Como pássaros na gaiola: a realidade das famílias enclausuradas pelo sistema penitenciário brasileiro

“Todo homem é maior do que o seu erro”
MARIO OTTOBONI

Para que haja uma completa reinserção dos presidiários na sociedade, faz-se necessário disponibilizar os meios para que eles alcancem este fim.

Assim, por interesse pelo assunto e por uma proposição da disciplina de Estágio Básico V do curso de Psicologia do CEULP/ULBRA, nós, acadêmicos, passamos a fazer parte do Conselho da Comunidade na Execução Penal (CCEP) de Palmas/TO.

Nosso ingresso no conselho se deu com o intuito de conhecer de perto a realidade na qual vivem as famílias das mulheres apenadas. Assim, estávamos imersos em dois campos desconhecidos: a visita domiciliar e o sistema prisional.

De imediato surgiram inúmeros desafios: o medo das demandas com as quais iriamos nos deparar ao longo do processo; a incerteza de como seriamos recebidos por essas famílias e seus respectivos reeducandos; com nossos próprios (pre)conceitos; nossas inseguranças e angústias.

O processo foi árduo. Batemos em várias portas em busca de conhecer melhor a realidade das famílias de algumas das mulheres em privação de liberdade na unidade prisional de Palmas/TO, mas, na maioria delas, o endereço que nos foi fornecido estava desatualizado. O que de pronto, já evidenciava o mais comum dos descasos que o nosso sistema penitenciário: ignorar a participação a família no processo de reeducação dos apenados.

Fomos a campo, com a finalidade de compreender como vivem os familiares das presidiárias, saber de suas possíveis necessidades e dificuldades, para assim conhecer mais a fundo em quais aspectos o CCEP poderia contribuir para amenizar o sofrimento dessas famílias, visando sempre fortalecer o vínculo dos apenados com suas famílias.

Gostaríamos de esclarecer que este deveria ser um relato de nossas experiências práticas enquanto membros do CCEP, porém – como uma espécie de reflexo do caos que circunda não só meio prisional mas todas as instituições – o que transcrevemos a seguir é, em grande parte, um pouco de nossas tentativas frustradas de intervir junto às famílias das reeducandas de um presídio feminino no Tocantins.

Além disso, trazemos um pouco de nossos aprendizados extraídos de nossa intervenção e de todo o arcabouço teórico adquirido por meio das intensas discussões ao longo do semestre acerca do sistema penitenciário brasileiro.

Todavia, antes de qualquer relato, julgamos imprescindível explicar aos leitores sobre o que é e como funciona o CCEP.

Apesar de sua importância e previsão em lei, o CCEP é um órgão pouco conhecido pela população brasileira. Trata-se de um mecanismo instituído pelos Artigos nº 80 e 81 da Lei de Execução Penal (LEP), a qual estabelece a existência de um conselho da comunidade em cada comarca, composto por, no mínimo, um representante de associação comercial ou industrial, um advogado indicado pela seção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e um assistente social escolhido pela Delegacia Seccional do Conselho Nacional de Assistentes Sociais.

O Conselho tem a função de representar a sociedade em um processo que se inicia no ingresso do indivíduo no âmbito prisional e só se encerra com a retomada de sua liberdade. Todavia, é a própria comunidade quem detém as alternativas a serem ofertadas ao réu condenado.

O seu objetivo é aproximar a comunidade do sistema penitenciário e seus reeducandos, visando minorar os danos ocasionados pelo encarceramento, pelas privações e pelas condições degradantes, as quais comumente eles são submetidos.

Percebemos – do pior modo possível – que o termo “reeducanda”, costumeiramente utilizado para se referir as presidiárias, na maioria das vezes, se trata apenas de um mero jogo de palavras. É um modo “politicamente correto” para se referir àquelas pessoas que se encontram segregadas em nosso falido sistema carcerário. Que, acreditamos, não seja restrito de Palmas/TO.

Ao nós apossarmos do termo: dizermos reeducandas, estamos sugerindo que elas estejam sendo submetidas a um sistema de reintegração social. No mundo real, sabe-se que não é bem isso que acontece.

Empossados de todas essas informações já compartilhadas, fomos em busca dessas famílias. De pronto, a primeira barreira era nosso semblante de constrangimento, ao nos depararmos ao difícil tema que seria abordado, que vez por outra parecia se mesclar a um sentimento de pseudoautoridade, diante dos entrevistados.

Nossas primeiras visitas foram frustradas, pois não encontrávamos familiares das presidiárias, mas tivemos uma rica observação de como a comunidade se referia a elas e suas famílias.

Quando perguntávamos se ali era a casa de fulana, víamos rostos espantados e com uma resposta tão rápida quanto um disparo: “– Não!”. Então, tentávamos iniciar uma conversa, questionando se eles conheciam alguém que teve seu familiar preso. E as respostas eram bem uniformes: “– Sim, mas eles mudaram de Palmas!”.

Em algumas dessas visitas, saímos com a nítida sensação de que, mesmo com todas as explicações acerca do que é o Conselho, os residentes preferiam negar seu parentesco com as reeducandas. Talvez por medo, vergonha ou insegurança.

Nas visitas, os nomes daquelas mulheres e suas histórias quase não eram lembrados, mas os crimes, estes ainda estão vivos na memória dos que nos recebiam. Era como se todo histórico de uma vida tivesse sido apagado, restando apenas um único e cruel capítulo: o crime.

Podemos supor que além do sofrimento presente em cada uma dessas histórias, o preconceito que essas famílias passam a sofrer seja a principal causa de mudarem seu endereço. Uma tentativa de se apagar o passado vergonhoso.

Em vários casos, pudemos comprovar que o afastamento se dá também em relação as apenadas, que – não raramente –  são abandonadas por seus familiares no cárcere.

A distância das unidades prisionais em relação ao distrito urbano, as dificuldades financeiras e as constrangedoras revistas realizadas antes das visitas nos presídios são alguns dos fatores apontados pelos familiares como justificativa por sua ausência e descaso em relação às reeducandas.

Quando conseguimos cumprir nossa missão, fomos muito bem acolhidos. Por meio dos relatos e da postura adotada pelas pessoas que se encontravam nessas residências.

Deparamo-nos também com uma realidade de sofrimento causada pelas drogas, que de tanto se perdurar, já passou a fazer parte de seus traços e hábitos. Um exemplo é o da filha de dona Ana, hoje com 29 anos, é usuária de drogas ilícitas desde os 13. Fato que fez com que ela já fosse detida por 6 ou 7 vezes.

Hoje, sua família vive em um misto de incredulidade e esperança de que Mariana possa reestabelecer sua vida quando retomar a liberdade.

Uma vez que a visita domiciliar foge dos padrões dos atendimentos psicológicos tradicionais, ainda há uma enorme carência de materiais que abordem como se deve proceder nesse tipo de intervenção.

São raras as discussões e produções acadêmicas que tenham como foco as famílias de pessoas em privação de liberdade, o que evidência um vasto campo a ser explorado.

A falta da literatura para nortear nossas práticas gerou desconforto e o receio de estarmos (ou não) invadirmos a privacidade daquela família. Nosso receio era o de ferir o direito à privacidade em meio à toda dor que assolavam aqueles lares.

Em nossa busca por uma intervenção íntegra, fomos convidados a experimentar um modelo de intervenção, em que, claramente teríamos de nos deixar ser conduzidos pelos limites impostos pelo outro (cliente), uma vez que aquele era o seu ambiente, seu território.

 

Nota: Todos os nomes pessoais aqui utilizados são fictícios, com vista a preservar a identidade dessas pessoas.

 

Referências:

BRASIL. Lei de Execução Penal. Brasília: Senado, 1984. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm.>. Acesso em: 26 de março de 2014.

MARTINS, J.S. A sociedade vista do abismo: novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.