Wanda Maximoff, a Feiticeira Escarlate, foi concebida pelos gênios dos quadrinhos Stan Lee (1922-2018) e Jack Kirby (1917-1994), a personagem surge nas histórias dos X-men em X-men #4 (1964), inicialmente como vilã, num grupo conhecido com a Irmandade dos Mutantes – os espectadores da animação X-men Evolution (2000) devem ser familiarizados com os vilões que se opunham aos heróis da Mansão Xavier.
Wanda e seu irmão Pietro posteriormente são revelados como filhos do vilão Magneto, mas a história deles nos quadrinhos passa por tantos roteiristas e consequentemente por tantos retcons – esse termo quer dizer “continuidade retroativa”, é a prática dos contadores de histórias que se refere a alterações do passado dos personagens e de fatos já estabelecidos anteriormente em um cânone fictício – que somente para esse retrato caberia um texto inteiro.
Mas no Universo Cinematográfico Marvel a personagem faz sua primeira aparição no filme Vingadores: Era de Ultron. Seu passado e de Pietro fica estabelecido como sendo fruto de uma experiência laboratorial feita pela organização antagonista aos protagonistas, Hydra. De maneira análoga aos quadrinhos, Wanda surge como vilã e após os fatos do filme acaba por se aliar aos protagonistas. Fato marcante aqui para a construção de sua personalidade é a morte de seu irmão: no clímax, perfurado por balas vindas de um dos milhares de ajudantes do vilanesco Ultron, Pietro Maximoff vê seu último suspiro e Wanda sentirá essa morte por toda a sua trajetória.
Após percalços em suas participações ao longo dos subsequentes filmes: Guerra Civil (2016), onde ela é responsabilizada por um desastre que tira a vida de algumas dezenas de inocentes, e Vingadores: Guerra Infinita (2018) e Ultimato (2019) onde na culminação de uma saga, perde seu amado Visão, um androide super tecnológico que aprendeu a amar. Esses fatos culminam na trama do seriado protagonizado por ela, chamada WandaVision (2021), a série trabalha inúmeros aspectos da vida de Wanda Maximoff, seu luto por seu irmão e companheiro, mas também sua jornada pela maternidade e os impactos desse conceito em sua jornada.
Representações do Arquétipo Materno
Os conceitos arquetípicos ligados à figura do feminino se perpetuam por milênios nas mais diversas culturas e ancestralidades. As mulheres sempre foram associadas a simbologia de fertilidade e de mistério, pois delas provinha a vida, um processo que até os adventos científicos médicos esmiuçarem soava como místico e divino. Para além do símbolo da fertilidade, vem o símbolo da Mãe; esta que dá a vida, cuida e alimenta a necessidade dos filhos. Esse conceito é notado desde o extremo oriente, passando pelo Oriente Médio, Europa, África e chega ao novo mundo, as Américas, tanto em seus povos ancestrais nativos que aqui habitavam, quanto nos colonizadores que trazem em sua maioria idéias cristãs.
Existiam inúmeros cultos a deusas-mães, deusas-mulheres, sagrados femininos, como é o caso do culto a Cibele (mãe dos deuses) e à Diana (a toda mãe virginal), cujo culto alcançou seu zênite no século III d.C., na parte oriental do Império Romano. Maria pode ser identificada também em imagens arquetípicas representadas por Eva, Ísis, Ishtar, Cibele, Hera e outras. (COSTA, 2020, p.75)
Na mitologia grega a maior representante do arquétipo materno é a deusa Deméter. Irmã e quarta esposa de Zeus, depois de Gaia, Deméter foi a divindade a representar a terra “que tem como funções primordiais nutrir, proteger e gerar frutos” (DE SOUZA, 2016, p.69). A maior narrativa que associa a deusa ao símbolo materno é sua história com Perséfone, sua prole deusa da Agricultura, que é levada ao submundo pelo deus Hades. Nesse momento Deméter se ausenta do Olimpo e sua partida traz como consequência o frio e a escassez de recursos, depois de uma jornada em busca da filha, esta entra em acordo com o deus do submundo, que permite a vinda da filha ao Olimpo por um período do ano, quando as duas podem se reencontrar. (BULFINCH, 2013)
Além de ser uma analogia para o surgimento das estações do ano, essa história é uma das narrativas mitológicas mais influentes sobre como o arquétipo materno é poderoso no imaginário e inconsciente coletivo. Uma mãe que vai até as instâncias de morte de seu mundo para recuperar sua filha. Pode ser uma analogia também aos casamentos e como as mães se sentem ao perderem a companhia das filhas em detrimento dos maridos. Em todos os casos a Grande Mãe é facilmente identificável.
A trajetória de Wanda e a Maternidade
A trama da série gira ao redor do luto de Wanda, meses após os eventos de Vingadores: Ultimato (2019) a protagonista resolve ir atrás dos restos mortais de seu amado Visão. Os restos mortais do android foram recolhidos por uma organização militar de nome Espada, onde estavam sendo utilizados em uma tentativa de engenharia reversa para replicar suas habilidades. Quando ela pede para ver o corpo, o líder da organização permite, o que abala a personagem de maneira irreversível.
A personagem já havia passado pela perda do irmão, Pietro, em Vingadores: Era de Ultron (2015), e havia encontrado o amor que logo perdeu com a morte de Visão. Esses fatos culminam na fuga de Wanda, onde ela se direciona para uma pacata cidade pequena, para o local onde se revela posteriormente ela e o falecido companheiro haviam planejado toda uma vida, e uma casa para viverem; lá, numa catarse sobrenatural de seus poderes, toda a realidade a sua volta se molda e a cidade e seus habitantes são envolvidos pelos poderes dela.
Alí, através de suas habilidades, Wanda é capaz de materializar seu sonho de ter seu amado de volta. Numa trama intrincada que envolve o passado da personagem e as influências que recebeu de seus pais na infância a realidade ao seu redor se molda a cada episódio com uma influência visual diferente, começando com os seriados de comédia familiar dos anos 1960 e caminhando para as sitcoms do início dos anos 2000. À medida que os episódios passam o espectador pode perceber a jornada de Wanda por seu luto e as tentativas de recalcar um passado e uma realidade que a assombrava.
Ainda é interessante citar que mesmo sendo de origem europeia – Wanda é natural do país fictício de Sokovia, que fica em algum local próximo a Rússia nesse universo fantástico – toda a influência visual e cultural na narrativa criada pelos poderes de Wanda que molda o mundo ao seu redor vem com as características norte americanas. Em especial características do conhecido sonho americano, da década de 50 e do modelo familiar estadunidense retratado nas séries e filmes populares. Os pais da protagonista sempre levavam DVDs com seriados do gênero para a pequena Wanda assistir e observar como isso ficou sedimentado no inconsciente dela, partindo do pressuposto que os poderes transformam a realidade ao redor de acordo com a vontade da mente dela, é muito curioso.
No meio desse turbilhão, Wanda e Visão, em uma espécie de concepção sobrenatural – pois Visão é um ser robótico – descobrem que Wanda está grávida; e essa é a força motriz da mudança da personagem e da trama, é aqui que emerge na personagem a Grande Mãe. Como na consumação sagrada de todos os desejos da protagonista, como Maria que concebeu Jesus ainda virgem na narrativa cristã, os gêmeos Célere e Wiccano são trazidos ao mundo, mudando a vida de Wanda a partir daquele momento.
O roteiro da série passa a dividir o protagonismo com os filhos no momento em que aparecem em cena e isso deixa clara a importância da maternidade para o desenvolvimento psíquico e sentimental de Wanda. Os filhos passam a ser sua motivação, sua alegria, a fonte de seus maiores temores. A menção de ameaça a eles proporciona os maiores atos de heroísmo por parte dela e por fim eles se tornam sua maior força motriz após os eventos que concluem a série.
Seus filhos e sua relação com Visão – o conceito concebido alí por ela de família – se tornam sua motivação primária e é aí que vemos o arquétipo materno agir, dar forças e modificar a vida da personagem. Wanda se vê impelida de forma quase sobrenatural a amparar e proteger aqueles pequenos seres que saíram dela e a preservar sua estrutura familiar. Tudo isso graças a grande mãe que foi despertada dentro dela.
Referências
BULFINCH, Thomas. O livro da mitologia: a idade da fábula. São Paulo: Martins Claret, 2013.
COSTA, Christiane Gonçalves. Nossa Senhora Do Perpétuo Socorro E O Arquétipo Feminino. Revista Mosaico-Revista de História, v. 13, p. 72-80, 2020.
DE SOUZA, Felipe Machado; FIALHO, Antônio Francisco. Comunicação, consumo e o arquétipo da grande-mãe: a maternidade na perspectiva das marcas. Revista Memorare, v. 3, n. 3, p. 54-78, 2016.