Análise do filme sob uma perspectiva psicanalítica.
Matheus de Castro – matheusmdecastro@gmail.com
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“Viver é isso: ficar se equilibrando o tempo todo, entre escolhas e consequências”, afirmou certa vez o filósofo e escritor Jean-Paul Sartre. Mas e se pudéssemos ter acesso às infinitas possibilidades de escolha e às vidas que elas desencadeiam – da mais glamurosa à mais pacata, onde nos materializamos em uma pedra à beira do abismo? Parece uma ideia tentadora, e é a partir dessa premissa que se desenvolve a divertida – e maluca – história do filme que se consagrou o grande vencedor da última cerimônia do oscar.
Tudo em todo lugar ao mesmo tempo, vencedor de sete estatuetas (inclusive a de melhor filme), parece uma síntese interessante dos nossos tempos, apresentando uma linguagem vertiginosa e um tanto caótica. Trazendo consigo a ideia de multiverso, a história transita entre diferentes realidades, ligadas através de um núcleo de personagens que aprende a “viajar” entre os múltiplos universos que constituem o infinito. Apesar de soar complexo, o filme trabalha o conceito de uma forma leve, proporcionando ao espectador uma experiência agradável e interessante.
A história acompanha Evelyn Wang, uma imigrante chinesa nos Estados Unidos, dona de uma lavanderia à beira da falência. Enfrentando problemas no casamento e uma relação atribulada com a filha, Wang parece estar vivendo o lado obscuro do american dream – o famoso sonho de vida americano, repleto de oportunidades e prosperidade. Enquanto se debruça sobre uma pilha de papéis a fim de salvar seu negócio, a protagonista se depara com uma questão que parece desafiar todos nós em algum momento da vida – como seria sua vida se tivesse feito outras escolhas?
É a partir desse momento que a história sofre uma reviravolta, ingressando na alucinante dinâmica do universo multidimensional. A figura até então pacata de Waymond, seu marido, dá lugar a uma versão vigorosa do personagem, vindo de um universo distante para alertá-la sobre a necessidade de lutarem para conter a ameçaca de Jobu Tupaki, personagem empenhada em instaurar o caos e extirpar a existência humana. Relutante e incrédula, Wang vai cedendo ao passo em que o absurdo toma conta de sua realidade. Então embarcamos juntos com ela nessa aventura.
Para sua surpresa, a figura que precisa enfrentar junto à nova versão do marido é ninguém menos que sua filha Joy, que em outra dimensão adquire poderes capazes de colocar em xeque a existência e o equilíbrio dos universos que compõem a intrincada trama de suas vidas. Assim o conflito entre mãe e filha toma outra proporção, abarcando nuances que mesclam realidade e fantasia, drama e comédia. Wang, uma pessoa um tanto conservadora, tem dificuldade em aceitar a sexualidade da filha, que está se relacionando com outra garota. Como pano de fundo desse conflito emerge a figura do pai, Gong Gong, que renegara Wang quando esta decidiu se casar com Waymond e tentar a vida nos Estados Unidos. Velho e debilitado, Gong Gong passa a viver sob os cuidados de Wang – uma lembrança pungente da vida que outrora abriu mão para viver o seu sonho.
Sob o pretexto de não escandalizar o pai, Wang tenta esconder sua dificuldade em lidar com a natureza subversiva e libertária da filha, que confronta seus próprios valores e convicções.
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Enquanto se enfrentam nas mais diversas circunstâncias – até mesmo em um universo onde os indivíduos possuem salsichas no lugar de dedos -, os personagens que compõem o núcleo da história, Wang, Waymond e Joy, parecem nos mostrar que não importa o quão absurdo seja o cenário, é impossível que o indivíduo se furte ao impacto do contato com o Outro. Nesse caso, pai, mãe e filha buscam, através de uma jornada multidimensional, encontrar o equilíbrio necessário para não sucumbir ao caos da existência conjunta.
Envolvendo conflitos familiares, embates geracionais, crítica social e reflexões existenciais, o filme cumpre a ousada tarefa de ser tudo ao mesmo tempo, literalmente. Há momentos para rir, chorar, refletir – e tantos outros em que não se entende coisa alguma. Um tanto parecido com a vida, ousaria dizer. Afinal, se viver é algo mesmo muito perigoso, como diria Guimarães Rosa, é difícil que alguém saia ileso dessa aventura.
Diante de uma história tão engenhosa, há de se perguntar se Wang, ao percorrer inúmeras de suas vidas possíveis, não tenha encontrado alguma em que tenha se sentido completa. E o filme nos responde terminando onde tudo começou, com mãe e filha discutindo no estacionamento da lavanderia da família. Ao promover esse retorno, a dupla de diretores, Daniel Kwan e Daniel Scheinert, parece indicar, de forma tocante e com uma pitada de comicidade, que o ideal de liberdade (tão característico do sonho de vida americano) que tanto buscamos em nossas vidas implica invariavelmente em uma série de perdas, uma vez que ao realizarmos uma escolha, perde-se todas as outras possíveis, e a experiência de viver todas as possibilidades ao mesmo tempo emerge como um delírio enlouquecedor. Dessa forma, somos instados a reconhecer a necessidade de bancarmos as nossas escolhas – e as consequências que elas trazem consigo -, ao passo em que nos identificamos com a tentativa da protagonista de se acertar com a filha em seu universo original – o único possível.
A fantasia de que estamos somente a uma escolha da completa realização dá lugar à inexorável realidade de que somos seres faltantes, e portanto temos de nos haver com a falta, independente do universo em que estejamos. E que amar é, sobretudo, reconhecer no outro a falta que decidimos sustentar em nós mesmos. Tudo em todo lugar ao mesmo tempo pode sim ser um convite para olharmos para a falta, mas é também um chamado para o amor.
FICHA TÉCNICA
- Título Original: Everything Everywhere All at Once
- Duração: 139 minutos
- Ano produção: 2020
- Estreia: 11 de março de 2022
- Distribuidora: Diamond Films
- Dirigido por: Daniel Scheinert, Daniel Kwan
- Orçamento: U$ 25 milhões
- Classificação: 14 anos
- Gênero: Ficção Científica, Ação, Comédia
- Países de Origem: EUA