Branca de Neve e as ilusões femininas no terceiro milênio

Os contos de fadas e a construção da feminilidade na cultura ocidental são permeados pelos aspectos constituintes de uma sociedade patriarcal, em que as mulheres/adolescentes e meninas são marcadas pelas perdas, pela impossibilidade de estar livre, de fazer escolhas a partir de si. As escolhas são determinadas por situações que demarcam a fragilidade de ser mulher.

A perda da proteção materna sofrida por Branca de Neve a deixou vulnerável a uma outra mulher que não a acolheu como filha, pois a Madrasta, vítima da necessidade de ser bela, sedutora, a desejada por todos, não conseguia cuidar de outra mulher que, mesmo sendo menina, se constituía numa ameaça.

A fragilidade das princesas nos contos de fada oferece mensagens que podem moldar a percepção das meninas sobre o lugar que as mulheres devem ocupar na sociedade, constituindo a idealização de ser uma princesa bela e frágil. Com isso, almejando a possibilidade de ser amada por um belo príncipe que irá protegê-la, cumprindo muitas vezes o lugar do pai que não ofereceu a segurança e a proteção necessárias.

ABRAMOWICZ (1998) indica que no final do século XVII houve uma reversão dos contos de fadas, direcionando para uma percepção de sociedade patriarcal indicando que a salvação das mulheres só poderia ocorrer como consequência da submissão aos homens, ou seja, submissão as regras patriarcais.

A partir daí os contos elaboram configurações, produzindo, assim, uma constelação estético-ideológica em que a autoridade do macho exerce seu poder de professor ou de moderação sobre a mulher, construída como ingênua, volúvel e fraca. Para provar seu valor, a jovem mulher deve revelar, pelas suas ações, as qualidades de modéstia, perspicácia, humildade, esforço e virgindade e deve ter a capacidade de esquecer-se de si.  (ABRAMOWICZ ,1998)

Somente quando a mulher/princesa alcança o lugar indicado pela sociedade é que ela será digna de ser encontrada por seu príncipe, pois cabe a ela o lugar de espera, e a Branca de Neve espera, de forma totalmente vulnerável, deitada em um caixão de vidro, no meio da Floresta, mas vigiada.

Ela tem sua pureza protegida por sete anões, representando o lugar de pais e irmãos e mesmo em um caixão está bela, pois ser bela é a função da mulher para encantar o homem. Somente neste contexto, em que se enquadra ao esperado para o lugar da mulher, é que seu príncipe aparece, como coloca ABRAMOWICZ (1998), é a graça recebida, o casamento feliz dentro das regras sociais, projetando no imaginário das meninas uma referência de felicidade a partir de modelos de famílias tradicionais e de papéis definidos entre homem e mulher.

Os modelos estanques de homem e mulher negam a pluralidade e complexidade da construção de gênero, indicando que quem não se encaixa nesses padrões são pessoas inadequadas para os parâmetros sociais. Em pleno Terceiro Milênio esses modelos estão oferecendo indicações falhas e falsas, o mundo capitalista não teria sobrevivido e se fortalecido senão fosse a saída das mulheres do reduto doméstico do trabalho repetitivo e improdutivo para o mundo do trabalho produtivo, ocupando lugares, a cada década, de mais poder.

Relembrando que o espaço doméstico é visto como compatível com a privacidade, lugar onde a família se recolhe. Historicamente, na medida que se define o espaço doméstico, reforça-se a autoridade do marido e do pai, e o serviço doméstico perde a função considerada necessária para aprendizagem, tornando-se paulatinamente atribuição feminina e de menor importância social. Com a saída das mulheres para o mercado de trabalho, essa função começa a se modificar (DEL PRIORE, 1995). E isso irá interferir na construção de gênero, pois não se pode mais ser Brancas de Neve a espera do príncipe que irá conduzir a um Castelo, em que a mulher será a rainha, sem preocupações com sobrevivência e segurança.

A realidade do Terceiro Milênio é diferente, mas não menos perversa do que o mundo da Branca de Neve, pois ela deveria se submeter aos parâmetros para ser feliz com seu príncipe. Mas, na atualidade, esses parâmetros não são viáveis, pois os príncipes de hoje não desejam mais encontrar sua amada vulnerável para poder provê-las. E a emancipação feminina trouxe a liberação sexual, que em muitos casos está se constituindo em ditadura sexual, em que as mulheres sentem-se na obrigação de submeter-se ao desejo sexual dos homens, na sua maioria desejo de sexo casual e desvinculado de afetividade, isso não se constituiria em conflito se as mulheres não tivessem em seu imaginário o lugar da princesa a espera do seu príncipe.

Quando meninas ainda, as futuras mulheres deste milênio escutam e leem os contos de fadas e, a partir deles, também constroem expectativas de sonhos de amores lindos, repletos de atos heróicos e comprometidos de seus amados. Mas, se deparam com conflitos que as deixam muitas vezes confusas sobre como conduzir as suas relações amorosas.

Dizer não, se impor, determinar a forma que desejam ser tratadas é romper com a submissão da boa princesa, é negar o desejo do seu conto de fada, mas ao ceder ao seu suposto príncipe, elas encontram muitas vezes o abandono, o descaso que as princesas dos contos de fadas não enfrentaram.

O contexto de Branca de Neve pode oferecer algumas pistas sobre a relação contraditória e conflituosa entre as mulheres. A mãe da Branca de Neve morreu prematuramente, o que para uma criança pode ser sentido como um abandono, indicando que não é possível confiar nas mulheres, pois sua mãe a abandonou, deixando-a desprotegida. O pai então casa-se novamente, e essa nova mulher que poderia ser a possibilidade de reencontrar um amor maternal, transforma-se numa sensação de perigo, chegando ao risco do aniquilamento (morte), por estar se transformando numa bela mulher, colocando em risco o lugar da Madrasta.

Nesse contexto de abandono, solidão e perigo, a Branca de Neve encontra a realidade de que está só, que precisa agir para proteger sua vida, mas a construção do imaginário de ser doce e educada a coloca vulnerável diante da velha senhora que lhe oferece a maçã.

Novamente é através de uma mulher que ela encontrará a dor ao morder a bela maçã.

A partir do Conto de Fadas da Branca de Neve, a sociedade indica as meninas que a relação entre as mulheres é permeada pela competição desleal e cruel, pois o objetivo de todas é alcançar o lugar do desejo do homem, pois só ele pode oferecer a felicidade segura do casamento.

De acordo com BORTOLOTTO (2010), a beleza de Branca de Neve é motivação de inveja e apreciação. Motiva o ciúmes e a crueldade de sua Madrasta vaidosa, e a salva ao comover o lenhador, os anões e despertar o amor do príncipe. Será que ser bela, ser a mais bela para as mulheres, é ainda uma necessidade, bem como manter a beleza independente da idade?

Pois, a Madrasta demonstra não suportar que uma mulher mais jovem possa ser considerada mais bela do que ela.

A busca incessante pela beleza é algo que a sociedade valoriza e estimula. No Brasil, entre 2009 e 2012, o número de cirurgias plásticas cresceu 120%. No ano passado, foi 1,5 milhão, o que colocou o país no primeiro lugar do ranking internacional na proporção cirurgia por habitante, sendo que sete em cada dez cirurgias plásticas são estéticas, entre elas as mais procuradas são: lipoaspiração, rosto, e redução ou implante de silicone nas mamas (PEIXOTO, 2013). É preciso vencer a idade, manter-se bela. Já que não se pode utilizar maçãs envenenadas para eliminar as jovens, é preciso buscar o bisturi para fazer o milagre da beleza acontecer e/ou permanecer.

E na atualidade ainda é possível encontrar mulheres que responsabilizam outras mulheres pela traição de seus amados, o rancor, a mágoa e até mesmo a vingança direcionada a outra e não ao homem com quem tinha um vínculo afetivo. É como se no imaginário fosse necessário vencer a madrasta/bruxa má para assegurar o seu lugar de princesa junto ao príncipe encantado.

Mas, mesmo nos Contos de Fadas, a competição é definida pela figura masculina, no caso da Branca de Neve, foram os anões que a protegeram e baniram a Madrasta. Indicando que a escolha é dos homens, mesmo que as mulheres duelem de diferentes formas, a escolha é do homem, demarcando novamente o poder do macho.

Mas, então qual seria o caminho para superar esse imaginário que permeia as mulheres que buscam seus príncipes numa sociedade capitalista em que as mulheres estão ocupando cargos de chefias e que a realidade demonstra que elas estão a cada ano mais sozinhas na manutenção financeira e administrativas dos seus lares? Segundo dados do Censo de 2010 (CNTE, 2012), o número de mulheres que é responsável pela casa saltou de 11 milhões em 2000 para 22 milhões em 2010, representando um total de 37% dos lares chefiados por mulheres, parece que o príncipe encantado sumiu…

Um dos caminhos seria a reinvenção dos contos de fadas, algumas tentativas estão ocorrendo em novas versões para o cinema. Que os contos tenham o seu lugar na literatura, mas que as mulheres/mães contextualizem e ajudem seus filhos a compreenderem que é preciso superar esse imaginário de submissão e beleza feminina como fórmula para a felicidade no amor romântico. É necessário o resgate, talvez, do lugar de poder da rainha em seu trono que define o que deseja, que deixa claro o seu lugar e o que permite ou não. Que as mulheres aprendam a serem rainhas em seu poder de escolha e decisão, superando a fragilidade da princesa, a inocência que a torna submissa à espera passiva do seu príncipe encantado.

Referências:

ABRAMOWICZ, Anete. Contos de Perrault, imagens de mulheres.Cad. CEDES,  Campinas,  v. 19, n. 45, July  1998.   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-32621998000200006&lng=en&nrm=iso>.access on  10  Jan.  2014. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-32621998000200006

DEL PRIORE, Mary. (1995). Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. 2ed. Rio de Janeiro: José Olympio.

PEIXOTO, Ari. Número de cirurgias plásticas no Brasil cresceu 120% entre 2009 e 2012. País ocupa 1º lugar no ranking internacional. Sete em cada dez cirurgias plásticas são estéticas. Em:http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2013/08/numero-de-cirurgias-plasticas-no-brasil-cresceu-120-entre-2009-e-2012.html

CNTE. Famílias Chefiadas por Mulheres. Em: http://www.cnte.org.br/index.php/secretaria-de-relacoes-de-genero/noticias/11086-familias-chefiadas-por-mulheres-sao-373-do-total-no-pais-aponta-ibge