Black Mirror, uma série britânica criada por Charlie Brooker, traz a cada nova temporada reflexões sobre avanços da sociedade moderna e seus efeitos no cotidiano dos sujeitos mostrando um futuro não muito longínquo.
Buscando uma visão não tão distante do ponto no qual nos encontramos pela diversidade tecnológica que dispomos, o terceiro episódio da primeira temporada, traz uma amostra de tais tecnologias expondo um implante chamado “Grão”, usado na intenção de possibilitar o controle total de memórias a cada um de seus usuários, permitindo-os a reprodução das mesmas através de seus olhos, ou até a projeção em televisões.
Fazendo uma analogia visando o contexto da literatura brasileira, a história de Liam e Fi, pode ser observada com os mesmos olhos de Dom Casmurro, uma obra de Machado de Assis, publicada em 1899, na qual toda a trama se desenvolve a partir do questionamento “Capitu traiu ou não Bentinho?”, trazendo certo suspense para o enredo.
Liam (TobyKebbel) é um advogado em emergência, que dá início ao episódio em uma entrevista de emprego. Casado com Fi (Jodie Whittaker), Liam começa a desconfiar da esposa após um encontro de antigos amigos no qual nota certa tensão entre ela e Jonas (Tom Cullen), comportamentos estranhos e determinada omissão de informações por parte de ambos. Obcecado por descobrir qual o tipo de relacionamento existente entre os dois, Liam começa a repassar incansáveis vezes suas memórias sobre a noite passada e confronta sua esposa de uma maneira incessante.
Freud em 1895 postula reflexões sobre os chamados mecanismos de defesa, pelos quais o Ego frente às exigências das demais instâncias psíquicas, Id e Superego, se manifesta de forma a proteger o sujeito de conteúdos que para si sejam potenciais vias de adoecimento. O recalcamento, um dos mais antigos mecanismos, tem como função principal a eliminação de partes inteiras da vida afetiva e relacional profunda do indivíduo. Bergeret (2006) define o recalcamento como um processo ativo, destinado a guardar fora da consciência as representações inaceitáveis para a pessoa.
Este episódio da série em especial, traz reflexões sobre as limitações mentais do ser humano e até que ponto o total controle de seus pensamentos, emoções e memórias podem ser considerados saudáveis e sobre o possível distanciamento dessa condição no processo de saúde e doença. Liam, se torna obsessivo em relação a análise de todas as situações vividas por ele, trazendo desconforto ao mesmo de tal maneira, que todas as situações, que possivelmente para todos seriam ignoradas ou menos significativas, para Liam acabavam em pontos de intermináveis discussões. Não obstante o fato da real traição da esposa, a grande reflexão proposta aqui é sobre o uso excessivo do dispositivo, não sobre a ocasião da traição.
Os mecanismos de defesa psicanalíticos na maioria das vezes têm como função principal o alivio de tensão psíquica do ser humano, servindo como via de escape para problemas de pouca (ou maior) importância, possibilitando certa “qualidade de vida” ao sujeito em hipótese. Após incansáveis análises aos fatos ocorridos, Liam chega à conclusão de que realmente ocorrera o ato de infidelidade, entra em conflito com Fi e sai de casa deixando esposa e filha, removendo por conta própria ao final o Grão.
Levando em consideração aspectos ainda não citados, todas as pessoas que por motivos diversos não se utilizavam desta tecnologia, eram tidos como estranhos no meio social, se relacionando a posicionamentos políticos pouco convencionais, divergentes dos meios de vida vigentes. Zygmunt Bauman(2003), sociólogo polonês, trata em sua obra Modernidade Líquida sobre temas como estes, o movimento da sociedade em convergência com o avanço da tecnologia e reflexões sobre o desenvolvimento do ser humano em relação a ela. Como última reflexão, deixo este trecho do livro, que de alguma maneira reflete o que foi discutido aqui.
Os adolescentes equipados com confessionários eletrônicos portáteis são apenas aprendizes treinando e treinados na arte de viver numa sociedade confessional – uma sociedade notória por eliminar a fronteira que antes separava o privado e o público, por transformar o ato de expor publicamente o privado numa virtude e num dever público […] (BAUMAN, 2003).
REFERÊNCIAS:
Bergeret, J. O problema das defesas. In: Bergeret, J. …[et al.]. Psicopatologia: teoria e clínica. Porto Alegre: Artmed, 2006.
Freud, Sigmund. (1915). O Recalcamento. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.