Trinta segundos sem pensar no medo: literatura como desatar de nós

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Comecei a ler Pedro Pacífico por recomendação de uma colega muito querida em supervisão clínica e, posteriormente, minha supervisora, que também deu início à leitura, disse que eu deveria ler, pois eu gostaria da temática e da narrativa do livro. Nunca tinha lido um livro no formato de Trinta segundos sem pensar no medo, e o título também não me fez chegar nem perto de imaginar os assuntos que a obra se propõe. Se as recomendações já tinham sido muito confiáveis, saber que se tratava da biografia de um leitor-escritor que teceu sua narrativa em torno das angústias de descobrir e se permitir experienciar sua sexualidade brilhou ainda mais meus olhos, mas os resultados foram muito superiores a qualquer expectativa que eu tivesse construído. 

Na contracapa, Carla Madeira escreve “com uma narrativa envolvente, Pedro Pacífico fala de si enquanto ouvimos um pouco sobre todos nós e o mundo que precisamos mudar”, e eu não poderia concordar mais com essa premissa. Pacífico me ganhou no primeiro capítulo, quando contextualiza o título da obra e introduz um clímax que tem resolução nos últimos capítulos do livro. No miolo, perpassando momentos muito impactantes de sua trajetória, ele traz dilemas, incertezas e instabilidades que, ainda que recortados para o contexto de sua sexualidade, abraçam o leitor com o gostinho da experiência humana compartilhada que é se sentir vulnerável, assustado e com medo do desconhecido. 

Nesse sentido, a narrativa é leve, a linguagem é acessível, a construção de parágrafos é tudo menos cansativa e, entrelaçando com sua própria história, Pedro traduz o poder que a literatura teve para ajudá-lo a viver apesar dos obstáculos que ele enfrentou no caminho. Ou seja, o autor, ao falar sobre sua jornada de descobrir de que maneiras ele gostaria de ser e estar no mundo, bem como formas de ser honesto consigo mesmo, recomenda bons livros, fala sobre a importância e da potência que uma boa literatura pode ter, e aborda, com muita sensibilidade, os muitos momentos da nossa caminhada em que nos anulamos para que possamos ser parte e pertencentes a um grupo, muitas vezes não dedicando tempo para refletir sobre as diferenças gritantes que existem entre o que realmente queremos, o que queremos para ser aceitos pelos outros e o que queremos porque supomos que é o que os outros querem para nós. 

Pacífico discorre sobre quão pesado é viver sob uma máscara da qual, muitas vezes, não temos muito controle sobre a imposição, e a leitura de seu livro me rendeu muitas perguntas que deixo aqui como um convite a essa obra que, para mim, virou mais uma de cabeceira: “Qual a primeira expectativa que a sociedade tem sobre você que você descumpriria se pudesse?”; “Como ocorreu o processo de vinculação entre o diferente e o indesejado e o que teria que ter sido diferente para que essa ideia não fosse construída?”; “De que maneiras o sofrimento pode ser um processo menos solitário?”; “Supondo que, desde crianças, nossa sociedade encorajasse o ato de pedir ajuda e demonstrar vulnerabilidade como sinônimos de coragem, como isso influenciaria o que você vive hoje? O que isso te diz sobre como você quer seguir daqui pra frente?”; “Supondo que você não tivesse que construir nenhuma imagem para os outros, que imagem você construiria para si?”; “Supondo que pudesse existir um grupo no qual você se sinta pertencente, como ele seria? Como os integrantes pensariam e se comportariam?”; 

“Como seria poder tomar decisões que não precisassem passar pelo crivo da maioria?”; “Se existissem atividades ou grupos que pudessem te ajudar a lidar com as amarras que você e os outros impõem sobre você, quais seriam esses?”; “Como se preparar para viver o que hoje são dúvidas? Como é o processo em que dúvidas podem se tornar certezas?”; “Como redescobrir aquilo que foi privado por tanto tempo?”; “Depois de tanto tempo se escondendo, como seria se encontrar? Qual seria a primeira coisa que você faria?”; “O que as pessoas ganham quando você vive o que elas gostariam que você vivesse? E o que você perde?”; “Que diferenças existem entre contar algo e pedir aprovação? Como lidar com a não aprovação e como ela influencia a continuidade do que é vivido?”; “Que diferenças existem entre o acolhimento e o respeito? Supondo que você fosse estabelecer limites para o desrespeito, que limites seriam esses?”; “Como seria poder ser inteiro pelo tempo que há pela frente? Como você se sentiria se, ao final da sua vida, percebesse que viveu pela metade? E o que faria se pudesse voltar no tempo?”; “Qual o peso de ser diferente em uma sociedade que elege padrões? Com quem você poderia ser livre?”; “Supondo que você tivesse que decidir entre o conhecido e o desconhecido, qual deles te aproxima mais daquilo que faz sentido para você?”; “De que maneiras ter contato com o desconhecido pode nos ajudar a compreender e respeitar o diferente? Como o contato com outras visões pode influenciar a nossa?” 

Pessoalmente, ler um livro em que me sinto representada enquanto uma mulher cis lésbica, tendo experienciado muitos dos dilemas e, para além da empatia, conseguir me aproximar da experiência de Pacífico, é sempre um presente, daqueles muito bonitos mesmo. Existir em uma sociedade que constrói através do discurso que muitas formas de viver a sexualidade e o desejo são erradas é um desafio diário, que começa pela lente que vem de dentro. 

Quando Pedro diz sobre como o processo teria sido mais fácil caso ele tivesse tido contato pessoalmente com pessoas sexo-gênero dissidentes, não teve como não me emocionar estando nesse mesmo lugar durante toda a minha adolescência, em que o sentimento de estrangeirismo foi muito forte. Também me lembro sobre como, ao ser uma pessoa designada como mulher por conta do meu aparelho reprodutor e, com isso, ter despejadas sobre mim as mais variadas expectativas em relação a como me portar, que pessoas (homens) eu deveria desejar e que papéis desempenhar, negar esses lugares foi motivo de outras pessoas verem que era possível, talvez, ser honesta consigo mesma nesse processo. Eu não tive isso, e Pedro também não teve, mas obras como essa são uma porta de entrada e um mundo de possibilidades para que esse movimento continue avançando. 

Por fim, Trinta segundos sem pensar no medo é muito mais do que um livro que fala sobre os dilemas de um ser humano sobre questões relacionadas a sua sexualidade, e é definitivamente um livro direcionado a pessoas de todas as idades. Quando Pedro menciona o papel da literatura em ajudá-lo a desamarrar os nós que ele mesmo tinha dado nas cordas que o prendiam, entendo como um convite para que todos nós possamos refletir, seja através da leitura, ou não, o que pode ser capaz de desatar os nós que nos prendem – sendo que alguns são, de fato, atados por nós mesmos. E o mais importante: que as pessoas que exercem papéis de peso na nossa vida se contentem em viver os nossos sonhos conosco, mais do que viver os sonhos que sonharam para nós. 

FICHA TÉCNICA

Título: Trinta segundos sem pensar no medo: Memórias de um leitor 

Autor: Pedro Pacífico 

Editora: Intrínseca 

Data de publicação: 8 de agosto de 2023 

Número de páginas: 192 páginas 

Gênero: Memórias, autoaceitação 

ISBN-10: 6555606843 

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Graduanda em Psicologia do 10º período (bacharelado e licenciatura) pela ULBRA Palmas. Estagiária em Psicoterapia Clínica sob a ótica da Abordagem Sistêmica e no portal (En)Cena – A Saúde Mental em Movimento, atuando na produção de textos e integrando a equipe editorial. Possui certificação Nível I em Terapia Focada nas Emoções. Atualmente exerce atividades de monitoria na disciplina de Psicologia Sistêmica e realiza estágio de licenciatura na disciplina de Psicologia da Sexualidade. Seus temas de interesse em pesquisa abrangem gênero, sexualidade, saúde mental, relacionamentos interpessoais e pensamento sistêmico novo-paradigmático

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