Explorando a inversão de papéis de gênero: “Eu não sou um homem fácil”

Damien (Vincent Elbaz) bate a cabeça e acorda em um mundo invertido onde o gênero masculino é o oprimido. A proposta francesa, inicialmente de comédia pastelão, subitamente nos imerge num mundo inverso onde as mulheres são o “sexo forte”, evidenciando a verdade do avesso. 

Ana Júlia Labre Tavares (Acadêmica de Psicologia) – anajulialabre@rede.ulbra.com

“Eu Não Sou um Homem Fácil” (título original: “Je ne suis pas un homme facile”) é um filme francês de comédia lançado em 2018. Dirigido por Eleonore Pourriat, o filme explora questões de gênero e igualdade através de uma premissa única. A história segue Damien (Vincent Elbaz), um mulherengo sexista que, após sofrer um acidente, acorda em um mundo onde os papéis de gênero foram invertidos. Neste mundo, as mulheres ocupam as posições de poder e influência, enquanto os homens são frequentemente objetificados e subjugados. Damien precisa se adaptar a essa nova realidade, enfrentando desafios que as mulheres enfrentam cotidianamente, como o sexismo no trabalho e o assédio sexual.

A sociedade retratada no filme evoca distopias frequentemente encontradas em filmes de ficção científica, sendo criações imaginárias usadas para satirizar e evidenciar aspectos da nossa realidade que uma parte da população talvez nunca tenha identificado – geralmente, aquela que não é oprimida. Em obras como ‘1984’, de George Orwell, é o cidadão comum que ousa vislumbrar além das limitações impostas. Em ‘Fahrenheit 451’, livro de Ray Bradbury adaptado para o cinema por François Truffaut, esse indivíduo tenta acessar algo proibido. Em ‘Jogos Vorazes’, de Suzane Collins,  vemos a espiral de opressão sendo quebrada por uma jovem que provém do estrato mais pobre daquela sociedade. No filme de Pourriat, um homem de nossa sociedade patriarcalista é transportado para uma realidade onde o matriarcado é uma norma estabelecida. Nessa sociedade, são as mulheres que detêm o poder, invertendo completamente os tradicionais papéis de gênero.

É possível observar, então, uma temática profundamente conectada ao sexo e à política, áreas que, segundo o filósofo Michel Foucault, são particularmente afetadas pela dinâmica de exclusão de discursos. Foucault exemplifica esse fenômeno de exclusão no artigo ‘A Ordem do Discurso’ ao discutir o descrédito historicamente atribuído à loucura. Desde a Idade Média, o discurso dos indivíduos considerados loucos é descartado como algo destituído de verdade e relevância. Essa mesma dinâmica de exclusão permeia o discurso feminista, visto que, na ótica machista, as mulheres são rotuladas como psicologicamente instáveis. Isso explica por que as reivindicações do movimento feminista frequentemente são descredibilizadas.

O filme aborda essa questão de forma direta. Em uma cena, por exemplo, Damien, já imerso no mundo invertido, renuncia ao seu cargo como assistente pessoal de Alexandra (Marie-Sophie Ferdane), uma escritora renomada. A resistência dela em aceitar sua demissão é acompanhada de acusações de que ele está se excedendo, atribuindo seu comportamento a uma crise de estresse. Quando ela se vê sem argumentos, recorre à desculpa de que ele está adotando um discurso “masculinista” (equivalente, neste universo, ao feminismo) como forma de justificativa para ignorar sua decisão.

                                                                                                                                  Netflix Brasil/reprodução

Um mulherengo sexista acorda em um mundo onde os papéis de gênero foram invertidos.

O longa possui algumas falhas, como a falta de exploração do fato de que, nessa sociedade “matriarcal”, os homens são livres para expressar emoções, deixando de abordar adequadamente a forma como o machismo prejudica, também, os homens. De acordo com os dados obtidos pela OMS em 2019, homens apresentaram um risco 3,8 vezes maior de morte por suicídio que mulheres, além de figurarem em uma estatística dez vezes maior de morte por crimes violentos. De acordo com os dados, as expectativas sociais em relação aos homens são capazes de aumentar o desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis, vícios, acidentes de trânsito e homicídios, além de contribuírem para o aumento das taxas de suicídio.

De tal forma que é possível apontar que o enredo dedica muito tempo ao relacionamento entre Damien e Alexandra. É compreensível que esse relacionamento sirva como pano de fundo para explorar a realidade invertida, oferecendo nuances às personalidades dos protagonistas, permitindo-lhes transcender os rótulos limitantes impostos pela sociedade. Porém, no universo criado há tantos pontos que poderiam ter sido mais explorados. A trama provoca temas como a religião em que, os personagens citam a divindade com pronomes femininos e como, historicamente, o matriarcado foi imposto a partir da visão de que as mulheres, por terem o poder de gerar uma vida em ventre, são o sexo mais forte.

Ademais, “Eu não sou um homem fácil” retoma um tema frequentemente debatido pelo feminismo, mas o faz de uma perspectiva única, desafiando até mesmo aqueles que não são militantes do movimento a sair de suas zonas de conforto. Apesar da abordagem muitas vezes leve, ele lança na tela uma realidade desconfortável para o espectador — uma realidade cruel de violência verbal e física que as mulheres passam diariamente.

Em última análise, embora o filme apresente exemplos tangíveis de assédio e padrões estéticos aos quais as mulheres são frequentemente submetidas, é crucial reconhecer que o machismo vai muito além do que é retratado. Estupro, feminicídio, violência doméstica e a negação do direito ao próprio corpo são questões extremamente urgentes que os movimentos feministas expõem e combatem incansavelmente. O que não é retratado tão fielmente no filme.

FICHA TÉCNICA

  • Título Original: Je ne suis pas un homme facile
  • Duração: 98 minutos
  • Ano produção: 2018
  • Estreia: 13 de abril de 2018
  • Distribuidora: Netflix
  • Dirigido por: Éléonore Pourriat
  • Classificação: 14 anos
  • Gênero: Comédia; Romance; Drama;
  • Países de Origem: França

Referências

COSTA, Juliana. “Eu não sou um homem fácil” traz ironia como arma. Palmas-TO. Disponível em <: https://www.folhape.com.br/cultura/critica-eu-nao-sou-um-homem-facil-traz-ironia-como-arma/68955/  >. Acessado em 27 out. 2023.

VIEIRA. Letícia. Feminismo de “Eu não sou um homem fácil” silencia seus próprios aliados. Palmas-TO. Disponível em <: https://medium.com/@mcarolinasoares_86413/feminismo-de-eu-n%C3%A3o-sou-um-homem-f%C3%A1cil-silencia-seus-pr%C3%B3prios-aliados-88c21c0dac95>. Acessado em 27 out. 2023.

(Sem autor definido) Os efeitos da masculinidade tóxica na saúde do homem. Disponível em <: https://summitsaude.estadao.com.br/desafios-no-brasil/os-efeitos-da-masculinidade-toxica-na-saude-do-homem/ >