O Documentário
No ano de 2000, o diretor e fotógrafo Marcos Prado se dedicava havia seis anos a documentar em fotos o cotidiano do aterro sanitário de Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro. Lá encontrou a senhora Estamira Gomes de Souza e resolveu então fotografá-la, ela concordou, mas com uma condição, ele teria que conversar com ela depois. Marcos Prado cumpriu o combinado e ficou encantado com o discurso desconexo, diferente, que ora fazia sentido, ora não fazia sentido algum. Eles ficaram próximos. Então, em uma de suas conversas, após Estamira desvendar que ele tinha a missão de revelar a verdade dela, Marcos decide fazer o documentário: ESTAMIRA, lançado em 2006, que retrata a vida dessa senhora (JUHAS; THIAGO, 2011).
O documentário participou do festival de Cinema do Rio de Janeiro, em setembro de 2004. Desde esta data o filme começou a aparecer com frequência na imprensa. Em 28 de julho de 2006, o documentário estreou no circuito de cinemas do Rio de Janeiro e São Paulo tendo presença nos jornais até 2007, ano de lançamento da película em formato de DVD. Foram quatro anos de filmagem, três Natais registrados, ou seja, muitas idas ao lixão (CARVALHO, 2010).
A Biografia
Nas palavras de Estamira:
“A minha missão, além de eu ser Estamira, é revelar a verdade, somente a verdade. Seja mentira, seja capturar a mentira e tacar na cara, ou então ensinar a mostrar o que eles não sabem, os inocentes… Não tem mais inocente, não tem. Tem esperto ao contrário, esperto ao contrário tem, mas inocente não tem não”.
Segundo Szabô et al (2013), Dona Estamira narra sua história de 62 anos de vida, sendo que 20 deles foram vividos no aterro sanitário. Os filhos ajudam a construir a sofrida e inóspita trajetória da mãe. Hernani, Carolina e Maria Rita contam a respeito do passado, da convivência e da percepção a respeito do quadro clínico da mãe. Estamira ficou sob os cuidados de sua mãe e do avô após o falecimento do pai, sua mãe sofria de transtornos mentais e o avô além de abusar dela sexualmente, a levou para um bordel, quando tinha apenas 12 anos de idade, ficou lá por cinco anos, até conhecer o seu primeiro marido, com quem teve o primeiro filho.
O casamento não durou muito, pois o marido era mulherengo e agressivo. E passado algum tempo depois, Estamira conhece seu segundo marido. Após casar-se novamente com um emigrante italiano, tem um segundo filho. Confessa que amava o companheiro, porém o relacionamento também era conflituoso. O novo marido insistia em internar sua sogra em um hospício, Estamira relutou bastante, mas acabou cedendo e sua genitora foi para o Hospital Psiquiátrico Pedro II.
O relacionamento fracassou por motivos comuns ao casamento anterior. Estamira é expulsa da casa do italiano e então, recomeça sua vida no Jardim Gramacho e é de lá que retira o sustento da família. Assim que se instalou ali, foi buscar a mãe no sanatório psiquiátrico, que era famoso até meados da década de 80, pelos maus tratos a seus pacientes (SZABÔ et al, 2013).
Carolina conta do recomeço no lixão depois da separação dos pais, disse que a rotina de Estamira como catadora era muito desgastante, chegando a dormir várias noites na rua ao relento, aquela realidade insalubre descontentava os filhos que convenceram a mãe de procurar um novo emprego. No novo trabalho tudo parecia favorável até que um certo dia, voltando de uma confraternização da firma, foi estuprada no caminho. E outro episódio de violência sexual aconteceu próximo a sua casa. Mais ou menos nessa época que Estamira começa a apresentar distúrbios psíquicos (CARVALHO, 2010).
Ela reage de forma muito negativa quando o assunto é Deus ou Jesus Cristo, manifesta crises de raiva, euforia e delírios de grandeza. Até se coloca como superior a Deus, nos seus delírios, mas nem sempre foi assim, segundo a filha Carolina a mãe era uma mulher religiosa antes dos distúrbios mentais e acreditava que todo aquele sofrimento pelo qual estava passando era uma provação divina (CARVALHO, 2010).
Segundo Carvalho (2010), o filho Hernani já contou com a ajuda do padrasto italiano para levar a mãe do aterro imobilizada, em busca de uma internação, em algum hospital psiquiátrico do Rio de Janeiro, essa atitude a deixou revoltada e inconformada. O filho é protestante e diz que evita a mãe porque ela blasfema contra religiões e principalmente contra a dele. Evita também por ela ser “clinicamente completamente louca”. Também coloca que “espiritualmente falando ela tem influências demoníacas”. Ele confessa o desgaste da relação e se diz cansado, o que justifica o distanciamento dos dois. Já Carolina não concorda com as internações e prefere as coisas do jeito que estão sem a necessidade da mãe ser amarrada e dopada.
Conforme Sousa (2007), Estamira não mede as palavras e sua indignação vem à tona, acompanhada de delírios, que por sua vez tem a coerência e a lucidez de abarcar os valores falidos de nossa sociedade, uma verdadeira denúncia social de nosso tempo. Um exemplo tem haver com a burocratização do saber referindo-se aos doutores, como: “copiadores de receita”. Questiona, portanto, os automatismos das prescrições e expõe uma falta de originalidade nos atendimentos do serviço de saúde mental, a maneira ainda preponderante de enxergar o quadro clínico do paciente pautado no modelo médico, ou seja, isolando a singularidade do sujeito.
Outra problemática levantada pela protagonista é o consumismo exacerbado de nossa cultura, ela se refere ao lixo dizendo: “Isso aqui é um depósito de restos. Às vezes é só resto. E às vezes vem também descuido. Resto e descuido”. O homem se apega ao desnecessário e precisa frequentemente recorrer à compra numa ilusória busca de prazer, que é imediato e que não preenche as lacunas existenciais pendentes, dessa forma, o desperdício é inevitável, até porque há uma constante substituição, ou seja, é um ciclo vicioso.
O documentário e a personagem problematizam o desamparo humano, seja ele, biológico, familiar, também social, econômico e político. E Estamira não só vivencia todos os dias esse descaso, como aproveita a oportunidade de ser ouvida para estampar sua revolta, mostra o que faz-se questão de ser ignorado, esquecido, deixado de lado. Mostra que além dos rótulos ela tem identidade própria, ela tem sentimentos, história, sabedoria e traumas. (JUHAS; THIAGO, 2011).
“Ela fala, grita, pensa, demonstra, faz, olha, argumenta. Sua voz é o fio condutor de toda a narrativa do documentário, e revela o quanto o poder narrar e expressar um sofrimento faz a vida resistir, mesmo no meio dos escombros e dos detritos” (SOUSA, 2007, p.52).
Estamira morre no dia 28 de julho de 2011, no Hospital Miguel Couto, Rio de Janeiro, mais uma vez negligenciada, vítima do caos da Saúde Publica precária de nosso País. Faleceu em decorrência de uma septicemia (infecção generalizada).
Relação entre o documentário e o tema crise
Os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), NAPS (Núcleos de Atenção Psicossocial) e CERSAMs (Centros de referência de Saúde Mental) são os então “serviços de atenção à crise” que propõem outra intervenção que não a asilar/hospitalocêntrica preponderante antes da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial, houve uma reformulação da assistência em Saúde Mental. (FERIGATO; CAMPOS; BALLARIN, 2008). Mas será que depois dessa reformulação o sujeito que sofre psiquicamente tem o suporte que necessita? Sente-se acolhido? Reconhece aquele espaço como um apoio, o qual pode confiar?
No documentário o que fica claro pela personagem é uma contundente crítica ao atendimento prestado pelo serviço, como mencionado anteriormente, refere-se aos médicos como “copiadores de receita”, não compreende a rapidez com que se chega a um quadro clínico, numa breve conversa, e como logo uma medicação universal é prescrita, sem o cuidado de pensar se aquela seria a melhor opção para o seu caso em específico.
De acordo com Ferigato; Campos e Ballarin (2008), a medicação não pode ser vista como a única e suficiente solução para o paciente, no que tange o rebaixamento da sintomatologia, mas de ser ministrada no intuito de estabelecer condição de relação diferente entre paciente e seu problema, equipe e meio ambiente.
[…] cada decisão de uma intervenção farmacológica deve estar incluída dentro de uma estratégia geral que tem em seu centro o projeto terapêutico singular do usuário e não a simples eliminação dos sintomas. Caso contrário, da mesma forma que os psicotrópicos podem representar um importante meio de trabalho e de comunicação dentro e fora da instituição, facilitando a relação entre o paciente e a vida, quando mal administrado, podem também representar o maior obstáculo desta mesma relação. (SARACENO et al., 2001, apud FERIGATO; CAMPOS; BALLARIN, 2008, p. 39)
Agressões conjugais, estupros, traições, miséria e outros, segundo Portella, Bueno e Nardi, (2001 apud CARVALHO, 2010) são possíveis estressores ambientais causadores de distúrbios mentais. Porém estes fatores ambientais psicossociais devem pressionar uma vulnerabilidade específica, como genes ou hereditariedade. O filme traz estes dois fatores – hereditariedade e ambiente.
A crise, elucida Ferigato; Campos e Ballarin (2008) pode emergir de uma situação imprevisível, por exemplo a morte, ou previsível como gravidez e envelhecimento. “Nesta perspectiva o adoecimento é entendido como uma forma de adaptação e de reação do sujeito frente aos estímulos internos ou externos ao organismo” (p. 24).
O documentário proporciona um espaço de escuta a Estamira e dessa forma ela aproveita a oportunidade para jogar para fora tudo que a muito tempo se acumulava. Segundo Carvalho (2010), mesmo em um lugar tão insalubre e fétido, Dona Estamira encontra formas de driblar uma realidade aparentemente intolerável, ela se distrai e interage com os colegas de trabalho e naquele lugar ela se vê livre dos preconceitos que seus distúrbios e a própria sociedade lhes traz.
REFERÊNCIAS:
CARVALHO, H. E. Loucura no Cinema e no Jornal: olhar da divulgação científica com análise fílmica e de repercussão do documentário Estamira na mídia impressa brasileira. 2010. 76 f. Monografia (Especialização em Divulgação da Ciência, da Tecnologia e da Saúde) Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2010.
FERIGATO, Sabrina; CAMPOS, Rosana Teresa Onoko; BALLARIN, Maria Luisa GS. O atendimento à crise em saúde mental: ampliando conceitos. Revista de Psicologia da UNESP, v. 6, n. 1, 2008.
JUHAS, Thiago Robles; SANTOS, Niraldo de Oliveira. Ainda em cartaz, “Estamira”: A Psicanálise nas telas do Cinema. Estud. psicanal., Belo Horizonte , n. 36, p. 157-164, dez. 2011 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372011000300015&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 09 maio 2016.
RICARDO VILLELA (Rio de Janeiro) (Ed.). Morre Estamira: personagem-título de premiado documentário brasileiro. 2011. Disponível em: <http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2011/07/morre-estamira-personagem-titulo-de-premiado-documentario-brasileiro.html>. Acesso em: 10 maio 2016.
SOUSA, Edson Luiz André de. Função: Estamira. Estud. psicanal., Belo Horizonte , n. 30, p. 51-55, ago. 2007 . Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372007000100007&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 09 maio 2016.
SZABÔ, Alexandre ET al. VII JORNADA DE SOCIOLOGIA DA SAÚDE. ISSN: 1982-5544, 2013, Curitiba. OS DELÍRIOS DE ESTAMIRA: DA INVISIBILIDADE À EXCLUSÃO SOCIAL. Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética – NEB. Faculdades Pequeno Príncipe. Curitiba, 2013.
FICHA TÉCNICA DO FILME:
ESTAMIRA
Diretor: Marcos Padro
Elenco: Estamira
Pais: Brasil
Ano: 2006
Classificação: Livre