sutileza e na invisibilidade  As pessoas podem ser enviadas para a morte com uma “inocente” mensagem de WhatsApp ou um vídeo na TV.

Hannah Arendt, em sua leitura sobre o julgamento de Eichmann por crimes de genocídio contra os judeus, afirmou que não foi necessário um monstro cruel e perverso para instrumentalizar as atrocidades comandadas por Hitler e o Nazismo, durante o Holocausto. Bastou um burocrata obediente, sensato e disciplinado, disposto a cumprir ordens e fazer o seu trabalho de modo eficiente. Bastou que Eichmann cumprisse seu papel e se deixasse levar pelo que Arendt chamou de “banalidade do mal”. O que não faz dele menos responsável, vale salientar.

Fonte: encurtador.com.br/uvA08

O Brasil de 2020 e 2021 está infestado de Eichmanns. São médicos e instituições médicas que não se pronunciam frontalmente contra o negacionismo e o uso indiscriminado de medicamentos e terapêuticas sem prescrição devida. São Universidades, instituições de ensino e pesquisa, cientistas e pesquisadores que silenciam diante de um governo que não respeita a ciência e a invalida. São empresários e comerciantes que fazem manifestação pelo direito de colocar seus trabalhadores e clientes em risco, ao invés de se mobilizarem pela vacinação em massa.  São oportunistas de toda ordem que fecham os olhos para aceitarem cargos, privilégios e promoções dentro desse governo. É o Centrão que insiste em apoiar um governo sem condições morais, éticas, intelectuais, políticas e nem mesmo estéticas, para governar nosso país. São homens da lei que se escondem atrás da legalidade e da burocracia, para promoverem mais mortes. São os cínicos que assistem o massacre do alto de seus privilégios ricos e brancos, sem nada fazer. São os veículos de comunicação que se escondem atrás da “isenção jornalística”, a fim de sustentarem os discursos que lhes convém. São os artistas, os comunicadores e influenciadores de toda ordem que “não querem se meter em política”. São padres, pastores, guias, mestres e líderes religiosos que usam o nome de Deus para matar sem culpa. São todos que, munidos de algum privilégio, influência ou poder, decidem apenas lavar suas mãos, nesse caso, literalmente. E, finalmente, temos ainda os débeis, os deliroides e os idiotas que parecem gozar e se gabar, enquanto seguem convictos e crentes, em direção à própria morte e a dos seus.

O Brasil caminha a passos largos para 400 mil mortes, e sabemos que muitas delas poderiam e podem ainda serem evitadas. Bolsonaro não é responsável por todas essas mortes sozinho, deverão ser julgados juntos com ele, todos aqueles que, como Eichmann decidiram apenas “contribuir com sua parte para o nosso belo quadro social”.

Então, se você se percebe anestesiado pela “banalidade do mal”, mas não quer ser cumplice de todas essas mortes, desperte, se mova e grite: FORA, BOLSONARO GENOCIDA!

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O amor em tempos de negacionismo

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É a forma de lidar com o real do Covid-19 – pela rejeição da nossa limitação e finitude – que mais nos coloca em risco de morte.

A questão da morte é um tema muito presente no consultório dos psicólogos e psicanalistas. Os analisandos falam muito do medo da morte, mas vou ousar afirmar que eles falam muito mais sobre uma certa aposta na morte, como uma das saídas possíveis para escapar das angústias da vida. A morte como uma espécie de abertura para uma outra vida, não necessariamente transcendente.

Minha experiência como analista me ensinou que, na imensa maioria das vezes, quando as pessoas falam sobre o desejo de morrer ou do impulso para a morte, elas não estão falando necessariamente em suicídio. O que elas estão dizendo é que, de algum modo aparentemente contraditório, só é suportável viver e passar por determinadas situações em vida, se tivermos como horizonte a morte, incluindo a possibilidade de dar fim à própria vida, mesmo que a maioria das pessoas nunca chegue a tal ponto.

Com isso, aprendi a escutar com mais tranquilidade o tema do desejo pela morte, sem a todo momento identificar suicidas em potencial. Ou, dito de outro modo, entender que, em última análise, todos somos suicidas em potencial, simplesmente porque a vida contém em si a morte.

Fonte: encurtador.com.br/diLU7

Nesses tempos de pandemia por Covid-19, a questão da morte se faz extremamente próxima e presente, e dessa vez como uma experiência do real. Deixa de ser uma promessa, uma saída idealizada ou fantasiada, para ser uma realidade, e, nesse caso, uma realidade compartilhada por todos.

Mas, diante do real que invadiu nosso cotidiano nos últimos tempos, é interessante perceber como muitos analisandos vêm ressignificando a posição diante da própria finitude. Como se a possibilidade real de experimentar a morte – a própria ou a de um outro próximo – os tivesse levado a apostar na vida de um modo novo, a lutar por ela e a compreender que, no final das contas, desejam viver. Que talvez o que não desejavam ou desejam mais, é a vida que vinham ou vem vivendo.

Diante da morte, e de uma política que aposta na morte, tenho escutado no meu consultório afirmação da vida e desejo de viver. Mesmo que venham com modos obsessivos e neuróticos de cuidar de si e dos seus, é pulsão de vida, o que eu vejo.

Fonte: encurtador.com.br/nyEIN

Por outro lado, temos visto vários discursos e manifestações que negam a pandemia e seus riscos. Entendo que também não deixa de ser uma tentativa de apostar na vida, só que um modo débil, delirante e equivocado; negando a morte. E é exatamente essa forma de lidar com o real do Covid-19 – pela rejeição da nossa limitação e finitude – que mais nos coloca em risco de morte. Ou seja, muito pior do que pensar na morte como saída possível para a vida, é negar que que a morte exista. Desdenhar da morte é se deixar arrastar por ela. Não acredito que seja necessário ter medo da morte, mas é preciso sim, ter respeito e cuidado ao lidar com ela.

O verdadeiro suicida não é aquele que pensa na morte, mas aquele que a nega.

Admitir, assumir a morte como destino é a única via possível para quem deseja viver.

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Bolsonarismo: que estratégia político-terapêutica para um governo deliroide?

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Não acho prudente, nem ético, usar a psicanálise para diagnosticar ou analisar pessoas fora do meu consultório, mas é totalmente possível ou aceitável utilizá-la para analisar conjunturas político-sociais. Mas, nem é preciso entender de psicologia para perceber que o Bolsonarismo tem um componente deliroide bastante forte. As tão faladas “Fake News” exemplificam muito bem o que eu chamo aqui de deliroide: verdades construídas a partir de fragmentos ou de indícios de realidade e tornadas verdades universais.

Eu trabalho no campo da saúde mental há mais de 20 anos, e se tem uma coisa que aprendi com esse trabalho é que o delírio não pode ser desmontado por uma simples confrontação com a realidade ou com racionalidade. Se o sujeito, em franco delírio, chega até você afirmando que tem um chip instalado na cabeça e através do qual se comunica com extraterrestres, não há absolutamente nada que se diga que mudará sua perspectiva de realidade. Nem que eu lhe mostre uma ressonância magnética do próprio crânio, ou que seja possível abrir sua cabeça para mostrar que não há nada lá, ele não se demoverá de sua verdade. Isso pelo simples fato de que aceitar desmontar tal delírio, seria desmontar a si próprio, já que, naquele momento, por uma fragilidade simbólica, o sujeito encontra-se totalmente assentado sobre aquela verdade. Se ela cair, ele cai junto. Freud dizia que os psicóticos amam o próprio delírio como a si mesmos. Resumindo, é isso.

Fonte: encurtador.com.br/jlmC0

Clarice Lispector diria isso assim: “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro”.

Tempos atrás li um artigo do Javier Salas no El País, sobre o terraplanismo intitulado: “Você não pode convencer um terraplanista e isso deveria te preocupar”. Os terraplanistas, afirma Salas, simplesmente acreditam que a Terra é plana, e qualquer dado que possa prová-los do contrário é simplesmente ignorado ou considerado manipulação de conspiradores.  Obviamente que não é possível dizer que todos os terraplanistas são psicóticos ou doentes mentais, mas certamente, podemos falar de um empobrecimento ou fragilidade simbólicas, o que favorece o discurso que chamei de deliroide, ainda que ele não seja rigorosamente delirante.

Fonte: encurtador.com.br/mFL79

Voltamos ao Bolsonarismo, fortemente fundamentado num discurso deliroide, reforçado pela sua reprodução maciça nas redes sociais. Se o clã Bolsonaro está se aproveitando do discurso deliroide ou se acredita mesmo nele, eu não saberia dizer. O fato é que ele tem sabido utilizá-lo muito bem, desde a campanha eleitoral, e também tem sido bastante competente em agregar a si personagens igualmente deliroides (nem é necessário citá-los um a um). Diante disso, não há debate político possível. Não há racionalidade que possa confrontar os argumentos do Bolsoplanismo. Então, o que fazer? Que estratégias utilizaremos?

O que posso dizer a partir do que estudei e pratiquei todos esses anos é que, se não é possível desmentir um delírio, é possível desconstruí-lo pouco a pouco, parte por parte. Fazer pequenos furos, abalar algumas verdades, duvidar, perguntar, são algumas das estratégias que utilizamos para ir minando a certeza do sujeito delirante, fazendo-o enxergar outras possibilidades. E é muito importante que ele encontre outras possibilidades, caso contrário, voltará para sua certeza delirante, que ao menos lhe assegura um lugar.

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A militância da “torneira aberta”

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Eu era uma iniciante na militância de esquerda quando escutei algo que não entendi muito bem na ocasião, mas nunca mais esqueci. O tema era política de meio ambiente e preservação da água, e se não estou enganada, foi o então querido deputado petista Paulo Delgado quem disse algo assim: “Toda política pensada para a preservação da água só será eficiente se continuar funcionando mesmo quando eu e você esquecermos nossa torneira aberta”

Eu só fui compreender, de fato, essa bela metáfora algum tempo depois, mas ela mudou imediatamente meu olhar para a política e para a militância, tanto que eu nunca mais a esqueci. Entendi que, no campo da política, a mudança do comportamento das pessoas no um a um pode ser importante, mas ela de nada vale se as questões estruturais não forem tocadas. Entendi que é uma ilusão, e as vezes uma ferramenta ideológica (neoliberal), achar que vou fazer algo pela preservação do Planeta fechando minha torneira ao escovar os dentes, sem tocar na questão das monoculturas de soja, dos grandes produtores de gado e dos madeireiros da Amazônia. Entendi também que brigar com meu vizinho quando ele lava o carro fazendo um discurso ambiental-apocalíptico, só vai me tornar uma chata, arrogante e cheia de superioridade moral. Vou criar uma treta inútil que não vai salvar o Planeta, além de poder provocar o vizinho a odiar todas as causas ambientais e a lavar o carro duas vezes por semana ao invés de uma, só pra baixar a minha bola.

Essa metáfora me fez dimensionar a minha militância, tomar a distância necessária de uma certa situação a fim de entender quando ela se faz realmente necessária e quando ela serve apenas para alimentar meu ego, minha arrogância, me tornar uma chata moralista ou culpabilizar pessoas e comportamentos que não são a causa, mas efeito daquilo que estou combatendo. Me fez entender que a boa militância, a que faz realmente o efeito desejado, tem lugar para acontecer e deve ser dirigida às estruturas e superestruturas, ainda que o efeito dela no um a um possa ser estimulado e celebrado.

Fonte: encurtador.com.br/uCDFT

Vejo, por exemplo, muitas mulheres usando os argumentos do discurso feminista para se impor ou brigar com seus parceiros. Eu não recomendo. É inútil para a causa e péssimo para estreitar a comunicação do casal e amadurecer o relacionamento. Se meu companheiro me diz algo do tipo: “Você não vai sair assim” ou “Eu não quero que você faça tal coisa” eu simplesmente vou dizer “Fodasse, meu amor! Eu te amo, mas você não manda em mim”, e fazer o que eu quero fazer. Não preciso fazer discurso de militância, não preciso citar Simone de Beauvoir, não preciso chamá-lo de macho opressor abusador. Só preciso me posicionar e garantir meu espaço. E isso é mais educativo e fará muito mais pelo feminismo do que qualquer discurso militante que eu faça, além de ser muito melhor para o nosso relacionamento, porque ele logo vai entender que ou me respeita ou cai fora. Se eu preciso do anteparo do discurso feminista para me posicionar diante do homem que eu escolhi como parceiro, meu feminismo já falhou.

Certa vez, eu presenciei uma defensora das causas animais militando pra cima de um morador de rua porque ele, na ausência de uma coleira, amarrou um cachorro com um pedaço de fio. O cachorro, sabendo de que lado ficar, latia em defesa do seu dono, enquanto a mulher, aos berros, acusava o rapaz de maltratar o animal. Desde quando a população de rua é a verdadeira ameaça aos direitos dos animais? Não seria mais eficiente simplesmente comprar uma coleira para o cachorro e dar ao cidadão? Tenho certeza que ele não negaria o presente.

Resumindo, o discurso militante deve se reservar aos debates públicos, às instituições, às arenas de debate democrático e às construções coletivas. Para o caso a caso, para a conversa informal presencial ou nas redes, para os relacionamentos, para a sala de aula ou para a mesa de bar, mais vale a boa e velha conversa, ou até mesmo uma briga sincera. Para os excessos que adoecem, valem a psicoterapia e a psicanálise. Para os excessos que infringem os limites impostos pela sociedade, vale o rigor da lei.

Por fim, toda vez que uma situação me provoca o discurso militante, eu me pergunto se estou fazendo algo que realmente fará diferença para a causa que defendo ou se estou apenas dando lição de moral pra alguém que esqueceu a torneira aberta.

Fonte: encurtador.com.br/xzM34
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O ódio como afeto político

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Para ler este texto, primeiramente é necessário desaprender tudo que você sabe sobre o ódio e o amor. O cristianismo nos ensinou que o amor é um sentimento bom e o ódio um sentimento ruim, a ser recalcado e eliminado. Talvez o chamado fascismo eterno, esse que sempre retorna e retorna, seja um retorno disso que ainda não soubemos fazer com nosso ódio, esse afeto tão odiado (risos), mas tão poderoso, fundamental e necessário, como veremos.

Para a psicanálise tanto o ódio quanto o amor fazem parte da constituição do sujeito (eu), sendo que o ódio é ainda mais antigo e primitivo que o amor. Quando um bebê chega ao mundo, chega numa posição completamente objetificada, objeto de um outro que lhe oferece os primeiros cuidados, que convencionamos chamar de mãe. Para se separar do outro e constituir seu próprio eu, o bebê/criança precisa ir se munindo de uma certa dose de ódio. É o ódio que lhe faz capaz de dizer “não” ao outro, de “matá-lo”, a fim de constituir seu próprio narcisismo. No mecanismo do ódio, o outro não interessa, precisa ser recusado para fazer apenas 1: o eu.

Mas, caminhando pela infância em direção a maturidade, também vamos entendendo que não é possível odiar a todos, todo o tempo, sob o risco de ficarmos sozinhos. Então aceitamos abrir mão do nosso narcisismo a fim de criar um laço com o outro, que agora somos capazes de enxergar como diferente. A esse laço chamamos de amor. O amor, nesse sentido, só pode acontecer a partir de um traço de ódio. O amor é ódio tratado e transformado. Criamos a sociedade, porque fomos capazes de amar depois de odiar. O amor é o mais nobre dos afetos, mas sem o ódio que separa, ele não poderia existir. Enquanto o ódio quer fazer 1, o amor aposta na coexistência de 2, com suas diferenças.

Para a Lacan, são 3 as paixões fundamentais do ser: o ódio, o amor e a ignorância. O amor seria uma derivação do ódio, como já dissemos, mas um não funciona sem o outro. Sem uma dose de ódio, o outro a quem eu amo se torna alguém super idealizado, super valorizado, a ponto de me fazer querer assumir diante dele aquela condição primitiva do bebê; a de objeto. Esse é o amor dos apaixonados, que desejam se fundir, se tornarem 1 só, sem diferenciação. Para evoluírem para o amor, os casais apaixonados precisam, portanto, incluir no laço uma dose de ódio, um traço de separação.

Ao longo da vida, continuamos a usar o ódio e o amor nessa dialética: ódio para nos diferenciar, definir o que não somos, o que não aceitamos, e o amor para encontrar, para fazer laço, para escolher nossos pares. Por isso, amor e ódio são afetos políticos por excelência, onde um não acontece sem o outro. E se o amor é o mais nobre dos afetos, porque é abertura ao outro e aceitação da diferença, o ódio é o mais poderoso deles, porque nos empodera e nos diferencia.

Já a terceira paixão, a da ignorância, é a paixão em não saber, não saber sobre o outro, não saber sobre a diferença. Mas diante da constatação dessa nossa ignorância, podemos tomar dois caminhos distintos: não querer saber ou desejar saber. Quando a ignorância se coloca a serviço do ódio ela se entrega ao negacionismo. O negacionista não quer saber nada, não quer nem mesmo saber sobre a própria ignorância. Por outro lado, quando colocada a serviço do amor, a ignorância nos leva ao desejo de saber o que não se sabe, deseja saber sobre o outro e sua diferença. A ciência, a filosofia, a psicanálise, por exemplo, são modos de colocar a paixão da ignorância a serviço do amor, todas elas desejam saber.

Partindo dessas considerações, podemos pensar que o fascismo é uma junção entre o ódio e a ignorância; a forma mais regressiva de fazer funcionar a política, incluindo a política dos nossos afetos. Odeia-se o outro que deve ser eliminado: a petralhada, os comunistas, os gays, as feministas. E também ignora que o outro diferente exista: não existe o índio, não existe racismo, somos todos cristãos. Define-se a supremacia de uma determinada categoria (homem “de bem”, branco, herero, cristão, de direita) e os demais devem simplesmente se submeter ou deixar de existir, pelo mecanismo eliminação violenta ou pela simples negação. Diante da política fascista só há dois caminhos: ou você se torna 1 com eles, não existe com sua diferença (de opinião, de credo, de orientação sexual, de cultura, de cor) ou é eliminado/negado.

A adesão das massas ao fascismo também se faz pela junção do ódio com a ignorância, numa tentativa torpe, narcísica, de simplificar o mundo e reunir forças. O amor, por sua vez, comparece apenas na relação com o líder, mas é um amor apaixonado, idealizado demais, porque é um amor sem a mediação do ódio. Na relação com seu o líder o fascista aceita se colocar na condição de objeto, fazendo com ele um pacto masoquista: faça o que quiser de mim (inclusive me violentar e me matar), desde que não me abandone.

Desse modo, o fascismo se torna um fenômeno poderosíssimo, especialmente por fazer bom uso do mais primitivo e poderoso dos afetos: o ódio. Em situações de crise, de desamparo, de ameaça de dissolução, as massas recorrem a esse velho mecanismo conhecido, que algum dia salvou cada um de nós da primeira ameaça: não ser.

Não é difícil, portanto, compreender que o amor e o desejo de saber são as vacinas necessárias para prevenir e combater o fascismo. Não por acaso nosso fascismo tupiniquim tem como projeto destruir a arte, a cultura, a ciência, os movimentos sociais e políticos, as universidades, o SUS, ou quaisquer outras formas de desejo de saber em prol do amor. Mas existe algo de poderoso no ódio que é intratável, ineducável, indecifrável e inanalisável e, por isso, “a cadela do fascismo está sempre no cio”.

O cristianismo nos ensinou que o amor é capaz de vencer o ódio, que temos que oferecer a outra face e nos deixar matar, porque a vida segue, apesar da morte de um ou outro. Mas e quando as vítimas do fascismo decidem não oferecer a outra face e se recusam a morrer? Usar o ódio como resposta ao fascismo é também se igualar ao fascista ou alimentar o fascismo? Para tentar responder estas questões é necessário compreender por onde anda a paixão da ignorância nesse ódio. Usar o ódio para sustentar a diferença, inclusive a nossa, e não para eliminar a diferença, pode ser uma saída ética para usar esse poderoso afeto a nosso favor. É nesse sentido que se diz que a violência vinda da reação do oprimido não pode ser comparada com a violência do opressor.

Talvez o grande desafio no combate ao bolsonarismo tenha a ver com as questões: Como fazer uso político do ódio mantendo o desejo de saber? E como transformar a paixão da ignorância em desejo de saber?

 

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AbraSUS

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Existem muitos brasileiros que não se importam com o SUS como deveriam, porque acreditam que não são usuários do sistema. Pensam que, pagar por um plano de saúde e não se consultar no posto do bairro, significa não utilizar o SUS. Mas, para esses, eu tenho uma novidade: TODOS os brasileiros que habitam este território que chamamos Brasil fazem uso e se beneficiam do SUS.

Em primeiro lugar, se você pode se dar ao luxo de morrer aos 80 anos em decorrência das complicações do Alzheimer, é porque não morreu de diarréia antes de 1 ano de idade, de sarampo aos 5, de tétano aos 9, de surto de meningite aos 13, de cólera aos 20, em decorrência de HIV ou sífilis aos 25, de acidente de trabalho aos 30, de picada de cobra ou escorpião aos 35, de tuberculose aos 40, de câncer de boca ou pulmão aos 45, de sequela de tênia aos 50, de infecção alimentar aos 55, de dengue aos 60, de câncer de colo de útero aos 65 ou de gripe aos 70. Todas essas doenças citadas, precisam ser principalmente tratadas no campo do que chamamos de “saúde coletiva”, coisa que nenhum plano de saúde seria capaz de fazer, simplesmente porque os planos de saúde só atendem os seus clientes e, geralmente, com medicina preponderantemente curativa. Ou seja, nenhum plano de saúde, por mais caro que você possa pagar, teria como cuidar de uma epidemia de tuberculose, por exemplo. O controle ou a erradicação da tuberculose é a única medida eficaz para combater, de fato, a doença – que é altamente contagiosa – para isso, os que podem ou que não pode pagar, deverão ser igualmente vacinados ou mantidos sob cuidado para não transmitirem a doença. No caso da tuberculose, assim como no de muitas outras doenças, o tratamento não tem o efeito desejado se for para apenas para um ou outro caso.

A dengue também é boa para entender a importância do SUS, gosto de chamá-la de “doença para ensinar cidadania”. Não adianta você cuidar da água parada do seu quintal e nem se isolar no seu maravilhoso condomínio com porteiro 24 horas, se não houver um trabalho coletivo – trabalho este feito pelo SUS e seus agentes sanitários e de saúde – a doença vai chegar até você e sua família. Duvido que um plano de saúde se dispusesse a vigiar a limpeza da casa do seu vizinho, que não paga como você.

Fonte: encurtador.com.br/aeDEW

A Pandemia de COVID 19 tem dado aula de saúde pública pro mundo. Todas as formas de prevenção e combate da doença só funcionam e funcionarão no âmbito coletivo, e a vacinação em massa é a única solução real para superar o problema.

O SUS regula nosso sistema de água potável e esgoto por causa das verminoses, regula a qualidade da carne que você come, a higiene do restaurante que você frequenta e os medicamentos que você usa (a ANVISA faz parte do SUS). Nosso sistema de saúde está sempre atento à “chegada” ou avanço de novas doenças, evitando que elas se alastrem, cuida das fronteiras, evitando doenças que venham de outros países, exige sistemas de proteção e legislações que reduzam acidentes, epidemias e riscos à saúde, e cria campanhas de massa para educação e prevenção de doenças e agravos. Só para dar outro exemplo, o SUS conseguiu, em poucos anos, mudar completamente a cultura do cigarro (tabaco) no Brasil e tornou-se referência mundial. Sem proibição da droga, apenas com campanhas educativas e legislações restritivas para propaganda e locais de uso, o número de fumantes passou de cerca de 35% em 1989 para menos de 15% em 2013. Tal mudança de cultura, que acaba refletindo nas gerações seguintes, só foi possível organizada por um sistema público, forte e universalizado.

A Farmácia Popular, outro programa do SUS, também não beneficia apenas os que têm acesso à medicação gratuita, ao impulsionar a expansão do mercado, promove também a queda dos preços para os demais consumidores, além de quebrar as patentes das indústrias farmacêuticas e movimentar pesquisas e a produção de medicamentos com custo mais baixo.

O SUS é um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo, tem um programa de imunização de doenças que é um sucesso, sendo o responsável pela erradicação de várias delas. O impacto do SUS na redução da mortalidade infantil no país é indiscutível. O Brasil tem um sistema de tratamento e prevenção de HIV/aids exemplar e é o sistema público que mais faz transplantes e hemodiálises no mundo todo, incluindo a manutenção de uma rede de doadores de sangue e órgãos, com excelência em tecnologia. Todas essas e outras intervenções de alta complexidade ficam a cargo do SUS, pelo fato de serem muito dispendiosas e inviáveis para o sistema privado, que obviamente, tem como interesse primeiro, lucrar. Sabe aquele procedimento que você precisa de autorização e seu plano não libera? Pois é…

Fonte: encurtador.com.br/KLW79

O SAMU atende acidentes de trânsito, domésticos, urgências e emergências cardíacas ou quaisquer outras que ofereçam risco de morte. Tendo plano ou não, recursos ou não, o atendimento do SAMU é universal. Ninguém nunca deixará de ser atendido por causa da sua condição financeira, talvez pelo estrangulamento do programa que, como muitos outros, vem sendo progressivamente sucateado. Então, mesmo que você esteja assegurado por uma ambulância particular, o SUS atende a vítima do acidente de trânsito que você provocou ou do pedreiro que se feriu na sua obra, ainda que eles não estejam assegurados por um plano privado como você.

Outro dado importante, estamos num sistema capitalista, e nele, o que rege é a lei da oferta e da procura. Portanto, se todos tiverem que pagar seus planos privados, por causa da falência do nosso sistema público, esteja certo que você terá que pagar muito mais caro do que paga hoje.

A idealização do SUS tem raízes numa concepção de saúde integral, solidária, humanitária, democrática e que não seja objeto das leis do mercado. Saúde não tem preço e não pode estar a venda. Esse diferencial já seria suficiente para defendermos o SUS como patrimônio nacional, estabelecendo com ele uma noção maior de pertencimento e agregando-lhe o valor que realmente merece. Entender que “o SUS é nosso” se faz fundamental para militarmos em sua defesa, a fim de lhe garantir mais recursos e financiamentos e não o seu desmonte, como o governo atual vem fazendo. As deficiências do SUS são decorrentes do que não se investe nele e não por quem ele é.

O SUS é um sistema para o Brasil e não uma espécie de caridade para os pobres. O SUS está em toda parte; está literalmente no ar que respiramos e na água que bebemos.

O SUS é nosso!
Defenda o SUS!

Fonte: encurtador.com.br/jyVX2
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O Dilema das Redes: o Dilema Capitalista

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Em 2018 defendi minha tese de doutorado, cuja questão central era compreender a interveniência do Google no modo corrente (senso comum) para conceituar, diagnosticar e tratar o TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) – diagnóstico cada vez mais comum em crianças em idade escolar. Tratei o Google como um Oráculo, o Oráculo contemporâneo para o qual lançamos todas as nossas perguntas e questões, inclusive aquelas relacionadas a diagnósticos. Quem nunca tentou se autodiagnosticar ou diagnosticar alguém por meio dessa ferramenta digital, que atire a primeira pedra.

Uma das coisas que aprendi na minha pesquisa, estudando os mecanismos do maior buscador da WEB, é que ele é um Oráculo bastante peculiar. Além de suas respostas não virem na forma de enigmas a serem decifrados, como era o caso dos Oráculos antigos, seu algoritmo é capaz de interferir na pergunta que faremos a ele. Ou seja, o Google sabe a resposta para a sua pergunta, mas também sabe bastante sobre a pergunta que você fará. Outra peculiaridade deste Oráculo é que ele é capaz de monetizar toda informação que possui; sobre o que você procura, e sobre você. Seu sistema altamente inteligente é capaz de, a partir da sua pergunta e do modo como você navega, te oferecer uma mercadoria, mas também, te oferecer como mercadoria para outrem. Para o supercomputador que coordena e organiza o maior buscador da WEB (a preferência pelo Google chega a 91%), todo ponto de conexão é um ponto para lucrar.

Meu percurso de tese foi seguir as orientações do buscador como se eu quisesse me informar sobre como diagnosticar ou tratar alguém com os sintomas do TDAH. Logo de início percebi que teria que burlar o algoritmo, para que ele não soubesse que era eu fazendo a pesquisa, porque isso influenciaria o tipo de resposta que ele me daria. Afinal, a internet já sabia sobre mim e a minha tese. Eu nem precisava pesquisar por novas publicações sobre TDAH, por exemplo, a Amazon já me atualizava sempre que um novo livro sobre o tema era lançado.

Assim, simulando uma pesquisa leiga e despretensiosa sobre certos sintomas compatíveis com o TDAH, me interessava saber para onde os 10 primeiros links de busca me levariam. Vale destacar que cerca de 52% dos internautas só verificam a primeira página (os primeiros 10 links de uma busca) e apenas 10% olham os resultados depois da terceira página.

Convido vocês a adivinharem o primeiro local para o qual o Google me levou…

O primeiro resultado da busca se apresentava apenas como um local de informações técnico-científicas e orientações sobre TDAH, com indicação de testes rápidos para que você mesmo fizesse um diagnóstico inicial e encontrasse as formas de tratamento mais indicadas. Mas, olhando com mais cuidado, percebi que se tratava de um site ligado à NOVARTIS, laboratório fabricante da Ritalina: o medicamento mais vendido para o tratamento de TDAH. Ou seja, um usuário comum de internet, fazendo uma pesquisa simples, indicando apenas alguns sintomas, sem nem mesmo saber da existência do TDAH, será conduzido a obter informações no site do laboratório que produz o medicamento para tal transtorno. Então, se você me perguntar se eu acho que o mecanismo de busca do Google é capaz de aumentar o percentual de diagnósticos de TDAH e de uso de Ritalina, eu diria que sim.

O TDAH surgiu (ou foi inventado) há cerca de 20 anos, na época com raríssima incidência. Atualmente, pode acometer até 5% das crianças em idade escolar. Segundo dados do Ministério da Saúde de 2016, o Brasil se tornou o segundo mercado mundial no consumo de metilfenidato (nome genérico da Ritalina), com um aumento de consumo de 775% nos últimos 10 anos.

O horror capitalista

Em 1997, Viviane Forrester publicou O Horror Econômico. A autora previa um novo holocausto provocado pelo capitalismo globalizado, que terminaria por excluir da sua dinâmica, uma imensa massa de trabalhadores. O capitalismo que ela anunciava, se sustentaria nas grandes rodas financeiras, prescindindo de nossa função como trabalhadores e produtores de riquezas. Para a autora, na fase final do capitalismo, consumir seria a nossa última utilidade. O que Viviane não previu é que, depois da função de consumidores, ainda restaria para nós o lugar de objetos a serem consumidos.

O documentário da Netflix, “Dilema das Redes” (parêntese para comentar que aquela novelinha tosca no meio do filme é totalmente desnecessária), trata exatamente disso que eu descrevi na minha pesquisa. “Se você não está pagando pelo produto, então você é o produto”, resume todo o dilema que aparece na minha tese, o mesmo que o documentário expõe. Mas o curioso é que o depoimento da elite dos especialistas, profissionais e criadores das grandes empresas da internet, mostra que eles não perceberam o verdadeiro dilema, mesmo com ele ali, escancarado diante dos seus olhos, o dilema estrutural que permite, propicia e até incentiva que Facebook, Google, Instagram, ou quaisquer outras redes similares adquiram o poder de manipulação que têm: o capitalismo.

Obviamente que essas empresas são responsáveis pela forma como manipulam seus usuários a fim de monetizá-los, mas é importante que se diga que elas só funcionam desse modo por estarem elas mesmas, assim como nós todos, regidas pela lógica do lucro e da mercadoria. Ou seja, acabamos com Facebook ou paramos de utilizar o Google e virá outra rede com a mesma lógica, talvez mais especializada, sutil e perversa. Também é ingênuo pensar que sair das redes ou criar mecanismos individuais para resistir aos seus algoritmos será suficiente. A Internet e suas redes – e é disso, a meu ver, que se trata o documentário da Netflix – apenas escancarou uma coisa que quem critica o modelo capitalista já sabe há muito tempo: quando é permitido que o capitalismo aja segundo sua própria natureza, ele tende a acumulação, a entropia e a autofagia. Nenhuma ética que privilegie o cuidado dos seres humanos, dos demais seres vivos e do nosso Planeta, pode sobreviver enquanto a acumulação de riqueza e o lucro forem os soberanos.

Resumindo: dilema a ser enfrentado não são as redes sociais, é a forma como permitimos que o capitalismo as organize, regule e sugue dela seus lucros.

No caso da minha pesquisa, por exemplo, seria ingênuo pensar que a solução seria apenas combater o TDAH, convencendo mães e pais, educadores ou profissionais de saúde a resistirem ao diagnóstico, sem intervir na lógica perversa que transforma o sintoma e o sofrimento das pessoas em mercadoria. Se não for o TDAH, será outro diagnóstico, outro transtorno a jogar nossas crianças e jovens na máquina de moer capitalista.

Não é por acaso que a todo momento, no documentário, a compulsão pelas redes seja comparada a outros tipo de compulsão, como a por drogas. O uso de drogas é tão comum quanto a própria existência do ser humano, mas é nas sociedades capitalistas modernas que elas assumiram o caráter de consumo e de compulsão. Ou seja, há implicações subjetivas e políticas quando se passa a consumir uma coisa ao invés de usá-la. Os povos andinos, por exemplo, utilizam a folha de coca das mais diversas formas há mais de 8 mil anos, sem grandes problemas ou riscos, outra coisa bem diferente é o que se tornou a cocaína, que é a coca transformada em mercadoria capitalista. Assim sendo, queimar plantações de coca é uma falsa solução para a questão da violência urbana, do tráfico ou da dependência por cocaína.

A Internet ou suas redes é um falso dilema, que apenas encobre o verdadeiro.

O verdadeiro dilema é como fazer para barrar, subverter e superar o capitalismo.

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