Ao libertar o gênio, Aladim percebe que o Self e o sagrado não mais estão à disposição do ego, mas está disponível para o coletivo, para algo maior que se expande para o mundo.
Aladim é um filme de 2019, adaptado do desenho animado Aladdin, de 1992, e baseado no conto árabe As Mil e Uma Noites, de Antoine Galland. O conto Aladim na verdade só se uniu as Mil e uma noites a partir do século XVIII, anteriormente ele não fazia parte da narrativa do livro.
No conto o jovem Aladim é descrito como um adolescente que se recusa a aprender o ofício do pai, que é alfaiate, sendo descrito por sua mãe como imaturo, “esquecido que não é mais criança”. O nome Aladim pode significar em árabe a “nobreza da fé”. Ou ser advindo da mistura de Alá e Djin (gênio ou daimon).
Djin ou Jinn, significa gênio na religião muçulmana, e era uma entidade sobrenatural do mundo intermediário entre o divino e humano. Estava além do bem e do mal, e rege o destino de alguém ou de um lugar.
Ele é um espírito guardião designado para cada pessoa ao nascer. Portanto, o gênio é concebido como um ente espiritual ou imaterial, muito próximo do ser humano, e que sobre ele exerce uma forte, cotidiana e decisiva influência. Sendo ele o responsável pelo cumprimento do destino de cada ser humano. Ou seja, Aladim é o herói que liberta o espírito divino preso na lamparina. Libertar o gênio não é um processo fácil, é o processo da individuação que exige disciplina e coragem.
No filme Aladim é um órfão pobre e ladrão, que vive em Agrabah. Ele é chamado de “rato de rua” e seu amigo é um macaco que o acompanha em suas aventuras. Mas antes de adentrar a história mesmo, é importante comentarmos sobre um simbolismo muito importante: o da lâmpada mágica.
A lâmpada é uma figura presente em contos e lendas. Ela é um instrumento de iluminação associada ao ser humano, que contém em si o fogo do interno. Como lamparina ou lâmpada é transitória e o fogo dessa iluminação pode se extinguir, sendo necessário o tempo todo ser aceso. Ou seja, o ser humano precisa de tempos em tempos reacender o fogo da espiritualidade em si, pois enquanto matéria, somos levados a nos manter inconscientes e em nossa zona de conforto.
O fogo e o gênio são acionados quando nos esforçamos e decidimos adentrar em nosso interior. A lâmpada é na verdade uma lamparina semelhante àquelas utilizadas na iluminação doméstica.
Na Grécia antiga o culto da deusa Héstia, deusa representada pelo fogo, era feito em seu templo e em casa, por meio do fogo que deveria ser mantido aceso sempre. As sacerdotisas dos templos tinham que estar sempre atentas para que esse fogo não se apagasse.
Héstia também estava presente em cultos domésticos. A importância de Héstia é encontrada em rituais, simbolizada pelo fogo. Para que uma casa se tornasse um lar, a presença de Héstia era solicitada.
Ou seja, o fogo do espírito deve estar presente em nosso recôndito mais íntimo, no nosso lar interno. O fogo do espírito, ou seja, o conhecimento além da simples matéria, o fogo da essência divina (do Self) deve estar sempre presente no nosso cotidiano.
Aladim no filme é inquieto, está em busca de algo que o tire da rotina e não se preocupa em encontrar uma profissão e ganhar seu dinheiro. É tido como irresponsável e infantil. Porém, estamos falando de um herói. E como herói é necessário que olhemos para ele não como um ser humano comum, mas como uma imagem arquetípica.
O herói não necessariamente é aquele que luta e mata os monstros, dragões e bruxas. Ele muitas vezes pode se apresentar como um bobo, ou como alguém com caráter duvidoso (o anti-herói).
Como ladrão, Aladim apresenta características do deus Hermes. Hermes é o deus grego da inteligência, astúcia, magia, divinação, viagens, estradas e dos ladrões. Além de ser um guia de almas. Era o único deus capaz de transitar nos três mundos: deuses, humanos e dos mortos. Se tornando o mensageiro dos deuses. Mas o principal atributo de Hermes é a alquimia. Deus alquímico, transformador e guia da alma humana.
A alquimia representa a mais profunda transformação humana. É o processo de individuação projetado na transformação da matéria sem valor em algo valoroso. Podemos, portanto, observar Aladim como essa matéria bruta que irá se transformar em algo valioso.
Aladim tem como amigo um macaco, um animal que está muito próximo do ser humano. Para os Astecas e Maias o macaco estaria ligado às artes e à sabedoria. No hinduísmo havia um deus macaco chamado Hanuman. Ele era cultuado como uma encarnação do deus Shiva, que encarnou com a missão de ajudar um rei a derrotar um demônio. Hanuman representa a natureza instintiva do ser humano e a sua origem animal, que pode ser transformada e transmutada para o encontro com o divino.
Simboliza também a mente humana, que pula como um macaco para um lado e para o outro, de galho em galho, sem foco. Ao desejarmos tudo o que vemos nossa mente se atrapalha e se distrai nos tirando do que é essencial. Uma clara armadilha do ego humano. Hanuman transcende as paixões do ego e os sentidos e simboliza a disciplina da mente.
No filme, Aladim parece não ter foco. Ele mesmo pula como macaco e vive distraído. Porém, seu macaco mostra a virtude do foco que acaba sendo essencial em diversos momentos cruciais, sendo um deles o encontro com a lâmpada mágica.
Aladim é escolhido então pelo vilão Jafar para ir buscar a lâmpada em uma caverna, pois esse possui as qualidades necessárias para poder entrar e sair vivo. O rapaz vai ao deserto com Jafar, confiante, e ele entra nessa gruta. Mas antes é avisado de que lá ele encontraria muitas jóias e tesouros, mas que não deveria tocar em nada. Ele deveria focar em encontrar uma lâmpada antiga e trazer para Jafar.
A entrada na caverna, ou descida, é um tema comum nos contos e jornadas heroicas. Trata-se de um mergulho do herói em si mesmo para buscar algo de valioso. Psiquê desce ao mundo de Hades para buscar a beleza de Perséfone, Orfeu para buscar sua amada, Héracles desce para pedir o cachorro Cérbero emprestado. Odisseu e Enéias também descem.
Descer exige coragem para enfrentar suas imperfeições, seus pesadelos. Deve-se ter foco para isso, pois é fácil se perder neste processo. Trata-se de um grande teste e de um processo de purificação para que o herói seja apto e digno de encontrar o tesouro e ser realizado.
Cada vez que um ser desce ao submundo e enfrenta a provação, ele se despoja de um ou vários aspectos impuros de seu interior. Ele se purifica de aspectos egóicos e infantis para que possa retornar, ascendendo sua consciência. Trata-se da verdadeira iniciação, a da alma.
A descida de Aladim é a de se despojar dos desejos egóicos e focar no desejo do espírito (a lâmpada), que irá guiá-lo ao seu destino. Para isso só alguém puro (não necessariamente perfeito), ou seja, alguém que não tem pretensões egóicas, que se entrega a jornada sem imaginar qual será o resultado.
Após Aladim retornar da gruta, Jafar pede a ele que entregue a lamparina. Mas Jafar o engana e ele fica preso na gruta. No entanto, a lamparina também fica com ele. Ao friccionar a lâmpada suja, aparece então o gênio. Aquele que irá satisfazer seus desejos e será seu daimon. O gênio lhe concede três desejos, e ele então pede que seja tirado de lá.
Aladim antes de conhecer o gênio havia conhecido a filha do sultão. Ela diz a ele que é a empregada da princesa e ele se apaixona. Após saírem da caverna, Aladim usa seu desejo de se tornar um príncipe para impressionar Jasmine (sem saber quem ela de fato é).
Ele se transforma em um príncipe com muitas riquezas, mas não impressiona a moça. Ela deseja mais do que apenas riquezas e o seu pretendente precisa estar à altura de sua nobreza, não externa, mas interna. Jasmine, do ponto de vista do herói, pode ser a anima que desafia o homem a encontrar o seu valor. A olhar para dentro de si e não apenas para fora.
Mas Jafar descobre a verdadeira identidade do príncipe e o joga no mar. No entanto, o gênio o salva. Temendo que Jasmine descubra sua identidade e a presença do gênio, ele se recusa a libertá-lo, sucumbindo á sua sombra, que é o poder.
Além disso, o sultão, pai de Jasmine, está velho e cansado e sucumbe ao poder de seu aspecto sombrio, simbolizado por Jafar.
O reino também não possui uma rainha, ou seja, o aspecto feminino não está presente na consciência coletiva. Quando esse aspecto está reprimido há um endurecimento dos sentimentos e uma instalação de seu oposto, o poder!
As leis são embrutecidas e não há lugar para o lado humano. Vemos isso em uma cena que Jasmine permite que uma criança roube uma maçã e sendo então condenada a perder a mão.
Lei é lei apenas, não se faz nada pelo simples fato de amar alguém. E é esse o grande ensinamento de Jasmine. Ela simplesmente ama Aladim, e está disposta a quebrar as regras por amor.
A princesa também tem de lutar com o preconceito contra seu gênero. Ela luta para que seus subordinados aceitem as ordens dela, pois quem dita as ordens é Jafar, o tirano ambicioso colocado pelo próprio rei como comandante. Além disso, ela só terá o poder de “se livrar” de Jafar quando for rainha, o que só acontece com o casamento. Isso mostra que até certo momento, em nossa sociedade, a mulher só tem valor com o casamento. De forma velada, isso perdura até hoje.
Outro aspecto do filme que é muito interessante, é a relação de Aladim com o gênio. Ao logo do filme, o gênio deixa de ser apenas aquele que satisfaz os pedidos do herói para se tornar um protetor e guia. Aladim passa a ouvi-lo e ao final o liberta da prisão.
Libertar o gênio significa libertar o divino para que possa ocupar o mundo. Enquanto está na lâmpada ele se mantém preso à ganância do ego.
Ao libertar o gênio, Aladim percebe que o Self e o sagrado não mais estão à disposição do ego, mas está disponível para o coletivo, para algo maior que se expande para o mundo.
Quando temos um dom, esse dom não é apenas para a nossa satisfação momentânea e do ego, mas para que possamos servir a humanidade através dele, uma vez que o dom veio pelo divino, pelo inconsciente.
FICHA TÉCNICA DO FILME:
Aladdin
Diretor: Guy Ritchie
Elenco:Will Smith, Mena Massoud, Naomi Scott
Gênero: Aventura, Fantasia
País: EUA
Ano: 2019