Dona Miúda. Foto: Samuel Leumas
É comum circular, como mensagem de internet, um texto em que compara pessoas a estrela ou cometa, cujo argumento principal é a perenidade da primeira e a efemeridade do segundo. Nunca averiguei a veracidade de tal afirmação, tampouco se a enumeração que o texto apresenta tem ou não sentido. Mas ao aproximar o dia 11 de novembro, em que completará o segundo ano de falecimento de Dona Miúda; e também ao saber que o fogo consumiu as veredas e o capim dourado, neste ano, inesperadamente me recordei da oposição entre estrela e cometa. Entre o permanente e o efêmero; entre o que é verdadeiramente importante em um grupo humano e o que é apenas circunstancial.
Não é novidade que Dona Miúda ficou conhecida por ter sido a responsável pela disseminação do artesanato feito com capim dourado o que lhe rendeu títulos de honra1. O que até o século passado era apenas uma atividade familiar para atender às necessidades domésticas, como a utilização de cestos e chapéus, a partir de 2000 se transformou em importante fonte de renda para a Comunidade Mumbuca. Daí, o trabalho artesanal com essa matéria-prima, considerada especial, desde então, se espalhou para outros grupos quilombolas do entorno. E, ante a criação do Parque Estadual do Jalapão, em 2001, área de proteção integral, o uso da haste brilhante se tornou alternativa econômica para os moradores os quais foram proibidos de praticar atividades antes liberadas, como criação de gado e plantio de roças2.
Nas imensas e belas veredas do Jalapão brotavam abundantemente essa espécie de sempre-viva que, seca, chama atenção pelo aspecto reluzente. Brotavam. Porque, ao adquirir caráter glamouroso, o artesanato passou a custar caro e, por isso, a planta passou a ser cobiçada por número cada vez maior de pessoas. Houve deslumbramento. E o boom aconteceu na primeira década do século XXI. A novidade e o requinte das peças atraíram curiosos do país e do estrangeiro. O Tocantins ganhou destaque. E em pouco tempo, os meios de comunicação descobriram Dona Miúda e sua gente simples que, até então, viviam isolados e eram pejorativamente chamados de jalapoeiros.
Depois da descoberta, foram realizadas tantas matérias para mídia impressa e televisiva, na Mumbuca, que os artesãos perderam a conta, como afirmou o jovem Ismael, ao ver uma foto dele, ainda criança, em certo catálogo de peças. Programas de alcance nacional tais como Domingão do Faustão, Globo universidade, Ação, Globo News, são alguns que mostraram amplamente, desde a colheita à confecção e venda dos trabalhos, além de inúmeras reportagens e notícias locais.
Não por acaso que Dona Miúda, orgulhosamente, afirmava de forma reiterada ser conhecida no mundo todo. Até recebeu tratamento de personalidade ao comparecer a eventos tanto em âmbito estadual quanto nacional, acompanhada de pessoas públicas que iam buscá-la na porta de casa, segundo ela afirmou em entrevista. E também recebeu frequentes visitas em sua casa localizada no final da rua; desde turistas anônimos a pessoas influentes em distintas áreas, como artistas, políticos, embaixadores, ministra do meio ambiente, designers, os quais iam falar com ela.
Enquanto isso, de um lado, as peças multiplicaram-se e brilharam em lojas chiques e passarelas das grandes cidades; artistas usaram brincos e pulseiras em novelas de horário nobre para alegria dos envolvidos com capim dourado. De outro lado, foram aumentando os artesãos. E a atividade, fonte de renda para moradoras do parque, se espalhou para várias cidades da região do Jalapão até chegar a Palmas, em lojas e feiras livres. Na atualidade, peças de capim dourado são facilmente encontradas, por exemplo, entre tantas outras, nas barracas externas junto ao Mercado Modelo (Salvador-BA), confeccionadas por artesãos da capital baiana e com preços iguais aos praticados no Tocantins.
Alguns designers têm sugerido a mistura de elementos naturais com outros de bijuterias comuns ou sofisticadas, seja para atender a gostos distintos, seja para solucionar o problema da escassez do capim que, com enorme fluxo de artesãos à procura, tem se tornado cada vez mais raro, distante, difícil e incerto.
É fato que, na defesa pela sobrevivência, as associações de artesãos do Jalapão conseguiram a identificação geográfica (IG), em 2011, mas tal feito não tem conseguido impedir contrabando, colheita desordenada, incêndios e mentiras acerca da (falsa) origem de certas peças. Neste ano, houve desânimo e tristeza diante do quadro desolador das veredas que arderam em chamas e apagou o brilho do capim e dos olhos de artesãos que o têm como única fonte de renda.
Única fonte de renda. É isso mesmo! Porque, depois que a moda das peças douradas ganhou destaque, especialmente na mídia, outras matérias-primas de artesanato como taboca e buriti, por exemplo, foram abandonadas, certamente pelo fato de elas não brilharem. A própria D. Miúda comentou que, tempos atrás, trabalhava com barro, mas atualmente, na comunidade, ninguém o faz.
Essa situação remete à festa do início da colheita que os mais velhos recordam3 nostalgicamente da época em que os núcleos familiares se reuniam nas casas uns dos outros para colherem o que, com dificuldade, havia sido plantado meses antes, sobretudo, arroz, como também algodão com o qual tecia o vestuário. Além de milho e feijão em menor quantidade. A atividade era a recompensa pelo árduo trabalho de preparar a terra, plantar e esperar a semente nascer e produzir. O mutirão significava momentos especiais de solidariedade e de fraternidade, como também a certeza de prosperidade e entretenimento para todas as famílias envolvidas. Nesse período era forte o movimento da Roda Chata4 , quando todos cantavam e celebravam o presente e os antepassados.
Na fase do capim dourando, contudo, já ocorreu que, de atores principais, os artesãos passaram a espectadores e, alguns, durante o evento, exerceram o papel de coadjuvantes, no palco, porque a festa, pensada pelos moradores, foi organizada na capital e transportada para o vilarejo. Inclusive, à época, Dona Miúda foi coroada rainha do capim dourado para deleite de inumeráveis jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas que faziam a cobertura do evento, muito diferente do que os quilombolas tinham na memória.
Mas Dona Miúda morreu e, além de saudades, deixou heranças para sua gente. Em entrevista, ela afirmou ter conseguido benfeitorias para a comunidade como escola, telefone, energia elétrica e telhas para cobertura de algumas casas: “o negócio aqui tudo é eu… eu sou conhecida”. No entanto os moradores que permaneceram, filhos, netos, bisnetos, irmãos e sobrinhos da matriarca herdaram o capim dourado já minguando. E também a água ainda escorrendo, na entrada do povoado, há mais de dois anos. A falecida sonhava ver a água preciosa encanada e distribuída para todas as casas: “aqui estou sem água… aqui nessa casa… tem que pagar gente para buscar água… sem água aqui tá ruim DIMAIS” (entrevista em abril/2010).
Ela até conseguiu ver o início da construção de sanitários para sua gente, mas não ficou sabendo que até hoje eles estão inacabados. E pessoas idosas, como Dona Laurentina, ex-parteira do lugar, depois de uma década do comércio de capim dourado, ainda fazem necessidades fisiológicas no mato. Imaginemos uma pessoa com mais de 80 anos, em época chuvosa, nessa situação! Dona Miúda deixou, ainda, como herança, o sonho de ver um posto de saúde instalado para atender às demandas, de crianças a idosos que, diante de estradas de tão exigente percurso, não raras vezes se veem abandonados à própria sorte, como em tempos antigos. O quadro piorou, atualmente, porque a ponte de acesso à Comunidade Mumbuca está ameaçada de cair.
A matriarca viu, também, a escola estadual ser construída no povoado. No entanto é possível que, tão visível na mídia, ela não tenha percebido, ainda em vida, a rotatividade de professores cujo reflexo é constatado em número significativo de crianças e adolescentes que leem e escrevem mal. É certo que essa realidade não acontece exclusivamente nesse povoado de quilombolas. No entanto, lá, já existe uma casa destinada a docentes, iniciada há mais de dois anos. Se esta já estivesse construída, e se fossem enviados para profissionais com perfil pedagógico para atender àquele público, pode ser que houvesse melhores condições de educação. E os artesãos-mirins enxergariam outras perspectivas. Caso contrário, dificilmente as novas gerações conseguirão emancipar-se do ofuscamento dourado e compreender o brilho do conhecimento o qual pode levá-las além das veredas e da mídia.
Diante disso, talvez seja o momento de perguntar, afinal, a quem e por quanto tempo serve, de fato, o capim dourado? Por que não há interesse explícito de construir, junto à comunidade e com ela, processos duradouros de aprendizagens? Que atitudes de turistas, pessoas públicas, pesquisadores, e governos de distintas instâncias, podem contribuir para a desconstrução de olhar romântico sobre os quilombolas de Mumbuca (e outros grupos semelhantes) e vê-los de forma mais comprometida? E também, como os artesãos podem se olhar a partir da história, da herança cultural dos antepassados, que é muito maior do que o capim dourado, e (re)construir e/ou fortalecer o próprio território identitário, em diálogo com as demais culturas?
Dona Miúda pertenceu a um grupo, ascendente dos irmãos africanos vindos ao Brasil para o vil trabalho escravo, nas grandes lavouras de ricos fazendeiros. Ela se foi e levou a herança recebida dos seus antepassados, traduzida no sangue, no nome e na cultura construída ao longo de quase um século de vida5. O modo de trabalhar na roça, de fabricar peças de barro e de tecer trabalhos artesanais de diversas matérias-primas. E ainda tudo o que foi depositado na memória ao longo desse tempo: as crenças praticadas em família; as cantigas entoadas (Jaú, jaú, jaú, jaú, meu bem / Se eu não caso com Jaú / Eu não caso com ninguém6), e as histórias narradas nas rodas que aconteciam em épocas de mutirões; os toques da violinha de vereda. Essas preciosidades possuem brilho próprio e duradouro ao ser transmitido, naturalmente, entre os membros do grupo. Tal legado ela levou. Mas também o deixou para as demais gerações que, com responsabilidade e consciência, devem cuidar e continuar transmitindo como tesouro que nem cobiça, nem fogo, nem dinheiro, nada pode tirá-lo da comunidade.
Notas:
1 D. Miúda foi considerada uma das 21 mulheres da História do Tocantins, em 2009, e coroada rainha do capim dourado em festa da colheita no mês de setembro de 2010, dois meses antes de morrer. Disponível em: <http://conexaoto.com.br/tag/dona-miuda>. Acesso em 28 de outubro/2012.
2 Atualmente, as comunidades aguardam demarcação das terras quilombolas que estão dentro do Parque Estadual do Jalapão.
3 Em entrevistas, durante desenvolvimento de projeto sobre poéticas orais da comunidade, desde final de 2009.
4 Roda Chata é o nome do evento em que todos os moradores se reuniam para cantar cantigas de roda e contar histórias. O adjetivo “chata”, nesse caso, não tem valor depreciativo. Significa, segundo alguns moradores, a relação circular e horizontal de encontro alegre entre os participantes.
5 Guilhermina Rodrigues Matos (Dona Miúda) morreu com 82 anos, em 11 de novembro de 2010.
6 CD Cantigas da Comunidade Mumbuca. Registro realizado com Dona Miúda, em abril/2010.