Um dos grandes desafios da sociedade industrial é a produção de lixo. Em uma modernidade que busca praticidade, os descartáveis se tornaram sinônimo de facilidade, aumentando a problemática do acúmulo. Poucas pessoas refletem na amplitude desse problema e muito menos em sua responsabilidade socioambiental. A máxima de que, do ponto de vista do planeta não existe o lado de fora deixa clara a urgência de desenvolvermos tecnologias que deem conta de um volume difícil de processar, e que representa risco para a saúde humana e do planeta.
Foi a partir dessa problemática dentro dos hospitais públicos, que a enfermeira Renata Bandeira, em seu projeto de doutoramento, desenvolveu uma tecnologia inovadora e tão simples que custou encontrar apoio, mas que aos poucos se mostrou eficaz e eficiente. Os resultados alcançados mostraram que é possível não apenas a redução no desperdício e a minimização de impactos ambientais, mas também a geração de lucro a partir do lixo hospitalar.
(En)Cena – Renata, eu gostaria que você começasse relatando um pouco sobre o seu trabalho no doutorado. De que se trata, exatamente?
Renata Bandeira – Trata-se de um projeto que tem como objetivo implantar o correto gerenciamento de resíduos em serviços de saúde. Algo que se torna complexo, principalmente nas unidades hospitalares, já que a variedade de tipos diferentes de resíduos é grande. Uma parte destes resíduos é considerada altamente infectante, e o manejo inadequado traz prejuízos à saúde pública, alto custo para SUS e, principalmente agressão ao meio ambiente. Então o projeto procurou implementar processos eficientes que facilitassem a coleta e a destinação adequada para cada tipo de resíduo de forma a evitar desperdício e ainda, gerar renda para o hospital.
(En)Cena – Por que você escolheu esse tema?
Renata Bandeira – Foi por observar o caos que acomete os hospitais públicos, fiquei pensando em como poderia contribuir para melhorar a situação em relação ao lixo hospitalar, que como eu já disse gera inúmeras consequências negativas, inclusive em termos econômicos. O lixo hospitalar tem um custo alto para os cofres públicos, dinheiro que poderia ser revertido em outros benefícios para a saúde. O que a gente percebe dentro dos hospitais é que, muitas vezes um papel com o qual se enxuga as mãos ou mesmo restos de marmitas dos pacientes é misturado com agulhas e seringas no mesmo coletor de lixo. Isso tudo é descartado como lixo infectante, sendo que nem tudo ali diz respeito a esse tipo de resíduo. E você sabe que o infectante exige cuidados especiais para eliminação o que o torna mais caro, ou seja, muitas vezes o Estado paga o mesmo custo de um infectante num lixo normal. Isso sempre me incomodou muito e fiquei pensando em como poderia ajudar, eu senti a necessidade de contribuir de forma efetiva para minimizar esse problema nos hospitais públicos da capital e também de todo o Estado de Tocantins, daí nasceu a ideia.
(En)Cena – Quanto tempo levou para implantação do projeto e quais dificuldades você encontrou, houve muita resistência?
Renata Bandeira – A implantação aconteceu concomitantemente com o desenvolver do meu curso de doutoramento, em torno de cinco anos, com algumas dificuldades no decorrer, já que foi necessária pesquisa aprofundada para desenvolver algo com baixo custo (devido as dificuldades financeiras que assolam os serviços públicos) e que realmente alcançasse um resultado significativo e, também, sem colocar em riscos os funcionários que trabalham com o manejo dos resíduos. Outra questão importante, que deve ser consideradas, é que algo novo sempre causa resistência da gestão no início, mas, conforme as coisas foram acontecendo obtivemos grande contribuição da equipe. Hoje já conseguiríamos desenvolver algo parecido em alguns meses em qualquer tipo de serviço de saúde, mas no início, ninguém tinha um parâmetro para dizer que daria tão certo e que compensaria.
(En)Cena – Que resultados foram atingidos e o que eles representam para a sociedade?
Renata Bandeira – Reduzimos em torno de 57% dos resíduos produzidos no Hospital Infantil Público de Palmas, esse percentual equivale a uma média próxima a 200 kg por dia. Inclusive uma parte seria de resíduos infectantes que tem altíssimo custo para o SUS. Para se ter uma ideia, o Estado paga 4.08 centavos por kg de lixo infectante para a empresa que recolhe esse tipo de resíduo. Para reduzir esses custos implantamos um projeto inovador de reciclagem e fizemos parcerias com empresas que trabalham nesse segmento como cooperativas de catadores, logística reversa e empresas que compram o material. É importante ressaltar que dentro dos hospitais funciona uma cozinha industrial que serve grande quantidade de refeições para pacientes, acompanhantes e funcionários e que até mesmo os orgânicos advindos deste setor estão sendo reaproveitados para alimentação de porcos e consequentemente o hospital recebe um valor por cada um desses materiais (metal, plástico, papelão, papel, orgânico), destinamos corretamente também pilhas e baterias e, inclusive, nos tornamos um ponto de coleta de diversos tipos de resíduos. Ou seja, aquilo que era um problema de alto custo passou a gerar lucro para a instituição, além dos benefícios com a geração de empregos (nas cooperativas), redução de sacos plásticos, redução de resíduos comuns que a prefeitura coleta, o que reduz custos com combustível e desgaste do carro, além de aumentar a vida útil dos aterros sanitários.
(En)Cena – A que você atribui as conquistas do projeto?
Renata Bandeira – O envolvimento e empenho da equipe de trabalho da instituição, e as parcerias com as empresas.
(En)Cena – Que estratégias você considera terem sido essenciais para conseguir envolver as pessoas no processo e fazê-las acreditar nos resultados?
Renata Bandeira – Com certeza envolvê-los na problemática, já que todas as pessoas que circulam no hospital produzem lixo, e mostrar pouco a pouco que era possível modificar nossos hábitos com organização e inovação. Utilizei uma frase que gosto muito no processo de capacitação: “Faça o teu melhor, na condição que você tem, enquanto você não tem condições melhores, para fazer melhor ainda!” (Mário Sergio Cortella). E acredito que juntos entendemos que poderíamos sim mudar a realidade com criatividade.
(En)Cena – Qual a dificuldade de desenvolver um trabalho em equipe e que demanda tanto voluntariado?
Renata Bandeira – Não vejo dificuldade em desenvolver trabalho em equipe quando conseguimos motivá-los, isso gera um processo ao ponto de cada indivíduo se sentir importante no processo de mudança. E foi isto que ocorreu.
(En)Cena – Você poderia relacionar os benefícios do seu projeto para a saúde mental dos pacientes e funcionários do Hospital Infantil?
Renata Bandeira – Com certeza. Um processo de trabalho como este renova nos funcionários a motivação, tão importante no decorrer da vida profissional, principalmente no serviço público. E também o prazer de trabalhar em equipe, um colaborando com o processo de aprendizagem e crescimento do outro dentro dos grupos e setores, certamente desenvolve prazer no ambiente de trabalho e consequentemente melhora a qualidade de vida e saúde mental dos colaboradores.
(En)Cena – Renata, hoje seu projeto está indo para o Hospital Geral de Palmas. Quais as suas perspectivas com a implantação dessa tecnologia de reciclagem no HGP?
Renata Bandeira – Temos as mesmas perspectivas e metas que alcançamos no Hospital Infantil. Reduzir em torno de 50% dos resíduos nos próximos anos.
(En)Cena – Você acredita que isso pode se estender a outros hospitais ou empresas pelo Brasil ou pelo mundo? O que seria necessário para que isso acontecesse?
Renata Bandeira – Sim. Já iniciamos em outras unidades do Estado e acreditamos que o modelo implantado serve de exemplo pra todo o país. O que é necessário para isto, primeiramente preocupação com a quantidade de lixo que produzimos, e com a destinação final destes. Além de políticas públicas que trabalhem de forma mais efetiva ligando saúde e meio ambiente.
(En)Cena – O projeto parece ser bem simples, além de eficiente e eficaz contra os desperdícios, o que você considera como sendo um risco para a eficácia do projeto e que deve ser observado por quem quiser implantar essa mesma tecnologia?
Renata Bandeira – A constante capacitação dos funcionários, já que a rotatividade é grande nas unidades e para que uma mudança efetiva ocorra demanda tempo e educação permanente. É importante ressaltar que os funcionários em sua maioria não têm hábitos de separação adequada no lixo em suas casas, que deveria ser o processo correto, de casa para o trabalho, estamos fazendo o caminho inverso, do trabalho para as casas, desta forma também funcionamos como ponto de coleta para estas famílias, o que facilita o processo já que se torna um hábito de vida e não uma obrigação imposta pela instituição.
(En)Cena – Eu queria que você falasse um pouco sobre a saúde pública no Brasil. Como a insegurança em relação à saúde interfere no bem estar psicológico da sociedade?
Renata Bandeira – A insegurança relacionada a algo tão importante como a saúde com certeza tem reflexos no bem estar psicológico das pessoas, principalmente para aqueles que necessitam continuamente do Sistema Único de Saúde (SUS), como é o caso dos pacientes portadores de doenças crônicas, ou seja, estas pessoas não têm que se preocupar somente com a evolução de uma patologia, mas também se terão condições de tratá-la. E se esse tratamento será de qualidade. Certamente esta questão perpassa a cabeça dos brasileiros, ocasionando estresse, ansiedade e medo, consequentemente dificultando e prolongando seu tratamento.
(En)Cena – Para finalizar, em sua experiência como enfermeira, no interior do Brasil, você pôde observar muitos casos de fácil resolução, mas que pelo desconhecimento dos meios e recursos, acabavam se agravando. Que características você considera essencial para um profissional de saúde que lida com a população de baixa renda e pouca escolaridade?
Renata Bandeira – Conhecimento, criatividade e boa comunicação.