Cidade de Deus: o poder das narrativas cinematográficas no retrato da realidade comunitária

Cidade de Deus pode ser considerada uma das maiores obras do cinema nacional, seja pela sua importância na denúncia da violência, pelas atuações memoráveis, ou por, infelizmente, ainda retratar um cenário atual nas favelas

Cidade de Deus é um filme de 2002 dirigido por Fernando Meirelles, inspirado no romance homônimo escrito por Paulo Lins. Após seu lançamento, o filme ganhou grande repercussão nacional e internacional sendo indicado em quatro categorias no Oscar de 2004 [1], por retratar a guerra entre traficantes ocorrida na favela Cidade de Deus entre as de 70 e 80. Porém, a adaptação de Meirelles, assim como a obra de Paulo Lins, atraíram também críticas negativas, acusadas de fortalecer o estigma e o preconceito sobre a população da comunidade.

Fonte: https://bit.ly/2U4jHrn

Atrás das faces da violência há uma comunidade

A partir do lançamento do livro Cidade de Deus, Paulo Lins se tornou um nome de destaque na literatura nacional. A narrativa sobre a realidade da comunidade no rio de janeiro foi retratada sob o ponto de vista de quem sofre com suas mazelas, viabilizando uma rede que procurou dar voz a quem estava no “não lugar” dessas discussões [2]. Essa sensibilidade também pode ser percebida na obra de Meirelles, que contratou vários jovens de comunidades do Rio de Janeiro, inclusive de Cidade de Deus, resultando em personagens mais próximos da realidade [3].

O filme se passa inicialmente no conjunto habitacional Cidade de Deus, construído entra 1962 e 1965, pelo então governador Carlos Lacerda [3]. Com a transformação de Distrito Federal para Estado da Guanabara, Lacerda executou um projeto de remoção das favelas da Zona Sul da cidade, situadas no entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas. As comunidades foram deslocadas para um grande conjunto habitacional, a Cidade de Deus, ou CDD [4].

O processo de afastamento das comunidades pobres para a periferia no Rio de Janeiro não data apenas da década de 60, mas sim de um processo de higienização social iniciado no séc. XIX, com a tentativa do governo de deixar o Distrito Federal como uma Europa possível, inspirada em Paris. Porém, essa higienização apenas expulsou os pobres da região central, sem solucionar os problemas sociais, que se fazem presentes há mais de um século [5].

As 63 comunidades que foram agrupadas revelam a heterogeneidade dos moradores de Cidade de Deus, composta de operários, trabalhadores não-especializados, comerciantes, e profissionais liberais.  O crescimento desordenado do conjunto habitacional propiciou o processo de favelização ao longo dos canais do Rio Grande e do Rio Estiva [4]. Essa transformação é mostrada no filme, juntamente com o aumento da criminalidade e do tráfico de drogas.

Fonte: https://bit.ly/2tByA8N

A intensa frequência com que a comunidade foi mostrada pela mídia com o sucesso do filme, reforçou o estigma sobre os moradores, associados à violência e ao perigo. Apesar de não abordado no filme, nos anos 70 e 80 surgiram no bairro associações de moradores, agremiações de samba [4], e outras manifestações culturais como a Revista Nós, o Grupo Cultural Projeto (teatro), Grupo Liderança Cristã da Igreja Pai eterno São José, o Grupo Perspectiva de Teatro, o Jornal O Amanhã, a ONG Taidokan Karate Club – Centro de Estudos de Artes Marciais, Grupo de Cinematografia do CIMPA, Grupo Acorda Crioulo, porta voz do Movimento Negro na Cidade de Deus, entre outras [6].

Abaixo, um poema escrito por um morador da comunidade em 2017, publicado pelo blog “CDD na Web”:

Você Sabe Quem Eu Sou

Eu sei que você me conhece
Você sabe quem eu sou

Não?

Então vou te lembrar

Eu sou aquele que te chama a atenção na faculdade
Ou melhor, aquele que não está numa faculdade
Eu sou aquele que senta no fundão
Aquele que entra por trás
Aquele que sempre está atrás

De você

Sem pejoratividade
Sem representatividade
Aquele que é difícil chegar na melhor idade

Eu sou o filho da empregada
O menino do sinal
O vendedor de bala
Aquele cujo futuro é uma hipótese afinal

Difícil de lembrar?

Então leia com atenção
Você sabe muito bem quem eu sou
Eu sou a mancha que suja sua visão.

– Jonathan Benedicto [7]

Acusado de retratar apenas a violência na comunidade, Meirelles se pronunciou: “(…) a gente não inventou aquela história. É como um espelho: a culpa não é do reflexo, é da realidade que está sendo refletida” [2]. De certa forma, o filme Cidade de Deus faz-se positivo ao denunciar a difícil realidade na comunidade em meio à violência, mas também negativo ao aumentar o estigma e o preconceito sofrido pelos moradores. Para tanto, é necessário que as narrativas cinematográficas dêem ênfase também à comunidade e aos projetos sociais realizados, como um meio de diminuir a violência, que quando encenada chocou o país em 2002.

Fonte: https://bit.ly/2E4a1WZ

Buscapé e sua arma que só disparava fotos

Ao fazer paralelos com reportagens exibidas pela televisão nos anos 80, o filme revela sua influência do gênero documental. Por ser inspirada na realidade vivida pelo autor do livro, a narrativa conta com personagens que existiram na realidade, como Zé Pequeno, Mané Galinha e Bené. E Buscapé, personagem narrador do filme, existiu na vida real? Ele realmente conheceu os maiores traficantes da comunidade?

Sim! Buscapé foi um personagem inspirado no fotógrafo free-lancer José Wilson dos Santos. As principais semelhanças com a vida de José no filme foram as tentativas frustradas em se tornar um assaltante, ter ficado no fogo cruzado entre quadrilhas rivais e o fato de ter conhecido os chefões do tráfico na Cidade de Deus. Uma das histórias que José também viveu foi o assalto no mercado em que trabalhava, e por não querer identificar nenhum dos assaltantes, foi demitido [8]

Após mais de 16 anos de lançamento do filme, os números da violência na Cidade de Deus são similares. Em 2002, ano de lançamento do filme, foram registradas 84 mortes violentas no bairro. Com a criação da Unidade de Polícia Pacificadora, as mortes foram reduzidas para 49 em 2010 e 2011, mas voltaram a subir nos anos seguintes, chegando a 99 em 2016 [9].

Fonte: https://bit.ly/2GKai5c

Dados clínicos e análises históricas demonstram o grande impacto do cotidiano do espaço habitado sobre a auto-estima, o corpo, a saúde o bem-estar psicológico e físico, bem como nos relacionamentos afetivos, profissionais e demais fatores envolvidos na qualidade de vida [10]. “As armas estão muito mais potentes, os bandidos são mais jovens que os antigos. Os antigos tinham certa sabedoria. Não estou defendendo, nem banalizando. Acredito que havia menos mortes antes do que hoje. A violência antes era menor que hoje”, declara o ator Alexandre Rodrigues, que interpretou o personagem Buscapé, ao G1 [9].

Cidade de Deus pode ser considerada uma das maiores obras do cinema nacional, seja pela sua importância na denúncia da violência, pelas atuações memoráveis, ou por, infelizmente, ainda retratar um cenário atual nas favelas do Rio de Janeiro. O envolvimento com a película deixou grandes marcas na vida de todos os envolvidos nessa produção, principalmente para os moradores, que vivem essa realidade no cotidiano. O espectador que desligar a televisão, o computador, ou sair da sala de cinema após ver o filme deve ter consciência disto: a comunidade Cidade de Deus vai muito além do que falam sobre ela.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

CIDADE DE DEUS

Título original: Cidade de Deus
Direção: Fernando Meirelles
Elenco: Alexandre Rodrigues, Leandro Firmino, Seu Jorge, Alice Braga;
País: Brasil
Ano: 2002
Gênero: Drama

REFERÊNCIAS:

[1] MURARO, Cauê. Quase lá: relembre indicações do Brasil ao Oscar; país nunca ganhou. G1. 2015. Disponível em: <http://g1.globo.com/pop-arte/oscar/2015/noticia/2015/02/quase-la-relembre-indicacoes-do-brasil-ao-oscar-pais-nunca-ganhou.html>. Acesso em: 22 fev. 2019.

[2] RIBEIRO, Paulo Jorge. “Cidade de Deus” na zona de contato: Alguns impasses da crítica cultural contemporânea. Revista de crítica literaria latinoamericana, p. 125-139, 2003. Disponível em: < http://as.tufts.edu/romlang/rcll/pdfs/57/9-RIBEIRO.pdf>. Acesso em: 21 fev. 2019.

[3] PENKALA, Ana Paula. Cidade de Deus e o olhar documental: Estratégias formais para a denúncia da violência. XI Colóquio Internacional sobre a Escola Latino-Americana de Comunicação, 2007. Disponível em: < http://www.academia.edu/download/3371043/99l8hhz0sgzhb7t.pdf>. Acesso em: 21 fev. 2019.

[4] CDD NA WEB (Rio de Janeiro) (Ed.). História da Cidade de Deus. 2015. Disponível em: <http://cddnaweb.com.br/28/>. Acesso em: 22 fev. 2019.

[5] SIQUEIRA, Denise da Costa Oliveira. João do Rio, repórter da pobreza na cidade. Em questão, v. 10, n. 1, p. 81-93, 2004. Disponível em: < https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=6134750>. Acesso em: 22 fev. 2019.

[6] WELLINGTON MORAES FRANÇA (Rio de Janeiro). REVISTA NÓS da CDD: Não estávamos sós na CDD dos anos setenta e oitenta!. 2012. Disponível em: <https://revistanosdacdd.blogspot.com/search?updated-max=2013-10-27T00:36:00-07:00&max-results=7>. Acesso em: 22 fev. 2019.

[7] BENEDICTO, J. Você Sabe Quem Eu Sou. In: CDD NA WEB. 2017.  (Rio de Janeiro) (Ed.).  Disponível em: <http://cddnaweb.com.br/voce-sabe-quem-eu-sou/>. Acesso em: 22 fev. 2019.

[8] ALVES FILHO, Francisco; MAGNO, Carlos. Fotógrafo, José Wilson dos Santos inspirou o personagem Buscapé, de Cidade de Deus. 2017. ISTOÉ Cultura. Disponível em: <https://istoe.com.br/21469_IDENTIDADE+REVELADA/>. Acesso em: 22 fev. 2019.

[9] TORRES, LÍvia; TITO, FÁbio; GRANDIN, Felipe. Filme ‘Cidade de Deus’ faz 15 anos em meio a aumento da violência na comunidade: ‘Convulsão social’, diz ‘Zé Pequeno’. G1 Rio de Janeiro. 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/filme-cidade-de-deus-faz-15-anos-em-meio-a-aumento-da-violencia-na-comunidade-convulsao-social-diz-ze-pequeno.ghtml>. Acesso em: 22 fev. 2019.

[10] VASCOCELOS, N. A. Qualidade de Vida e Habitação. In: DE FREITAS CAMPOS, Regina Helena. Psicologia Social Comunitária: da solidariedade à autonomia. Editora Vozes Limitada, 2017.