Qual é o trabalho das mães? – Parte 2

Compartilhe este conteúdo:

Dando continuidade às reflexões sobre trabalho e maternidade, a segunda parte deste texto analisou a conjuntura da mulher mãe no mercado de trabalho.

As mães casadas estão menos presentes no mercado de trabalho por motivação pessoal (MADALOZZO; BLOFIELD, 2017), ou seja, a presença do cônjuge reduz as chances de participação feminina. Isso pode ser explicado pelas maiores exigências para encontrar um emprego aceitável, dado que os custos de oportunidade e o salário de reserva tendem a ser maiores entre essas mulheres, devendo compensar a redução do tempo dedicado aos cuidados ou possibilitar o acesso a serviços de creche (SCORZAFAVE; MENEZES-FILHO, 2001 apud GUIGINSKI; WAJNMAN, 2019).

Outra possibilidade é que o acréscimo do trabalho doméstico não remunerado reduza também a chance de conciliação com o trabalho remunerado (GUIGINSKI; WAJNMAN, 2019), no entanto, apesar de mulheres (21,4 h/sem)  dedicarem quase o dobro de tempo que os homens (11 h/sem) em afazeres domésticos e de cuidado, indicadores de raça e classe as afetam de forma desigual: mulheres brancas dedicavam 20,7 horas semanais a tais atividades enquanto mulheres pretas ou pardas empregavam 22 horas; mulheres que fazem parte dos 20% com menores rendimentos domiciliares per capita realizavam em média 24,1 horas semanais, enquanto as que estão entre os 20% de maiores rendimentos dispensavam 18,2 horas (IBGE, 2021).

As Estatísticas de Gênero, IBGE (2021, p.03), ressaltam que 

Essa diferença mostra que a renda é um fator que impacta no nível da desigualdade entre as mulheres na execução do trabalho doméstico não remunerado, uma vez que permite acesso diferenciado ao serviço de creches e à contratação de trabalho doméstico remunerado, possibilitando a delegação das atividades de cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos, sobretudo a outras mulheres.

Ainda em relação aos resultados encontrados no estudo de Madalozzo e Blofield (2017), as duas principais restrições enfrentadas pelas mães que não trabalham, tanto casadas (38%) quanto não casadas (58%), são: elas estão procurando, mas não conseguem encontrar trabalho ou não têm acesso a cuidados com seus filhos e, por isso, não podem trabalhar.

Aquelas que tentam ingressar no mercado após a maternidade comumente não passam das invasivas e constrangedoras entrevistas de emprego ao serem questionadas a respeito de gravidez, maternidade ou mesmo estado civil. Heloani e Barreto (2018, p. 133) descrevem como atos de violência na fase de seleção de pessoal

[…] se submete o aspirante a procedimentos que constituem uma verdadeira invasão de privacidade e um desrespeito no que concerne à sua intimidade. […] atentarem contra a dignidade , produzirem humilhações ou tiverem um caráter discriminatório […] não devem ser aceitos como instrumentos técnicos de avaliação para fins admissionais de emprego. Perguntas desnecessárias […] em nada contribuem para um bom processo seletivo e causam um constrangimento pessoal inadmissível, maculando desde o início a imagem da organização.

Os empregadores supõem que mulheres mães de crianças pequenas incidirão em maiores taxas de absenteísmo do que o restante da população, e essa discriminação faz com que as taxas de desemprego para essa população específica sejam ainda mais elevadas (SORJ; FONTES; MACHADO, 2007 apud GUIGINSKI; WAJNMAN, 2019).

Fonte: Pexels

As mães trabalhadoras que estão empregadas em jornadas integrais de trabalho por muitas vezes submetem-se a situações de trabalho intenso. De acordo com Dal Rosso (2008), há intensificação do trabalho quando o tempo de não trabalho, ou tempo livre, passa a ser engolido pelo trabalho. Exemplos dessa intensificação estão presentes em grande parte dos depoimentos apurados por Novais (2010), uma vez que tanto na esfera pública quanto privada, há negligência por parte das empresas para com as mães trabalhadoras, culminando em denúncias a respeito das entrevistas de emprego e os questionamentos sobre filhos e demissões diante de gravidez ou não cumprimento de horas extra, que entram em conflito com o tempo familiar, evidenciando que para os empregadores a presença de filhos é vista como um obstáculo. “Neste sentido, as exigências familiares podem entrar em conflito com as exigências profissionais e gerar, nos indivíduos, significações de fraco desempenho profissional, incompetência ou até mesmo insatisfação com o trabalho” (NOVAIS, 2010 p. 110).

Fonte: Pexels

A respeito da dificuldade de conciliação entre exigências familiares e exigências de horas extras, dois depoimentos chamam atenção. Uma das trabalhadoras, Paula,  relata que a exigência de trabalho por turnos, em especial aos domingos em que entrava às 9 horas e só saía às 20 horas, lhe impedia de estar com sua família gerando sentimentos de insatisfação com o trabalho e culpa em relação aos filhos, resultando em sua dispensa:

“(…) Não tinha tempo para os meus filhos, não tinha tempo para nada. Depois, aos domingos havia algumas festas, festas de anos e eu não podia ir a nenhuma. Depois, os meus filhos cobraram-me isso. […] É horrível ouvir um filho dizer que a mãe está ausente. Para mim é horrível. Despedi-me.” (NOVAIS, 2010, p. 111).

Seligmann-Silva (2017) considera desgaste mental um conceito que abrange tanto a dimensão psíquica (sofrimento mental) quanto a psicofisiológica (estresse laboral e aspectos psicossomáticos). A autora ressalta que estudos da temática sugerem que existe prejuízo de ordem cognitiva e psicoafetiva, que afetam os sentimentos e os relacionamentos humanos em contextos diversos, como no trabalho, na família e na comunidade. Ela ainda alerta que a constância de situações opressivas e insatisfação no trabalho combinadas a ausência de possibilidades de mudança ou enfrentamento, conduz o processo de desgaste ao transtorno psiquiátrico ou doença psicossomática. 

Na esfera psicoafetiva, relacionada a degradação dos sentimentos e percepção de si, podemos observar claramente tal prejuízo no depoimento de Maria José, relatado com tristeza:

“ […]  Eu não vi a minha filha crescer! Se eu trabalhava, quer dizer, eu trabalhava de segunda a domingo, não é? […] Portanto, eu não… eu não…eu não vi, isso dói muito. Eu não vi a minha filha crescer. Não vi! Não vi a minha filha crescer! (emociona-se e chora) (…) quero conhecer melhor a minha família, porque nós somos uma família, mas um bocadinho afastados uns dos outros. Isso, para mim, já chega! Afastados, porque eu tinha que estar a trabalhar.” (NOVAIS, 2010, p. 112).

Algumas mulheres relatam que não podem trabalhar porque não têm acesso a cuidados com seus filhos, e de fato, apenas 35,6% das crianças de até três anos frequentavam escola ou creche em 2019, o que sugere que a oferta adequada de creches possa facilitar a inserção das mães ao mercado de trabalho (IBGE, 2021). Sorj (2013) sinaliza que a socialização do cuidado proporcionada pelo acesso a creches e pré-escolas tem potencial de estimular o desenvolvimento da independência econômica e autonomia das  mulheres, se relacionando de maneira positiva com o trabalho das mães. Barbosa e Costa (2017) investigaram essa proposição ao longo do período de 2001 a 2015, e também encontraram efeito positivo e significativo entre oferta de creche e probabilidade de participação materna no mercado.

Yannoulas (2002, p.56) ressalta que 

É importante levar em consideração que as creches e pré-escolas são fundamentais no desenvolvimento futuro das crianças e seu aproveitamento escolar […], além de outorgar um contexto de segurança e tranquilidade para os pais e as mães durante a jornada de trabalho. 

Sorj (2013) analisou como alguns dispositivos de cuidado no Brasil influenciam a quantidade e qualidade da participação das mães no mercado de trabalho. No que tange a esfera legislativa e a associação entre benefícios de maternidade e estatuto do trabalho, que restringe as mulheres trabalhadoras àquelas que contribuem para a previdência social, expõem a consequências distintas a carreira profissional delas, intensificando a desigualdade entre mulheres em ocupações formalizadas e aquelas inseridas no trabalho informal. 

Se por um lado a maternidade é responsável por garantir a implantação de políticas públicas específicas para as mulheres, em maior nível ela as restringe a determinados espaços e trabalhos específicos. Dessa forma, não basta ampliar as políticas voltadas para essa população, mas reformular os eixos centrais que constituem as políticas públicas, de tal modo que estes permitam equacionar diferentes dimensões da vida humana. Yannoulas (2002, p.82): 

A vida não é só trabalho para os homens, como também não é só maternidade para as mulheres. Compor, equilibrar, equacionar as diferentes dimensões da vida humana deveria ser propósito maior das políticas públicas, tendendo ao exercício da cidadania plena por todas as pessoas, independentemente de seu sexo, idade, raça/ cor, religião, etc, e visando seu desenvolvimento pluridimensional (na vida política, laboral, familiar, cultural, afetiva, etc.).

Conclui-se que a atual configuração de divisão sexual do trabalho e a omissão do Estado em exercer seu papel para a garantia de direitos, cuidado e proteção dessas cidadãs, configuram dispositivos que impedem o acesso e a permanência das mulheres no mercado de trabalho, impactando diretamente na renda e consequentemente na pobreza dessa população. É necessário redefinir os papéis de gênero e ampliar a oferta e acesso de políticas públicas que permitam equacionar diferentes dimensões da vida humana. 

REFERÊNCIAS

BARBOSA, A. L.; COSTA, J. Oferta de creche e participação das mulheres no mercado de trabalho no Brasil. 2017. Diretoria de Estudos e Políticas Sociais (Disoc) do Ipea. IPEA, 2017. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/7805/1/bmt_62_oferta.pdf Acesso em: 12 nov. 2021.

DAL ROSSO, Sadi. Mais trabalho!: a intensificação do labor na sociedade contemporânea. Sadi Dal Rosso. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008, 208 p.

GUIGINSKI, J; WAJNMAN, S. A penalidade pela maternidade: participação e qualidade da inserção no mercado de trabalho das mulheres com filhos. R. bras. Est. Pop., v.36, 1-26, e 0090, 2019.

HELOANI, R; BARRETO, M. Assédio Moral: gestão por humilhação. Curitiba: Juruá Editora, 2018. 200 p.

IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Estatísticas de Gênero: Indicadores sociais das mulheres no Brasil. IBGE, 2021 – ISBN 978-65-87201-51-1. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101784_informativo.pdf Acesso em: 10 nov. 2021.

MADALOZZO, R; BLOFIELD, M. Como famílias de baixa renda em São Paulo conciliam trabalho e família? Rev. Estud. Fem. 25 (1), Jan-Apr 2017.

NOVAIS, C. D. As trajectórias profissionais de mulheres na actual economia flexível e sua relação com dinâmicas familiares. 2010. 191 p. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, Portugal, 2010. Disponível em: https://1library.org/document/zx2rek4q-trajectorias-profissionais-mulheres-economia-flexivel-relacao-dinamicas-familiares.html Acesso em: 12 nov. 2021.

SCHMIDT, M. L. G.; SELIGMANN-Silva, E. Entrevista com Edith Seligmann-Silva: saúde mental relacionada ao trabalho ― concepções e estratégias para prevenção. R. Laborativa, v. 6, n. 2, p. 103-109, out./2017. http://ojs.unesp.br/index.php/rlaborativa. Disponível em: https://ojs.unesp.br/index.php/rlaborativa/article/view/1849/pdf Acesso em: 12 nov. 2021.

SORJ, B. Arenas de cuidado nas interseções entre gênero e classe social no Brasil. Cadernos de Pesquisa v.43 n.149 p.478-491 maio/ago. 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cp/a/N4CfkgXHT8Gtgsr4RvDNhtP/?format=pdf&lang=pt Acesso em: 13 nov. 2021.

YANNOULAS, S. C. Dossiê: Políticas públicas e relações de gênero no mercado de trabalho – Brasília: CFEMEA; FIG/CIDA, 2002. 93 p. Disponivel em: http://www.bibliotecadigital.abong.org.br/bitstream/handle/11465/276/CFEMEA_Dossi%EA_Pol%EDticas_p%FAblicas_rela%E7%F5es_g%EAnero_mercado_trabalho.pdf?sequence=1 Acesso em: 12 nov 2021.

Compartilhe este conteúdo:

Qual é o trabalho das mães? – Parte 1

Compartilhe este conteúdo:

Este texto está dividido em duas partes para melhor contemplar a discussão incitada e  tem por objetivo instigar reflexões acerca da relação entre trabalho, maternidade e subjetividade a partir de uma perspectiva de gênero sobre diferentes conjunturas.

O mundo do trabalho enquanto interface da maternidade não pode ser reduzido a sua relação com o mercado de trabalho ou o trabalho remunerado, ainda que seja imprescindível contemplá-la. O trabalho da mulher que é mãe engloba esferas de trabalho múltiplas e complexas que se interrelacionam e produzem efeitos sobre a subjetividade, afetando de forma diferente cada mulher. Seja ele remunerado ou não, formal ou informal, dentro ou fora de casa, reconhecido ou marginalizado, o fato é que mulheres mães possuem um ritmo intenso de trabalho. 

Para contemplar a amplitude do conceito de trabalho e não correr o risco de incorrer em uma ótica reducionista, define-se como:

Quando falamos de trabalho, nos referimos a uma atividade humana, individual ou coletiva, de caráter social, complexa, dinâmica, mutante e irredutível a uma simples resposta instintiva ao imperativo biológico da sobrevivência material. Distingue-se de qualquer outro tipo de prática animal por sua natureza reflexiva, consciente, propositiva, estratégica, instrumental e moral (BLANCH, 2003, p.34-35 apud COUTINHO, 2009, p.191).

Dessa forma, o presente trabalho abordou campos de interação do trabalho materno e seus desdobramentos em áreas remuneradas e não remuneradas, individuais e coletivas.

Guiginski e Wajnman (2019), em seu artigo “A penalidade pela maternidade: participação e qualidade da inserção no mercado de trabalho das mulheres com filhos”, constataram que a presença de filhos afeta consideravelmente a condição de inserção das mulheres brasileiras no mercado de trabalho, reduzindo a probabilidade de participação e elevando as chances de trabalho precário e “preferência” por empregos flexíveis (jornada parcial e trabalho autônomo). 

Fonte: Pexels

Os dados deste estudo sugerem que mulheres com filhos em idade pré-escolar ofertam menos sua força de trabalho, uma vez que possuem as maiores taxas de desemprego (11,2%) e inatividade (34,9%) e enfrentam maiores dificuldades para encontrar uma ocupação, representando as menores taxas de ocupação (88,8%) e participação (65,1%) dentre os grupos pesquisados (mulheres e homens, com e sem filhos). Para essas mulheres, a possibilidade de ingressar e permanecer no mercado de trabalho está relacionada de forma direta com a idade e inversa com a quantidade de filhos, ou seja, quanto mais novos e em maior quantidade, menores as chances. Dessa forma, ter um filho em idade pré-escolar reduz em 52,2% as possibilidades de ingresso e permanência no mercado, e em idade escolar em 24,8%,  enquanto para dois ou mais filhos pequenos esse percentual saltou para 73,5%, e em idade escolar para 34,4%. Mesmo para filhos mais velhos, acima de 12 anos, há um decréscimo das oportunidades, ainda que menos expressivas que para filhos menores (GUIGINSKI; WAJNMAN, 2019).

Apesar dos dados do estudo supracitado se referirem a  Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) de 2013, pesquisas recentes corroboram tais resultados. Segundo o estudo Estatísticas de Gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil, IBGE (2021), a presença de crianças com até três anos de idade nos domicílios está relacionada a menor inserção ocupacional das mulheres. Em 2019, o nível de ocupação das mulheres de 25 a 49 anos vivendo com crianças nesta faixa etária foi de 54,6%, sendo de 49,7% entre as pretas e pardas e 62,6% entre as brancas, em contraponto a 67,2% para mulheres sem crianças de até 3 anos no lar, sendo de 63% entre pretas e pardas e 72,8% entre as brancas.

Em relação à jornada de trabalho, a necessidade de conciliar trabalho remunerado com afazeres domésticos e de cuidados, faz com que muitas mulheres recorram a ocupações com carga horária reduzida (IBGE, 2021). Mulheres com filhos em idade pré-escolar representam 29,6% das mulheres com jornada de trabalho parcial (15,9%), novamente a maior proporção dentre o grupo, além de somente 34,8% delas possuem carteira assinada ou contribuem para a previdência, indicando menor proteção social. Sendo assim, ter um filho em idade pré-escolar aumenta em 59% as chances de cumprir jornada parcial e em 33,1% a chance de ocupar um trabalho precário ,  enquanto para dois ou mais filhos pequenos representam impressionantes 90,6% de chances de cumprir tal jornada e 78,2% maior de estar em situação de precariedade. A partir disso, vale ressaltar que o trabalho parcial implica em piores condições de trabalho: menores rendimentos médios mensais, menor formalidade e maior precariedade da ocupação (GUIGINSKI; WAJNMAN, 2019). 

Essas características estão estritamente relacionadas ao modelo econômico que vivenciamos e suas implicações que afetam a forma de ser da classe trabalhadora e a configuração do trabalho no contexto contemporâneo. Consequência de uma articulação complexa existente entre financeirização da economia, neoliberalismo, reestruturação produtiva e as mutações no espaço microcósmico do trabalho e da empresa , a nova morfologia do trabalho no Brasil, descrita por Antunes (2014), possui como principais características a ampla flexibilização, informalidade e precarização da classe trabalhadora. 

No que tange, ao tipo de trabalho, a presença de um filho em idade pré-escolar está positivamente relacionada ao trabalho autônomo em detrimento do trabalho assalariado do setor privado, e é aumentada em 54,3% (GUIGINSKI; WAJNMAN, 2019).  

Há que se criticar a tese que defende o “empreendedorismo” enquanto opção do trabalhador como meio de obter maior remuneração e de evitar relações autoritárias nas hierarquias das organizações apesar da insegurança na renda. A permanência na economia informal é antes de tudo exclusão social e dificuldade de inserção (ou reinserção), seja por conta de pouca qualificação, baixa oferta de empregos ou péssimas condições de trabalho, e não se deve à busca por prosperidade e liberdade (MATSUO, 2009). “Para os defensores da ideia de “empreendedorismo”, a importância e a influência da política econômica e das políticas de emprego são minimizadas e o trabalhador é visto como responsável pelo seu próprio destino” (MATSUO, 2009, p.14).

Fonte: Pexels

Individualizar um problema de ordem estrutural e coletiva, como o desemprego e o trabalho autônomo, é uma estratégia eficiente para desmobilizar os trabalhadores e mantê-los presos a lógica de exploração, uma vez que os responsabiliza dos problemas que enfrentam, como se dependesse unicamente deles evitar tais situações. Essa naturalização submete ainda o trabalhador a um julgamento social e muitas vezes a um estigma, refletindo em sua saúde não apenas no ambiente de trabalho, mas em todas as suas relações interpessoais.

Em sua pesquisa, Matsuo (2009), considera que os trabalhadores informais estão tão sujeitos às condições precárias e à exploração no trabalho quanto os formais, com o agravante de não possuírem quaisquer direitos, posto que no nosso país a condição de cidadania está associada ao modo de inserção dos indivíduos no mercado de trabalho, logo, a ruptura do vínculo empregatício formal representa a perda de direitos e benefícios sociais. Além disso,

Um emprego de carteira assinada pode ser considerado por alguns trabalhadores na informalidade como a solução para sair de uma rotina de trabalho, marcada, por exemplo, pelo enfrentamento de jornada prolongada, a intensificação do ritmo de trabalho, os baixos salários, a ausência de férias, a falta de direito ao auxílio-doença e acidentário, ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, à aposentadoria e a qualquer proteção social, entre outros aspectos. […] O emprego formal acaba sendo superestimado pelas garantias e direitos que são oferecidos, ao mesmo tempo em que as condições precárias e conflitos nas relações sociais entre empregador e trabalhador correm riscos de serem subestimados (MATSUO, 2009, p.15-16).

Sugere-se que a maior probabilidade verificada na população de mães de crianças em idade pré-escolar no que diz respeito a jornada de trabalho parcial, trabalho autônomo e desemprego possam indicar tanto uma estratégia das próprias mulheres  em conciliar demandas familiares e inserção produtiva, dadas as restrições e preferências individuais, quanto um efeito de discriminação no mercado de trabalho ou preferência dos empregadores por mulheres com menor carga de responsabilidades familiares e domésticas (GUIGINSKI; WAJNMAN, 2019).  

Assim, a maternidade pode ser entendida como um fator limitante que mantém as mães em condições de vulnerabilidade, uma vez que impõe situações adversas específicas que dificultam que saiam da situação de pobreza (YANNOULAS, 2002).

A respeito da relação entre preferências pessoais ou familiares (aqueles que não trabalham por escolha própria) e restrições em conciliar a vida profissional e familiar, Madalozzo e Blofield (2017) investigaram questões que revelassem as escolhas relacionadas a trabalho remunerado e não remunerado, assim como a divisão entre os gêneros das responsabilidades financeiras e familiares, a partir de uma pesquisa representativa de 700 mães e pais com uma ou mais crianças de até 6 anos (grupo pré-escolar na data estudada), realizada em 2012 em bairros de baixa renda em São Paulo.

De acordo com os dados coletados entre as mães não empregadas, no grupo das preferências pessoais ou familiares, 43% das mães não casadas permanecem fora do mercado por escolha, sendo que 53% optaram pessoalmente e 24% ainda estão estudando, o que impede o trabalho síncrono à frequência escolar. Em relação às mães casadas deste grupo, 50% se mantêm fora do mercado, sendo que destas 56% optaram pessoalmente por não trabalhar, 15% por preferência do marido, 2% preferiram ficar em casa devido aos baixos salários ofertados e 2% ainda estão estudando. No aspecto das restrições, 35% das mães não casadas e 18% das mães casadas fazem parte do grupo daquelas que estão procurando, mas não conseguem encontrar trabalho, e aquelas que não trabalham por não ter acesso a creches ou não terem quem cuide de seus filhos representam 20% das mães, casadas ou não (MADALOZZO; BLOFIELD, 2017).

Madalozzo e Blofield (2017, p.233) destacam que

Os níveis mais elevados de emprego entre as mães não casadas, comparados às mães casadas são devidos ao engajamento em trabalhos informais ao invés da participação do mercado formal de trabalho. Se considerarmos esta uma proxy para a qualidade do emprego, parece que as mães não casadas se sujeitam a aceitar empregos de menor qualidade do que as mães casadas. 

As famílias sem cônjuges e com filhos, ou famílias monoparentais femininas, representam 16,3% dos arranjos familiares no Brasil e são constituídos predominantemente por mulheres (40,4%), destas, 58,8% são mulheres negras (IPEA, 2015). A disparidade social brasileira e o racismo promovem uma violência estrutural sobre essas mulheres, conduzindo-as a condições subalternas de educação, saúde, alimentação e demais necessidades. Ao associar tal condição ao fenômeno da monoparentalidade feminina é possível constatar que nessas famílias  as mulheres são as provedoras e esta única renda é responsável pelo sustento dos filhos, e por vezes se mostra insuficiente para arcar com as necessidades básicas da família (BABIUK, 2015).

Dessa forma, o trabalho informal, constituído nas tradicionais estratégias de sobrevivência de trabalhadores desempregados, seria consequência da destruição do emprego formal, responsável pelo aumento do desemprego, devido aos impactos das políticas neoliberais de ajustamento econômico no mercado de trabalho (MATSUO, 2009).

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Ricardo. Desenhando a nova morfologia do trabalho no Brasil. Estudos Avançados, São Paulo, v. 28, n. 81, 2014. 

BABIUK, G. Famílias monoparentais femininas, políticas públicas em gênero e raça e serviço social. Seminário nacional de serviço social, trabalho e política social. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC: 27 a 29 out 2015.

COUTINHO, M. Sentidos do trabalho contemporâneo: as trajetórias identitárias como estratégia de investigação. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, vol. 12, n. 2, Universidade Federal de Santa Catarina, 2009, pp. 189-202.

DAL ROSSO, Sadi. Mais trabalho!: a intensificação do labor na sociedade contemporânea. Sadi Dal Rosso. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008, 208 p.

GUIGINSKI, J; WAJNMAN, S. A penalidade pela maternidade: participação e qualidade da inserção no mercado de trabalho das mulheres com filhos. R. bras. Est. Pop., v.36, 1-26, e 0090, 2019.

IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Estatísticas de Gênero: Indicadores sociais das mulheres no Brasil. IBGE, 2021 – ISBN 978-65-87201-51-1. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101784_informativo.pdf Acesso em: 10 nov. 2021.

IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Retrato das desigualdades de gênero e raça. IPEA, 2015.

Disponível em: https://ipea.gov.br/retrato/apresentacao.html Acesso em: 10 nov. 2021.

MADALOZZO, R; BLOFIELD, M. Como famílias de baixa renda em São Paulo conciliam trabalho e família? Rev. Estud. Fem. 25 (1), Jan-Apr 2017.

MATSUO, M. Trabalho informal e desemprego: desigualdades sociais. 2009, p.384. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de filosofia, letras e ciências humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-05032010-130328/publico/MYRIAN_MATSUO.pdf Acesso em: 11 nov. 2021.

YANNOULAS, S. C. Dossiê: Políticas públicas e relações de gênero no mercado de trabalho – Brasília: CFEMEA; FIG/CIDA, 2002. 93 p. Disponivel em: http://www.bibliotecadigital.abong.org.br/bitstream/handle/11465/276/CFEMEA_Dossi%EA_Pol%EDticas_p%FAblicas_rela%E7%F5es_g%EAnero_mercado_trabalho.pdf?sequence=1 Acesso em: 12 nov 2021.

Compartilhe este conteúdo:

“Carne e Osso” – situação dramática de trabalhadores de frigoríficos

Compartilhe este conteúdo:

O documentário Carne e Osso expõe a realidade cruel em que vivem os trabalhadores de frigoríficos em nosso país. Os relatos são extremamente comoventes e revoltantes, denunciando a urgência de mudança das práticas de produção na nossa sociedade.

A organização do trabalho neste setor é predominantemente taylorista e fordista, através de uma esteira fixa que conduz o produto a ser desossado. O ritmo do trabalho é variável, podendo aumentar de acordo com demandas específicas, como quando a empresa fecha contratos de enormes quantidades para exportação, ou mesmo diminuir, como quando há visita de agentes do ministério do trabalho ou sindicatos, ou mesmo para aparentar regularidade e boa imagem, sendo diversos os mecanismos utilizados pelas empresas para burlar a legislação social e do trabalho, usurpar direitos dos trabalhadores e driblar a fiscalização, colocando a classe trabalhadora em situação de extrema precariedade e vulnerabilidade.

 Normalmente o trabalhador é submetido a um ritmo de trabalho intenso, em um ambiente insalubre, com péssimas condições, mau cheiro, frio excessivo sem proteção devida, barulho extremo, sujeira e gelo acumulados no chão aumentando o risco de acidentes, cobranças de metas inatingíveis de produtividade, horas extras executadas e não registradas, demissões em casos de doença ou mesmo ausência de assistência em casos de acidente de trabalho, além de salários extremamente baixos. Uma das primeiras informações relatadas é que normalmente os trabalhadores executam três vezes mais movimentos por minuto do que sugerem os estudos médicos para a quantidade de movimentos por minuto dentro de um padrão de segurança para a saúde do trabalhador.

Fonte: Imagem retirada do documentário carne e osso.

O relato desses trabalhadores ilustra perfeitamente a definição de Antunes (2014) para a nova morfologia do trabalho, pautada pela precarização e pela superexploração do trabalho dentro da agroindústria, que potencializa a exploração da força de trabalho e a aumenta o risco cotidiano de adoecimentos físicos e mentais da classe trabalhadora.

            É também evidente a intensificação do trabalho vivenciada por esses trabalhadores, uma vez que o grau de envolvimento, empenho e esforço do trabalhador para cumprir a demanda excessiva não lhe permite seque distrair-se, conversar, ter um intervalo para descanso ou almoço, ou mesmo ir ao banheiro. Refere-se também à intensificação do trabalho o relato dos trabalhadores de que se aumenta o ritmo de trabalho e a velocidade da esteira ao fechar grandes contratos de exportação, ao invés de contratarem maior número de trabalhadores para atingir as novas metas. Esse fenômeno pode ser explicado, pois o interesse dos capitalistas em aumentar a produção através do investimento em tecnologia obriga o trabalhador a adaptar-se a um ritmo que já nasce acelerado, sendo eles responsáveis imediatos pela intensificação (DAL ROSSO, 2008).

Fonte: Imagem retirada do documentário carne e osso.

             Ainda de acordo com Dal Rosso (2008), há intensificação do trabalho quando o tempo de não trabalho, ou tempo livre, passa a ser engolido pelo trabalho, circunstâncias explícitas nos depoimentos do parágrafo anterior sobre as condições relativas ao ambiente de trabalho, e nos relatos de trabalhadores de que os finais de semana já não eram suficientes para descansar das sequelas adquiridas durante o tempo trabalhado.

            Outro abuso denunciado no documentário que se relaciona a intensificação do trabalho em sua motivação, mas que possui uma consequência que ultrapassa a esfera individual do trabalhador e o atinge enquanto grupo de forma direta é a proibição da comunicação entre os trabalhadores. Essa estratégia possui como objetivo embotar as relações interpessoais e fragmentar a identidade coletiva dos trabalhadores a fim de enfraquecer as ações coletivas e levar a perda da força sindical, o que está intimamente relacionado aos conceitos trazidos por Antunes (2014).

Os salários extremamente baixos, bem como o nível de escolaridade dos trabalhadores submetidos a esses processos adoecedores, os condenam a uma realidade de vulnerabilidade, pois esse trabalho ao invés de auxiliar o homem em sua qualidade de vida, avassala o homem em todos os seus aspectos, segundo Heloani (2003).

Com o ritmo super acelerado de suas tarefas, pressão psicológica, cobranças para atingir meta e todos os demais estressores envolvidos nesta atividade, ainda tem que vivenciar, na maioria das vezes, a justiça trabalhista para terem seus direitos garantidos. Assim, o adoecimento emocional é praticamente inevitável.

Fonte: Imagem retirada do documentário carne e osso.

É evidente que o trabalho seja fator de risco para o adoecimento do trabalhador desse setor de produção, tanto físico quanto psíquico, apesar disso, como denunciado em diversos relatos e elucidado por Silva et al. (2016), estabelecer o nexo causal entre desgaste mental e trabalho é ainda um grande desafio. O relato de alguns trabalhadores deixa claro como algumas empresas e médicos lidam com a questão: A culpa nunca é do trabalho exorbitante e precário! Se o adoecimento físico já é difícil comprovar diante da justiça mesmo que haja correlações explícitas, como no caso do depoimento de uma mulher trabalhadora que perdeu o movimento de seu braço devido à falta de assistência médica somada as péssimas condições laborais em que a empresa descaradamente atribuiu como causa de sua patologia ao fato dela fazer o percurso até o trabalho de moto, o adoecimento psíquico é ainda mais difícil, com por exemplo outro relato de uma trabalhadora com depressão e a justificativa ser atribuída a outras causas, como infidelidade conjugal. (SILVA et. al., 2016). Dessa forma, as razões do adoecimento, que são essencialmente de ordem social, são constantemente atribuídas a fatores individuais, culpabilizando as vítimas por suas mazelas e mascarando o caráter sistêmico e estrutural do modo de produção vigente.

Individualizar um problema coletivo é uma estratégia eficiente para desmobilizar os trabalhadores e mantê-los presos a lógica de exploração, uma vez que os responsabiliza dos problemas que enfrentam, como se dependesse unicamente deles evitar tais situações e se prevenir de acidentes no ambiente de trabalho. Essa naturalização submete ainda o trabalhador a um julgamento social e muitas vezes a um estigma, refletindo em sua saúde mental não apenas no ambiente de trabalho, mas em todas as suas relações interpessoais.

Fonte: Imagem retirada do documentário carne e osso.

Seligmann-Silva (2017) considera desgaste mental um conceito que abrange tanto a dimensão psíquica (sofrimento mental) quanto à psicofisiológica (estresse laboral e aspectos psicossomáticos). A autora ressalta que estudos da temática sugerem que existe prejuízo de ordem cognitiva e psicoafetiva, que afetam os sentimentos e os relacionamentos humanos em contextos diversos, como no trabalho, na família e comunidade. Ela ainda alerta que a constância de situações opressivas e insatisfação no trabalho combinadas a ausência de possibilidades de mudança ou enfrentamento, conduz o processo de desgaste ao transtorno psiquiátrico ou doença psicossomática. Na esfera psicoafetiva, relacionada a degradação dos sentimentos e percepção de si, podemos observar claramente tal prejuízo durante todo o documentário em vários dos depoimentos de trabalhadores e trabalhadoras, em que relatam sentimentos de culpa diante do adoecimento, de vergonha após a demissão e em não conseguir outro trabalho devido às complicações de saúde adquiridas e desvalorização da autoimagem.

No documentário é sugerido a urgência de se discutir um novo modelo de produção para estas empresas. Principalmente a revisão de carga horária, melhores condições das instalações e aumento do número de trabalhadores. Há um esforço conjunto do Ministério do Trabalho e do Ministério Público em conscientizar as empresas frigoríficas para adequarem o trabalho incluindo, por exemplo, pausas para o descanso e diminuição do ritmo de produção. Mas as empresas encontram-se muito refratárias às mudanças. A estrutura de fiscalização não contribui para sua efetiva realização, e ainda quando se aplica, as multas geradas diante das infrações cometidas pelas empresas são de valor irrisório, desincentivando que se comprometerem com a saúde e o bem-estar dos trabalhadores. Posto isto, pode-se dizer que há uma vontade deliberada por parte das empresas de não protegerem seus trabalhadores, pois eles têm consciência dos fatores de riscos ostensivos nas linhas de produção de suas empresas aos quais os trabalhadores são expostos e ainda assim realizam manutenção das estruturas que impedem a mudança efetiva do processo produtivo.

Infelizmente, as empresas não conseguem discernir que com uma estrutura mais humanizada haverá uma otimização de toda a organização. Que essas mudanças acarretarão menos rotatividade de funcionários, menos absenteísmo, menos atestados médicos, menos afastamentos gerando, assim, menos custos e mais lucros, consequentemente.

A psicologia do trabalho atuará ao lado dos funcionários buscando melhorias no campo de atuação levando em conta os relatos de cada um, para que haja menos traumas psicológicos e consequentemente físicos. A Psicologia organizacional nesse contexto irá atuar em busca de entender como esse ambiente de trabalho afeta o sujeito, visando o bem-estar dos funcionários, seus resultados em relação ao desempenho e estudando os fenômenos psicológicos envolvidos. Esta área atua embasando as ações dos setores conhecidos como recursos humanos ou gestão de pessoas, tendo como um dos principais focos compreender como proporcionar uma melhora na qualidade de vida dos trabalhadores baseado com suas necessidades e comorbidades, proporcionando assim maior desempenho nos seus campos de atuação, o que acarretará mais lucros para a empresa e menos funcionários afetados devido a exploração trabalhista.

Referências:

ANTUNES, R. Desenhando a nova morfologia do trabalho no Brasil: A classe trabalhadora na particularidade do capitalismo brasileiro. 2014. Estudos avançados 28 (81), 2014.

DAL ROSSO, S. Mais trabalho! A intensificação do labor na sociedade contemporânea. 2008. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.

HELOANI, José Roberto. Gestão e organização no capitalismo globalizado: história da manipulação psicológica no mundo do trabalho. São Paulo: Atlas, 2003.

SILVA, M. P.; BERNARDO, M. H.; SOUZA, H. A. Relação entre saúde mental e trabalho: a concepção de sindicalistas e possíveis formas de enfrentamento. Rev Bras Saude Ocup, 41:e23, 2016.

SCHMIDT, M. L. G.; SELIGMANN-Silva, E. Entrevista com Edith Seligmann-Silva: saúde mental relacionada ao trabalho ― concepções e estratégias para prevenção. R. Laborativa, v. 6, n. 2, p. 103-109, out./2017. http://ojs.unesp.br/index.php/rlaborativa.

Compartilhe este conteúdo:

Avaliação Psicológica e testagem no contexto da adoção no Brasil

Compartilhe este conteúdo:

Em 1996, comemorou-se pela primeira vez durante o 1º Encontro Nacional de Associações e Grupos de Apoio à Adoção o Dia Nacional da Adoção, que passou a compor o calendário oficial do país em 2002, através da Lei n.º 10.447. Desde então, o vigésimo quinto dia do mês de maio é uma data marcada por ações e campanhas que objetivam promover conscientização acerca do tema, e enquanto agente de transformação social inserido neste processo, é importante destacar o papel do profissional da psicologia neste contexto.

A adoção legal se dá em diferentes fases regulamentadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e a Lei 13.509/2017 (Brasil, 2017), que reconhecem a importância da avaliação e do profissional de psicologia nesse processo. Os interessados em adotar passam por uma avaliação psicológica com um perito da vara da infância, que irá averiguar as circunstâncias e condições sociais e psicológicas daqueles pretendentes para emitir um parecer, favorável ou desfavorável, sobre a habilitação daquele ou daqueles sujeitos. O laudo psicológico deve apresentar de forma sistemática a avaliação realizada de acordo com as normativas de Resoluções do CFP, o Código de Ética e a literatura científica, oferecendo estruturação, conteúdo e linguagem adequadas  e esclarecidas do percurso afetivo traçado no processo com objetivo de respaldar a decisão judicial. 

Mesmo com o aprimoramento constante desse processo, ainda existem desafios quando pensamos na burocratização e morosidade dele, além da subjetividade investida na análise. Existe também uma carência de pesquisas para além do laudo individual de cada processo que relatem de forma mais ampla as experiências de profissionais atuantes e pretendentes que passaram pelo mesmo, ou que investiguem as características, dificuldades e potencialidades dessa fase avaliativa, tanto em termos dos instrumentos empregados como no manejo das entrevistas e na condução das observações, nos permitindo lançar um olhar reflexivo sobre a variabilidade e complexidade da adoção. 

O rigor da avaliação deve ser quanto à aplicação e técnica, respaldada pelos princípios teóricos e éticos, sendo necessária uma compreensão não moralista e alienada em relação à consciência sócio-histórica da família para não incorrer em preconceitos, conscientes ou não, ao analisar os candidatos. Condições de ordem individual como orientação sexual, estado civil ou gênero não determinam as competências que serão analisadas no processo e o perito deve se ater a tais preconceitos e considerar os diversos arranjos familiares funcionais que formam a sociedade atual. 

Fonte: Pixabay

A autora Cintia Liana cita que “o olhar do observador deforma a realidade”, ou seja, não vemos as coisas como são, mas    como somos, o que representa um grande desafio ao lidarmos com questões abstratas. Nosso olhar, observações, análises, sentimentos e percepções frente às situações, são influenciados por nossa história pessoal. Dessa forma, não  existe neutralidade absoluta, mas o profissional deve ater-se em sempre priorizar o melhor interesse da criança ou adolescente, realizando seu trabalho de forma imparcial, por isso também a importância em seguir os preceitos avaliativos e de testagem a fim de manter a fidedignidade e validade do processo. Isso evidencia o caráter falível e limitante da avaliação psicológica e que mesmo o psicólogo mais bem preparado, munido dos melhores testes, aplicados com critérios rigorosos, pode incorrer em erro de hipótese, pois a realidade não é objetiva, previsível e estritamente quantificável. 

Normalmente a avaliação é feita em  forma de entrevista psicológica combinada com outras técnicas, onde são verificados estrutura familiar dos requerentes, comportamento, pensamentos, crenças, inseguranças, medos, preconceitos, fantasias, se as expectativas condizem com a realidade, perfil da criança desejada, os motivos do desejo deste perfil, o que pensam da paternidade, maternidade e educação, qual o lugar que será ocupado por essa criança/adolescente no imaginário parental, e o critério mais importante para grande parte dos avaliadores: a motivação verdadeira (inconsciente) que leva o requerente a pleitear a adoção, que deve ser baseada em um desejo legítimo de ter um filho. 

De acordo com Marcelo Tavares (2008), a entrevista clínica é muito importante no processo de avaliação psicológica pois é capaz de adaptar-se a diversidade de situações clínicas relevantes, e através da técnica explicitar particularidades que escapam a outros procedimentos, considerando as peculiaridades de cada caso, como testar os limites de aparentes contradições, observação atenta a expressões verbais e não verbais, além de conceder validade clínica às características indicadas pelos instrumentos padronizados. A entrevista é antes de tudo um contato social e a execução da técnica é influenciada pelas habilidades interpessoais do entrevistador, deste modo, depende do desenvolvimento destas para obtenção de êxito.

Fonte: Pixabay

O psicólogo pode utilizar ainda, por exemplo, técnicas de avaliação como testes psicométricos que avaliem por um viés quantitativo traços cognitivos, habilidades, interesses, motivações e necessidades, condutas sociais desviantes, ou mesmo testes projetivos de personalidade para a análise mais aprofundada da psiquê, ou que avalie crenças, valores e atitudes, processos afetivos e emocionais, na tentativa de resgatar e interpretar o inconsciente do indivíduo, além de instrumentos lúdicos para as crianças, questionários, reuniões e palestras para orientar os pretendentes e sanar possíveis dúvidas. Estes são apenas alguns exemplos, não há um teste específico utilizado para este contexto nem uma padronização da metodologia e é responsabilidade do psicólogo fazer a escolha do teste mais adequado ao contexto da avaliação e a população que se está avaliando, considerando também a linha teórica de sua atuação e se respaldando pela regulamentação vigente. 

A conduta profissional na Avaliação Psicológica deve ser orientada pelos princípios fundamentais e condutas do Código de Ética Profissional do Psicólogo, baseado nos direitos humanos universais, justiça social em diversos contextos e dignidade da atuação. Para além do conhecimento explicitado no Código e Resoluções do CFP, é de responsabilidade do psicólogo aperfeiçoar as competências necessárias para que desenvolva repertório suficiente que o permita agir diante de dilemas éticos (MUNIZ, 2018). Durante este processo cabe ao profissional avaliar, promover e acompanhar o amadurecimento da relação de  vínculo emocional e afetivo entre as partes, desmistificar preconceitos quanto à  história pré-adotiva da criança ou adolescente, despir-se de seus preconceitos e observar a situação através de uma perspectiva ampla, ética e sensível. Neste ponto evidencia-se a importância da formação em avaliação psicológica, bem como reciclagem e atualização profissional, como variável para diminuição das infrações éticas. 

Referências:

SILVA, Cintia Liana R. Psicologia de Família e Adoção: Avaliação Psicológica para Adoção. Joinville, SC. Disponível em:

<http://psicologiaeadocao.blogspot.com/2010/06/avaliacao-psicologica-para- adocao.html?m=1>, Acesso em: 25 maio 2021.

SATEPSI. Página institucional. Disponível em: <https://satepsi.cfp.org.br/>, Acesso em: 25 maio 2021.

BRASIL. Lei nº 13.509, de 20 de novembro de 2017. Dispõe sobre adoção e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Diário Oficial da União, Brasília, 22 de novembro de 2017; 196º da Independência e 129º da República.

CECÍLIO, M. S.; SCORSOLINI-COMIN, F. Avaliação de Candidatos Pretendentes no Processo de Habilitação para Adoção: Revisão da Literatura. Psico-USF, Bragança Paulista, v. 23, n. 3, p. 497-511, jul./set. 2018.

ALVARENGA, L.; BITTENCOURT, M.I. A delicada construção de um vínculo de filiação: o papel do psicólogo em processos de adoção. Pensando fam. vol.17 no.1 Porto Alegre jul. 2013.

ERTHAL, T. C. MANUAL. DE PSICOMETRIA. 8° Edição, 2003.

TAVARES, Marcelo. A entrevista clínica. In: CUNHA, Jurema Alcides. Psicodiagnóstico – V. 5 Porto Alegre: Artmed, 2008, p.45 – 56.

MUNIZ, Monalisa. Ética na Avaliação Psicológica: Velhas questões, Novas reflexões.  Psicol., Ciênc. Prof. (Impr). Out-Nov. 2018.

BRASIL. Lei nº 10.447, de 9 de maio de 2002. Institui o Dia Nacional da Adoção. Brasília, DF: Presidência da República, 1990.

Compartilhe este conteúdo: