O Operário: a difícil luta para encontrar a sanidade

O ser humano, em sua jornada, objetiva alcançar o equilíbrio tanto físico quanto emocional, frente às pressões do cotidiano, para que, assim, consiga suportar as tramas da vida de forma mais branda. Se tal estabilidade não for alcançada, e se ele, ao mesmo tempo, não mais encontra estratégias para lidar com essas adversidades, ele sofre. Dito em outros termos, essa pessoa entra em crise (SÁ; WERLANG; PARANHOS, 2008).

A palavra “crise”, segundo Bonfada e Guimarães (2012), vem do grego “krisis”, que, de forma geral, circunscreve que uma decisão deve ser tomada. Eles, ainda, acrescentam que “essa palavra assume, desde suas origens, um sentido relacionado transição, separação, desequilíbrio, transitoriedade e, acima de tudo, a uma oportunidade de crescimento” (p.228).

Sá, Werlang e Paranhos (2008) afirmam que “vivenciar uma crise é uma experiência normal de vida, que reflete oscilações do indivíduo na tentativa de buscar um equilíbrio entre si e seu entorno” (p. 2). Quando a situação atual passa para um nível insuportável, é o instante em que a pessoa se dá conta dos fatos, de seu sofrimento e que algo precisa ser mudado. Considera-se importante, pois é um momento de metamorfose do indivíduo, em que se visualiza o seu poder criativo e transformador (BOFADA e GUIMARÃES, 2012).

"Quem é você?"
“Quem é você?”

Com o entendimento de crise, exibem-se a seguir a análise de um filme, cujo personagem principal apresenta crises no desenrolar da história. Esses comportamentos, juntamente com o corpo teórico sobre o tema relacionado a crise, serão relacionados para que se possa melhor entender como a mesma se instala em um indivíduo, ampliando, com isso, conhecimento referente ao assunto.

O filme “O Operário” – “The Machinist” (2004), com o roteiro de Scott Kosar e direção de Brad Anderson, conta a história de TrevorReznik (Christian Bale), um solitário operador de maquinário que há um ano não dorme, situação que vem, progressivamente, deixando seu estado físico e mental fragilizado. Reznik mostra-se paranoico, confuso, culpado e ansioso, sintomas estes que, no desenvolvimento do longa, vão “dando pistas” para que ele reconheça o seu real problema.

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Trevor trabalha em uma fábrica, operando máquina e, rotineiramente, após seu turno, encontra-se com Marie (Aitana Sánchez-Gijón) no seu serviço, uma garçonete que trabalha na lanchonete do aeroporto. Quando não, ele visita Stevie (Jennifer Jason Leigh), uma prostituta com quem ele tem um caso. Em suma, essas duas mulheres são as únicas pessoas com quem Reznik se relaciona.

Após se envolver em um acidente, no trabalho, Trevor começa sentir-se que está sendo perseguido pelos seus colegas de trabalho. Este evento ocasionou a perda do braço de Miller (Michael Ironside), quando, sem querer, ele aperta o botão que liga o maquinário que seu colega estava consertando. O acidente aconteceu porque Trevor se distraiu com a presença de um homem chamado Ivan (John Sharian) no local de trabalho. Eles, anteriormente, haviam conversado no estacionamento e, ao se apresentar, Ivan conta a Reznik que estava lá como substituto de Reynolds (James DePaul), soldador da fábrica.

Ivan (John Sharian)
Ivan (John Sharian)

 

No dia seguinte, quando foi dar seu depoimento sobre o acidente para os gestores da empresa e para o sindicato, ele descobre que não existe nenhum substituto trabalhando na fábrica e que a história que Ivan lhe contara não era real. A partir de então, ele começa a ser visto como louco pelos seus colegas de trabalho e ele, paranoico, percebe que sua presença é tida como um incômodo para os outros.

Confuso, Trevor procura desabafar seu conflito com Stevie. Ele alega que alguém invadiu a sua casa, deixando uma mensagem pregada na geladeira, do tipo “jogo da forca”, no qual ele tinha que adivinhar uma palavra de 6 letras, mas que as duas últimas palavras – “E” e “R” – já estavam reveladas.  Conta que, por causa do acidente que aconteceu com Miller, sente-se ameaçado pelos seus colegas de trabalho, pois estes o querem bem longe da fábrica. Fecha o discurso acreditando fielmente que haja uma conspiração contra ele. Reznik decide iniciar uma busca incansável a Ivan, pois ninguém acreditava na existência deste, então precisava encontra-lo para desmascará-lo.

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Nesse interim, a garçonete que trabalha no aeroporto, ao contar sobre seu compromisso para o Dia das Mães que fará com seu filho, decide convidar Trevor para ir ao parque. Lá, dentro da Rota 666 – uma das atrações do parque de diversões –, ocorria cenas que assemelhavam com sua realidade a cada momento do percurso, como: a mão de uma pessoa decepada, que o fez lembrar do acidente com Miller; a mãe em prantos no caixão de alguém; a palavra “culpado” escrita em uma placa; uma criança sendo atropelada pelo veículo que eles estão “dirigindo”; e, por fim, ao chegar na estrada que “leva ao inferno”, Trevor tem flashes de um possível carro atravessando um túnel. Durante esse momento arrepiante, o filho da garçonete que estava junto com ele, começou um ataque epilético, fazendo com que Reznik, desesperadamente, saísse correndo com o menino no colo, dizendo não ser o culpado pelo ocorrido.

Younes (2011), ao revisar os estudos sistemáticos de Lindemann (1944) acerca do conceito de crise, salienta que, por ser fruto de uma situação emocional, a crise é uma manifestação violenta e que, muitas vezes, pode prolongar (SÁ; WERLANG; PARANHOS, 2008). Esse fato pode delongar ou não, depende de como o indivíduo vivencia essa experiência e se haverá ou não intervenção para esta. Trevor experienciou uma crise psicótica, fantasiando todo aquele ocorrido, denotando que, entre os três níveis do curso evolutivo de uma crise – prodrômica, aguda e recuperação –, ele está na segunda fase: aguda. É nesse período onde se observa que o sujeito vivência alucinações, delírios e discurso desorganizado. (CARVALHO, COSTA E BUCHER-MALUSCHKE, 2007).

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Assim sendo, “o reconhecimento e a intervenção precoces fornecem oportunidade única de instituição de medidas preventivas de eventuais perdas e complicações inerentes a doenças crônicas” (DEL-BEN et al., 2010, p. 79). Analisa-se que o personagem teve a sua primeira crise há um ano, porém não elaborou e/ou não recebeu uma intervenção para atenuar esse episódio, prolongando essa vivência. Essa crise psicótica deixou de ser um singular episódio para Trevor e, ao tornar-se recorrente, ele atingiu o estado crônico da crise psicótica, piorando o seu quadro: o surto psicótico.

Outra cena interessante ocorre quando, em uma rotina de trabalho, Trevor prende eu braço no maquinário e, desesperadamente, grita, pedindo socorro, mas que no primeiro momento ele não foi socorrido. Mesmo com a ajuda aprazada por parte dos colegas de trabalho, o operário acusou todos daquele ocorrido, afirmando que eles tinham travado a máquina com o objetivo de fazer com que ele perdesse o braço. Novamente, vivência uma situação de crise, com características de comportamento paranoico. Segundo Beck et. al. (2005), apud Schmidt e Della Méa (2013), “o indivíduo paranoide percebe a realidade de forma incorreta e atribui ao outro aquilo que existe verdadeiramente em si. A característica básica é a desconfiança” (p. 78). Depois, ele tenta procurar a foto que tirou da carteira de Ivan, para provar a sua existência, mas não obteve sucesso achando o retrato e, ao se envolver em uma briga com seu supervisor, ele é demitido.

"Não se preocupe, ninguém nunca morreu de insônia"
“Não se preocupe, ninguém nunca morreu de insônia”

Após a demissão, Reznik procura Miller para conversar. Nesse encontro, Trevor provoca uma briga e acusa Miller de estar ligado a Ivan, e acrescenta dizendo que ele é a pessoa que entrou na sua casa, deixando aquela mensagem, pois, de acordo com a sua conclusão, “Miller” é a palavra que desvenda o mistério do “jogo da forca” que tanto o confundiu. Ao sair da casa de Miller, Trevor avista Ivan a poucos metros e o persegue, anota o número da placa e trama o próprio acidente, para, no posto policial, obter informações sobre esse ser fugitivo e misterioso.

Após dar parte na polícia, Reznik se depara com a notícia de que o dono do carro daquela placa, surpreendentemente, é ele. O policial conta que esse carro tinha sido totalmente destruído, dado como perda total há um ano. Diante do fato, ele consegue perceber os acontecimentos ocorridos ao ano anterior, começando a encaixar tudo que, durante esse tempo ficou velado, mal resolvido. Em outro momento, no ápice do suspense psicológico, Trevor, ao perseguir Ivan, percebe que ele chegou ao seu apartamento com Nicolas (Matthew Romero Moore), filho da garçonete do aeroporto. Curioso, Reznik entra na casa, começando uma discussão com Ivan.

No meio da briga, Trevor descobre que o filho da garçonete estava morto há um ano. Esse fato vem à tona assim que, numa luta entre os dois, Trevor degola Ivan com a faca. Em estado de crise, Reznik relembra o acidente que ele provocou em Nicolas, mas, no entanto, em terrível estado de desespero, ele tenta se livrar do corpo de Ivan, pois este era o conteúdo de culpa que ele não queria encarar.

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Considerando o que foi dito acima, Slaikeu (1996), ao abordar as etapas de crise impetradas por Horowitz (1976), ele destaca que, diante destas quatro – desordem, negação, intrusão e elaboração –, uma dessas fases é a negação, onde o sujeito amortece o impacto diante do evento desencadeador. Logo a seguir, a intrusão dá sequência a essa etapa, momento em que pesadelos, ideias involuntárias, imagens, dentre outras preocupações marcam o comportamento do sujeito (SÁ; WERLANG; PARANHOS, 2008).

No fim do filme, que volta a reexibir Trevor enrolando em um tapete um corpo – o de Ivan –, objetivado desovar ele em um local isolado, notamos que, ao jogá-lo pelo barranco, ele se dá conta de que não havia corpo envolto do tapete e que Ivan era ele mesmo. Em outras palavras, Trevor fugia da culpa sobre a morte da criança, mas sua mente dava sinais, lutava contra isso, fazendo com que ele não conseguisse mais dormir. Ao chegar no último instante da crise, intercalando e dando continuidade com a explicação de Slaikeu (1996), sobre as etapas que erigiu Horowitz (1976), Trevor chega a última fase desse processo, que é a elaboração, ou seja, ele integra o evento dentro de sua psique, enfrenta essa experiência, reorganiza-se e, relaxado, consegue dormir (SÁ; WERLANG; PARANHOS, 2008).

"Eu só quero dormir."
“Eu só quero dormir.”

Entende-se que, durante um ano, Trevor não recebeu nenhuma intervenção para integrar/elaborar essa vivência à sua psique, mesmo estando evidente que ele se encontrava na fase aguda das crises psicóticas. De acordo com Carvalho, Costa,Bucher-Maluschke(2007), pessoas nessa etapa devem, urgentemente, ser hospitalizadas e receber medicação antipsicótica.

Partindo desses fatos, considera-se, por fim, a importância de intervenções medicamentosas e psicossociais apropriadas, a fim de dirimir morbidades posteriores e vislumbrar prognósticos mais favoráveis (DEL-BEN et al., 2010). O fato de ele não ter procurado ajuda para integrar essa vivência para si, ficando na linha tênue entre negação e intrusão, deixa um alerta pertinente sobre olhar cuidadoso, sem julgamentos ou distanciamentos, que as pessoas próximas e os profissionais da saúde, em ambiente de trabalho, devem ter para dar conta desse sujeito fragilizado pelas dificuldades ao vivenciar uma crise.

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REFERÊNCIAS:

BONFADA, Diego; Jacileide, GUIMARÃES. Serviço de Atendimento Móvel de Urgências Psiquiátricas. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 17, n. 2, p. 227-236, abr./jun. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/pe/v17n2/v17n2a05> Acesso em: 21/04/2016.

CARVALHO, Isalena Santos; COSTA, IlenoIzídio; BUCHER-MALUSCHKE, Julia S. N. F. Psicose e Sociedade: interseções necessárias para a compreensão da crise. Revista Mal-Estar e Subjetividade – Fortaleza – Vol. VII – Nº 1 – Mar/2007 – p. 163-189.

DEL-BEN, Cristina Marta. et al.Diagnóstico diferencial de primeiro episódio psicótico: importância da abordagem otimizada nas emergências psiquiátricas. Revista Brasileira de Psiquiatria. Vol. 32, Supl. II, out 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbp/v32s2/v32s2a04.pdf> Acesso em: 27/04/2016.

SÁ, S. D.; WERLANG, B. S. G.; PARANHOS, M. E. Intervenção em crise. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas,2008, volume 4, número 1. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbtc/v4n1/v4n1a08.pdf> Acesso em: 21/04/2016.

YOUNES, Jaber Ali. Psicoterapia breve operacionalizada na crise adaptativa por perda: um estudo exploratório. 2011. 63 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2011.

FICHA TÉCNICA DO FILME: 

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O OPERÁRIO

Diretor:  Brad Anderson
Elenco: Christian Bale, Jennifer Jason Leigh, Aitana Sánchez-Gijón, John Sharian
Ano: 2004
País: Espanha
Classificação: 12