Cada vez mais vem sendo propostas pesquisas no campo da saúde com o propósito de investigar interfaces entre o processo saúde-doença-cuidado e a cultura. Ao buscar o estabelecimento de um diálogo com as ciências sociais, pesquisadores do campo da saúde, vêm propondo pesquisas que buscam investigar os “pontos de vista nativos” (em geral dos pacientes, mas também de profissionais) a respeito de diferentes questões. Inegavelmente as intenções são boas, sobretudo se pensarmos no extremo reducionismo que é abordar a complexidade dos temas deste campo, apenas a partir da ótica biomédica. Por outro lado, para enfrentar o reducionismo não basta apenas a eleição de novos objetos de interesse. Faz-se necessário também um refinamento teórico para abordá-los. Na ausência deste refinamento, o reducionismo permanece, embora envolto por um verniz culturalista.
A proposta deste texto é tecer breves comentários sobre este tal “ponto de vista nativo” e sobre a noção de cultura, visando estimular o leitor a se aprofundar no assunto. As reflexões aqui apresentadas foram gestadas durante o processo teórico-prático de construção de minha tese de doutorado, que teve como foco a questão da violência juvenil em um determinado contexto indígena amazônico, marcado por profundas transformações.
Um importante ponto de partida é termos a clareza que o que de fato podemos tentar fazer é chegar “o mais perto possível do ponto de vista nativo” (Lasmar, 2005, p. 40). Ou seja, acessar o “ponto de vista nativo” deve ser considerado, antes de mais nada, um princípio a ser perseguido, do que algo que possa ser concretamente alcançado. Sobre esta questão Viveiros de Castro (2002a) alerta: “o meu ponto de vista não pode ser o ponto de vista do nativo, mas o de minha relação com o ponto de vista nativo. O que envolve certa dose de ficção, pois se trata de pôr em ressonância interna dois pontos de vista completamente heterogêneos” (p. 123). Ou seja, aquilo que se entende como “ponto de vista nativo” não é algo dado, que exista por si mesmo na realidade empírica. Trata-se essencialmente de algo a ser construído. E esta construção vai se dando no próprio processo de tornar compreensíveis os achados da pesquisa. Isso vai sendo realizado mediante a tradução, ou melhor, através da elaboração de uma versão daquilo que ao estabelecer relações, teoricamente orientadas, com o sujeito/objeto de investigação, consigo compreender. Ainda, buscar o “ponto de vista nativo”, não deve ser confundido com o elencar, de forma acrítica, de diversas opiniões das pessoas a respeito de algo. Aliás, textos que listam opiniões e citam longamente a fala das pessoas in natura, ou seja, sem a devida análise, abundam no contexto das chamadas “pesquisas qualitativas” em saúde. De modo alternativo o que deveríamos buscar seria construir uma compreensão possível (e plausível) a respeito de como discursos e práticas se ancoram no universo simbólico nativo que dá sentido ao mundo destes sujeitos. Mundo este que está em constante transformação.
Diversos autores que realizaram pesquisa entre indígenas abordando temas controversos como casamento de mulheres indígenas com homens brancos (Lasmar, 2005), suicídio (Erthal, 2001), ou o processo de “virar branco” (Kelly, 2005, p. 202), concordam que haveria uma tendência “hipersimplificadora” não só do discurso do senso comum dos profissionais de saúde, mas também por parte de certos autores oriundos deste campo a buscar compreender estas questões relacionando-as a idéia de “perda cultural”. Para os propósitos deste texto, destaco que nesta concepção há implícita a idéia que cultura seria algo que se pode perder. Ou seja, há uma ancoramento em uma noção de cultura que a entende como um conjunto de traços, comportamentos ou instituições próprios, fixos e imutáveis que caracterizam determinado grupo. Uma razão para rejeitarmos esta concepção de cultura é o seu anacronismo e sua associação a idéia de “aculturação”, que foi ativamente recrutada para negar não só os direitos, mas até mesmo a existência de certos grupos indígenas. Outro aspecto é que esta noção, definitivamente não tem utilidade teórica para ajudar a compreender o universo simbólico humano (e aqui falo, sobretudo, deste humano-social) que está em constante transformação.
Exemplifico este ponto de vista a partir de uma situação de interação social que vivi em campo. Durante minha primeira ida a campo no doutorado, estava ocorrendo uma grande reunião relacionada às comemorações dos vinte anos de fundação de uma importante organização indígena regional. As discussões ocorriam numa grande maloca, que na atualidade não é mais utilizada como casa comunal, mas onde funcionava o chamado “CERCII”, Centro de Estudos e Revitalização da Cultura Indígena de Iauaretê. As malocas que foram derrubadas sob influência dos missionários católicos vêm sendo reerguidas como símbolo de luta do movimento indígena em diferentes locais. Neste contexto, a maloca do CERCII foi construída através de financiamento de organizações não governamentais estrangeiras. Um idoso responsável pelo CERCII, e considerado grande conhecedor dos mitos e dos procedimentos xamânicos de cura, comentou em tom que mesclava ironia e indignação que não compreendia porque os financiadores se recusavam a permitir que usassem pregos, fechaduras e outros artifícios modernos/ocidentais na construção da maloca. Relatou que os “gringos” diziam que não seriam estes os materiais que os “antigos” usavam. Com um leve sorriso nos lábios relembrou que nos mitos de origem, antes mesmo do aparecimento do mundo, a maloca dos heróis primordiais precursores da humanidade era de pedra quartzo, e que maloca de palha e madeira era uma coisa já “dos tempos modernos”.
Em síntese, o interlocutor ao lançar mão dos mitos de origem defende sua maloca transformada, recorrendo ao que aqui entendemos, a partir de Sahlins (1999a, p. 41), como CULTURA, que seria “essa ordenação (e desordenação) do mundo em termos simbólicos”. Abordando a realidade a partir deste prisma, a maloca proposta pelo idoso do CERCII não é uma maloca “aculturada”, mas uma maloca transformada. Não se trata de uma evidência de perda de cultura, mas sim da vivacidade da mesma. Afinal, Sahlins (1999 a, b) entendendo a transformação como parte inerente do mundo vivido, não a representa como epitáfio da cultura, inversamente, concebe-a como condição de possibilidade para sua própria permanência: “a continuidade das culturas indígenas consiste nos modos específicos pelos quais elas se transformam” (Sahlins, 1999b, p. 126). Essa transformação, por sua vez, “é necessariamente adaptada ao esquema cultural existente” (Sahlins, 1999a, p. 62), ou seja, dá-se a partir de instituições, estruturas ou lógicas próprias de cada grupo.
Assim, pesquisadores do campo da saúde que buscam abordar o “ponto de vista nativo” (ou seja, o ponto de vista deste outro, que sempre terá algo de “eu”) ou a cultura de um grupo, deveriam estar a princípio dispostos a se relacionar de modo teoricamente consistente com este outro-eu, condição importante para que possam atentar para a lógica interna e para a compressibilidade destes sistemas simbólicos. Sistemas simbólicos estes que estão em constante transformação. Não só os deles, mas também os nossos. Seja lá quem sejamos nós, seja lá quem sejam eles.
Referências
Erthal RMC. O suicídio Tikúna no Alto Solimões: uma expressão de conflitos. Cad Saúde pública 2001, 17(2): 299-311.
Kelly JA. Notas para uma teoria sobre o ‘virar branco’. Mana 2005;11(1):201-234.
Lasmar C. De volta ao Lago de Leite: Gênero e Transformação no Alto Rio Negro. São Paulo: Editora UNESP/ISA; Rio de Janeiro: NUTI; 2006.
Sahlins M. O “pessimismo sentimental” e a experiência etnográfica: porque a cultura não é um objeto em via de extinção (Parte I). Mana 1997a; 3(1):41-73.
Sahlins M. O “pessimismo sentimental” e a experiência etnográfica: porque a cultura não é um objeto em via de extinção (Parte II). Mana 1997b; 3(2):103 a 150.
Viveiros de Castro E. O problema da afinidade na Amazônia. In: A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify; 2002a. p. 87-180.