Entre parentes(es): imaginar-experimentar outras formas de criação

Camila Ribeiro Castro Soares

Sendo mulher, você não pode simplesmente dizer que não quer filhos. Você precisa ter algum grande plano ou ideia do que você vai fazer em vez disso. E é bom que seja algo incrível.

(Sheila Heti, Maternidade)

São diversas as camadas que envolvem um tema de complexidades como esse, e também as suas possíveis ramificações, que vamos apenas margear. Inicio, então, com algumas perguntas para fomentar diálogo e movimento: Qual o significado de “ser mãe” na sociedade moderna ocidental? Como você se sente ao imaginar a (im)possibilidade de “tornar-se mãe”? Qual a sua motivação e propósito para criar uma criança? Para você é importante passar pela experiência da gestação e parto? Você se imagina partilhando a criação de uma criança independente de tê-la gerado, gestado e parido? 

Quero também colocar algumas provocações, desde já: Podemos pensar nomes e formas outras de/para vivenciar as experiências de “maternidade” e maternagem? Seriam essas experiências idênticas e uniformes?

O convite para essa escrita me chegou como pedido de um texto livre, algo que aprecio, pois permite desenvolver um estilo mais ensaístico que me é muito caro; ao mesmo tempo em que afrouxa os contornos do pensamento e demanda uma atenção mais concentrada, ainda que flutuante. Assim, num exercício de delinear alguns fios condutores para essa breve escrita-leitura, são três as inspirações que me animam: uma elementar contextualização histórico-cultural e social; algumas das encruzilhadas e atravessamentos de minhas próprias vivências pensantes sobre o tema; e a recente expressão de uma pessoa que atendo em processo psicoterapêutico: “Vivi a vida inteira não querendo filhos […]. Mas será que vou ter que ter filho para ter uma família grande de novo?” (sic).

Dito isso, é provável que as pessoas leitoras tenham percebido a ausência da palavra mulher até aqui (com exceção da epígrafe) e que essa percepção possa gerar um contrassenso com a temática proposta. Contudo, essa é uma falta deliberada, desde onde elegi estabelecer a marcação histórico-cultural e social a ser sobrevoada no texto.

Dessa forma, a noção hegemônica de maternidade, como a conhecemos ainda nos dias atuais, com o sentimento da infância e do amor materno romantizados, foi ganhando contornos mais nítidos a partir do século XVIII no cenário da Europa branca e burguesa (ARIÈS, 1981). Nesse mesmo contexto, de acordo com a tese foucaultiana, um conjunto de dispositivos estratégicos de controle e produção social foi se estabelecendo e se encadeando ao longo da história civilizatória moderna, forçando à histerização do corpo da mulher, à pedagogização do sexo da criança, à socialização das condutas de procriação e à psiquiatrização do prazer dito perverso (FOUCAULT, 1988). Tivemos, assim, o solo (in)fértil de contaminação patriarcal, colonizador e capitalista, de onde foram produzidas as normativas de gênero, de sexualidade e monogâmica; como também os próprios sujeitos que se constituíram e se assumiram dissidentes a essas mesmas normas.

Esse sobrevôo vislumbra o processo de construção histórico-cultural e social que determinou a imagem e subjetividade social dominante de mulher (num contexto branco e burguês), restrita à função e ao papel de esposa e mãe, isto é, a quem estava destinado imperativa e exclusivamente o espaço doméstico. Dessa maneira, o que estou colocando para perspectiva são outras formas possíveis de gerar vida, de gestação, de maternagem, para além dos literalismos biológico, consanguíneo e humano (justamente por ter em consideração seus valores).

Maya, Margot (não-humanas) e Camila (humana). Foto de arquivo pessoal.

Nesse sentido, além da partilha da criação de Margot (companheira canina, in memorian) em seus oito anos e de comparticipar da criação de Marcelo (sobrinho) em seu um ano de vida até agora, as experiências que mais me transformaram foram gestar, parir e maternar a mim mesma (e me permitir ser maternada por pessoas amadas) nas cenas e reverberações de acontecimentos concomitantes dos últimos quatro anos: a separação em um casamento de dez anos, a pandemia da Covid19 e a ressignificação da relação com minha mãe biológica (e com o feminino e o materno arquetípicos); em simultâneo às dinâmicas psíquicas de um stellium (aglomerado) de planetas em trânsito por capricórnio na casa oito do meu mapa astral natal, conjunto ao stellium de planetas que já tenho nessas mesmas posições. 

O que estou compartilhando, no intuito maior de (te) inspirar respiros nas/com as próprias experiências, é que, paradoxalmente, somente me permiti acolher de forma consciente as atribuições sociais do feminino (como vulnerabilidade, amorosidade e sensibilidade) ao ir me reconhecendo uma pessoa queer, que ainda assim tem (como todas as pessoas e singularmente) seu corpo e subjetividade marcados pelo sistema binário de sexo-gênero.

Camila e Marcelo (sobrinho). Foto de arquivo pessoal.

Por fim, para dialogar com a expressão supracitada de uma das pessoas que acompanho em processo psicoterapêutico (tendo em vista que não é pretensão analisá-la aqui), formo aliança com Donna Haraway ao provocar uma ampliação para outras maneiras de criar laços, vínculos e afetos no mundo contemporâneo e porvir: “Faça Parentes, Não Bebês!” (HARAWAY, 2016, p. 141). A professora e filósofa pós-feminista formula a seguinte questão ao construir seu pensamento fabuloso: “[…] e se os novos ‘normais’ se tornassem uma expectativa cultural que cada nova criança pudesse ter pelo menos três pais comprometidos na vida?” (Ibid., p. 145; aspas minhas).

Nessa altura, faço também uma entrada para mencionar que nos últimos anos, desbravando a validação e direito de existência nos espaços públicos e privados, pessoas trans nos possibilitam olhar mais explicitamente para as rupturas das construções de categorias, funções e papeis sociais ligadas ao sexo-gênero e suas reduções a determinantes biológicos. Desse modo, se ampliamos o olhar, é possível gerar, gestar ou maternar também relações, projetos e trabalhos, seres amigos, parentes humanos e não-humanos; tendo ovários, útero, vagina ou não. Ainda, mulheres trans e homens cis podem maternar. Homens trans e mulheres cis podem optar por não gestar. E pessoas queers e não-binárias vivem em seus corpos e subjetividades as suspensões e fissuras dessas próprias fronteiras.

Nesse sentido, está em reflexão a questão de que a “maternidade” e maternagem não são prerrogativas de “ser mulher”. O convite para a quebra de paradigma que vimos presenciando diz respeito ao rompimento com uma perspectiva binária e dicotômica de mundo, uma abertura para vivências e construções outras que reconheçam a pluralidade das possibilidades de existir e, ao mesmo tempo, a singularidade de cada vida e experiência. 

Jequitibá (não-humano) e Camila (humana). Foto de arquivo pessoal.

Então, se vamos insistir na categoria maternidade, considero plausível ao menos seu uso no plural, maternidades, e, em nossa proposta imaginativa, maternagens, pois cada pessoa cria sentidos subjetivos únicos dessas (não) experiências. Coloco em questão a insistência no termo maternidade, considerando que dispomos de outras palavras (gestante, parturiente, lactante, por exemplo) que podem trazer consigo mais cuidado, além de sinalizarem o caráter singular dos diversos processos que compõem tais vivências, que acaba(ra)m por ser uniformizados e universalizados no uso das categorias mulher, mãe e maternidade, como se fossem umas simples extensões das outras.

Essa breve escrita, no intento de abrir novas zonas de sentidos acerca da singularidade e pluralidade dos modos de maternidades e maternagens, envolveu também um espaço para a (auto)indagação de se você já pensou/reparou esses significados e sentidos no curso dos acontecimentos da sua vida. Portanto, sigo compondo com a aposta de que não há escolha certa ou errada, o que talvez haja é o (des)conhecimento dos próprios desejos e motivos nessas experiências, bem como da forma de vivenciá-los inconsciente ou conscientemente.

 

REFERÊNCIAS

ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Trad. Dora Flasksman. Rio de Janeiro, RJ: LTC – Livros Técnicos e Científicos Editora S. A, 1981.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Trad. Maria Thereza C. Albuquerque; J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

HARAWAY. Donna. Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes. Trad. Susana Dias, Mara Verônica e Ana Godoy. ClimaCom – Vulnerabilidade [Online], Campinas, ano 3,  n. 5,  2016. Disponível em http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/antropoceno-capitaloceno-plantationoceno-chthuluceno-fazendo-parentes/.

HETI, Sheila. Maternidade. Trad. Julia Debasse. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

ALIANÇAS TEÓRICAS (Cosmovisões inspiradoras)

JUNG, Carl G. Criador da psicologia analítica. HILLMAN, James. Criador da psicologia arquetípica. https://www.youtube.com/@thiasos6881. https://ijpr.org.br/artigos/psique-imagem-gustavo-barcellos/

GONZÁLEZ REY, Fernando L. Criador da teoria da subjetividade: https://www.youtube.com/@FernandoGonzalezRey. https://fernandogonzalezrey.com/

AMPLIAÇÕES

(Pesquisadoras que trabalham com a temática)

IACONELLI, Vera. Psicanalista, doutora em Psicologia pela USP.

MOSCHKOVICH, Marília. Socióloga, docente do departamento de Sociologia da FFLCH/USP.

SOUZA, Ana Luiza de Figueiredo. Doutoranda no PPGCOM/UFF.

(Podcast)

NM em Foco

  1. #21 – Maternagem não mono.
  2. #9 – Trajetórias, parentalidades e coletividade.

(Audiovisual)

Filme: A filha perdida (2021).

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