Vasalisa: como o arquétipo da mãe-boa-demais e da sabedoria influencia a sociedade?

Compartilhe este conteúdo:

A história de Vasalisa envolve arquétipos de uma forma profunda e cheia de ensinamentos. Ao ler esse conto é possível perceber traços dentro da nossa psique manifestos através do inconsciente coletivo. Os arquétipos são ativados quando o indivíduo vivencia algo que tenha uma relação com as imagens herdadas dos antepassados, através de folclore, mitos, lendas e contos de fada emitindo representações de um  padrão universal.

O conto Vasalisa traz a história de uma menina que morava com a família em uma casa muito bonita, próximo da floresta, onde viviam muito felizes. Vasalisa sempre contava com a companhia de sua mãe-boa-demais. Certo dia sem nenhum aviso prévio, sua mãe foi acometida de uma doença mortal. Então a mãe pediu para chamar sua filha, e gostaria de entregar um presente muito valioso que fez com suas próprias mãos.

Ao chegar, Vasalisa ganhou de sua mãe uma boneca pequena, exatamente como ela se vestia, e isso foi primordial para um amor à primeira vista. Muito feliz agradeceu a mãe e expressou que gostaria que a mãe permanecesse viva para orientá-la quando fosse necessário. A mãe explicou a ela que dali em diante a boneca seria seu norte, ajudaria no que fosse preciso, mas teria que escondê-la de todos, e não se esquecesse de alimentá-la.

A mãe de Vasalisa morreu, o tempo foi passando a vida seguindo e seu pai casou-se novamente com uma mulher que possuía duas filhas e vinham morar junto com eles para se tornar uma nova família. O pai não observava o quanto a madrasta e suas filhas exploravam Vasalisa e desejavam o seu fim. 

O tempo passou, todas as coisas eram diferentes, mas Vasalisa permanecia com sua meiguice, doçura, e atenta a tudo que lhe pediam. Então, certo dia as três malvadas decidiram colocar um ponto final na vida de Vasalisa. Após um dia muito exaustivo, ao retornar para casa, haviam apagado todo o fogo da casa, e só permitiam o seu retorno se ela fosse ao meio da floresta na casa da Baba Yaga em busca de um fogo que não se apagasse. 

Vasalisa, mesmo com muito medo, pegou sua boneca, um pedaço de pão, e foi em busca de encontrar a casa da Baba Yaga. Quando imaginou estar totalmente perdida a boneca moveu-se em seu bolso dando a entender que estava no caminho certo. Mas adiante enxergou uma casa sobre umas pernas de galinha, movimentando de um lado para o outro.

Ao chegar acordando Baba Yaga a encontrou de muito mau humor, mas ao avistar uma doce menina em sua porta pedindo por um fogo que nunca se apaga, deixou-a entrar. Mas só poderia levá-lo após executar algumas tarefas. Então a velha assustadora deixou uma enorme lista para que ao retornar estivesse tudo organizado. 

Vasalisa dava o seu melhor, mas já estava muito cansada, então a boneca a mandava ir descansar e quando acordava estava tudo pronto. Quando Baba Yaga chegou ficou impressionada com a agilidade da menina. Passou nova lista e da mesma maneira foi feito, fazia arduamente até as suas últimas forças e ao ponto de desistir a boneca assumia as tarefas e falava para ela ir dormir. 

Ao perceber que estava tudo como foi pedido, Baba Yaga ficou impressionada, em meio às suas conversas Vasalisa fez algumas perguntas, após calando-se. Ao ser questionada, ela fala da bênção que possui da sua mãe-boa-demais, e a Baba Yaga mudou no mesmo instante seu humor, entregando o fogo em uma caveira e mandando de volta para sua casa. 

Vasalisa, a boneca e o fogo que nunca se apaga caminham durante a noite pela floresta. Ela se pergunta: será que devo mesmo levar esse fogo que jamais se apagará para dentro da minha casa? A boneca movimentou-se mais uma vez no bolso e uma voz saiu da caveira dizendo para não ficar preocupada e seguir a caminho de casa. 

Ao chegar em casa encontra sua madrasta e suas irmãs malvadas, apreensivas quando avistaram a chegada da Vasalisa com o fogo em suas mãos. Acendeu o fogo e se retirou, e na medida em que o fogo aquecia a lareira, queimava as três por dentro tornando-as carvão. Então os dias de Vasalisa foram leves, passeando pela floresta todos os dias, sem ter ninguém para importuná-la e desejar a sua destruição. 

Fonte: Vecteezy.com

Reflexão

Através do conto de Vasalisa, é possível destacar diversos arquétipos, que são vividos ao longo da trajetória humana, percebendo as dificuldades e lições que as metáforas ensinam. 

A autora Clarissa Pinkola Estés do livro “Mulheres que correm com os lobos”, trás de uma forma simples e bastante útil reflexões de arquétipos vivenciados pela sociedade no dia a dia. No conto de Vasalisa, podem-se notar dois arquétipos bastante comuns. 

Arquétipo mãe-boa-demais

A imagem arquetípica da grande Mãe traz uma representatividade de cuidado, amor, alimento e produtividade, apresentando um símbolo de prosperidade, onde tem a responsabilidade de trazer ao mundo os frutos. Mãe significa proteção, sinônimo de defesa dos seus filhos. 

O arquétipo da grande mãe traz uma representação saudável, pois mãe é aconchegante, acolhedora e o bebê precisa disso para sobreviver à fase inicial. A criança vai se desenvolvendo, e ao chegar à fase adulta precisa aprender a buscar a sua luz, ou seu caminho. Mas a partir da imagem da grande mãe, surgem novas facetas desse arquétipo que contribuem de forma negativa, surgindo a mãe devoradora, mãe extremamente boa, mãe super nutridora, mãe-boa-demais, que então começa desenvolver uma sociedade muitas vezes com a prevalência do arquétipo puer aeternus. De acordo Monteiro, (2010) o arquétipo puer aeternus representa a criança eterna, que não busca entrar na vida adulta, independente da idade que o indivíduo possa ter, deseja viver no aconchego materno. Portanto existem mães que  não permitem que o filho cresça sem o seu comando, longe dos seus olhos, vai formando filhos sufocados, sem grandes responsabilidades, cheio de privilégios e medrosos.

No conto de Vasalisa, quando a mãe-boa-demais morre, a autora Clarissa Pinkola Estés mostra a necessidade que essa mãe do bebê finalize seu ciclo e comece a nascer uma nova realidade. A criança não pode viver todas as fases no aconchego, no leite materno, sem responsabilidade, sem buscar uma direção para sua vida. Ao passar de fase, não tem muito sentido estar viva essa mãe-boa-demais. 

No desenvolvimento de uma pessoa, é necessário que essa mãe seja menos protetora, cuidadosa, provedora. Se o indivíduo nasce, cresce, alguns se reproduzem e não deixa essa mãe-boa-demais, não consegue se desenvolver, algumas vezes até possuem uma estabilidade financeira, mas não possui um desenvolvimento emocional. No conto onde a mãe deixa a boneca, significa que a mãe deixa uma herança, um legado, uma intuição a ser seguida, mas com livre arbítrio, onde a pessoa busca viver uma vida responsável pelas suas escolhas, lembrando sempre dos ensinamentos de sua mãe. 

O Arquétipo da Sabedoria 

A psicologia analítica, conhecida também como psicologia junguiana, apresenta o Velho Sábio, Senex ou apenas sábio, o arquétipo que está inserido no inconsciente coletivo desde os antepassados, representando a sabedoria. 

De acordo com Jung, (2018) a imagem arquetípica do velho sábio é representada por pessoas que exercem algum poder ou autoridade, como o professor, avô, mago apresentado em sonhos. Quando uma pessoa expressa uma sabedoria a imagem arquetípica que representa é a sabedoria. 

No conto da Vasalisa, quando se depara com Baba Yaga, ela retrata uma simbologia de uma mãe não tão boa, mas que ensina o filho a exercer suas atividades, e fazendo o máximo que consegue em busca dos seus objetivos. Apesar da moradora da casa em cima das pernas de galinha possuir uma idade avançada, ela é uma senhora inteligente, e tem muito a ensinar.

Quando Baba Yaga faz uma lista de afazeres para Vasalisa, ela não está sendo uma malvada, mas sim, trazendo um ensinamento, representando essa mãe quando a criança cresce. Mostrando ali coisas que podem ser feitas por ela. Lavar a roupa, cuidar da casa, varrer o quintal e separar o milho, tudo isso pode trazer uma representação, mostrando a importância do cuidado com a psique, saúde mental e a organização interior.

E quando Vasalisa estava no limite a boneca mandava deitar-se para descansar. Com isso a autora mostra a importância do repouso, de que não é necessário fazer tudo de uma só vez, mas buscar compreender algumas situações vivenciadas naquele dia que não deu ainda para digerir, não tem a resposta desejada, acalma, espere, dê tempo ao tempo, e busque descansar e ao retornar tenha um olhar diferente sobre aquela situação. 

Fonte: Vecteezy.com

Referências

ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo Vol. 9/1. Editora Vozes Limitada, 2018.

MONTEIRO, Dulcinéia Da Mata Ribeiro (Org.). Puer-Senex: dinâmicas relacionais. 2ª edição, Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

Compartilhe este conteúdo:

Masculinidade e Feminilidade no contexto sociocultural contemporâneo

Compartilhe este conteúdo:

O homem moderno se vê defronte a um dilema quase que incompreensível aos indivíduos amarrados e emaranhados ao machismo estrutural. Ao longo de um passado não tão distante a sociedade lutou em sua tendência patriarcal contra a ascensão de qualquer tipo de manifestação enaltecedora do feminino. Isso pode ser observado, por exemplo, na maneira como o cristianismo clássico apagou diversos aspectos de religiões pagãs a partir do primeiro milênio, onde as figuras divinas eram descentralizadas e figuras femininas de poder eram enaltecidos, o mesmo as mulheres ocupavam o papel sacerdotal e espiritual proeminente (LEMOS, 2012).

O cristianismo é que citado por ser frequentemente associado com a base de valores que moldaram a sociedade moderna e pós-moderna, e também foi pivô na propagação da cultura patriarcal, com sua estrutura religiosa se organizando em uma trindade que enfatiza o papel do masculino em detrimento do feminino.

Essa característica fica imputada com mais veemência nas linhas protestantes de cristianismo; o catolicismo com sua versão modernizada do politeísmo representada nos santos dá espaço para os arquétipos representados nas imagens santas, porém ao invés de adorados como divindades, esses santos são intermediários entre o deus maior; já o protestantismo e suas variações futuras apaga essa grande variação arquetípica, eliminando os santos do dogma e tratando a maneira como os católicos recorrem a eles como adoração profana. Assim, grandes arquétipos perdem força no imaginário e na cultura cristã desse recorte populacional protestante, principalmente o da Grande Mãe, representados pela Virgem Maria, este que se apaga totalmente em detrimento da Trindade Pai, Filho e Espírito Santo. (DE AZEVEDO-MESQUITA, 2015)

Fonte: Pixabay

A Masculinidade Frágil Como Fenômeno Cultural

Esses exemplos citados anteriormente marcam alguns acontecimentos históricos que conduziram o pensamento cultural generalizado em direção a essa tendência patriarcal. Porém, há alguns anos a cultura e a indústria vem acompanhando um movimento social de rebelião contra esses preceitos muito enraizados, e dessa forma, vem trazendo o fenômeno que é o feminismo aos holofotes, demonstrando um movimento do inconsciente coletivo para ressaltar esse fenômeno cultural. As mulheres anseiam por mais visibilidade, por salários equivalentes, por mais participação ativa nas comunidades e principalmente o respeito por seus corpos e sua individualidade.

Logo, é possível observar a cultura crescendo ao redor dessa imagem feminina novamente. Nos últimos anos a quantidade de protagonistas femininas para os grandes blockbusters tem crescido de maneira vertiginosa, personagens pertencendo a outros espectros da sexualidade com grande representatividade para os LGBTQI+ também tem visto suas tramas serem escritas e contadas em detalhes por grandes produtoras de audiovisual. Tudo isso é palco para o temor daqueles que antes podiam se ver representados em todas as mídias e histórias, de repente se ver entendo que dividir espaço de tela com pessoas que no seu âmago são diferentes de um padrão estabelecido através da história ocidental.

Fonte: Pixabay

Masculinidade E Feminilidade Arquetípicas

Para compreender mais um pra mente essas dinâmicas é importante conhecer o âmago do conceito de masculinidade e feminilidade. De acordo com o psicólogo suíço Carl Gustav Jung, em sua observação da psique humana, este constata a existência de diversos arquétipos, ou seja, construtos psíquicos que constituem a personalidade humana (JUNG, 2018). Entre esses arquétipos, os que tangem o conceito de masculino e feminino são a Anima e o Animus.

Animus seria a contraparte masculina arquetípica existente dentro de cada ser humano que já habitou este planeta; de maneira semelhante a anima é a contraparte feminina que existe dentro de cada ser humano (SANFORD, 1987). Dessa forma, conclui-se que cada indivíduo está sujeito a sofrer influência da contraparte arte típica oposta, isso inclui a parcela da população que se encontra imersa no machismo estrutural (JUNG, 2006). Mas o que teria acontecido com a mulher que vive simbolicamente no interior dessas pessoas?

No desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo, durante a tenra infância e juventude, a relação com esses arquetípicos é moldada, muitas vezes baseada nas figuras paterna e materna (JUNG, 2006). E qualquer disfunção durante esse período, pode acarretar casos de anima ou animus negativo. Ou seja, a imago masculina ou feminina prejudicada de alguma maneira, devido a tudo aquilo que foi absorvido e da maneira como isso se deu (MENIN at al. 2007). Poderia uma nação ou a sociedade ocidental inteira sofrer coletivamente com um quadro de Anima negativa, que levaria eles a tratarem o feminino arquetípico da maneira como foi levado durante todos esses anos?

Conclusão

Conclui-se que os conceitos de masculino e feminino vivem um conflito devido a maneira como o masculino se impôs por sobre o feminino histórica e culturalmente ao longo das décadas a partir do primeiro milênio. O ser humano é constituído de diversas partes incluindo uma parte masculina e feminina, arquetipicamente falando; logo dentro de cada um se constituem resquícios da sexualidade predominante oposta a não predominante, o que pode gerar conflitos a depender da maneira como esses aspectos foram constituídos na personalidade daquela pessoa. Logo é possível imaginar que talvez um processo coletivo de adoecimento e má digestão de simbolismos psíquicos, pode acabar por ter gerado um grande complexo da população masculina Mundial quanto ao símbolo do feminino.

REFERÊNCIAS

DE AZEVEDO MESQUITA, Fabio. A Veneração aos Santos no Catolicismo popular brasileiro–Uma aproximação histórico-teológica. Revista Eletrônica Espaço Teológico. ISSN 2177-952x, v. 9, n. 15, p. 155-174, 2015.

LEMOS, Márcia Santos. Os embates entre cristãos e pagãos no Império Romano do século IV: discurso e recepção. Dimensões, n. 28, 2012.

JUNG, Emma.  Animus e Anima. São Paulo: Cultrix. 2006

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo Vol. 9/1. Editora Vozes Limitada, 2018.

JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. Editora Vozes Limitada, 2011.

MENIN, Fernanda; LOUREIRO, Lilian; MORAES, Noely Montes. A maldição de Eva: a face feminina da violência contra a mulher. Psicologia Revista, v. 16, n. 1/2, p. 51-71, 2007. Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/index.php/psicorevista/article/view/18057/13417>

SANFORD, John A. et al. Os parceiros invisíveis: O Masculino e Feminino em cada um de nós. São Paulo: Paulus, 1987.

Compartilhe este conteúdo:

O quanto você está disposto a encarar o seu próprio lado sombrio?

Compartilhe este conteúdo:

Dentro da Psicologia Analítica o termo sombra e individuação são praticamente os mais importantes. A individuação é algo almejado já que, é a partir dela que o paciente/cliente pode avançar na análise, porém para adentrar na individuação o indivíduo em processo psicoterapêutico deve se integrar a sua própria sombra. Esse processo de reconhecimento da própria sombra não é algo fácil, pois é nela que se encontra muito dos conteúdos negativos reprimidos por nós, como observa Oceanã (2008), na sombra está tudo aquilo que não se encaixa no que imaginamos de nós próprios ou nos princípios que escolhemos para nós mesmos. 

Com isso muitas pessoas ficam resistentes ao contato com o lado mais escuro de si mesmo visto que esse arquétipo ameaça nossa imagem aceitável, contudo, quanto mais tentamos negar a sombra mais ela nos ameaça (OCEANÃ, 2008). Quando, ao longo do processo terapêutico, o paciente/cliente integra a sua sombra, o processo de individuação começa. A individuação é quando o sujeito passa a se encarar por completo, tornando-se verdadeiramente o que se é, sabendo assim, separar o que é dos outros e o que é dele (STEIN, 2020). Desse modo, fica claro como os dois conceitos são essenciais para o desenvolvimento do cliente/paciente na clínica analítica. 

Para a construção do presente trabalho, foi realizada uma pesquisa de caráter bibliográfico narrativo na qual, não necessita de um ponto de partida rígido para a sua elaboração e, no que tange a seleção dos materiais, não é determinada e nem específica, sendo então influenciada pela subjetividade do autor (CORDEIRO et al., 2007). 

Com isso foi realizada pesquisas por meio do Google Schoolar e Scielo, com o objetivo de levantar publicações que abordassem temas referentes a alguns conceitos Junguianos, como a sombra e a individuação, para assim compreender seu conceito e seu desenvolvimento, expondo sobre como se dá o processo de individuação a partir do contato com a sombra.

A Sombra: do conceito ao desenvolvimento

Para entender o conceito de sombra é importante compreender o que é persona. A autora Ocaña (2008), analisa que a palavra persona tem a noção de prosopon, termo grego que se refere a uma máscara usada por atores de teatro para encarnar um personagem. A autora continua que 

A partir de Jung, o conceito de “persona” significa mais precisamente o eu social resultante dos esforços de adaptação realizados para observar as normas sociais, morais e educacionais do seu meio. A persona lança fora do seu campo de consciência todos os elementos – emoções, traços de carácter, talentos, atitudes – julgados inaceitáveis para as pessoas significativas do seu meio. Esse mecanismo produz no inconsciente uma contrapartida de si mesmo a que Jung chamou de “sombra” (OCAÑA, 2008).

Fonte: Imagem de Pedro Figueras por Pixabay

A sombra se desenvolve desde quando somos crianças, na medida em que vamos nos identificando com o que é tido como característica ideal de uma personalidade, no que é percebido como aceitável pela nossa sociedade, nós formamos a persona, ao contrário, tudo aquilo que não achamos adequado para nossa autoimagem é jogado para a sombra (ZWEIG; ABRAMS, 1994).

 A sombra é um arquétipo rico de conteúdos e que fala muito sobre nós, assim como observa a autora Ocaña (2008), que diz que a sombra é um tesouro escondido, uma fonte grande de ideias que não estão a nosso alcance, pois mantemos enterradas por serem aquilo que não queremos ser, mas é exatamente esses conteúdos que nos faz ser completos.

É indispensável compreender que a sombra se origina de uma necessidade infantil frustrada e como forma de recompensa a psique cria substituições dessas necessidades, ou seja, a criança, após ter sido ferida afetivamente, pode vir a ser um adulto acompanhado de mecanismos considerados dolorosos como vergonha, culpa, perfeccionismo etc. (OCAÑA, 2008). Continua a autora Ocaña (2008), que dessa maneira a criança sente como se ser ela mesma não fosse o suficiente e é onde entra e negação dos próprios traços que acredita não ter agradado os outros. 

Para Franz (2002), afirma que a sombra é tudo aquilo que nos pertence mas que não sabemos e, o analisando no primeiro momento, não consegue definir o que é pessoal e coletivo, sendo apenas um aglomerado de aspectos. A autora continua definindo que a sombra é todo o inconsciente, sendo um acervo de emoções, julgamentos etc. 

Dentro da estrutura psíquica encontram-se a sombra pessoal e a sombra coletiva. Os autores Zweig e Abrams (1994) reiteram que 

A sombra pessoal contém, portanto, todos os tipos de potencialidades não-desenvolvidas e não-expressas. Ela é aquela parte do inconsciente que complementa o ego e representa as características que a personalidade consciente recusa-se a admitir e, portanto, negligencia, esquece e enterra, até redescobri-las em confrontos desagradáveis com os outros.

A sombra coletiva é tudo aquilo que vemos em relação à maldade humana, é observada facilmente nos noticiários, nas ruas, nos políticos, no sistema judiciário etc. No nosso mundo globalizado, todos nós assistimos à sombra coletiva vindo à tona (ZWEIG; ABRAMS, 1994).  Os autores permanecem que 

Enquanto a maioria das pessoas e grupos vive o lado socialmente aceitável da vida, outras parecem viver as porções socialmente rejeitadas pela vida. Quando essas últimas tomam-se objeto de projeções grupais negativas, a sombra coletiva toma a forma de racismo, de busca de “bode expiatório” ou de criação do “inimigo” (ZWEIG; ABRAMS, 1994). 

Se um indivíduo vive sozinho, torna-se praticamente impossível que o mesmo consiga perceber sua sombra, já que é preciso de um espectador para lhe dizer sobre sua própria imagem (FRANZ, 2002). O autor Campos et al., (2017) comenta que a sombra é uma parte do inconsciente que está mais próximo a consciência, mesmo que não seja aceita, ela mesma procura uma forma de se expressar na vida, sendo uma parte autônoma do inconsciente. 

O contato com a sombra

É muito comum que ao longo do processo terapêutico, o paciente apresente algumas resistências ao entrar em contato com conteúdos sombrios. É assim que se dá às projeções, o indivíduo joga para a outra pessoa aquilo que ele considera indesejável em si, e mesmo assim, não é possível a não integração dessa parte a si mesmo, pois ela continua pertencendo a quem projeta (ZWEIG; ABRAMS, 1994).

Fonte: Imagem de Victoria_Regen por Pixabay

Dessa forma é possível compreender o quão doloroso pode ser para o indivíduo que se submete a análise a adentrar sua sombra, onde será possível encontrar os conteúdos mais perversos, imorais e inaceitáveis. Sweig e Abrams (1994), já haviam dito que não se pode olhar de forma direta para a sombra pois ela é difícil de ser apreendida, é perigosa e desordenada. 

É por essas questões que projetamos a nossa sombra no outro, aquele traço que eu abomino no outro provavelmente é algo nosso. Vemos a sombra de maneira indireta nas atitudes alheias pois é mais cômodo para o nosso ego observar de fora (ZWEIG; ABRAMS, 1994). A psicoterapia surge como uma alternativa para entrar em contato com os aspectos sombrios, auxiliando na diminuição das resistências, libertando e direcionando a energia vital positiva que estava presa à sombra, fazendo com que o sujeito possa se transformar (CAMPOS et al., 2017).

Um relacionamento correto com a sombra nos oferece um presente valioso, leva-nos ao reencontro de nossas potencialidades enterradas, saber lidar com a Sombra e o mal é uma experiência tão poderosa que pode transformar a pessoa como um todo. Trabalhar a nossa Sombra é enfrentar seus conteúdos em uma imagem de nós mesmos, assim deixando de lado os nossos medos e a nossa rigidez. Este trabalho é voluntário e consciente, em que devemos assumir tudo aquilo que ignoramos ou reprimimos, somente assim poderemos sanar os nossos problemas levando luz à escuridão do nosso próprio ser (CAMPOS et al., 2017, p. 390).  

Para Zweig e Abrams (1994), há algumas formas de ‘’curar’’ a projeção, como assumir a responsabilidade sobre elas e reverter a projeção, que consiste em compreender que esse mecanismo fala mais sobre si do que sobre o outro. E à medida que o indivíduo passa a enfrentar essas questões, a sombra passa a se tornar mais evidente, pois a mesma é parte integrante do ego, e os confortos que ela causa não são causados por terceiros, mas sim pelo próprio indivíduo. 

Sabendo disso, torna-se necessário que o indivíduo integre a própria sombra, já que assim ele passará a se compreender melhor, a recolher suas projeções e viverá de maneira mais coerente com sigo mesmo e, esse processo faz parte da individuação do sujeito.

É entender que é utópico pensar que um dia um ser humano pode ser completamente perfeito, sem a existência de nada que a sociedade considere defeituoso para a personalidade; e, por fim, reintegrá-la, que consiste basicamente em entender quais conteúdos consiste na persona e quais na sombra voltando para o Si-mesmo, que o Eu profundo, aquilo que é divino e presente em todos os indivíduos (OCAÑA, 2008). 

A Individuação

A experiência total de integridade que ocorre ao longo da vida é considerada por Jung “individuação”.  Jung baseia-se nesse conceito, na observação que teve de que as pessoas crescem e se desenvolvem ao longo dos anos que têm de vida na terra. Sendo que do momento que nasce até por volta dos 20 anos, é uma fase de desenvolvimento físico. Na meia idade já começam a surgir lembretes da imortalidade, como rugas e flacidez. Com a meia idade inevitavelmente se chega a velhice, que pode ir dos 70 aos 120 anos, idade esperada para os próximos séculos. (STEINS, 2006)

O conceito de individuação nasceu em um período de sentimento de crise histórica. No livro de Jung “Tipos Psicológicos”, ele discute o problema que o homem moderno enfrenta diante da especialização, fragmentação e unilateralidade e alienação. Nesse livro, especialmente no capítulo sobre Schiller, Jung deixa claro que ver o homem moderno em desarmonia interior e alienação de si mesmo. (GORRESIO, 2016)

Gorresio (2016), afirma que a individuação pode ser compreendida como:

A grande jornada do ego na busca e no aumento da consciência do Si-mesmo. A essência da individuação consiste no “conhecer-se a si mesmo”. Mas o que é o Si Mesmo Para Jung, o Si-Mesmo é “a soma total dos conteúdos conscientes e inconscientes”, portanto individuar-se significa a realização consciente do potencial de cada um. Nas palavras de Jung, individuar-se é “o melhor desenvolvimento possível da totalidade de um indivíduo determinado”. Requer-se para tanto a vida inteira de uma pessoa, em todos seus aspectos biológicos, sociais e psíquicos. 

Pode então se dizer que a individuação é o processo de tornar a personalidade unificada e única, ou seja, uma pessoa integrada, uma totalidade. Mas é possível fracassar na individuação, não é uma tarefa fácil e poucos conseguem. “Pois, uma pessoa pode permanecer dividida, não-integrada, internamente múltipla, até chegar a uma idade avançada” (STEINS, 2016)

“Percebe-se que a individuação, eixo-mestre da praxis junguiana, pressupõe a disponibilidade para o auto sacrifício – o sacrifício do Eu em face das exigências do Si mesmo, o que implica também disponibilidade para suportar o sofrimento,” (BARRETO, 2009). Por isso não é uma tarefa fácil. Pois conseguir enfrentar e ter conhecimento da persona e da sombra, enfrentar a experiência do encontro entre consciente e inconsciente exige “coragem”. Pois isso é o que de fato podemos entender como individuação, é o processo de desenvolvimento entre os conflitos do consciente e inconsciente. (STEINS, 2016)

O processo de individuação consiste em ficar frente a frente com os vários aspectos sombrios que cada um tem dentro de si, reconhecendo-os e despindo-se da persona e das imagens primordiais.  Jung vê o processo de individuação diferente do individualismo, pois esse processo estimula o indivíduo a criar condições para que ele quanto os que estão a sua volta desperte o melhor de si. Compreendo assim a convivência coletiva, mantendo assim próximo da totalidade também da individualidade. Consiste numa aproximação do indivíduo ao mundo e não da sua exclusão.

Jung (2009) afirma que:

A individuação, em geral, é o processo de formação e particularização do ser individual e, em especial, é o desenvolvimento do indivíduo psicológico como ser distinto do conjunto, da psicologia coletiva. É portanto um processo de diferenciação que objetiva o desenvolvimento da personalidade individual. (…) Uma vez que o indivíduo não é um ser único mas pressupõe também um relacionamento coletivo para sua existência, também o processo de individuação não leva ao isolamento, mas a um relacionamento coletivo mais intenso e mais abrangente.

O Instituto Freedom (2017) afirma que a individuação é o centro da teoria de Jung, já que a mesma remete ao conhecimento que a pessoa tem do Si Mesmo, se trata da realização do self. Pois o principal foco da individuação é o conhecimento que o indivíduo tem de si mesmo. Para que esse processo ocorra é preciso a realização dos campos da espiritualidade, da arte e da religião, assim também o íntimo da alma. É ter autoconhecimento, saber lidar com a convivência coletiva, enfrentar o negativo da mesma forma que lida com o positivo.  Não é um processo fácil. Da mesma forma que o corpo precisa de alimento para sobreviver, a personalidade precisa de experiências para individuar-se.

Conclusão

Pode-se dizer então que compreender o inconsciente não é tarefa fácil (INSTITUTO FREEDOM, 2016). Por isso enfatizava em suas obras a importância do sujeito no processo terapêutico.  Assim sendo, a sombra é um arquétipo muito importante para ser trabalhado no setting, assim também, paciente e terapeuta, trabalham juntos para a construção da individuação do paciente. Mas como dito anteriormente, não são todos os pacientes que conseguem chegar a ela. É importante dizer que Carl Jung (2003) compara as pessoas como uma árvore, simbolizando o desenvolvimento, a união dos opostos, às raízes nas profundezas, e os galhos no alto. Um processo de união entre consciente e inconsciente. Esse processo de crescimento da árvore é lento, e o mesmo acontece com o cliente/paciente, que em um processo lento em terapia, pode chegar a essa união de opostos. (INSTITUTO FREEDOM, 2016)

REFERÊNCIAS 

BARRETO, Marco Heleno. A dimensão ética da psicologia analítica: individuação como “realização moral”. Seção Temática • Psicol. clin. 21 (1) • 2009.

CAMPOS, Josmar Furtado de; et al. Sombra, um despertar para as potencialidades. Rev. Científica univiçosa, v. 9, n. 1, 2017.

CORDEIRO, A. M. et al. Revisão sistemática: uma revisão narrativa. Rev. Col. Bras. Cir.

vol.34 no.6 Rio de Janeiro, nov./2007

FRANZ, Marie-Louise Von. A sombra e o mal nos contos de fadas. Editora Paulus, 3 ed, São Paulo, 2002.

INSTITUTO FREEDOM. Etapas do processo de individuação e os desafios. Psicologia Analítica. 2016. Disponível em: https://institutofreedom.com.br/blog/etapas-do-processo-de-individuacao-e-os-desafios/ Acesso em: 10 de junho de 2021.

INSTITUTO FREEDOM. O processo de individuação segundo Carl Gustav Jung. Psicologia Analítica. 2017. 

Disponívelem:https://institutofreedom.com.br/blog/o-processo-de-individuacao-segundo-carl-gustav-jung/. Último acesso em 03 de junho de 2021.

JUNG, Carl. Gustav. Estudos Alquímicos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.

JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2009.

OCEANÃ, Emma Martínez. A sabedoria de Integrar a Sombra. Lisboa, jun 2008.

STEIN, Murray. Jung e o Caminho da Individuação: Uma introdução concisa. Editora Cultrix, 1 ed., São Paulo, 2020.

STEINS, Murray. O mapa da alma. Editora Cultrix, 5 ed. São Paulo. 2016

ZWEIG, Connie; ABRAMS, Jeremiah. Ao Encontro da Sombra: O Potencial Oculto do Lado Escuro da Natureza Humana. Editora Cultrix, São Paulo, 1994. 

Compartilhe este conteúdo:

Erzulie, A Casa dos Sussurros e os Arquétipos Ancestrais Iorubá

Compartilhe este conteúdo:

Publicada pelo selo DC Vertigo, A Casa dos Sussurros (2018) veio pelas mentes de Nalo Hopkinson, Dan Watters retratando um novo grupo de seres místicos e divinos relacionados ao universo de Sandman, do autor Neil Gaiman. Nesse caso, os personagens se relacionam com a ancestralidade Iorubá, onde os protagonistas são algumas das divindades cultuadas pelas vertentes religiosas afrodescendentes na região da Louisiana – mais especificamente para o contexto da história em Nova Orleans.

A história dos habitantes da Casa dos Sussurros começa em uma foz pantanosa em outro mundo, outra dimensão. Ali, no Barco-Casa de nome já citado, vive a divindade Erzulie Frèda Dahomey, que assim como nos ramos africanos, no Voodoo Haitiano é uma Loá do amor, beleza, jóias, dança, luxo e flores. Ali na casa, os seguidores e devotos de Frèda, quando adormecem pensando em sua senhora vão visitá-la em sua festa particular; durante toda a noite os banquetes e a música são intermináveis e cada fiel tem a oportunidade de conversar diretamente com sua senhora e pedir auxílio, favor ou acalento.

 

Fonte: Casa dos Sussurros, Vol. 1, Editora Panini

 

Nos primeiros capítulos é possível observar essa relação da protagonista com seus adoradores; primeiramente recebe a visita do Loá dos crocodilos e personagem folclórico regional, Tio Segunda-Feira, este que vai caminhar ao lado dela durante toda a trama, auxiliando-a, pois além de devoto é fisicamente atraído pela deusa. Também deve lidar com seu sobrinho, chamado Shakpana, que nesse universo é o Loá responsável pelas curas e pelas doenças, deus das pandemias. 

Shakpana perdeu seu diário no mundo dos mortais, neste continham conceitos de várias doenças incuráveis, e isso leva a uma série de eventos que vão ameaçar toda a humanidade. A partir daí a história se desenrola de maneira intrincada; a deusa e sua casa-barco são retiradas de seu domínio devido a acontecimentos decorrentes da história do Sonhar (2018). Uma fratura em seu domínio de poder, sua dimensão particular, a faz ir parar no reino do Sonho dos Perpétuos, onde esta perde contato com seus adoradores e se vê fraca, quase morrendo, pois ela depende dessa energia ligada a seu culto. 

Enquanto isso, no mundo mortal, tanto os servos de Erzulie, quanto seus pares divinos estão à sua busca; Agwe, seu marido, acompanhado de Damballa e Ogum, outros Loás venerados se movem nessa procura. O primeiro volume termina com a apresentação dessas divindades e a consolidação de Shakpana como antagonista. Cada uma dessas divindades representa um aspecto da cultura Iorubá, um domínio divino, um arquétipo de conceitos e ideias. 

 

Fonte: A Casa dos Sussurros, Vol. 1, Editora Panini

Sincretismo e Adaptação

Primeiramente vale contextualizar alguns termos importantes para a espiritualidade em questão. No voodoo e em práticas espirituais derivadas da cultura Iorubá, temos o conceito de Loá. Este seria um termo para designar seres sobrenaturais, divindades e santos adorados pelos praticantes:

Loa, em créole lwa, é o nome dado às divindades cultuadas no vodu. As definições são variadas na literatura, em comum, no entanto, encontramos que trata-se de espíritos, que podem ser ancestrais ou santos. Há um sem número de sinônimos adotados para o termo lwa, tais como sen (santo) ou, no plural, sen yo, zanj (anjo) ou djab (diabo), mistè (mistério) e sprit (espírito). (BAPTISTA, 2012, p.20)

Fonte: encurtador.com.br/vJPS5

 

Compreendendo o que são os Loás, compreender sua classificação também é fundamental. Existem duas vertentes de seres espirituais para o voodoo e derivados, sendo estes os loá Rada, Petro e Ginen. Dois destes são considerados espíritos de origem africana, espíritos ligados à terra ancestral, estes são os rada e ginen; os de denominação petro estão ligados ao novo mundo, seriam, pois divindades surgidas nas colônias, de origem crioula – são considerados agressivos e seus ritos mais nefastos:

De certo modo os chamados loas petro, muito mais violentos e agressivos, são invocados para os trabalhos “mais pesados”, ou para a feitiçaria mesmo, e sua origem é créole, em oposição aos loas rada (de Arada ou Alada cidade do Daomé) que seriam “africanos”. Nesta classificação aparecem também os loas ginen, também africanos devotados aos trabalhos de cura e de contra-feitiçaria. Ao contrário daqueles, cuja natureza permite operar para o bem e para o mal, estes apenas atuam para o bem e se recusam a fazer o mal. (BAPTISTA, 2012, p.277)

Devido ao fenômeno da colonização, a escravidão de povos africanos foi difundida entre as principais nações colonizadoras, o que resultou no deslocamento desses indivíduos por todo o chamado Novo Mundo. Da América do Norte, passando pela América Central (principalmente no Caribe), à América do Sul esse povo foi arrastado contra sua vontade, violados e inseridos em locais diferentes da sua cultura natural e que os maltratavam de maneiras inconcebíveis. Mas a cultura Iorubá lutou com unhas e dentes e sobreviveu em meio as tentativas de assassinato desta.

(…) o Candomblé, a Umbanda, o Xangô e o Batuque no Brasil. Tenho estudado também a Santería ou Ocha e Palo Mayombe, religiões de Cuba e de todo e qualquer lugar nas Américas em que a música cubana ou latino-caribenha estiver. Às vezes, comparadas ao Vodou do Haiti, estas religiões se caracterizam tanto pela prática de oráculo quanto por seus rituais de transe, cura e sacrifício. São religiões com um ritual muito rico e extraordinariamente belo, com música e dança sagradas. (MATORY, 1998, p.263)

Dessa forma, é possível notar que muitas vezes de maneira sincrética, a cultura Iorubá sobreviveu pelo mundo, transformando e adaptando seus símbolos dentro das culturas em que se introduziu; também é notável que seus símbolos se assemelham a diversas outras culturas e isso se mostra na maneira como seus deuses e espíritos são retratados. 

 

Fonte: encurtador.com.br/kGHN0

Os Paralelos Arquetípicos

Se tratando especificamente da obra de Nalo Hopkinson, ela adapta os seguintes Loás: Erzulie, que aparece em sua forma Fredá, que corresponde ao ramo rada para a loá do amor, beleza, jóias, dança, luxo e flores; e seu outro aspecto, do ramo petro aparece posteriormente como sua forma Dantor, que pela autora é dita como a Mãe Protetora, no voodoo também é conhecida como loá das mães solteiras. Erzulie se enquadra no arquétipo feminino, de delicadeza, sedução, na cultura grega ela encontra analogia em Afrodite e dantor, como mãe protetora tem uma analogia ocidental na Virgem Maria, Nossa Senhora de Lourdes, ou mais especificamente na Madona Negra de Czestochowa, padroeira europeia levada ao Haiti por soldados poloneses retratada em pinturas exatamente como Erzulie.

 

Fonte: A Casa dos Sussurros, Vol. 1, Editora Panini

 

Tio Segunda-Feira, retratado como um deus crocodilo e servo de Erzulie, é um mito voodoo que pode ser análogo a Sobek, no Egito, cuja forma é um homem com cabeça de crocodilo que, ao transpirar, alimenta as águas do Nilo com seu suor. No folclore brasileiro temos a figura da Cuca, como ser humanoide reptiliano que costumava devorar crianças desobedientes. 

 

Fonte: A Casa dos Sussurros, Vol. 6, Editora Panini

 

Shakpana, é retratado como o loá das doenças e da cura e para os Iorubá – conhecido também como Sopona – seu nome está ligado a varíola, seus adoradores pintavam sua pele com pintas brancas para representar a doença. Em seu simbolismo e na trama de Hopkinson, se comporta como trickster, semelhante a Hermes, ou Loki, ele mantém a trama em movimento, agindo hora com boas intenções, hora dominado por seus aspectos sombrios e trazendo a doença fatal que motiva a jornada de Erzulie. 

 

Fonte: encurtador.com.br/EGLM1

 

Agwe (ou Agué no voodoo haitiano) é o loá que governa o mar juntamente a sua fauna e flora, na trama da HQ, é um dos cônjuges de Erzulie, e seu paralelo cultural pode ser encontrado em Poseidon ou Netuno greco-romanos, Aegir para os nórdicos ou mesmo Susanoo para o Xintoísmo Japonês.

 

Fonte: encurtador.com.br/fsQY7

 

Ogum, loá do ferro, guerra, caminhos, caça, tecnologia e protetor de artesãos e ferreiros. Na HQ um dos cônjuges, pode ser colocado lado a lado com divindades como Angra dos Tupi-Guarani, Hefesto ou Vulcano greco-romano ou mesmo Agni para os hindus.

 

Fonte: encurtador.com.br/dnwAT

 

Esse fenômeno antropológico também reforça as noções de arquétipos e ancestralidade, onde fica evidente que é possível traçar um paralelo arquetípico entre as divindades e seres míticos de culturas atemporalmente. O exemplo resultado da diáspora negra confirma isso nessas práticas religiosas que perduram até hoje e sua simbologia pode ser colocada em paralelo com diversas culturas ao redor do globo.

REFERÊNCIAS

BAPTISTA, JR de C. Sè tou melanje: uma etnografia sobre o universo social do vodu haitiano. Rio de Janeiro, Brasil: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.

DE HEUSCH, Luc. Kongo in Haiti: a new approach to religious syncretism. Man, p. 290-303, 1989.

MATORY, J. Lorand. Yorubá: as rotas e as raízes da nação transatlântica, 1830-1950. Horizontes antropológicos, v. 4, p. 263-292, 1998. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/ha/a/gXdf3gXQczbgGVRzWPMjq7f/?lang=pt>

Compartilhe este conteúdo:

Sobre o Animus: um apanhado sobre o Masculino Arquetípico

Compartilhe este conteúdo:

Carl Gustav Jung (1875-1961) foi o idealizador da Psicologia Analítica, e com ela propôs uma série de conteúdos revolucionários acerca da psique humana. Estes diziam respeito ao inconsciente pessoal e coletivo, também a inúmeros aspectos acerca da personalidade individual de cada um, permitindo explorar com precisão a individualidade dos sujeitos, mesmo que estes imersos em instâncias psíquicas tão complexas. Dentre tantos conceitos, também postulou a ideia dos arquétipos, como sendo imagens ancestrais enraizadas no inconsciente coletivo às quais nós temos acesso e com os quais entramos em contato ao longo da vida (JUNG, 2018). 

Dentre os diversos arquétipos existem o Animus e a Anima. Esses arquétipos contrassexuais foram denominados assim por Jung com o objetivo de representar respectivamente as partes masculina e feminina dentro de cada indivíduo, sendo assim condutores da consciência feminina e masculina para o mundo interior da psique. De maneira simbólica, cada homem teria contido em si certo aspecto feminino e cada mulher um masculino.

Anima significa o componente feminino numa personalidade de homem, e o animus designa componente masculino numa personalidade de mulher. Ele tirou tais palavras do termo latino animare, que quer dizer animar, avivar, porque sentiu que a anima e animus se assemelhavam a almas ou espíritos animadores, vivificadores, para homens e mulheres (SANFORD, 1987, p.12).

Fonte: encurtador.com.br/zY346

Pensando em questões contemporâneas ligadas à experiências pessoais de quem produziu esse artigo na clínica escola, surgiu então a indagação acerca do tema, pois muitos pacientes que ingressaram na clínica no período de tempo anterior recente, encontravam em suas demandas uma raiz fortemente ligada a questões de animus e anima. Desde a maneira como esses pacientes lidavam pessoalmente com esse aspecto em si mesmos, até em questões fundamentais imagéticas ligadas a como estes concebiam os conceitos nas suas relações familiares basilares. 

A partir daqui as atenções se voltam ao arquétipo masculino e seus conceitos, implicações, mitos e histórias relacionadas a este que ajudaram a difundir no inconsciente coletivo da humanidade ao longo das eras, em uma abordagem mais presentificada em sua correlação com o cotidiano do ser humano moderno e suas implicações para a vida psíquica dos possíveis pacientes clínicos do século XXI.

O ANIMUS – A MASCULINIDADE INTRÍNSECA NA MULHER

Ao se debruçar em suas primeiras definições acerca do arquétipo de Animus, C. G. Jung afirma que “(…) a figura compensadora é de caráter masculino e pode ser designada pelo nome de animus. Se não é simples expor o que se deve entender por anima, é quase insuperável a dificuldade de tentar descrever a psicologia do animus” (JUNG, 2011, p. 98). As descrições de animus no texto original de Jung vão ser extrapolações do conceito de anima, com o autor a todo momento mostrando ao leitor as oposições e conceitos comparativos entre a psique masculina e feminina. Segue outro exemplo: 

O homem atribui a si mesmo, ingenuamente, as reações da sua anima, sem perceber que na realidade não pode identificar-se com um complexo autônomo; o mesmo ocorre na psicologia feminina, só que de um modo muito mais intenso, se é que isto é possível. A identificação com o complexo autônomo é a razão essencial da dificuldade de compreender e descrever o problema, sem falar de sua obscuridade e estranheza (JUNG, 2011, p.98).

Em ambos os casos fica clara a mensagem intrínseca que Jung quer escrita: existe uma instância arquetípica imagética masculina dentro dos seres humanos pertencentes ao sexo feminino. E que essa imagem arquetípica compensaria determinados pontos da personalidade dessas mulheres – em um sentido pendular quase de enantiodromia – em diversos pontos da sua vida social familiar e afetiva ao longo de todo o processo de seu ciclo vital.

A mulher e o Animus – Fonte: encurtador.com.br/avG02

Emma Jung (2006), expandiu as noções de animus, ela começa descrevendo o animus e buscando referências em literatura clássica para identificar o mesmo. Aqui a autora nos aponta que o masculino é caracterizado por 4 aspectos, ou estágios: de força, ato, verbo e sentido, todos estes dependentes da consciência e cada um individualmente associado a um tipo de masculinidade e de imago masculina. Em todo o seu texto ela aponta que as mulheres em seu âmbito são movidas pelo princípio do Eros, algo que pode ser traduzido como ligação sentimental ou a estas se voltarem a relações e afetividades, enquanto o homem seria regido pelo princípio da Logos, associado a razão. Deixando claro no fim que, para consciência da mulher o que seria mais importante se consiste no que tange às relações pessoais e as nuances que costumam escapar das percepções dos homens.

“O animus serve – em seu aspecto positivo – como elo entre o ego feminino e a sua criatividade. Já  em  seu  aspecto  negativo,  o animus pode  se  expressar  por  meio  de preconceitos e ideias destrutivas nos relacionamentos que estão presentes na vida da mulher” (GONÇALVES, 2018, p.13). Se o indivíduo não consegue integrar os aspectos opostos em si de maneira saudável, se tem alguma experiência traumática durante seu desenvolvimento, ou se na tenra infância falta alguma figura de referência, isso pode gerar um Complexo futuro. Assim, podendo incorrer no chamado animus negativo, as implicações disso para a vida pessoal do paciente podem ser tremendas. Marie-Louise Von Franz disserta sobre:

Em geral, o primeiro homem que uma mulher conhece é seu pai, que portanto tem uma influência muito grande sobre a menina. Se a relação com o pai se constela de um modo negativo, a menina reagirá negativamente a ele. (…) se a relação for negativa, mais tarde ela provavelmente terá dificuldade com os homens e não descobrirá seu próprio lado masculino. No extremo, ela ficará completamente incapaz de abordar os homens. (…) Se o caso não for tão extremo, ela será o que se costuma chamar de uma mulher difícil. Discutirá com os homens, tentará sempre desafiá-los, criticá-los e pô-los para baixo. Ela esperará negatividade da parte deles, e essa expectativa naturalmente criará dificuldades para o parceiro (VON FRANZ, 1988, p.163).

Ser masculino atormentando mulher em seus sonhos – Fonte: encurtador.com.br/lwR28

Para construção de uma psique saudável, a mulher deve ter a capacidade de integrar o animus, a parte masculina, à sua consciência. Mas para que isso ocorra, ao longo da vida diversas experiências devem ser vividas de maneira adequada, para que o animus seja positivo e as características masculinas não gerem sofrimento interno a paciente, gerando um bom futuro relacionamento com as imagos do sexo oposto, e logo, relacionamentos sociais funcionais (JUNG, 2011). 

A SIMBOLOGIA EM ANIMUS

No oriente a simbologia de animus e anima pode ser constatada mais evidentemente nos conceitos Taoístas, vindos de onde hoje se localiza a China. Para o Taoísmo e sua cosmologia o conceito de Yin-Yang compõe o universo e todas as suas coisas, sendo forças de oposição que representam respectivamente a passividade, escuridão, o feminino versus a atividade, luz, o masculino (BIZERRIL, 2010). 

Gonçalves (2018) destaca que essas constatações se dão pela observação da natureza pelos camponeses, sendo que o dia (luz, Yang) fica associado a atividade e a noite (escuridão, Yin) a passividade e ao descanso. Sendo a dualidade um conceito intrínseco à visão de ser humano e reconhecendo que dentro de cada ser existe o aspecto oposto, complementar, a similaridade com o conceito de animus e anima fica claro, mais uma vez, na busca pela enantiodromia.

A alternância yin-yang nomeia uma pulsação básica do cosmo – expansão/recolhimento, ascensão/declínio, dia/noite, movimento/serenidade – descrita no Daodejing. Posteriormente, foi elaborada uma descrição mais detalhada dessas alternâncias cíclicas na dinastia Han, por meio da combinação da cosmologia yin-yang, descrita por Laozi, ao sistema de correspondências entre as coordenadas do tempo, do espaço, da experiência sensível, e os aspectos do corpo humano, e as cinco energias ou modalidades do qi que forma o mundo, conforme descritas no Huangdi Neijing Suwen, o primeiro clássico da medicina tradicional chinesa, atribuído ao mítico Imperador Amarelo, Huangdi. (BIZERRIL, 2010, p.296)

Símbolo Yin-Yang – Fonte: encurtador.com.br/bcoAG

Já no Xintoísmo japonês podemos encontrar a dualidade representada em seu mito de cosmogonia. Silva (2016) expõe o registro mais antigo xintoísta japonês, que é conhecido como Kojiki – em tradução pode ser lido como ‘Registro dos Assuntos Antigos’ – e nele constam as principais narrativas mitológicas nipônicas, incluindo a história das divindades criadoras, os irmãos Izanami e Izanagi. Eles seriam os responsáveis pela vida e pela criação do próprio Japão.

Na última geração, surgiram as entidades o “Macho que convida” e a “Fêmea que convida”, respectivamente Izanagi-no-Mikoto e Izanami-no-Mikoto. À estas duas entidades foi concebida a tarefa de “criar, consolidar e dar vida (…)” à terra que ainda estava cercada pelo oceano primordial, ainda sem forma. (SILVA, 2016, p.32)

Em diversas histórias são essas duas figuras divinas que se confluem para gerar os seres vivos. Comparativamente a outras culturas o equivalente dos pólos opostos sexuais se tratarem de seres  primordiais de criação e que movem o universo de seu estado de inércia existencial não é incomum, na xintoísta não diferente, vemos a narrativa primordial da tentativa do nipônico tentando compreender essa simbologia. Vide esse autor que coloca Izanagi e Izanami em um paralelo com o cristianismo:

Há uma lenda que ainda é contada em uma região de Okinawa: há muito tempo, as pessoas da terra não sabiam como fazer filhos. Algumas dessas pessoas viram dois botos acasalando no mar. Elas imitaram a atividade dos botos e aprenderam a fazer filhos. É a história de Adão e Eva de Okinawa, uma história com muito mais apelo do que a que temos no Kojiki, a antiga narrativa dos mitos japoneses. Lá, lemos que Izanami e Izanagi estavam circundando um pilar. Eles observam um ao outro como se estivessem observando uma máquina. Um deles diz: “Aqui há uma protuberância, aí há uma depressão; vamos encaixar um no outro e ver o que acontece”. Eles acabam tendo filhos (…) (DE ABREU, 2017, p. 207)

Izanami a esquerda e Izanagi a direita tocando a lança no mar e criando o Japão – Fonte: encurtador.com.br/jJV15

 Conclui-se então que, em se tratando especificamente da cultura oriental – pois esta foi usada de base filosófica e direcional por Jung na elaboração de sua maneira de enxergar o mundo – o masculino estar presente no feminino é um conceito que vem sendo passado no inconsciente coletivo a milênios. Os povos orientais tinham uma compreensão da psique simbolicamente falando, muito evoluída e isso se reflete em todas as suas práticas culturais, lendas e espiritualidade. Um não pode existir sem o outro e para o equilíbrio, a enantiodromia, a equivalência de yin-yang, deve existir luz na escuridão, e um pouco de masculino dentro do feminino.

REFERÊNCIAS

BIZERRIL, José. O caminho do retorno: envelhecer à maneira taoista. Horizontes Antropológicos, v. 16, n. 34, p. 287-313, 2010. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/ha/a/YHHJ8YBsxTJxbhqLxhzWpZk/?lang=pt>

CHAGAS, Maria Inês Orsoni; CAMPOS, Terezinha Calil Padis. O complexo paterno na psique feminina e a sua influência nos relacionamentos heterossexuais numa perspectiva da Psicologia Analítica. 2000. Disponível em: <http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/CCBS/Cursos/Psicologia/boletins/1/artigos8.pdf>

DE ABREU, Lúcia Collischonn. Tawada Yôko Não Existe. Translatio, n. 14, p. 203-217, 2017. Disponível em:<https://www.seer.ufrgs.br/translatio/article/view/76739/45635>

GONÇALVES, Grazieli Aparecida; DE OLIVEIRA LOPES, Adriana Goreti. O matrimônio sagrado yin-yang. Self-Revista do Instituto Junguiano de São Paulo, v. 3, 2018. Disponível em:<https://self.ijusp.org.br/self/article/view/31> 

JUNG, Emma.  Animus e Anima. São Paulo: Cultrix. 2006

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo Vol. 9/1. Editora Vozes Limitada, 2018.

JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. Editora Vozes Limitada, 2011.

MENIN, Fernanda; LOUREIRO, Lilian; MORAES, Noely Montes. A maldição de Eva: a face feminina da violência contra a mulher. Psicologia Revista, v. 16, n. 1/2, p. 51-71, 2007. Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/index.php/psicorevista/article/view/18057/13417>

SANFORD, John A. et al. Os parceiros invisíveis: O Masculino e Feminino em cada um de nós. São Paulo: Paulus, 1987.

SILVA, Guilherme et al. Xintoísmo e produção de presença-a espiritualidade no mangá Mushishi. 2016. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/179738>

VON FRANZ, Marie Louise. O Caminho dos Sonhos. São Paulo: Cultrix. 1988.

Compartilhe este conteúdo:

Loki e a volatilidade do trickster

Compartilhe este conteúdo:

 

Loki, na mitologia nórdica, é o deus da trapaça, do fogo, das travessuras e suas narrativas estão fortemente ligadas à magia e seus feitos vão desde ser um gigante de gelo adotado em meio aos aesires em Asgard, a estar presente em todos os principais momentos chave na cosmogonia escandinava, alterando a estrutura do mundo ao seu redor e influenciando os seres mitológicos que vivem ali consigo, de maneiras mais positivas até às mais desastrosas (GAIMAN, 2018). 

No universo dos quadrinhos o personagem foi concebido por Stan Lee (1922-2018), Larry Lieber (1931-Presente) e Jack Kirby (1917-1994), baseado no deus nórdico e entrando em conflito direto com os vingadores, sendo inclusive responsável pela primeira reunião dos heróis em uma equipe, sua primeira aparição se daria em Journey into Mystery #85 (1962).

Loki e sua primeira aparição nos quadrinhos – Fonte: encurtador.com.br/kNUW9

Nos cinemas, sua primeira aparição se deu em Thor (2011), no filme que retrata a origem do deus do Trovão. Loki e sua concepção conturbada são apresentados ao público como a de um ser milenar e poderoso, que foi adotado na benevolência do rei dos deuses Odin, ao longo do filme, ele descobre seu passada e a verdade sobre ser filho dos piores inimigos de Asgard, os gigantes de gelo, e isso gera revolta tremenda. Tamanha inconformidade com este fato o leva a optar por se entregar ao vazio do espaço ao final do filme, ao perceber que jamais seria o herdeiro do trono dos deuses, papel esse destinado a Thor.

Essa concepção hollywoodiana, no entanto, não deixa no entanto a desejar no aspecto retratação da personalidade de Loki, como o deus da trapaça. Ele é intempestivo, volátil, e principalmente imprevisível. A maioria dos personagens ao seu redor passa a maior parte do tempo tentando lidar com as intrincadas tramas desenvolvidas por ele, escapar das maquinações e muitas vezes até das pegadinhas. Isso favorece alguns questionamentos, como por exemplo, porque a personalidade deste personagem é assim e porque é retratado de forma tão contundente assim; a resposta está no arquétipo do Trickster. 

Tom Hiddlestone como Loki em “Thor (2011)” – Fonte: encurtador.com.br/ewGOX

O Trickster em Asgard

Ao estudar a psicologia analítica é possível identificar dentro do conceito dos arquétipos uma variedade quase infinita de representações, entre elas consta o Trickster. Queiroz (1991) essa figura arquetípica se pode associar com personagens de característica ardilosa, astuta, desonesta ou cômica, seriam aqueles heróis embusteiros ou o pregador de peças. O autor destaca também que o termo trickster vem do francês tricherie – que quer dizer algo entre trapaça, falcatrua ou engano – e que esses personagens míticos podem estar associados a um conceito de neutralidade moral, pois seus feitos podem prejudicar ou beneficiar as pessoas e o mundo a sua volta, devido a sua natureza dúbia.

Esta figura atua sem limites e sem qualquer lei que não seja a do próprio desejo. Por esta razão, pode-se dizer que o trickster costuma representar a antítese de valores culturais estabelecidos e integrados pela consciência coletiva em forma de rituais, e então, quando surge, personifica a antítese da atitude culturalmente esperada. Até o corpo do trickster não é uma unidade integrada, separando-se frequentemente em partes autônomas ou então metamorfoseando-se. Loki, por exemplo, é capaz de transformar-se em fêmea e se metamorfosear em vários animais (…) (ALVES, 2016, p.75)

Na mitologia nórdica nenhum outro ser se enquadra melhor no arquétipo do trickster do que Loki, o deus do fogo e da trapaça. Em toda sua trajetória este se vê atuando de maneiras absurdamente contraditórias; ora é retratado junto aos aesires indo em direção a batalhas ferozes ou ajudando Thor a recuperar seu martelo perdido, ora está se rebelando, concebendo filhos mortais – pois é retratado como um ser de gênero fluido e de forma abstrata quando deseja – e começando o equivalente ao apocalipse cósmico escandinavo:

Seja na mitologia nórdica de maneira geral, seja no círculo de Asgard, o lugar ocupado por Loki é de certa forma intrigante. Ele tem um papel de destaque na maioria dos mitos nórdicos conhecidos por nós nos dias de hoje. Considerando o material produzido por Snorri Sturluson como única fonte, Loki talvez seja o personagem de maior destaque entre os deuses do norte, o principal ator nas estórias divertidas e também a força motivadora em um bom número de tramas. Ele traz ao reino dos deuses tanto a comédia quanto as grandes tragédias (…) (ALVES, 2016, p.73)

Representação ancestral de Loki – Fonte: encurtador.com.br/adeG6

A inconstância nas interações do deus da trapaça são sua marca registrada e é aí que mora o trickster nessa narrativa, um ser que é livre de certa forma e exerce essa liberdade interagindo de diversas maneiras com o mundo ao seu redor. Tanto no caso de Loki, quanto no caso de outros tricksters de outras culturas. Vide Exu na cosmogonia Iorubá (DE ALMEIDA GABANI; SERBENA, 2015) que atuava como observador da humanidade entre suas vilas, ou mesmo Hermes da cultura greco-romana que era mensageiro dos deuses e divindade relacionada a medicina e aos viajantes (BALIEIRO, 2015), ambos podem ser identificados nesse arquétipo e mostram como as sociedades ancestrais que conceberam esses mitos vislumbravam essa figura arquetípica.

A Lição do Trickster

Tanto nas mitologias quanto nas narrativas cinematográficas em que está presente, um ponto em comum na narrativa do trickster e em sua interação com os que o orbitam fica evidente: ele coloca os personagens, o mundo e a história em movimento. Loki é ao mesmo tempo um inimigo infiltrado, um filho, um grande irmão, um anti-herói. 

Ele é o responsável por colocar a história em movimento auxiliando os deuses, sendo parceiro, amigável, mas em uma de suas piadas mais cruéis, mata o deus Balder e inicia o fim dos tempos, levando toda a narrativa cósmica para seu ápice. Mesmo com tantas e repetidas idas e vindas, o trapaceiro tem que estar ali, para manter a narrativa em movimento, e muitas vezes dar um empurrão singelo para a conclusão tão esperada.

REFERÊNCIAS

BALIEIRO, Cristina et al. A imagem arquetípica do psicopompo nas representações de Exu, Ganesha, Hermes e Toth. Revista de Estudos Universitários-REU, v. 41, n. 2, 2015.

DE ALMEIDA GABANI, Michelle Suzana; SERBENA, Carlos Augusto. Exu: Um Trickster Solto No “Terreiro” Psíquico. Revista Relegens Thréskeia, v. 4, n. 1, p. 52-70, 2015.

GAIMAN, Neil. Mitologia nórdica. Editorial Presença, 2018.

QUEIROZ, Renato da Silva. O herói-trapaceiro. Reflexões sobre a figura do trickster. Tempo Social, v. 3, n. 1-2, p. 93-107, 1991.

ALVES, Victor Hugo Sampaio. Um Estudo Simbólico-arquetípico Da Edda Em Prosa. Textos completos do 4 Seminário Integrado de Monografias, Dissertações e Teses, p. 62, 2016.

Compartilhe este conteúdo:

Falcão e o Soldado Invernal: o sonho americano pode ser transmitido?

Compartilhe este conteúdo:

É curiosa a trajetória do Capitão América como um símbolo norte-americano. Concebido por Joe Simon (1913-2011) e Jack Kirby (1917-1994), a primeira encarnação do herói vem na pele de Steve Rogers. Sua origem nos quadrinhos, em The Avengers #4 (1964) é similar a apresentada no filme Capitão América: O Primeiro Vingador (2011), um jovem franzino, frágil e debilitado, com muito amor por sua pátria deseja adentrar o exército norte-americano para combater as forças do Eixo em plena 2ª Guerra Mundial, um clássico herói da era de ouro dos quadrinhos.

Sem aptidão física, mas com muita determinação, um membro de alta patente enxerga potencial no garoto e o transforma em voluntário para o projeto do Soro de Supersoldado, isso tudo leva o personagem a se transformar no super humano conhecido como Capitão América. Isso, no entanto, não quer dizer que ele foi o primeiro a vestir esse manto. No mundo entroncado das editoras de quadrinhos onde os roteiristas vêm e vão, modificando as histórias e o passado dos personagens com frequência, era de se esperar que isso fosse acontecer e antes de Steve Rogers outro homem vestiu as roupas e o escudo icônico do herói – mas mantenha esse fato em suspensão.

Fonte: encurtador.com.br/qzKU4

Anos após a criação de Rogers, em Captain America #117 (1969), um dos primeiros heróis negros seria apresentado ao mundo, este era Sam Wilson, de alterego Falcão. No universo cinematográfico Marvel contemporâneo, Wilson seria apresentado no filme Capitão América 2: o Soldado Invernal (2014), um militar de carreira, que fazia missões aéreas arriscadas. A partir daí eles construíram uma relação de amizade e companheirismo, culminando no fim do filme Vingadores: Ultimato (2019), onde Steve decide – após viver longos anos de uma aposentadoria e um casamento feliz que envolve uma viagem no tempo e muito roteiro complexo – passar o manto de Capitão América para Wilson.

Esse ato simbólico, que na cena em questão é muito característico por um Capitão, em forma de idoso, longevo e sábio, passando o escudo, um item poderoso e significativo carregado de significados para um Sam jovem e relativamente inexperiente; o Mestre que passa o item chave e seus conhecimentos para o aprendiz. Esse fato culmina na trama do seriado Falcão e o Soldado Invernal, que vai tratar da recusa de Sam Wilson ao chamado a Jornada do Herói.

Fonte: encurtador.com.br/dxAW1

 

O Arquétipo do Herói e a Recusa ao Chamado de Sam

Joseph Campbell (1904-1987) trabalha e disserta meticulosamente acerca do arquétipo do herói em seu livro “O Herói de Mil Faces” (1949). Neste livro, que antecede porém converge com as idéias de Carl Gustav Jung em “Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo” (1959), o autor discorre acerca do monomito (jornada do herói), sendo esta uma narrativa plural e universalmente presente em todas as culturas, de maneiras diferentes de acordo com as influências de cada local. A jornada se dá em doze passos, fundamentais para o desenvolvimento do personagem, e crescimento individual, culminando na conclusão heróica de sua jornada.

Os passos dessa jornada, descrita por Campbell (2004) seriam em um primeiro ato: o Mundo Comum, o Chamado à Aventura, a Recusa do Chamado, o Encontro com o Mentor e a Travessia do Primeiro Limiar. A ordem dos fatores pode variar de acordo com as histórias, mas sem a alteração do produto. No caso de Sam Wilson vemos sua jornada como herói ser estabelecida em sua atuação como Falcão, porém ao ser defrontado com o manto de Capitão América, a responsabilidade e o significado do escudo o desmotivam a prosseguir.

No seriado Falcão e o Soldado Invernal (2021) é possível observar a continuidade desse processo, pois a série trata das consequências dessa fuga de Sam. Toda uma conjuntura é estabelecida, com a série tomando ponto de partida diretamente após a cena final de Vingadores: Ultimato (2019). Sam recebe o escudo, mas a única frase que consegue pronunciar acerca dele é “Parece que pertence a outra pessoa”.

Ricón (2006) descreve o processo da recusa como “o herói reluta em empreender a jornada”; Sam não somente recusa o manto de Capitão América como entrega o escudo, item emblemático, ao governo americano, ato que vai mover sua história ao longo dos episódios, pois vai sempre ser lembrado pelos personagens coadjuvantes que Steve Rogers o escolheu por bons motivos.

Fonte: encurtador.com.br/eAMR1

O Capitão que a América precisa

Nos capítulos finais da série, Sam Wilson deve lidar com seus demônios. A situação familiar na casa mundana do herói é uma analogia bonita para toda a narrativa complexa envolvendo super seres e política fantasiosa. Em sua casa no estado de Louisiana, uma problemática com o barco que pertenceu a seus pais, que está estragado e precisa ser vendido por sua irmã, é um dilema complexo.

Ao investigar mais a fundo o legado do Capitão América, descobre a trágica história de Isaiah Bradley, o primeiro a testar o soro de Supersoldado e a vestir o manto de Capitão América, um homem negro, que foi usado, injustiçado e logo após apagado da história como muitos outros semelhantes. Teria ele o ímpeto, como um homem negro que também é, de vestir o manto que representa um país que causou tanto sofrimento a seus semelhantes? Bradley revela a ele as atrocidades da guerra e impõe mais peso nos ombros de Sam.

 

Fonte: encurtador.com.br/ltyGJ

 

“O percurso padrão estabelecido por Campbell para a aventura mitológica é representado nos rituais de passagem: separação, iniciação e retorno. Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios sobrenaturais, onde encontra forças e obtém uma vitória decisiva, o herói volta de sua aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes. O herói composto do monomito é uma personagem dotada de dons excepcionais, frequentemente honrado pela sociedade de que faz parte, costuma também não receber reconhecimento ou ser objeto de desdém.” (GOMES, 2009, p.5)

O sofrimento do povo negro representado em Bradley, sua relação de amizade com Bucky Barnes e observar o mau uso que o governo fez do legado de Steve Rogers, o motivam a retomar sua jornada pessoal de heroísmo e o impulsionam a assumir outra Persona. Morre o Falcão e nasce um novo Capitão América. Sam finalmente é capaz de se libertar da fixação na fuga da jornada.

 

Fonte: encurtador.com.br/cejpx

 

REFERÊNCIAS

CAMPBELL, Joseph. Herói de Mil Faces, O. Cholsamaj Fundación, 2004.

GOMES, Vinícius Romagnolli Rodrigues; ANDRADE, Solange Ramos de. Um retorno aos mitos: Campbell, Eliade e Jung. Revista Brasileira de História das Religiões-ANPUH-Maringá (PR) v, v. 1, 2009.

RICÓN, Luiz Eduardo. A jornada do herói mitológico. In: SIMPÓSIO DE RPG & EDUCAÇÃO. 2006. p. 2-4.

Compartilhe este conteúdo:

Os Arquétipos e a Mãe Devoradora

Compartilhe este conteúdo:

Na Psicologia Analítica, Carl Gustav Jung define como uma função psíquica existente e necessária o pensamento irracional no ser humano. A partir do seu teorizado Inconsciente Coletivo, ele define algumas tendências instintivas que se organizam na sociedade, marcando impulsos comuns no comportamento humano social. “O arquétipo é, na realidade, uma tendência instintiva, tão marcada como o impulso das aves para fazer seu ninho e o das formigas para se organizarem em colônias”. (JUNG C. G. 1964, p. 83)

Esses impulsos, vestem-se em roupagens que, ao longo da história, vão sendo substituídos por novas representações, todavia, sempre mantém os mesmos traços. O inconsciente coletivo, sendo “uma figuração do mundo, representando a um só tempo a sedimentação multimilenar da experiência” (JUNG C. G. 1971, p. 104), ao longo do tempo foi sendo segmentado em diferentes traços, estes são os denominados Arquétipos.

Este texto irá se debruçar sobre o específico arquétipo da Mãe Devoradora, teorizando os diferentes locais dos mitos e folclores onde aparecem, e explicando onde a influência dele aparece no cotidiano das relações sociais.

Fonte: encurtador.com.br/xzEN4

O Grande Peixe que engole Jonas

Na passagem bíblica sobre Jonas, quando ele recebe uma tarefa profética do Deus hebraico, foge a navio para o caminho contrário. A divindade então castiga seu navio com uma terrível tempestade. Jonas, envolto de culpa, confessa aos ocupantes do barco ser responsável por aquela tormenta e é atirado ao mar. Aqui, segundo Jung em seu livro “Símbolos da Transformação” (JUNG, 1952), se dá a representação do momento em que o indivíduo, fugindo de seus anseios internos (inconscientes), se afasta e se alheia cada vez mais da vida, e lentamente, submerge no abismo das recordações passadas.

Ao fazer isso, a energia psíquica atinge certa intensidade, que nesse ponto o aparelho psíquico pode encarar como perigosa. Na analogia de Jonas, a proximidade do divino representa isso com clareza. O mergulho na profundeza do mar e o homem ser engolido, pode vir a ser uma metáfora para encontrar “o vaso materno do renascimento, o lugar de germinação, onde a vida pode renovar-se” (JUNG, 1952, p.397).  Nessa fuga do mundo atual, Jonas então é engolido pelo Peixe Monstro, representante do arquétipo da mãe devoradora. Ali, como diz Paracelso citado por Jung, viu “enormes mistérios”, conseguimos através do animal ser novamente levados até a costa.

Neste conto, a mãe devoradora internalizada no inconsciente, através da regressão da energia psíquica (voltar-se a si mesmo), mergulha o indivíduo que sofre dentro de uma reintegração com o mundo dos instintos naturais. “Se esta pode ser captada pelo consciente, ela determinará uma reanimação e reordenação” psíquica, representada pela saída de Jonas do corpo da baleia. Mas se o consciente for incapaz de assimilar os conteúdos vindo do inconsciente, cria-se uma situação perigosa na qual os novos conteúdos conservam sua forma original, caótica e arcaica, e com isto rompem a unidade do consciente. O distúrbio mental daí resultante chama-se por isto, caracteristicamente, esquizofrenia, “loucura por cisão”.”

Jonas então volta para terra (mundo da consciência), e assim se reconecta com o Senhor (conexão com a essência interior), cumprindo sua missão requisitada, representando isso como o retorno para a vida atual e seus compromissos.

Fonte: encurtador.com.br/fnozR

O Arquétipo da Mãe Devoradora na função maternal

O arquétipo da mãe devoradora representa aquelas características maternas que anulam a liberdade do filho. Quando as suas necessidades são impostas acima das necessidades dele. Assim, o desenvolvimento da personalidade do filho é desafiada pelo arquétipo, correndo perigo de ainda ser engolido pelas suas vontades.

Pode ser considerada uma identificação com esse arquétipo, as mães superprotetoras, que inevitavelmente, suplantam a liberdade que o filho aos poucos deveria adquirir. O nome “devoradora”, se dá justamente pelo fato alegórico da mãe que considera o filho como uma propriedade sua, portanto parte dela própria, engolindo sua personalidade, instaurando desde muito cedo nele o medo, pelo fato de ser muito dominadora, brava ou mesmo agressiva. Tal comportamento materno demonstra um comportamento egoísta, onde a mãe pensa apenas nela mesma, e faz do filho uma espécie de extensão narcísica dela própria, como se fosse apenas um pertence anexo à ela.

Junto dessas características, vem também a sua característica dramática, que é mais uma forma de manipulação, criando um clima de angústia e culpa na casa, a fim de se tornar o centro das atenções. Ela tende a ter características negativistas, dando sempre críticas negativas ao filho, suplantando a personalidade dele em nome da sua. As conquistas do filho, vem assim a ser colocadas como advindas da mãe, duvidando sempre das capacidades dele. Tal característica vem a mostrar uma competitividade da mãe para com os filhos, não querendo jamais perder o controle sobre eles.

Ela também tem características dissimuladoras, mais um mecanismo manipulativo; e chantagens emocionais, a fim de gerar culpa no filho, prendendo-o a uma maior dependência. Tal comportamento cria nele a internalização dessa mãe mítica em sua personalidade, podendo mesmo quando distante dela, se sentir rondado pela mãe devoradora, instaurando a culpa em seu dia a dia. Quando se comporta estritamente e radicalmente má, essa mãe acaba também, se identificando com o arquétipo da bruxa, já bem conhecida na história de João e Maria.

Fonte: encurtador.com.br/pwJS2

A representação da Mãe Devoradora é identificável em diversas culturas ao longo da história. Voltando às lendas romanas antigas, é possível atestar o caso do herói mitológico Hércules; este que de acordo com o mito, sofreu alguns males devido a natureza de sua relação com a esposa de seu pai divino, a deusa Juno.

(…) como Juno não era sempre hostil aos filhos do marido com mulheres mortais, declarou guerra a Hércules desde o nascimento do menino. A deusa enviou duas serpentes para matá-lo quando estava no berço, mas apareceu as crianças estrangulou as cobras com as próprias mãos (Bulfinch, 2013, p.227).

Esta relação conflituosa resultou em Juno conspirando contra o herói, fazendo com que Hércules fosse submetido a figura de Euristeu, rei de Tirinto e de Micenas. A intenção da deusa era de que o herói encontrasse o seu fim na medida em que realizasse os 12 trabalhos propostos pelo rei. Este fato na verdade resulta no fortalecimento de Hércules; este passa de maneira eficaz por cada uma das 12 provações, que envolviam desde roubar itens místicos até enfrentar criaturas de com sobrenatural e de poderes colossais.

Por fim, Hércules retorna de sua jornada com sabedoria adquirida; dessa maneira Juno, a mãe devoradora neste caso, se frustra em sua tentativa de destruição do herói e acaba por fortalecê-lo em sua jornada devido às suas atitudes. Esse é um exemplo cultural greco-romano da ação do arquétipo, e esse paralelo pode ser feito em mitos de outras culturas de maneira semelhante.

Fonte: encurtador.com.br/acvwJ

Na cultura brasileira, nos relatos de seu folclore, encontramos a figura mítica da Cuca. Milanez (2011) descreve esta que seria uma mulher velha, com características reptilianas e sempre associada a prática de bruxaria, seria responsável por raptar crianças que não cumprissem as regras estabelecidas no lar pelos pais, principalmente quanto ao horário de dormir.

Quando a mãe devoradora se torna estritamente má, esta passa a se identificar com o arquétipo da bruxa, baseado nessa associação é que se afirma que a Cuca é um representante desse arquétipo no folclore brasileiro. O caráter punitivo de sua relação com a criança, sua aparência reptiliana e a mística envolvendo sua lenda.

Ao se buscar sobre a origem do mito da Cuca, chegamos ao cerne deste em Portugal. Cordeiro (1886) aponta que nas terras lusitanas, conta-se que um Santo, certa vez lutou contra um dragão que afligia um povo. Este santo era conhecido por São Jorge, o dragão era conhecido como Coca. Os portugueses, junto a colonização, trouxeram relatos e histórias, Coca, se transformou em Cuca; o dragão muda sua representação para um Jacaré, pois para os moradores das terras sul americanas, existem poucas representações de animais reptilianos de grande porte.

REFERÊNCIAS

BULFINCH, Thomas. O livro da mitologia: a idade da fábula. São Paulo: Martins Claret, 2013.

CORDEIRO, A. X. R. & LEAL, J. S. M. Almanach de lembranc̜as Luso-Brazileiro para o anno de 1867. 38. º anno da collecção. Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pereira, 1887.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia e religião. Obras completas de CG Jung, v. 11, 1971.

JUNG, Carl G. et al. O homem e seus símbolos. 1964.

JUNG, Carl Gustav. Símbolos da transformação vol. 5. 1952.

MILANEZ, Nilton. A Cuca vai pegar! Medidas do corpo no caldeirão discursivo do medo. Acta Scientiarum. Language and Culture, v. 33, n. 2, p. 251-258, 2011.

Compartilhe este conteúdo:

Luís Paulo Lopes: “É preciso passar pelo aflitivo fogo da transformação que queima nossas ilusões infantis”

Compartilhe este conteúdo:

“O homem contemporâneo é como uma criança vislumbrada em um parque de diversões, correndo extasiada para brincar nas atrações; e, neste frenesi, acaba ficando perdida e logo chora em desespero sem saber para onde ir”, diz terapeuta junguiano

Falar de Psicologia Analítica geralmente é um fascínio, pois é uma abordagem que nos remete ao estudo dos símbolos, mitologias, arquétipos e da própria psique humana, temas esses que ao longo da humanidade sempre estiveram em alta e que trazem consigo uma forma de entendimento através dos seus significados e a importância dos mesmos para nossa vida.

Nessa entrevista o psicólogo, professor e terapeuta junguiano Luis Paulo Lopes destaca algumas perspectiva da abordagem, bem como suas percepções acerca do cenário atual e o contexto histórico de construção da Psicologia Analítica no Mundo e no Brasil. Também comenta de forma clara sobre vários mal entendidos e pré-conceitos acerca da abordagem e do seu fundador, Carl Gustav Jung, bem como sobre a sua ruptura com Sigmund Freud, pai da psicanálise.

(En)Cena – Por que você trilhou esse percurso? O que foi que te interessou nessa área?

Luís Paulo Lopes – Cheguei em Jung quando era ainda bastante jovem. Após o segundo grau, entrei para a faculdade de biologia, quando tive uma crise psicológica muito intensa e desagregadora que eu não saberia nomear através da psiquiatria, e nem acho que seria o caso. Nessa ocasião, fiquei muito invadido por conteúdos do inconsciente que me tiraram completamente a liberdade; o que me levou a uma reclusão de praticamente um ano em casa, e em meio à muitas questões; certamente aquelas grandes questões da humanidade. Este momento, talvez tenha sido o mais difícil da minha vida até hoje; era um desafio tremendo sair de casa e me relacionar com outras pessoas. Eu vivia aprisionado num mundo de imagens difíceis; era como se eu tivesse sido dilacerado, como Osíris, quando Seth o desmembra e espalha seu corpo pelo Egito. No mito, Isis é quem faz o trabalho de reunir, aos poucos, os pedaços do corpo de Osíris para poder reconstituí-lo. Foi mais ou menos isso que aconteceu comigo nesta época, e aí começa então, uma busca que definiria meus caminhos.

Inicialmente, era uma busca para sair daquela condição aterradora, como se um forte instinto de sobrevivência tivesse despertado em mim e me dizia para encontrar um caminho; do contrário eu ficaria para sempre preso naquela condição. Vida ou morte, esta era a minha sensação. Comecei a me interessar pela psicologia transpessoal, e encontrei um autor muito interessante chamado Stanislav Grof. Naquela época, eu devia ter uns 18 ou 19 anos. Grof mencionava Jung, e fiquei interessado em conhecer o que o sábio de Zurique dizia. Comecei a ler alguma coisa de Jung; no início comprei o “fundamentos de psicologia analítica”, que hoje integra “a vida simbólica vol.1”; são os 5 primeiros capítulos (as conferências de Tavistock). Eu não conseguia entender nada do que estava escrito ali, mesmo sendo um texto onde Jung tem uma linguagem um pouco mais acessível. Eu lia e não conseguia entender, mas fiquei com uma “pulga atrás da orelha” e então comecei a ler livros de comentadores, introdutórios, como “introdução à psicologia junguiana” e coisas do tipo. Assim, fui começando a entender um pouquinho melhor aquela teoria difícil, estranha e fascinante. Após estes estudos introdutórios, consegui começar a ler alguma coisa de Jung nas “Obras Completas”; embora meu entendimento não fosse muito bom, continuava estudando mesmo sem conseguir compreender totalmente. Minha sensação era a de que havia encontrado um grande tesouro, e foi isso que me manteve insistente apesar das dificuldades que tive inicialmente para compreender a teoria junguiana.

Com o tempo, fui me apropriando deste olhar e conseguindo compreender melhor; até que chegou um momento da minha trajetória em que precisei fazer uma escolha. Até então, cursava a faculdade de biologia e estudava psicologia por conta própria; e finalmente decidi começar a cursar psicologia. Durante um tempo, fiz os dois cursos ao mesmo tempo; cursava biologia a noite e psicologia de dia; e foi um ano dessa forma, até me formar em biologia e, alguns anos depois, em psicologia.

Quando me formei em biologia, comecei uma pós-graduação em psicologia junguiana, e cursei junto com a graduação em psicologia. Cerca de um ano após concluir a pós-graduação, fui chamado para ser professor no mesmo curso, que era na Universidade Veiga de Almeida, na época. Como professor, as coisas começaram a ficar mais sérias e precisei estudar ainda mais para poder ensinar, e, com certeza me ajudou a aprofundar muito mais na teoria junguiana. Ainda nesta época, tive algumas experiências muito significativas que, no entanto, mantinha em total sigilo em relação às pessoas que estavam a minha volta. Estas experiências me exigiam elaborar algumas questões muito fundamentais, como por exemplo “o que é a realidade?” ou “o que é a consciência?”. Minhas elaborações sobre essas questões eram bastante incomuns e cheias de paradoxos; o que me levantou a suspeita de que talvez estivesse enlouquecendo, pois não encontrava nada parecido com as minhas conclusões em lugar nenhum. Entretanto, tive um grande alívio quando, por acaso, descobri o advaita vedanta, ou vedanta não-dual, de Shankaracharya. Encontrei aí, com muita surpresa, elaborações sobre a realidade muito semelhantes as minhas próprias e pude respirar tranquilo; pois alguma outra pessoa já havia visto as coisas que eu também estava vendo. Esse momento marcou o início do meu interesse pelas tradições espirituais e a mitologia; que são muito importantes para mim até hoje.

Voltando a Jung… seu pensamento me chamava atenção pela grande profundidade. A sensação que eu tinha era de que Jung possuía uma vivência muito profunda e autêntica naquilo que ele ensinava. Ele não olhava o fenômeno a partir de fora, mas falava de dentro. Possuía uma vivência do inconsciente; o que ficou claro posteriormente com a publicação do “Livro Vermelho” e, agora dos “Livros Negros”, que trazem registros das vivências mais íntimas de Jung neste vasto e misterioso campo chamado inconsciente.

Fonte: Arquivo Pessoal

(En) Cena – Luis, você falou uma coisa, que foi um diferencial do Jung em relação a psicanálise, ele não nega a análise redutiva do Freud principalmente no que se refere às neuroses, mas aí ele aposta também na perspectiva teleológica, que é para onde aponta esses sintomas. Nesse momento que ele fez a ruptura com Freud parece que ele inaugurou uma psicologia bastante moderna, ele dizia que para ser analista tem que ser analisando também, o analista tem que se submeter ao seu próprio processo de análise também, por um colega. Você acha que a psicologia se perdeu muito nesse processo? Isso é mais uma regra da psicologia analítica, da psicanálise por exemplo? Porque ele (Jung) diz que você não pode pedir para o seu cliente/paciente ir além do que você mesmo foi. Como você vê isso? E foi ele que inaugurou isso, o Jung?

Luís Paulo Lopes – Eu gosto do termo terapeuta, prefiro até do que analista. Me vejo como um terapeuta que pode estar como analista se a situação assim exigir. Jung coloca como sendo uma questão ética de grande importância que o terapeuta viva a própria vida com seriedade. Estou me referindo à vida com V maiúsculo; com a participação do inconsciente. Portanto, não me refiro à vida estéril de sentido como nos é ensinada pelo espírito desta época; onde temos como único objetivo tornamo-nos boas engrenagens de uma máquina cega. Me refiro à Vida que realiza o seu próprio sentido, isto é, que realiza quem realmente somos; e que para tal, exige que passemos pelo aflitivo fogo da transformação que queima nossas ilusões infantis e, também, pelo terrível desamparo que faz nascer um sentido a partir de nosso centro interior; nos forjando, gradualmente e na medida do nosso ato, em um individuum. Penso que é justamente isso que Jung quer dizer quando afirma que “ser normal é a meta dos fracassados”; isto é, a individuação me parece uma condição indispensável para que se realize com qualidade o ofício de terapeuta. É a questão do curador ferido. Aquilo que realmente somos está profundamente mergulhado no inconsciente e como que anseia ardentemente ser realizado conscientemente. Perceba que me refiro a um inconsciente bastante distinto daquele preconizado por Freud, ou o inconsciente do recalque; mas a um inconsciente criativo, como algo vivo, que intenta a construção de um caminho no sentido de sua própria realização e que, para isso, precisa da colaboração do ego. Esta é uma gigantesca diferença entre Freud e Jung. Note que não se trata mais de curar um problema específico, tal qual o pensamento médico tradicional preconiza e que está presente também em Freud (embora a psicanálise o tenha superado atualmente). A cura, em nosso caso, é como que um processo vivo, com um curso que lhe é próprio, que nasce a partir do inconsciente e é catalisada, por assim dizer, pela relação com o terapeuta e o trabalho clínico. Não se trata, absolutamente, de acessar conteúdos sexuais reprimidos, embora possa também envolver isso.

Se analisarmos os famosos casos clínicos discutidos por Freud, veremos se tratar de neuroses que foram supostamente curadas a partir da técnica psicanalítica. Havia a ideia de um procedimento quase médico – a psicanálise –, que prometia a cura das enfermidades psíquicas através de seu método quase infalível. Não deixo de notar o caráter de propaganda que está implícito nas discussões dos casos clínicos de Freud; o que pode ser perfeitamente compreendido se considerarmos o contexto histórico em que Freud se esforçava para mostrar o valor científico da psicanálise. O método freudiano, era focado na anamnese e, na redução das fantasias transferenciais a suas causas biográficas, comumente associadas ao complexo de Édipo. Entretanto, o inconsciente vivo ou criativo formulado por Jung muda a forma como se entendia o processo analítico; pois, não se trata mais de voltar ao passado para encontrar a origem do problema no conteúdo recalcado (análise redutiva), mas, além disso, em nos indagarmos sobre a finalidade do processo inconsciente; isto é, a análise deixa de apontar unicamente para o passado e passa a apontar para o futuro; quer dizer, para a construção de um caminho em colaboração com o inconsciente, no sentido da realização da finalidade deste último em colaboração com o ego. É isso o que Jung chamava de cura da cisão neurótica da personalidade.

O foco não é mais eliminar um problema, mas (em muitos casos) atravessar estados psíquicos difíceis e, assim, produzir uma renovação da personalidade. Jung traz várias definições sobre a neurose, a partir de vários ângulos distintos, por isso, não há como definir de uma forma simples a neurose na perspectiva junguiana. Apesar disso, Jung nos permite pensar a neurose como uma espécie de doença sagrada; nesse sentido, uma experiência iniciática criada pelo inconsciente com a finalidade de produzir uma passagem; isto é, que aponta para um fim específico. Essa é uma diferença importante entre Jung e Freud; o inconsciente junguiano, por assim dizer, abarca o inconsciente do recalque freudiano e vai além, pois é também um inconsciente criativo que aponta para uma finalidade e busca produzir uma totalidade, quer dizer, uma nova atitude que una a consciência e o inconsciente.

Jung traz inovações que são absolutamente relevantes e tornam a psicologia junguiana bastante distinta em relação à psicanálise freudiana. Em grande medida isso ocorreu pelo fato de Jung ter tido uma grande influência do romantismo alemão, por suas experiências do inconsciente (como as descritas no livro vermelho), e por ter bebido das tradições espirituais do mundo inteiro e, especialmente do esoterismo ocidental. Jung conhecia mitologia, conhecia os textos sagrados e esotéricos das principais religiões do mundo. Existe uma busca milenar muito mais antiga do que a psicologia contemporânea por isso que os antigos sintetizavam no símbolo da ressurreição, da salvação, da iluminação, do ouro filosófico dos alquimistas ou outros símbolos análogos. A mentalidade contemporânea, impregnada de racionalismo e materialismo, entende esses símbolos de forma extremamente concreta e poderíamos até dizer, ingênua. Jung permite um novo olhar, simbólico, sobre toda essa literatura; e assim, podemos extrair uma espécie de tintura extremamente valiosa para o campo psicológico. Há elaborações riquíssimas em outras tradições que são absolutamente úteis para a psicologia contemporânea. Penso que nossos esforços devem considerar tudo isso que já foi produzido no campo do espírito e não vejo sentido em querer inventar novamente a roda. Toda árvore precisa ter as raízes saudáveis e Jung tinha excelentes referências em sua biblioteca particular. A psicologia junguiana está afinada com esse material muito mais antigo e podemos ver essas fontes citadas pelo próprio Jung ao longo de sua obra; principalmente em seus escritos sobre a alquimia, que mostram um Jung mais maduro e com um conhecimento enciclopédico sobre essas tradições. Apesar de considerar Jung como fazendo parte de uma tradição mais antiga, acho que seu grande trunfo foi ter desenvolvido uma ciência psicológica moderna e com bases epistemológicas extremamente sólidas. Ele traz uma bagagem importante de milênios de experiências acumuladas; apesar disso, não aborda nenhuma dessas tradições a partir de uma perspectiva metafísica, mas, aplicando com rigor uma perspectiva simbólica, observa todo esse material como imagens psíquicas; isto é, como um fenômeno estritamente psicológico.

Fonte: Arquivo Pessoal

(En) Cena – Você concorda que a resistência que o Jung obteve, parece que agora vem diminuindo, de certa forma? Há a ampliação de espaços de diálogo com a psicologia analítica, principalmente na academia, nas universidades, talvez de forma tardia em relação a psicanálise freudiana… Você acredita que o Jung ainda hoje é incompreendido? Pois em artigos científicos é muito comum ver as pessoas se referindo à psicologia analítica como uma espécie de misticismo, elas aparentam não entender o sentido mais profundo inclusive do que seria o Místico e de que forma isso pode ser analisado pelo prisma psicológico.

Luís Paulo Lopes – Com certeza. Jung é não somente mal compreendido, mas, também utilizado para justificar formas de pensar que são absolutamente distintas da dele. Podemos ver isso com clareza na apropriação da teoria junguiana pelo movimento new age; o que somente acentua o preconceito em relação à psicologia junguiana e dificulta sua inserção nas universidades. Sou supervisor clínico em uma universidade e quando inicio uma turma nova, costumo perguntar: “o que vocês pensam sobre Jung?”. Já escutei algumas lendas, no mal sentido do termo, como uma ideia de que Jung aborda coisas mágicas ou metafísicas. Uma ideia de que a psicologia junguiana não é tanto psicologia assim e, por isso, não deveria ser tomada com seriedade. Esse mal entendido normalmente é desfeito com facilidade depois da primeira aula. Quando os alunos conhecem um pouco da teoria junguiana, costumam se interessar bastante e, não tenho dúvidas, começam a levar a sério como qualquer outra abordagem psicológica. Acho que isso em parte se dá por uma campanha difamatória que se iniciou no passado e, até hoje, ainda se estende. Quando houve a ruptura da sociedade psicanalítica de Zurique (Jung) com a de Viena (Freud), iniciou-se uma verdadeira guerra difamatória abastecida por calúnias. Jung não foi o único que sofreu por isso; poderíamos trazer outros autores que foram alvos de campanhas difamatórias como Ferenczi, Adler, Reich e vários outros. Inclusive há um livro do Shamdasani, “Os arquivos Freud”, onde o autor faz uma maravilhosa pesquisa historiográfica utilizando principalmente cartas escritas pelos psicanalistas do Círculo de Viena e de Zurique da época; e você percebe este falatório. Predominavam os argumentos a partir de falácias, “ad hominen”.; tentava-se desacreditar o homem, a pessoa, a personalidade, para descreditar toda sua obra. Freud tinha a pretensão de que sua psicanálise fosse considerada como única possibilidade de psicologia profunda e sentia-se profundamente incomodado com as dissidências de seus antigos colaboradores.

Entretanto, parte da fama de Jung como místico provinha do próprio Jung; precisamos reconhecer isso. Depois da publicação do “Livro Vermelho” tivemos acesso a uma série de experiências místicas do próprio Jung e pudemos perceber o quanto essas experiências foram cruciais para a criação de sua psicologia. Agora, com o lançamento dos “Livros Negros”, este debate certamente será novamente aquecido no campo junguiano. Hoje, está muito claro que o interesse de Jung pelo esoterismo e por místicos de várias épocas e tradições não era somente uma curiosidade intelectual, visto que ele mesmo viveu uma série de experiências extraordinárias que poderíamos muito bem denominar como experiências místicas. Entretanto, este é um fato absolutamente rodeado por preconceitos, mesmo dentro do campo junguiano. Alguns chegam a chamar as experiências de Jung de psicóticas, o que é uma flagrante falta de compreensão sobre a natureza da experiência mística; muito embora, ambas sejam experiências do inconsciente coletivo, por assim dizer. A questão, portanto, não é negar as experiências místicas de Jung, mas de considerar a experiência mística a partir da perspectiva psicológica do próprio Jung. Ele nos permite considerar estas experiências a partir de uma perspectiva que não é nem psicopatológica, nem metafísica. Jung considerou com seriedade estas experiências e, inclusive, reconheceu a importância delas para o campo da saúde mental. Quando passou a utilizar o método da imaginação ativa, na prática, introduziu a experiência mística no setting analítico a partir de uma perspectiva absolutamente psicológica. Os antigos gregos utilizavam a palavra “gnose” para designar um tipo de conhecimento que, poder-se-ia dizer, provém diretamente do inconsciente coletivo e que teria um efeito absolutamente transformador. A “gnose” se refere a um conhecimento que não cabe nas palavras e que, embora seja anterior à própria imagem, só pode ser exprimido e ampliado através das imagens. Penso que deveríamos levar isso muito mais a sério, pois o próprio campo junguiano contemporâneo passou a ver com preconceito este aspecto do pensamento de Jung, por pura ignorância. E, na tentativa de proteger Jung das acusações de místico, passou a minimizar a importância da experiência mística na vida e na obra de Jung; jogando, quase que literalmente, a criança fora junto com a água do banho.

Fonte: encurtador.com.br/adlG6

(En) Cena – Já havia, naquela época, uma política de cancelamento, sim?

Luís Paulo Lopes – Havia sim. Freud tinha pretensão de criar uma psicologia que oferecesse uma resposta única para o problema da psique. Hoje sabemos o quanto essa pretensão era fantasiosa. A pluralidade do campo psicológico contemporâneo está aí para provar. Freud, por exemplo, considerava a libido como tendo uma qualidade fundamentalmente sexual, e não estava disposto a aceitar qualquer outra possibilidade de olhar que dissesse o contrário. Este tipo de posição de Freud fez com que Jung, várias vezes, o acusasse de dogmatismo. A questão da libido é um bom exemplo de um ponto de divergência radical entre Freud e Jung que acabaria colaborando decisivamente para a ruptura entre ambos. Jung afirmava, por exemplo, que o instinto de nutrição era anterior ao instinto sexual e, além disso, que outros instintos eram igualmente importantes, inclusive o que chamou de instinto religioso. Jung traz o inconsciente coletivo com sua multiplicidade de formas arquetípicas como sendo o fundamento psíquico mais radical e a libido como energia pura e simples em seu movimento de progressão, represamento e regressão; impulsionando a transformação das imagens em um processo que parte de uma causa e busca uma finalidade específica. Para Freud, isso era uma ameaça sem precedentes, pois questionaria toda a sua psicanálise. Imagine este fato em um contexto onde a psicanálise sofria constantes ataques e tentativas de desqualificação; e, ainda lutava para se estabelecer como um campo que gozasse de algum prestígio social.

(En)Cena – E como fica a Psicologia analítica, neste ínterim? E no Brasil, qual o perfil acadêmico dos adeptos da teoria?

Luís Paulo Lopes: Podemos pensar na chegada da psicologia junguiana aqui no Brasil com a Dra. Nise da Silveira. Ela organizou grupos de estudos em sua casa que atraíram muitas pessoas interessadas em estudar Jung; e isso, muito antes da tradução das obras completas de Jung para o português. Meus principais professores de psicologia junguiana estudaram com a Dra. Nise, que foi a grande ponte para a chegada da psicologia junguiana no Brasil. Graças a ela e à importância do trabalho que ela desenvolveu com a psicose no antigo Hospício do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, a obra junguiana passou a ser estudada com seriedade no Brasil. Não fosse isso, talvez não estaríamos tendo esta conversa aqui hoje.

A psicologia junguiana teve uma difusão lenta no Brasil. Os junguianos sempre foram pouco numerosos e somente alguns se dedicaram a seguir uma carreira acadêmica. Hoje em dia, não é fácil pensar no mestrado em psicologia junguiana, principalmente a depender do estado em que resida; pois, são poucos os professores que orientam pesquisas neste campo. Mas, esse cenário vem mudando muito rapidamente. Cada vez mais, há professores junguianos nas universidades. Os cursos de pós-graduação em psicologia junguiana se alastram por todo o país, assim como muitos institutos junguianos que não têm ligação com alguma universidade. Percebo que a possibilidade do virtual e das plataformas online, herança da pandemia do coronavírus, tem permitido uma expansão ainda maior do campo junguiano. Muitos eventos importantes como palestras, grupos de estudos, aulas pelo youtube, lives, seminários e congressos têm acontecido através destes novos recursos. Hoje, é muito fácil para o estudante encontrar algum grupo ou curso para iniciar os estudos na teoria junguiana; basta procurar pelo facebook. Entretanto, advirto para que procurem analistas ou professores sérios, pois não é incomum encontrarmos coisas pela internet que não são de qualidade. Veremos como isso vai caminhar. Mas, tudo aponta para um grande crescimento do pensamento junguiano no campo da psicologia brasileira. Há um programa de pós-graduação em psicologia junguiana na PUC-SP, por exemplo. Creio que isso é algo muito significativo sobre a penetração da teoria junguiana nas universidades brasileiras.

(En)Cena –  Tem um pela Universidade Federal do Paraná, tem também pela Universidade Federal do ABC Paulista, há também algo na UNIP, mas são poucos em relação a quantidade de programas de Mestrado, porque Doutorado é mais difícil ainda… pois bem, Luís, mudando um pouco de assunto, aparentemente há uma disputa muito grande dentro do próprio Brasil entre as diferentes formas de fazer a leitura do Jung. Qual sua opinião sobre isso?

Luís Paulo Lopes – Acho que as diferentes abordagens são inevitáveis, pois, em psicologia, o objeto de estudo é também o sujeito do mesmo estudo. Temos essa interessante peculiaridade em relação às demais ciências, o que torna a psicologia algo extremamente plural e complexo. É possível olhar para a alma a partir de diferentes perspectivas e, apesar da possibilidade da objetividade, o componente subjetivo, ou equação pessoal (como chamou Jung), tem grande importância na elaboração da teoria. Por isso, ao falar sobre psicologia, precisamos falar sempre no plural – psicologias. O psicólogo, devido a essa pluralidade, costuma estar à vontade para lidar com diferentes epistemologias; com diferentes pontos de vista. Podemos considerar que embora todas as abordagens psicológicas tenham uma validade relativa, nenhuma jamais terá validade absoluta. No campo junguiano não é diferente. Jung fez um trabalho definitivamente monumental; o que permitiu diferentes linhas de desenvolvimento teórico a partir deste ponto inicial. Podemos considerar três principais correntes de pensamento dentro do campo junguiano: a psicologia junguiana clássica (principalmente os autores que estiveram mais próximos de Jung), a psicologia junguiana desenvolvimentista (que produziu mais diálogos com a psicanálise) e a psicologia arquetípica (de James Hillman). Há, atualmente, um grande autor chamado Wolfgang Giegerich, que traz uma abordagem distinta em relação às outras três e parece ter força para criar uma quarta corrente de pensamento no campo junguiano; veremos. Essa pluralidade dentro de um mesmo campo não é sem tensões, como seria de se esperar. De qualquer forma, as disputas e alfinetadas mútuas entre os diferentes autores são sinal de saúde; pois, significa que a psicologia junguiana está bastante viva e pulsante, produzindo novos conceitos e ideias. Isso quer dizer que a psicologia junguiana não se enrijeceu em um dogmatismo e, é exatamente isso que garante que nosso campo prospere e avance para o futuro.

É importante avançar, pois estamos no século XXI e não mais na primeira metade do século XX. Quais são os problemas da nossa época? O quanto nós, hoje, conseguimos enxergar e que o próprio Jung não podia, devido ao limite imposto por sua época? Por exemplo, hoje, temos um pensamento feminista dentro da psicologia junguiana que não seria possível na época de Jung. Essa corrente traz algumas críticas importantes em relação ao machismo do próprio Jung. As críticas internas são sempre mais poderosas do que as críticas que vem de fora e, pelo mesmo motivo, são potencialmente mais transformadoras. As críticas de psicanalistas em relação a Jung, por exemplo, costumam ser risíveis; sem fundamento e baseadas em lendas criadas pelas campanhas difamatórias do passado. Coisas do tipo que não se deve nem perder tempo para responder. Mas, as críticas internas são diferentes, pois vem de quem realmente conhece a teoria junguiana. São estes autores que podem fazer críticas bem fundamentadas e, pelo mesmo motivo, criar desdobramentos teóricos.

Fonte: encurtador.com.br/xCIN3

(En)Cena – Em termos de produção de literatura junguiana no Brasil, como você considera que está no momento?

Luís Paulo Lopes – Acho muito importante que haja uma produção robusta de literatura junguiana nacional; e, principalmente que considere as especificidades da psique brasileira. Todo povo tem uma história que influencia radicalmente a psicologia do indivíduo. Quais são os fantasmas que habitam esta terra chamada Brasil e que ainda hoje nos assombram a todos de uma maneira ou de outra? Vivemos, por exemplo, numa terra que, há não muito tempo, foi palco de uma brutal de escravidão. A tortura pública e a brutalidade eram banais nestas terras há não muito tempo atrás e permanecem bastante vivas nas periferias e presídios, por exemplo. Seria mais fácil se esquecer de tudo isso e continuar como se nada estivesse acontecendo; não à toa dizem que o brasileiro tem pouca memória. Entretanto, o inconsciente se recusa a esquecer aquilo que a consciência preferiria fingir que nunca existiu. Quais são os nossos traumas culturais? E como eles nos influenciam ainda hoje? Tenho visto um esforço significativo entre alguns junguianos brasileiros no sentido de produzir pesquisa e literatura exatamente nesta área tão importante. Destaco Walter Boechat e Roberto Gambini. É bastante animador perceber este movimento na psicologia junguiana nacional. As editoras Vozes e Paulus são grandes colaboradoras na difusão do pensamento junguiano, nacional ou internacional; e temos revistas de psicologia junguiana ligadas a SBPA (Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica) e a AJB (Associação Junguiana do Brasil). Mas, apesar disso, em termos gerais, penso que ainda escrevemos pouco no Brasil e, ainda estamos longe de poder ostentar uma produção de literatura junguiana significativa e capaz de dialogar com os principais autores internacionais.

(En)Cena – Em relação à Anima Mundi, como é que você vê esse resgate da alma do mundo?

Luís Paulo Lopes – O conceito junguiano denominado como processo de individuação me parece um caminho para pensar esta questão, muito embora seja um conceito que levante certas polêmicas e divergências no pensamento pós-junguiano. Particularmente, considero que para uma correta compreensão sobre o que Jung chamou de processo de individuação é preciso mergulhar no pensamento dos antigos alquimistas; e nesta área, somente a experiência em seu próprio e privado laboratório e a gnose que daí pode nascer, poderia trazer alguma elucidação. Por exemplo, considero o conceito de “cultivo da alma”, em Hillman, como algo absolutamente distinto em relação ao que Jung chamava de processo de individuação. Tenho pensado, embora ainda não tenha chegado a uma conclusão definitiva, se não poderíamos considerar “o cultivo da alma” hillmaniano e a individuação junguiana como formas distintas de subjetivação, válidas para diferentes tipos de pessoas. Isso teria importantes desdobramentos clínicos.

O mito da queda de Sophia trazido pelos antigos gnósticos nos ajuda a pensar essa questão. Sophia teria gerado filhos sem o consentimento do Pai e sem a participação de seu consorte, o Cristo. Sophia e Cristo como uma sizígia, refere-se ao tema largamente desenvolvido pelos alquimistas da união entre a Alma e o Espírito. A Alma, portanto, originalmente estaria indissociavelmente unida ao Espírito, porém, quando decidiu gerar filhos sem a participação deste último, deu à luz aos Arcontes, seres ignorantes em relação aos desígnios do Pai. Os Arcontes, por sua vez, são comumente representados pelos sete planetas que estão associados aos metais que o alquimista deveria transmutar para a produção do ouro. O mito narra como Sophia foi aprisionada na matéria e como é violentada e oprimida pelos Arcontes que a impedem de retornar à sua morada eterna; até que não podendo mais encontrar consolo nas ilusões da matéria, em estado de profunda privação, Sophia se arrepende de seu erro e implora por seu consorte e salvador, o Cristo. Somente após esta união da Alma com o Espírito, Sophia é gradualmente liberta da submissão em relação aos Arcontes e se aproxima de seu verdadeiro fundamento. Esta é a Sophia discutida por Jung como sendo o quarto grau de desdobramento da anima e associada ao Eterno Feminino ou à Sabedoria Divina. Embora as imagens sejam muito mais enigmáticas do que os conceitos, penso que exprimem muito melhor uma ideia universal.

(En)Cena – Isso é o próprio processo de individuação?

Luís Paulo Lopes – Certamente. O processo de individuação não tem nenhuma relação com o que o senso comum chama de “auto realização”. Pelo contrário, o que se entende hoje como “auto realização” seria equivalente a estar totalmente perdido e definido pelo espírito da época; por isso, está longe de ser uma solução, mas, na verdade é um sintoma do problema que desafia a humanidade, a ignorância. O processo de individuação, ao contrário, fala sobre a transformação do homem no sentido de seu próprio centro e que só pode ser realizada a partir do indivíduo. Me lembro de uma passagem em que Jung diz que o maior trabalho político, social e espiritual que podemos fazer é integrar a nossa própria sombra e, assim, parar de projetá-la nos outros. Tendo a concordar com esse ponto de vista. Nossa cultura dominou a técnica como nunca na história da humanidade, entretanto, espiritualmente somos como crianças birrentas disputando pelos melhores brinquedos. Veja o perigo desta situação se considerarmos a existência da bomba atômica.

É preciso mergulhar profundamente no passado para que as raízes de nossa cosmovisão se estabeleçam na terra fértil dos grandes espíritos da humanidade. Nos tempos atuais, é preciso ter muito cuidado com a novidade, que tenta vislumbrar o homem a se perder na superficialidade; tornando-o ainda mais escravo da ignorância. Assim como a flor arrancada logo perece por ser privada de suas raízes, também o homem contemporâneo adoece quando é desligado de seu passado e privado da sabedoria dos antigos sábios. Precisamos de uma nova pedagogia, não somente para as crianças, mas sobretudo aos adultos. Uma pedagogia enraizada na tintura dos grandes espíritos que passaram por este mundo; para que a tão importante novidade de que tanto necessitamos hoje seja um novo ramo nesta antiga árvore da sabedoria. Mas, a pretensão pueril do homem moderno olha para o passado com desdém, afirmando se tratar de um tempo obscuro de superstição e ignorância; e assim, vangloria-se com suas próprias invenções como se fossem tremendamente superiores. Entretanto, a maioria não passa de vãs distrações que fazem com que o homem se perca cada vez mais no lodo escuro da ignorância; e assim, segue destruindo o mundo. O homem contemporâneo é como uma criança vislumbrada em um parque de diversões, correndo extasiada para brincar nas atrações; e, neste frenesi, acaba ficando perdida e logo chora em desespero sem saber para onde ir (normalmente a problemática da segunda metade da vida). Se a cosmovisão não tiver longas raízes que penetrem profundamente no passado, na terra dos grandes espíritos da humanidade, ficará restrita à superfície desta época. O homem permanecerá como uma criança mimada, a doença mental crescerá como erva daninha e o mundo continuará a ser destruído. Esta é a minha definição para a miséria espiritual da nossa época.

(En)Cena – Aos 63 a 64 anos, Jung falava continuamente que o que diferencia muito ele – inclusive de Freud  – é que ele era um homem ambivalente, imperfeito. Como você enxerga isso?

Luís Paulo Lopes – Ele e todos nós; sem dúvida nenhuma. Jung deixa claro que a individuação não é um caminho para a perfeição, mas para uma maior integridade. Integridade implica ter consciência da própria escuridão, das próprias imperfeições; e conviver com elas de forma consciente. Entretanto, ao tentarmos ser perfeitos, fechamos os olhos para tudo aquilo que não se encaixa na perfeição que imaginamos e, por isso, nos alienamos de nós mesmos; precisamente, a definição de neurose para Jung. Mas, convenhamos, admitir nosso lado sombrio é algo tremendamente difícil e nós joga em conflitos penosos e no desamparo arquetípico. Entretanto, este mesmo desamparo pode ser muito bem o início de um processo (penoso, é verdade) de nascimento de um individuum; isto é, fala sobre a possibilidade da cura de cisão neurótica da personalidade. Esta cisão neurótica faz com que a mão direita haja sem saber como a mão esquerda está agindo, como Jung certa vez afirmou; entretanto, mesmo com a superação da cisão neurótica, o homem continua tendo uma mão direita e outra esquerda, muito embora, agora elas possam estabelecer uma relação. Esta é a nossa ambiguidade fundamental e insuperável. Há uma boa passagem bíblica atribuída a Jesus que serve bem como imagem simbólica para essa verdade psicológica: “Eu não vim para chamar justos, mas pecadores” (Marcos 2:17). Quem conhece as discussões de Jung sobre a relação simbólica entre Cristo, o conceito de Self e o processo de individuação, compreende essa analogia sem nenhuma dificuldade.

Fonte: encurtador.com.br/frvAI

(En)Cena – Pode ser que alguns terapeutas junguianos tenham um sistema pré-moldado, pré-definido, um sistema cognitivo, do ponto de vista da compreensão dele do mundo, e ele não consegue fazer essa separação, fora do espectro da autoridade, e as vezes ele passa a impressão de que o processo de individuação se aproxima daquele “Ideal Asceta” que o Nietzsche criticava dentro do Cristianismo. Você enxerga dessa forma? Como é que se pode desmistificar isso, ou como o paciente pode perceber isso?

Luís Paulo Lopes – Quanto mais o homem se aproximar de um ideal, mais distante estará de si mesmo. Por isso, os ideais de perfeição necessariamente produzirão uma sombra de igual intensidade que tenta compensar o ideal sobre o qual a consciência está identificada. Veja o exemplo do nazismo na Alemanha; o ideal de perfeição, beleza e pureza ariana carregava de forma subterrânea o horror, a feiura e a sujeira da sombra alemã. Enquanto o povo alemão estava possuído por este ideal de pureza, era incapaz de perceber que ele mesmo era o monstro repugnante que tentava derrotar, e  assim, o perseguia projetado em seus inimigos. Vivemos algo muito semelhante hoje em dia no Brasil com o ideal do cidadão de bem, por exemplo. Veja o quanto é sedutor um ideal como esse; pois afirma que aquele que se identifica com ele é uma pessoa perfeita, como se estivesse salva do diabo que habita a sua própria casa. Qualquer ideal deste tipo, não importa se é político, religioso, ou de qualquer outra natureza, produz este mesmo efeito. A integração da sombra, para Jung, significa tornar-se humano, ou seja, um pecador. Veja como poderia ter sido salutar se o povo alemão tivesse tomado consciência do pecado que carregava, mas que era incapaz de reconhecer. Nesse sentido, a individuação não significa “subir no pódio” como o espírito desta época gastaria de pensar, mas ao contrário, é “cair do cavalo”. É levar um tombo do alto de sua inflação. A identificação com esta persona heroica ou santa é desfeita e o ego precisa confrontar a natureza sombria da alma. É necessário manter a tensão entre os opostos para que a integração aconteça; nesse sentido é exigida coragem para encarar a verdade de que somos todos pecadores.

(En)Cena – Por fim, gostaria que você falasse um pouco sobre o “necessário manter a tensão” para, a partir disso, integrar…

Luís Paulo Lopes – Manter a tensão, suportar a tensão… Jung discute o conceito de função transcendente, como uma função que unifica a consciência e o inconsciente, os opostos, em um terceiro termo, uma nova atitude. Quando o ego finalmente encara os aspectos sombrios da alma, um conflito irrompe. O conflito tende a ser uma experiência aflitiva e, por isso, a tendência natural é que o oposto inconsciente que está incomodando as pretensões unilaterais da consciência, seja reprimido novamente; e assim, o conflito cessa sem qualquer resolução. Não quero dizer com isso que os conflitos devam ser solucionados, pois como Jung nos ensina, os grandes conflitos humanos são contradições insolúveis. Tentar encontrar uma solução para eles é impossível, pois a consciência é naturalmente unilateral e, portanto, incapaz de considerar uma solução que inclua ambos os opostos. Tudo o que a consciência pode fazer é suprimir o conflito. Este é o motivo pelo qual é preciso sustentar ou suportar o conflito; pois se não podemos solucioná-lo, só nos resta suportá-lo para que não nos alienemos de nosso lado sombrio. Se o conflito for sustentado tempo suficiente, da tensão entre os opostos surge um terceiro elemento que unifica os opostos, a função transcendente. Há uma ampliação da consciência devido a integração do inconsciente e, a partir desta nova perspectiva da consciência, agora ampliada, o antigo conflito perde a importância; e mesmo que não tenha sido definitivamente solucionado, realizou o seu propósito.

Compartilhe este conteúdo: