Violência e opressão – (En)Cena entrevista a psicóloga Ruth Cabral

“Em tempos de pandemia, ser mulher, é ter escancarado que o risco de violência não se limita aos espaços públicos, mas é ter insegurança, medo ainda que no espaço privado este, que inicialmente foi determinado à mulher. Lugar de sobrecarga, de naturalização da incumbência das tarefas domésticas, dos cuidados com os filhos”.

O Portal (En)Cena conversa com a psicóloga Dra Ruth Cabral, professora do curso de psicologia do Ceulp/Ulbra, Doutora em Psicologia Clínica e Cultura pela PUC-Goiás, para entender sua perspectiva acerca do que significas ser mulher no Brasil durante a pandemia da COVID-19.

A Doutora Ruth Cabral aponta o paralelo entre as restrições sociais decorrentes da pandemia somada à permanência dos homens em casa, com o aumento nos índices de violência doméstica, sexual e de gravidez indesejada. Além disso, a entrevistada aponta o risco de adoecimentos mentais, como estresse e a ansiedade, causados pelo excesso de atividades. Por fim, a professora reconhece seu lugar de fala privilegiado ante a outras formas de experiência a mulheridade e indica como um dos caminhos para oportunizar melhoras no pós-pandemia, a articulação de mulheres em prol do fortalecimento do movimento social para garantir direitos e liberdades a todas.

Figura 1 – Arquivo Pessoal

(En)Cena –  Considerando o seu lugar de fala de: mulher, professora e usuária ativa das redes sociais: o que é ser mulher no Brasil, durante a pandemia da COVID-19?

Dra Ruth Cabral – Começo a refletir a partir da pergunta em questão- em mim ressoa inicialmente o quesito “O que é ser mulher no Brasil?” para então, em uma complementariedade reflexiva discorrer sobre os tempos de Pandemia.  Reconhecer a priori, a existência da desigualdade de gênero e de suas causas, contextualizado à realidade brasileira desperta o resultante de um processo histórico que reafirma o lugar da mulher nesse espaço social frágil- lugar este, que ainda que o registro legal aponte para destituição de toda e qualquer forma de discriminação- não é suficiente para garantir equidade de gênero.

Refletir no ser mulher em tempos de pandemia remonta o pensar nos papéis instituídos desde a formação da sociedade. Em tempos de pandemia, ser mulher, é ter escancarado que o risco de violência não se limita aos espaços públicos- mas é ter insegurança, medo ainda que no espaço privado – este, que inicialmente foi determinado à mulher. Lugar de sobrecarga, de naturalização da incumbência das tarefas domésticas, dos cuidados com os filhos. Ressalto o mito do amor materno, descrito como instintivo demarca às mulheres um lugar de exclusividade do cuidado- com as crianças e  para o trabalho doméstico (modelo esse, calcado no patriarcalismo) que alcança a análise para os dias atuais de pandemia.

Como prova disso, pesquisas em tempos de pandemia (Souza et al, 2020; Macedo, 2020) apontam que paralelo às restrições sociais, os índices de violência doméstica, sexual e de gravidez indesejada aumentaram de forma significativa mediante o maior tempo de permanência dos homens em casa- o que parece responder em parte à questão provocada inicialmente. Sem me distanciar dos meus muitos privilégios, sigo tocada pelo grito daquelas que se encontram, explicitamente oprimidas, violentadas e sob as muitas vulnerabilidades. No contexto de crise econômica, social e política em que o Brasil se encontra, é importante discutir e considerar tais questões, considerando que pandemia da Covid-19 enfatiza ainda mais às narrativas e desigualdades sociais pré-existentes.

Fonte: encurtador.com.br/fjQ15

(En)Cena –  Para você, como a pandemia impacta a saúde mental (sentimentos e emoções) das mulheres?  E qual é o efeito deste impacto em casa e no trabalho?

Dra Ruth Cabral – Embora haja uma naturalização da sobrecarga contínua das mulheres nos diferentes contextos e composições familiares, a circunstância  da Pandemia agrega outros fatores que podem intensificar a fragilização da saúde mental das mulheres: o medo do adoecimento, a necessidade de proteção dos filhos (para aquelas que exercem o papel da maternidade), a sobrecarga dos múltiplos cuidados e assistências- tarefas domésticas, intermediação do ensino-aprendizagem das/dos filhas/filhos, a dedicação às atividades ocupacionais. Tais fatores podem acentuar o estresse e a ansiedade, de modo que, a alteração da rotina, o excesso de atividades pode, na sequência, alterar o sono (parte importante na regulação emocional) formando assim um ciclo que intensifica o dano a saúde mental das mulheres, que já estão, naturalmente mais suscetíveis a alguns processos de adoecimentos.

Fonte: encurtador.com.br/ityHS

(En)Cena – Quais são os maiores desafios e quais são os maiores aprendizados da sua experiência como professora durante a pandemia? 

Dra Ruth Cabral – Acredito que a vivência do estresse, do medo, a sensação de incerteza, o reconhecimento das dificuldades vivenciadas ao longo desse período de distanciamento social propõe o agir com flexibilidade, na cuidadosa busca de se compreender as nuances das dificuldades das mulheres- despertando em mim uma atuação sobressaia a empatia, no reconhecimento das vulnerabilidades- como mulheres que são além de discentes, mães, profissionais, filhas…

Posso ver o esgotamento, o cansaço, o acúmulo de tarefas- na prática, como também percebo a  persistência e a luta.   A mim, como mulher, cabe ter uma postura de escuta, cuidado, e tomada de decisão pautada no reconhecimento dos fatores dificultadores a partir do pensar coletivo, sendo uma forma indireta de um exercício de sororidade.

(En)Cena –  Como você compreende o sofrimento emocional das alunas de psicologia afetadas pela quarentena durante a pandemia?

Dra Ruth Cabral – Vejo que essas alunas do curso de psicologia representam parte do universo que compõe a pluralidade das mulheres como um todo. Ainda que marcadas por alguns privilégios (dentre esses, o acesso à educação), há uma representação das angústias experimentadas pelas mulheres no período de pandemia. Mulheres em múltiplas funções, cansadas, mas empenhadas numa luta muito mais pesada por “uma vida que valha a pena ser vivida”, ou uma vida “com algum sentido”. São mulheres, filhas, mães, algumas distante das famílias, inseguras, com diferentes possibilidades de acessos. Diante disso, como não problematizar as questões de gênero? A sobrecarga é facilmente notada: mulheres que se engajam nas atividades acadêmicas alternando o cuidado com as filhas/ os filhos, com as tarefas domésticas, envolvidas no sustento e ainda respondendo a outros fatores externos- tais como pressão estética voltados ao cuidado com o corpo em uma hierarquização de prioridades impostas socialmente.

Fonte: encurtador.com.br/ahtZ9

(En)Cena –  Na sua opinião, qual seria o caminho para as mulheres no pós-pandemia?

Dra Ruth Cabral – Pessoalmente, acredito na articulação de mulheres em prol do fortalecimento do movimento- que possa gerar articulação, amparo, tomada de consciência e a não naturalização das violências vivenciadas, cotidianamente, por tantas. A formação de uma rede de apoio tecida por mulheres no reconhecimento das vulnerabilidades e privilégios, na práxis e não apenas em uma teoria sem alcance social, pautado no “fazer acontecer”. A luta por equidade, por acesso a trabalho, por andar sem medo, por ter segurança, esperança e escolhas que se façam sem o medo contínuo- tudo isso em um processo de ressignificação coletiva do que é ser mulher na luta por um protagonismo em um espaço em que nos foi dado o lugar de coadjuvantes.

Referências

MACÊDO, Shirley. (2020). Ser mulher trabalhadora e mãe no contexto da pandemia COVID-19: tecendo sentidos. Revista do NUFEN12(2), 187-204. https://dx.doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº02rex.33

SOUZA, Alex Sandro Rolland; SOUZA, Gustavo Fonseca de Albuquerque; & PRACIANO, Gabriella de Almeida Figueredo. (2020). A saúde mental das mulheres em tempos da COVID-19. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil20(3), 659-661. Epub 30 de outubro de 2020.https://dx.doi.org/10.1590/1806-93042020000300001