Hebe Bonafini – 30 mil pessoas foram torturadas e mortas no período da ditadura militar argentina.
Foto: Rodrigo Correia
Hebe Bonafini, 83 anos, é líder das “Mães da Praça de Maio”, uma organização não governamental que luta, desde a década de 1970, para rever os filhos e netos que foram seqüestrados pelo governo militar na Argentina. Em 34 anos de existência, “las madres” como são chamadas, continuam realizando manifestações semanais na mesma praça em Buenos Aires. Durante o período de repressão na Argentina mais de 30 mil pessoas desapareceram. Foram presas, torturadas e mortas em mais de 100 prisões clandestinas. Participando do X Congresso de Saúde Mental e Direitos Humanos, que aconteceu pela primeira vez fora de Buenos Aires, em Córdoba também na Argentina, Hebe falou sobre a realidade atual Argentina, sobre saúde mental e também sobre sua trajetória.
(En)Cena – Hebe, o período de ditadura na Argentina ficou conhecido como um dos mais sangrentos da América Latina, como foi o início das manifestações das Madres durante esse período?
Hebe Bonafini – Veja bem, vou falar como eu me envolvi na causa e como isso acabou levando a um movimento maior. Antes que meu filho mais velho, Jorge, fosse seqüestrado pelos militares em 1977, eu era uma mulher que não se interessava por política, nem por economia, nem nada. Meu outro filho, Raúl também foi seqüestrado no fim deste mesmo ano. Então eu me juntei com outras mães e passamos a protestar pelo aparecimento de nossos filhos. O início foi duro, foram 30 mil pessoas que desapareceram, que foram torturadas e mortas.
(En)Cena – Como está hoje a questão dos desaparecidos?
Hebe Bonafini – Olhe, não foi pouca coisa que aconteceu de lá pra cá. Recentemente, pela primeira vez, se iniciou um movimento no Congresso para atribuir a nossos filhos e filhas desaparecidos a alcunha de ‘revolucionários’, e isso nos deixou, a todas as mães, muito felizes. Porque creio que isso estava faltando, o mais importante que deve se ter em mente é que eles foram mesmo isso: revolucionários. Pois mostra que o que eles passaram não foi em vão, que seu sangue derramado não foi inútil. Em cada criança que está nascendo agora, em cada jovem que está lutando agora, nos movimentos sociais, tem o espírito que nossos filhos deixaram
(En)Cena – De 1979 para cá porque as Madres se mantiveram na praça?
Hebe Bonafini – Porque, todavia, ainda há muito para fazer. Ainda existem crianças com fome, pessoas sem trabalho, militares que precisam ser condenados pelo que fizeram. As madres hoje representam um trabalho que busca mais educação, que combate as drogas, que ajuda as comunidades carentes, então por tudo isso ainda temos que manter nosso lema de “nenhum passo atrás” vivo.
(En)Cena – Hebe, no Brasil também houve um período de repressão muito forte, também com ditadura militar, que mensagem você mandaria a mães do Brasil que tiveram seus filhos mortos ou desaparecidos durante esse período?
Hebe Bonafini – Estive algumas vezes no Brasil e acredito que mães devem seguir o exemplo e tinham que juntar-se e lutar para que sejam condenados os homens que foram capazes de torturar, de matar, de seqüestrar, pois a condenação destas pessoas é a única maneira de reivindicar a memória das pessoas que desapareceram.
(En)Cena – Hebe, pela primeira vez o Congresso de Saúde Mental acontece fora da cidade de Buenos Aires, como foi trazer o evento para Córdoba?
Hebe Bonafini – Na verdade eu tenho que agradecer muito às pessoas que nos ajudaram a trazer este evento para Córdoba. Nós sabemos das dificuldades, pois um evento como esse se organiza com um ano de antecedência. É um grande Congresso e teve de ser organizado em apenas dois meses. Parecia impossível, mas todos trabalharam incansavelmente. Então, em cada reunião, cada avanço que fazíamos cada palestra que se confirmava eu pude sentir a entrega das pessoas que nos ajudaram.
Hebe Bonafini – As madres continuam na praça porque ainda há crianças com fome,
ainda há violência, ainda há falta de emprego…
Foto: Rodrigo Correia
(En)Cena – Sobre o contexto da saúde mental, tema do Congresso, como a senhora vê o panorama atual do país?
Hebe Bonafini – Um povo tem saúde mental quando tem um bom governo, quando tem trabalho. A situação da Argentina é singular, sobretudo com a aprovação da lei de saúde mental [1]. Mas volto a dizer que a situação depende de mais, deve-se discutir a saúde mental cuidando para que a mudança seja mais completa. A mim parece que o momento tem tudo para ser decisivo, buscar essa mudança é uma responsabilidade nossa. Em cada palestra, em cada mesa de trabalho do nosso Congresso acho que esta tem que ser a direção, buscar a mudança de tudo o que ainda não está certo.
(En)Cena – A entrevista foi concedida entre a chegada de Hebe na praça, local do congresso, e sua participação em uma mesa de discussão com o título “Cozinhando política e outras ervas”, palestra homônima de recente livro de sua autoria. Antes de sair ela me diz: “Acredita que certa vez estive no Brasil e perguntei a um companheiro brasileiro que estava no mesmo evento quem era Tiradentes e ele não soube responder?”.
[1] Aqui Hebe faz referência a Lei de Saúde Mental, aprovada na Argentina em 2010 que proíbe a criação de asilos manicomiais e substitui o modelo de internação por uma visão de tratamento em saúde mental multidisciplinar.