Reflexões sobre a Luta Antimanicomial: (En)Cena entrevista Paulo Amarante

Em visita aos estúdios do CEULP/ULBRA, o professor e pesquisador da área da Saúde Mental, Paulo Amarante, conversou com a equipe do (En)Cena sobre as reflexões acerca de suas experiências na militância da Luta Antimanicomial. O resultado da conversa foi transcrita na entrevista abaixo. (En)Cenaram com Amarante: César Gustavo, Mardônio Parente, Victor Melo e Rodrigo Correia.

(En)Cena – Do ponto de vista epistemológico, se não devemos chamar o indivíduo de “louco” devemos chamar de que?

Paulo Amarante – O termo louco certamente causa nas pessoas uma estranheza porque tem uma conotação pejorativa muito forte. Indica, no senso comum, uma pessoa sem discernimento, sem juízo, associada à ideia de periculosidade.

Eu não posso dizer de que deve ser chamada essa pessoa, por não ter uma resposta universal. Mas posso dizer que ela não é só esse aspecto, ela é um indivíduo, é um sujeito. Mas sempre adjetivamos a pessoa por alguma característica biológica, histórica ou cultural, e uma das questões mais difíceis é nomear esse comportamento que nós definimos como “louco”.

Posso te dizer com certeza que substituir “louco” por “doente mental” não é a melhor opção. Porque aparentemente se está falando um termo científico, mas que não só mantém a mesma carga de significados que a palavra “louco” como reduz a complexidade da experiência desse sujeito. A loucura ainda é mais instigante, mais complexa do que falar que isso tudo que a pessoa tem é apenas um “distúrbio” ou uma “desordem” mental.

Mas certamente no campo epistemológico esse é um problema: nós nos sentimos mal com os termos, fazemos a crítica a estes mas não conseguimos encontrar termos substitutivos. E talvez esse mal-estar tenha de ser permanente, porque definir seria colocar uma “nova verdade”.

(En)Cena – Quando você traz o conceito de “pessoa” isso já representa um salto, talvez não humanitário, mas epistemológico? 

Paulo Amarante – Sobre a questão da humanização eu carrego uma opinião minoritária e muito pessoal. Desde o início do Humaniza SUS, eu fui um crítico não só da política nacional em si, que acaba sendo uma política que envolve muito pouco os sujeitos da ação da humanização: os usuários do SUS.

Fica como uma iniciativa que parte dos técnicos para sujeitos passivos. E em nome da humanização se colonizou, se dizimou populações, além das violências que se fizeram em nome de Deus e do Humano. Mas a questão da “pessoa”, ou do “sujeito”, parece um deslocamento simples, mas ele é um dos pontos mais fundamentais de, primeiro, não reduzir o ser histórico a qualquer uma de suas características, incluindo aí o termo “usuário”.

Esse termo foi historicamente importante, usado pela primeira vez no âmbito do SUS para dizer sobre a pessoa que utiliza o sistema de saúde de uma maneira geral. E isso surgiu para evidenciar a participação da sociedade em um controle social desse sistema, o que acontece em um primeiro momento. Mas nós fomos assistindo a uma transformação desse papel social e o usuário passou, no âmbito da Saúde Mental, a ser uma pessoa com um tipo de transtorno ou doença e, no campo da saúde mental, esse termo acabou por substituir a palavra “paciente”. A pessoa que se apresentava como “paciente” agora se apresenta como “usuário” mas continua tendo uma relação com a doença.

(En)Cena – Esse termo, usuário, traz um sentido de proatividade, de quem toma para si algo ou alguma coisa. Porque esse termo foi ganhando um caráter de passividade?

Paulo Amarante – Primeiro que a perspectiva de que os cidadãos participariam e contribuiriam na gestão do SUS não funcionou. Ao mesmo tempo em que isso foi aprovado na constituição, as práticas políticas do Estado e dos governos foram contrárias a isso. As conferências são momentos importantes de produção de subjetividade, de práticas críticas e reflexivas, mas não são incorporadas como produção política.

E elas [as conferências] se tornaram uma farsa da ideia de participação social, os conselhos municipais e estaduais idem. Perdeu-se aquela ideia de que saúde é um processo civilizatório, é luta política, é garantia de direitos. Em parte foi por um desvio de rota da ideia da participação, que ficou descaracterizada como controle social e, por outra parte, por uma estratégia consciente de captura dos movimentos sociais que representavam os usuários.

Vê-se isso claramente com as ONGs que, de entidades que construíam pensamento crítico, construíam práticas alternativas ao Estado, passaram a fazer parte do Estado ou se tornaram meramente produtora de práticas que o Estado deveria fazer.

(En)Cena – Dentro de sua caminhada, você consegue identificar algum conselho do qual a saúde mental conseguiu se apropriar em termos de discurso ou operação?

Paulo Amarante – Sim, existem experiências. São exceções, mas existem municípios onde, por sua trajetória histórica, conseguiu-se fazer um movimento político. A mais histórica, e a primeira, foi Santos. Lá se construiu a primeira experiência de redução de danos e os dirigentes da prefeitura foram processados por distribuir seringas, por fazer trabalhos em espaços onde as pessoas poderiam usar, de alguma forma, algumas substâncias psicoativas.

Existem outras experiências, como em Campinas e também recentemente em Belo Horizonte. Mas ficaram experiências avulsas e isoladas e a política nacional não incorporou e hoje podemos dizer que nós temos menos controle social do Estado do que no início da retomada da democracia.

(En)Cena – A questão é da perda de valores coletivos da Saúde Mental? Na contemporaneidade, com o individualismo e a atrofia dos espaços e momentos públicos, perdeu-se a característica de valorizar conquistas como as que você citou?

Paulo Amarante – Não tenho dúvidas de que, quando o processo de reforma psiquiátrica começou, ele estava claramente incluído no bojo de um conjunto de aspirações, utopias, projetos de reconstrução nacional de um país mais cidadão, civilizado. Então, por tudo que nós passamos na ditadura, por tudo que nós passamos na luta contra a ditadura, nós que lutamos e sofremos represálias, nós trabalhamos para construir um país diferente.

Conseguimos fazer uma constituinte fantástica, conseguimos mobilizar as pessoas e o processo, na prática, não correspondeu ao nosso projeto de aspirações.

Por vários motivos nós fomos dominados por uma forma de capitalismo que não esperávamos na área da saúde. Hoje, qualquer empresário de saúde no Brasil é absolutamente favorável ao SUS, eles são defensores.

Eles, que falavam do SUS como uma agressão ao negócio deles, hoje, são os maiores defensores do SUS, porque eles ganham do SUS hoje o que eles não ganhavam sem o incentivo público. Então, enquanto nós ficamos preocupados com questões como matriciamento e discussões teóricas, não nos atentamos de que vivemos sob uma ideologia capitalista de prestação privada do serviço, onde os profissionais saem da universidade com esse ‘currículo oculto’.

No fundo, no que o cara pensa quando sai da faculdade? Que ele vai trabalhar no serviço privado, que ele vai ganhar muito dinheiro. Sérgio Arouca contou-me um episódio que ilustra essa mentalidade. Ele disse que largou a clínica porque, logo no primeiro plantão que ele foi fazer, um chefe de plantão chegou até a equipe, eufórico, e disse: “Consegui marcar mais uma amputação de membros inferiores na minha clínica particular” e todos comemoraram. E então o Sérgio chegou até o cara e falou “Pô, você deveria estar comemorando se tivesse conseguido evitar uma amputação”.

(En)Cena –  Onde não há “controle social do Estado” há “controle social pelo Estado”?

Paulo Amarante – Esse termo sempre foi criticado por isso. O conceito de controle social a partir de Foucault era essa ideia de que o Estado controlava a sociedade. Nós procuramos inverter: na prática, o controle social  que nós pretendíamos era de controlar as políticas e que não vingou por questões que citei antes, como o fato de que a frente conservadora, até por questões de ter mais recursos e possibilidades em relação à mídia, formação e produção de subjetividade, teve abrangência muito maior do que a gente conseguiu.

Mas, o que se vê hoje realmente é que vai aumentando o controle que o Estado exerce. Pode ser de maneira sutil, na figura das câmeras, de senhas, mas também de práticas mais tradicionais de controle social. E isso é curioso porque, nessa perspectiva teórica, poder-se-ia dizer que o Estado não precisa mais excluir fisicamente ninguém, na medida em que as pessoas estão excluídas porque não tem conta bancária, porque não tem crédito, porque não tem financiamento, porque não tem cartão, porque não tem senha e uma série outras formas de ingresso social.

Mas é curiosa a estratégia que o Estado vem tomando: a de uma ação de  intervenção na vida das pessoas, de reabrir espaço de internação e exclusão, de reabrir comunidades terapêuticas. Uma vez encerrando-se essa suposta epidemia do crack, esses espaços estariam disponíveis como espaços manicomiais. Porque essa onda da epidemia do crack não vai aguentar muito, como não aguentou a onda da heroína na Europa. A imprensa se interessa por um período, dá certa visibilidade, depois a imprensa muda de tema. O maior índice de violência que temos hoje é com o álcool e nós sabemos disso. É ele que promove a violência doméstica, no trânsito também…

(En)Cena – Essa intervenção do Estado, de forma física, vem aparecendo regularmente em ações de internações compulsórias. De que forma você enxerga isso?

Paulo Amarante – Eu acho que essa violência do Estado contra determinadas populações vulneráveis e fragilizadas, cuja justificativa pode ser o crack, pode ser a violência causada pela droga, ela tem um significado de retrocesso no âmbito político. Não esquecendo que, em 1988, a nossa constituição – como diria Ulysses Guimarães – foi cidadã porque ampliou direitos e garantias, mas nós estamos cada vez mais deixando de lado essas conquistas e fica cada um pensando no seu crescimento individual, no seu carro novo, em sua casa própria.

Foucault dizia que não há forma melhor de controlar as pessoas do que dar a elas um cartão de crédito. O crediário dá ao cidadão uma preocupação. Então ele se mantém ali, trabalhando para pagar esse crediário. Mas eu vejo muitas pessoas preocupadas com esse tema.

Fui à Escola Superior do Ministério Público da União e dei uma aula para juízes e procuradores públicos federais e depois fui à São Paulo, na Defensoria Pública, e de fato essas internações compulsórias são uma agressão à Constituição. Então, o que estamos vendo é um retrocesso político importante mas que pode estar ligado a um projeto econômico. Há um crescimento da classe média e há uma certa população que deve ser extinta, deve ser retirada do espaço público. No caso do Brasil, com a justificativa do projeto da Copa e da Olimpíada, coisa muito vista no Rio e em São Paulo, que eu acompanho mais, está ocorrendo uma higienização.

(En)Cena – Existe uma proposta de ‘recuperação de áreas’ dessas cidades que serve à essa ideia de higienização?

Paulo Amarante – Isso pode ser rememorado do início do século XX, com a questão da ‘Revolta da Vacina’. O que existia ali era um remanejamento da população pobre. Retiraram a população, o que ajudou no processo de criação das favelas, e a área ‘recuperada’ virou o grande centro comercial do Rio de Janeiro. Certas áreas foram (re)tomadas pelas populações: zona de porto, periferias e etc. Essas ‘cracolândias’, que é um termo já pejorativo, são como se fossem territórios produzidos propositalmente.

Militantes que trabalham com isso, como o Leonardo Pinho – de São Paulo, dizem que, antes do Estado entrar para demolir, reformar, refazer e vender para a iniciativa privada, nasce uma cracolândia, como se fosse uma zona de tolerância criada para depois o Estado poder chegar e se apropriar.

(En)Cena – Esses espaços, como você falou, de clínicas de recuperação de dependentes químicos que caminham para uma reedição dos manicômios, isso é algo já notado?

Paulo Amarante – Sim, e de formas exemplificadas nas clínicas rurais, que se assemelham muito aos hospícios-colônia, que tinham a ideia do trabalho terapêutico como trabalho moral, que antes era movido pela ciência e agora aparece regido pela fé. Uma das últimas reportagens que o Tim Lopes fez foi sobre as comunidades terapêuticas.

Uma das primeiras matérias que traziam denúncia de maus tratos, trabalho escravo, violência, tortura foi do Tim Lopes, que estava muito ameaçado com o fato de terem descoberto que ele havia se internado como usuário e, a partir disso, começou a registrar os abusos. E, curiosamente, saiu pouca coisa sobre isso. Logo depois, ele foi envolvido no episódio de que decorreu sua morte. Eu havia conversado com ele sobre a questão das comunidades terapêuticas e ele me disse: “Estou sendo ameaçado porque entrei, denunciei e tenho material rico sobre isso”.

(En)Cena – A reforma psiquiátrica chegou nos manicômios judiciários do Brasil?

Paulo Amarante – Muito pouco, mas chegou. Talvez esteja começando, mas com alguns trabalhos importantes. O caso mais emblemático é o PAI-PJ, de Minas Gerais, que foi uma experiência inovadora e inspirou outras experiências. Tem uma experiência em Goiás, tem outra em Salvador, Santa Catarina etc.

Existe uma circulação desses casos entre os juízes, que começaram a autorizar que os internos passassem a frequentar o CAPS, e muitos casos já foram reavaliados, principalmente depois daquele filme da Débora Diniz, “A Casa dos Mortos”. Então, acho que tá começando. Nós sabíamos que era difícil porque o sistema judiciário é mais conservador ainda do que o psiquiátrico. Eu fiquei muito mexido com o convite para dar aula na Escola Superior do Ministério Público da União, no sentido de pensar aonde nós chegamos com a reforma, tendo escuta em uma escola de magistrado que demonstrou interesse em ouvir.

(En)Cena – A partir dessas reflexões, qual o sentimento que fica sobre a Luta Antimanicomial?

Paulo Amarante – A reflexão que fazemos é “não está bom do jeito que está, mas se pararmos pode ficar pior”. Então, o importante é acreditar que é a nossa ação que mantém o patamar das conquistas que alcançamos. Se entregarmos os pontos, a coisa vai piorar.


Fotos: Samuel Leumas