Insegurança, deslocamento, desconforto, curiosidade, medo e conflito são o que muitas mulheres em corpo de um homem passam. E isto existe há anos luz, no entanto nunca foi tão discutido quanto no momento em que vivemos. Milhares de mulheres lutam todos os dias para serem vistas como mulheres, mas o “estranho” ainda causa desconforto em muitos. Tais desconfortos são muitas vezes introjetados, o que é um grande problema, pois é um desconforto disfarçado de conforto, resultando em atos violentos contra o “estranho” e recebendo apoio e encobrimentos de milhares de outros disfarçados.
Bauman (1998) diz que cada sociedade tem seu padrão de pureza, e esses padrões mudam de época em época, varia de cultura para cultura. Os padrões de pureza são normas criada pela sociedade em relação ao que é normal ou não. E as pessoas que não estão dentro destas normas tornam-se entraves em relação a organização do meio, são visto como esquálidos e tratadas como tais, são os estranhos: “O oposto da ‘pureza’ – o sujo, o imundo, ‘os agentes poluidores’ – são coisas ‘fora do lugar’'”BAUMAN, 1998, p.14).
Um exemplo de estranhos são os trans. Isto porque fogem da normatividade e da limitação da ordem social em questão. O mais lastimoso desta não aceitação são os atos de violência física, que é usada como forma de repressão e indignação. De acordo com a Organização das Nações Unidas, o Brasil é o pais que mais mata travestis e transexuais. Uma pesquisa realizada entre Janeiro de 2008 a março de 2014 foi registrada 604 mortes no país. O site Correio 24 horas mostra que só em 2014 houve 134 mortos e em 2016, 144 mortes. Isto mostra que hoje o assunto é mais debatido, no entanto há poucas melhorias, já que a repressão e o ódio pelo diferente é camuflado.
Esta camuflagem faz reinar a incerteza e acaba limitando o futuro destas mulheres e da própria sociedade. Resulta em uma sociedade conflituosa, devido a não flexibilidade e a poucas adaptações a mudanças. Logo, muitas destas mulheres vivem sob o medo e sem esperanças, já que não há garantias de um futuro seguro.
Talita Costa, 36 anos, estudante de Serviço Social e que reside na cidade de Palmas há quase 20 anos vive na pele este medo e incerteza. Talita diz que descobriu-se mulher ainda quando criança: “… ao invés de escolher as coisa que meu pai fazia, preferia me inspirar nas coisas que minha mãe fazia… em outro momento quando eu tinha 8 anos de idade, eu lembro que estava beira do rio com minha família, e eu estava cm minha irmã, que é mais nova que eu 3 anos e eu escutei eles comentando que as minhas pernas eram mais bonitas e femininas do que as da minha irmã e isto me marcou muito, e eu nunca mais esqueci, pois eu também olhava pro meu corpo e não era igual o dos meus amiguinhos… eu não me identificava como um menino desde criança. Na puberdade foi a certeza, pois eu não me atraia por mulher e me via em trans como a Roberta Close. Eu via as mulheres bonitas passando e os homens desejando e mexendo, era aquilo que eu queria ser. Eu não queria ser a engraçada, a bicha amiga etc., eu queria ser mulher.”
O relato de Talita reafirma a famosa frase de Simone de Beauvoir:
Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro. Enquanto existe para si, a criança não pode apreender-se como sexualmente diferenciada. Entre meninas e meninos, o corpo é, primeiramente, a irradiação de uma subjetividade, o instrumento que efetua a compreensão do mundo: é através dos olhos, das mãos e não das partes sexuais que apreendem o universo. — O Segundo Sexo, volume 2. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967, 2ª edição, pp. 9.
Assim como Talita, milhares de mulheres lutam todos os dias para serem reconhecidas como tais. Um exemplo de superação e esmagadora dos limites impostos pela sociedade é Luma Andrade, que tem doutorado em Educação pela UFC – Universidade Federal do Ceará, é considerada a primeira travesti a ingressar em um curso de doutorado no Brasil, e hoje atua como professora. Luma que recebeu o nome de João Filho Nogueira de Andrade ao nascer, conquistou em 08 de março de 2010, sem ter passado pela operação de mudança de sexo, o direito de mudança de nome em seus documentos. Luma Oliveira é mulher, é travesti, é militante, é professora e uma fonte de inspiração.
Ser estranho tem para muitos hoje um significado muito genérico, é visto como algo inferior. Logo muitos passam a vida seguindo ordens de autoritários. Isto por que desde que se nasce, o indivíduo já recebe uma carga enorme de informação do que é certo e do que é errado. A subjetividade tende a ser anulada para a então aceitação do meio, seja da família, dos amigos, da igreja ou da sociedade. Ser “estranho” é preciso ser visto como autenticidade.
Na ciência há exemplos de vários estranhos, tais como: Charles Darwin, Thomas Edison e Albert Einsten. Estes foram contra a normatividade de suas épocas, por isto foram rejeitados e vistos como esquálidos, mas hoje são vistos como gênios. É natural que o Homem duvide e questione para tornar então autoridade de si, as mulheres trans são autoridades de si e isto preciso ser respeitado e por que não, admirado?!
O homem é um ser subjetivo, isto por que ninguém é igual a ninguém. E esta diversidade é uma das maiores riquezas do homem. O Homem nasce com competências, identidade e personalidade desconhecidas. Com o tempo ele vai se identificando, se moldando e se descobrindo. Esta é a diferença entre o Homem e um objeto. O objeto inicia objeto e termina objeto, já o Homem nasce Homem, se modifica e morre da forma como ele quiser.
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução de Mauro Gama e Cláudio Matinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed., 1998.
O Segundo Sexo, volume 2. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967, 2ª edição
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