Todo o dia chegava às 7h no trabalho, já ficava na porta da entrada à espera da minha criança, eu cuidava de duas crianças que vou chamar de Daniel e João (nomes fictícios). No caso da criança que eu cuidava pela manhã, vou chamar de Daniel. Pela manhã, quando Daniel chegava eu pegava a sua mochila e o conduzia pela mão guiando até a sala de aula, após isso tirava o seu caderno de sua bolsa e alguns lápis e o sentava na mesa e fazia com que ao menos tentasse acompanhar um pouco a aula, claro que nem sempre isso era possível pois o Daniel de dias em dias vinha com uma personalidade diferente.
Após isso o levava antes das 9h para uma sala especial onde continha uma televisão com conteúdo didático e alguns brinquedos com que eu tentava estimular um pouco o conhecimento e a criatividade dele. Nesse momento, ele se juntava com outras crianças com deficiências que naquele instante não conseguiam acompanhar mais a aula. Logo depois o levava para fazer o lanche pela manhã onde ele se sentava comigo e com outros cuidadores. Fazíamos a refeição ao lado do irmão dele que era gêmeo e continha o mesmo problema mental.
Depois da refeição o levava para a sala com um pedagogo onde ele tentava interagir com a criança, e depois o retirava da sala assim que terminava e ia até a portaria ficar à espera de sua mãe, tirava o meu horário de almoço e retornava à portaria para a espera da outra criança que vou chamar de João. O João era mais agitado, então eu tinha uma rotina diferente com ele, pois com dez minutos em sala com as outras crianças ele logo começava a bater e gritar.
João necessitava de uma maior atenção, então o levava para passear no pátio visto que ele machucaria as outras crianças como já aconteceu na sala especial. Juntos praticamos exercícios e esportes, depois eu o levava na sala da pedagoga onde ele adorava jogar xadrez, e assim o levava à portaria. No meu tempo livre buscava organizar um material didático que pudesse auxiliar no aprendizado dos garotos já que percebia que os professores e os pedagogos não desenvolviam atividades profundas ou dava atenção às suas necessidades de aprendizado.
No início do serviço acreditava que as atividades seriam rotineiras já que as crianças nos primeiros momentos aos meus cuidados apresentavam comportamentos corriqueiros. Porém, após duas semanas de trabalho, apareceram os primeiros relatos dos professores e idas à coordenação, percebi que de início ambos estavam sendo medicados por isso o comportamento era mais calmo.
Quando passaram a não receber a medicação começaram a ficar agitados, fazendo com que eu tivesse que em vez de tentar acompanhá-los eu recebesse a tarefa de manter eles na sala de aula, uma coisa que era distante da realidade, visto que os mesmos apresentavam comportamentos agitados diante as outras crianças, o que comprometia o aprendizado deles e dos demais. Passei a perceber certa irritação e incômodo dos professores(as), pois o objetivo era que todos aprendessem, mas as outras crianças se contagiam com a agitação dos meninos e eu passei a fazer a retirada dos mesmo da sala na maioria dos dias para praticar atividades isoladas dos demais enquanto eles se acalmavam.
As dificuldades começaram a surgir e a mais frequente era a falta do que fazer com as crianças visto que eu tinha que acompanhá-los a todo momento e ambos estavam sempre agressivos o que dificultava a presença deles em sala de aula pois diminuía o rendimento da turma. Eu não tive nenhum treinamento então o que me fazia tentar aumentar a produtividade das crianças era o amor que eu cultivei por elas.
Com o passar do tempo, enquanto por um lado parecia que o meu processo com Daniel estava a evoluir pois percebi que com a prática de esportes ele conseguia desenvolver melhor as atividades em sala. Por outro lado, com João as coisas ficaram mais difíceis, ele passou a pular os muros da escola e agredir a mim, as outras crianças e professores, isso acontecia pois ele soltava da minha mão quando íamos ao refeitório, e sempre findava em uma busca preocupada minha, da coordenação e até do diretor pela escola ou pelas ruas aos arredores da escola; soube inclusive que o último cuidador dele também passou por isso, e abandonou o cargo por esse motivo.
João no início era uma criança bastante calma que se enchia de alegria ao jogar xadrez e se tornou uma criança bem agitada, sendo que até a pedagoga às vezes apresentava desdenha para cuidar dele. Mesmo eu tentando praticar o que ele gostava em dias que estava incontrolável eu não conseguia sucesso.
Após um período percebi que minha saúde mental estava sendo afetada, quando saía do trabalho estava sempre com a cabeça e a mente descoordenadas pelo cansaço, na época eu fazia um curso superior de matemática e minha mente na sala de aula estava nula, não conseguia mais prestar atenção no professor. Após decidir pedir demissão me senti mais relaxado, pois estava desenvolvendo ansiedade, e sentia muito estresse.
Bem, atualmente trabalho em outro ramo em que gosto, mas realmente ainda me lembro do Daniel e do João, mesmo já tendo se passado 3 anos ainda lembro de algumas falas repentinas deles: “Tio Daniel tá com fome”, “Eu sou o Joãozoca”. Penso que o retorno financeiro não valia a pena, apenas o amor pelas crianças e a oportunidade de vê-los se desenvolvendo, mas com a falta de preparo (como um curso) minha e dos meus colegas cuidadores, o que nos fazia trabalhar era apenas pensar que aquelas crianças realmente precisam de atenção especial pois todas tem um ótimo futuro!