Sol da tarde

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A luz do sol invade o vidro da porta, enquanto o reflexo forma outra porta menos nítida no chão, sob o qual a garota despeja o rosto. Por que o sol da tarde é tão brilhante?

Ela rasteja morosamente e olha para o teto somente para se dar conta do que jamais admitira:

“Nada é certo nessa casa…”

O forro de madeira se curva para o centro de cada cômodo em alturas desiguais. A frequência da cerca elétrica parece a de um relógio. O relógio de parede, muito bonito, nunca funcionou. Nem lhe botaram pilhas.

A garota revira seu olhar de tédio e raiva por tanta imperfeição.
E dá de cara o rodapé manchado de tinta. E a tinta da parede manchada pelas batidas dos três modelos de cadeiras que jazem na mesa. De plástico.

Seu celular certamente a livraria desses pensamentos improdutivos. A tela acende. Seis minutos. Somente seis minutos se passaram, o sol da tarde deve ter derretido o tempo. E esse foi o maior tempo que a garota já teve pra pensar sobre si.

Oprimida pelo ar quente, ela respira fundo enquanto é tomada por um vigor incontrolável. Ela levanta do chão, bate suas roupas.

Está na hora de uma limpeza. Da casa.

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Quem deve falar sobre sexualidade com os filhos: pais ou escolas?

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Afinal, quem deve falar sobre sexualidade com os filhos: pais ou escola? Falar sobre sexualidade sempre envolveu alguns tabus, sentimentos de vergonha e preconceito. Diante disso, há um temor inevitável, principalmente por parte dos pais, quando percebem que seus “bebezinhos” já não são mais crianças, mas também não são adultos. Ocorre uma dúvida frequente acerca do que falar e como falar sobre sexo e a quem cabe esse papel, se é aos pais ou a escola.

Fonte: http://zip.net/bytJB4

 

A melhor solução para esse dilema é o trabalho em equipe, ou seja, pais e escola unidos na educação sexual das crianças e adolescentes. O que não pode ocorrer é a inversão de valores de uma família no campo escolar, pois assim a escola estaria invadindo um espaço que não é seu. Desse modo, ficaria para a escola o papel de ensinar as crianças e adolescentes sobre o papel da sexualidade, incluindo o ato sexual e as relações afetivas e as consequências de tais ações, ensinando métodos preventivos contra doenças sexualmente transmissíveis e gravidez indesejada. Já para a família, caberia a transmissão dos valores, o que varia de uma para a outra, para a criança ou adolescente.

 O problema que ocorre nessa pós modernidade é que, com os adultos super envolvidos no trabalho a maior parte do tempo, a escola que antes só possuía o papel de ensinar, passou a ter o papel de educar também. Talvez seja nisso que muitos pais se confundem e acreditam que a escola deve transmitir tudo para seus filhos, inclusive valores e princípios. Porém, muitos desses mesmos pais não apoiam a educação sexual nas escolas, o que é muito contraditório. A educação sexual precisa ser passada nas escolas, com acompanhamento dos pais, pois estes podem passar informações corretas acerca do assunto, uma vez que o fácil acesso a informação é algo evidente hoje. Então, para evitar informações distorcidas, a melhor maneira é ensinar em um espaço de aprendizagem, não só disciplinar, mas para a vida.

Fonte: http://zip.net/bftH5n

 

Aceitar esse tipo de ensino escolar é um passo para desmistificar um pouco esse assunto que gera tantos calafrios. É contribuir para que a sexualidade não seja mais algo banalizado e ridicularizado, como ocorre muitas vezes, principalmente entre adolescentes desinformados. É contribuir para a formação de adultos mais sensibilizados ao toque, ao amor, as relações íntimas, fazendo de cada momento algo especial, valorizando a si mesmo e as pessoas com quem irá se envolver ao longo da vida.

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Atuais e instigantes, “convencionalismos” do matrimônio são abordados na adaptação “o vasto silêncio”

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Adaptado do clássico norueguês “Casa de Bonecas”, de Henrik Ibsen, a peça teatral “o vasto silêncio” ficará em cartaz durante todo o mês de agosto, no Sesc, em Palmas. As apresentações ocorrerão durante os cinco sábados do mês, sempre às 20h (mais informações abaixo), e é fruto de um longo período de estudos realizado pelo grupo Três Marias Teatro.

O público deve experimentar variadas sensações com a obra, pois apesar de o texto original ter sido escrito há mais de um século, a “tensão” gerada pela vida matrimonial e os “convencionalismos” que orbitam os casais ainda são assuntos atuais e não superados, seja pelo senso comum, seja pela própria produção acadêmica. Além disso, os atores e integrantes do Três Marias, Isilda Sales e Tales Monteiro, são casados na “vida real” e libaram um verdadeiro “mergulho” existencial durante a adaptação e tratativas da peça. Isso porque as mesmas temáticas presentes nas provocações de Ibsen também povoa o imaginário dos atores, algo que, à peça, certamente resultará em forte impacto (estético e performático).

“O vasto silêncio” conta a estória de Nora, uma mulher do século 19 (período em que em que a luta pela equiparação de direitos entre homens e mulheres já constava da pauta social) que vive um grande conflito por esconder um segredo do marido. Para piorar, começa a receber ameaças de um agiota, funcionário do marido no banco em que este é diretor. A situação foge do controle e traz à tona as verdadeiras intenções que sustentavam o casamento. Há, na trama, um importante componente relacionado à luta pela equidade de direitos: a mulher, num caso inusitado, acaba por tomar uma decisão (decisão esta, inclusive, que permeia toda a série de mal-entendidos que sustenta a estória).

Na constante dialética entre segurança e liberdade, pontos que na visão de Bauman são incompatíveis (ao se optar por um, tem que abandonar o outro), Nora decide então deixar a casa, esposo e filhos, delineando assim o caráter trágico da obra, num movimento que “atualiza” a disputa pelo poder levantada desde Shakespeare, ainda no Iluminismo. Agora, não se tratava da mera contenda política de um reino. O poder em questão é mais “atomizado” e menos difuso, se encontra nos limites do lar. Veio à baila, então, a constante “guerra dos sexos” cuja genealogia remonta a períodos imemoráveis, com a até então inquestionável sobreposição do patriarcalismo. Quem quiser se aprofundar sobre este tema – para fúria da “família tradicional” – há o livro “A Sagrada Família”, de Karl Marx e Friedrich Engels.

Dupla dentro e fora do palco

Os atores utilizaram de suas múltiplas referências de formação na composição deste espetáculo. Focaram e amadureceram em torno de uma pesquisa que prioriza a atuação dos intérpretes, que transitam numa linha tênue entre variadas formas de narrativas cênicas. Partindo do tema proposto por Ibsen o grupo buscou inspiração em fontes paralelas, como textos literários e filmes. O resultado é uma encenação original e tipicamente contemporânea. A produção optou por um espaço alternativo a fim de criar um ambiente intimista com o público, mantendo-o próximo da cena.

Casados há três anos e formados pela Fundação das Artes de São Caetano do Sul, Isilda Sales e Tales Monteiro perceberam em “o vasto silêncio” uma possibilidade de avançar sobre questões existencialistas, dentre outras abordagens. Questionaram, a princípio, até que ponto um casal poderia manter a liberdade, mesmo que “alinhado” a uma estrutura antiga, “quadrada” (no sentido de que prescreve uma série de “dogmas”), que abre margem para que se exclua a pulsão criativa de que fala Nietzsche, onde criação e destruição não são antagônicos – antes, indispensáveis aos processos criativos. Como, num relacionamento conjugal, evitar que o “contrato implícito” (de lealdade e “afinidades”) se torne um castrador do “tempo liso” deleuziano, onde o “estriamento” convencional retira a originalidade? De acordo com Tales Monteiro, a dupla tem muitas “vontades de dizer no palco”. Uma delas é sobre o “caráter burguês” do casamento. Mas há alternativas viáveis para evitar cair nas mesmas produções (de intensidade) cíclicas.

E apesar de não concordarem com todo o fundacionismo que envolve esta instituição, não são contra as uniões afetivas. “O problema está quando convenções sociais, às vezes de fundo religioso, ditam regras que são reproduzidas há séculos e que tolhem a liberdade e a capacidade criativa do casal. É necessário reservar um espaço para a individualidade, mesmo estando casado”, diz Tales.

Para Isilda Sales, o contato com o texto de Ibsen, quando ainda morava em São Paulo, despertou-lhe grande interesse. Isso por se tratar de uma temática que, para a atriz, é fonte de constantes investidas filosóficas e existenciais. O próprio casal de atores discutiu a relação matrimonial tendo como pano de fundo a obra norueguesa, procurando romper com as limitações impostas por padrões rígidos, numa tentativa de imprimir originalidade a uma dinâmica como o casamento, cujos padrões são ditados “de fora para dentro”, numa luta onde, até o momento, a visão transcendente se sobrepõe a imanente. Mas é nesta última, na introspecção e autogestão, que a força criadora se expressa (há quem discorde, obviamente). E o casal sabe bem disso. “A ideia é não reproduzir os mesmos modelos gerais, apesar de estarmos no bojo de um esquema que já está traçado. Há, neste sentido, a possibilidade de ter escolhas diferentes. Assim, o texto [de Ibsen] é extremamente potente e atual”, comenta Isilda, para lembrar que as facetas sociais “quadradas” (ou estriadas, na visão deleuziana) são reforçadas não apenas pela religião, mas também pelos meios de comunicação e até no ambiente de trabalho. “Só para ter uma ideia, onde eu trabalho percebo claramente que sou mais respeitada por ser casada… e dá para perceber um desrespeito velado para quem não é casado. São situações que, o tempo inteiro, perpassa a sociedade. A peça, em alguma medida, abre margem para se questionar estas construções”, lembra.

Tales Monteiro diz que o texto é atual porque a instituição [do casamento] é a mesma. No entanto, a dupla não põe em xeque necessariamente a existência do matrimônio (eles mesmos são casados), mas as estruturas que são impostas e que tornam a relação enrijecida, numa luta de poder em que ao homem ainda se espera a provisão, e à mulher, sobra a aceitação. “Não por menos, apesar de as mulheres terem se lançado no mercado de trabalho há décadas, ainda não ocupam com equidade os mesmos cargos de chefia e tampouco recebem a mesma média salarial dos homens”, destaca. Mas Tales ressalta que a peça não é uma porta-voz do feminismo (como foi interpretada, dentre outras coisas, quando de seu lançamento). “Antes, é uma forma de alertar para a beleza da diversidade, para a necessidade de se buscar novas formas de se relacionar com as pessoas e com o mundo, tendo por base padrões criativos menos formatados e estereotipados, que sempre deságuam em lugares comuns, reproduzindo modelos arcaicos”, arremata o ator.

União em torno do projeto

Isilda Sales diz que o que move o trabalho da dupla é a perspectiva de desenvolver uma poética cênica própria. “Ao mesmo tempo em que questionamos o pano de fundo desta trama, que é o casamento, também nos debruçamos sobre uma intensa pesquisa para experimentar uma linguagem teatral adequada. O objetivo é ultrapassar a estética do teatro tradicional influenciado pelo palco italiano, onde o espectador assiste passivamente, e lançar uma dinâmica de múltiplas interpretações, que não cabe um discurso linear. Então, há uma tentativa de romper com a forma de contar a estória”, comenta Isilda.

Há, portanto, uma dramaturgia composta como um “quebra-cabeças”, e ao final a plateia “constrói de acordo com a perspectiva de cada pessoa, sem que haja prejuízo do entendimento da fábula original”, arremata. Daí o próprio nome da peça, “o vasto silêncio”, onde o diálogo apresenta a trama, mas o pano de fundo é mostrado de outras maneiras, através da performatividade dos atores e do silêncio, que se configuram como poderosas formas de expressão.

Isilda comenta que este “vasto silêncio”, na peça, pode ser visto de muitas formas. “Trata-se destes vazios que ficam… do vazio que ocorre no silêncio ausente de confrontação. Num casamento, por exemplo, isso ocorre quando não há entendimento [entre ambas as partes] porque também não há diálogo e interação, numa dinâmica em que o casal parece anestesiado”, comenta Isilda, para destacar certo caráter niilista que se impõe sobre a maior parte das relações (afetivas, sobretudo). “No entanto, é perfeitamente possível quebrar estes ciclos viciosos e estabelecer campos de criatividade dentro das uniões afetivas. Para isso, é necessário estar aberto ao diálogo, preservar um senso de liberdade e, claro, projetar-se para o mundo de forma criativa, onde a contingência e a constante redescoberta (do mundo e de si próprio) são vistos como elementos naturais à vida”, finaliza Tales.

Mais sobre “o vasto silêncio”

“O vasto silêncio” é fruto de uma ampla pesquisa realizada pelo grupo Três Marias Teatro, fundado em Palmas no ano de 2011, já contemplado com o prêmio Arnaud Rodrigues de apoio ao teatro, que resultou numa primeira montagem. Desde então mantém sua pesquisa de forma autônoma e independente. Para esta peça em particular, conta com o apoio cultural da Quavi e da Miss Li, além do Sesc (que cedeu o espaço). Não houve subvenção estatal.

A peça permanecerá em cartaz sempre aos sábados do mês de agosto, às 20 horas, no Sesc Palmas (502 Norte). Os lugares são limitados a 40 pessoas e recomenda-se chegar com antecedência.

Os ingressos poderão ser adquiridos antecipadamente na loja Quavi, localizada na Avenida Teotônio Segurado, 102 Sul, de segunda a sábado no horário comercial. Informações pelo telefone 3215-5648. (Com informações da assessoria de imprensa do evento)

SERVIÇO:

Temporada: de 01/08/2015 a 29/08/2015
Sempre aos Sábados, 20h
Local: SESC Palmas (Quadra 502 norte)
Ingressos: R$30,00, R$24,00 e R$15,00 – vendidos na loja Quavi (Tel 3215-5648) ou na bilheteria do evento
Lotação máxima: 40 lugares
Classificação: 12 anos
Duração: 90 minutos
Mais informações:
http://www.tresmariasteatro.wordpress.com
tresmariasteatro.to@gmail.com
https://www.facebook.com/tresmariasteatro

FICHA TÉCNICA:

Encenação e Dramaturgismo: Três Marias Teatro
Elenco: Isilda Sales, Tales Monteiro
Cenografia e Cenotécnica: Renata Oliveira
Preparação musical e desenho de som: Heitor Oliveira
Figurinos: Aline Hiert
Iluminação: Lúcio de Miranda
Recepção e Bilheteria: Alana Serra
Operação de Luz e Som: Dayhan Lopes
Realização: Três Marias Teatro

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A Casa de Pequenos Cubinhos: solidão, memória e devir

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O excesso de som e movimento, e cada qual com sua altura e freneticidade, são marcas do presente. Contemplar a quietude do silêncio ou a sutileza dos ruídos ao redor em estado de imobilidade primordial são elementos cada vez mais distantes dos meios de circulação de informação e, especialmente do entretenimento, como animações, filmes, programas de rádio e televisão e a internet.

Neste cenário encontramos vez ou outra, de forma quase despercebida, pequenos achados que navegam contra a corrente, e um destes casos é o curta metragem japonês A Casa de Pequenos Cubinhos (“Tsumiki no ie”, Kunio Katô, 2008) ganhador de vários prêmios internacionais em sua modalidade, cujas mensagens, reflexões e alguns aspectos marcantes serão objeto deste breve texto de análise interpretativa do seu conteúdo.

O filme conta a história de um homem velho que vive sozinho em uma cidadela submersa, em sua maior parte, pelo mar e quanto mais a água sobe mais alta se torna sua casa em formato de cubos sobrepostos construídos pelo próprio morador, até que, em dado momento, o senhor volta a descer nos níveis inferiores de sua residência, encontrando lá lembranças de sua vida.

O tema da solidão é central no curta-metragem, e sua riqueza e complexidade podem facilmente ser entregues à banalidade melodramática, principalmente na linguagem cinematográfica. E, respeitar a delicadeza desta temática a fim de lhe dar verossimilhança em uma projeção imagética, artística ou fílmica é sem dúvida o principal mérito a ser dado à Kunio Katô, diretor e roteirista da animação, algo visto de forma semelhante em outros curtas-metragens como Le cyclope de la mer (1999) e o brasileiro O Céu no Andar de Baixo (2010), que trabalham com estórias voltadas ao tema do isolamento e ostracismo.

Nesta mesma premissa da questão da solidão, nas últimas décadas tem ocorrido a renascença do debate acerca do sujeito e do seu significado, com o desenvolvimento das correntes de pensamento que buscam uma compreensão deste sujeito em si mesmo, assim o foi e é com a fenomenologia, a psicanálise e o existencialismo.

A maior dificuldade nestes casos é a tentativa de não se cair no circo teleológico de uma finalidade imediata para a vida ou no outro extremo a suspensão de todo e qualquer sentido, assumindo-se o absurdo do existir e a banalidade da vida, cujo sentido estaria em seu fim, a morte. No entanto, o que dá sentido ao sujeito? Neste ponto chega-se no limiar da decisão = des (negação), cisão (divisa, limite), entre as duas esteiras de compreensão citadas, e, a alternativa encontrada no curta-metragem japonês e exposta de forma singular e tocante em seus pouco mais de dez minutos é o devir. E a mensagem do pequeno filme é ir contra a destinação pragmática ou a desistência da própria vida, refutando o esquecimento de si, para recuperar o movimento da existência pelos momentos que marcam o percurso de um indivíduo em sua singularidade.

Com base nestas colocações é possível identificar ao menos duas alegorias de interpretação e reflexão no curta-metragem, que se interconectam de maneira simbiótica no fortalecimento da narrativa, dentre tantas outras, a depender do olhar do espectador. A primeira delas é em relação ao caráter dimensional que dá corpo de fundo à história, pois, no ambiente quadrático que serve como habitação para o personagem principal a marca principal é o cotidiano frígido, o distanciamento da realidade e a inefável solidão.

O ponto de superação a esta tridimensionalidade se dá no momento que há a (re)descoberta do tempo, a quarta dimensão, que dá à vida o seu sentido no espaço, na comunhão tempo-espaço da formação de uma individualidade do sujeito, e, só assim que o existir alcança sua plenitude como experiência efêmera do viver.

A outra alegoria diz respeito à ação do mergulho nas profundezas do mar, como as camadas componentes do eu. Esta atitude é tomada como alternativa para uma mudança do paradigma de distanciamento do personagem em relação a si próprio e o seu existir, que, por sua opção foi cristalizado em lembranças longínquas, imagens desgastadas e uma carranca espessa como expressão diária. A poesia desta segunda alegoria se estabelece a partir do momento que sua ocorrência só se torna possível por um capricho do acaso, na chegada do detalhe que molda o pico da viragem no retorno do sujeito consigo mesmo, no interior de seus próprios muros, paredes, porões e cômodos a muito construídos e esquecidos.

Por fim, se a solidão, o isolamento, o uso do silêncio e dos ruídos da trivialidade possuem um alto grau de complexidade para sua representação, maior ainda é a demonstração em um mesmo círculo narrativo do ponto de mutação destas situações, emoções e circunstâncias, uma catarse. E o mais prodigioso, no caso d’A Casa de Pequenos Cubinhos (“Tsumiki no ie”, Kunio Katô, 2008), é a extrema simplicidade com que coloca aos nossos olhos a mescla entre o fascínio do acaso e a execução do arbítrio em uma dança dialética e dialógica de reencontro de si.


FICHA TÉCNICA

A CASA DE PEQUENOS CUBINHOS

Título original:Tsumiki no ie.
Direção: Kunio Katô.
País: Japão.
Ano: 2008.
Digital. 12 min.

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Taças de vinho

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Entrei em casa tão apressada que, ao tentar fechar a porta, a chave querendo brincar com minha agitação, atirou-se em queda livre da fechadura ao chão.

Machucou-se toda. Isso porque o paraquedas que ela usava não abriu.

Fiquei alguns segundos parada, estática, olhando para aquela pequena chave caída no chão. Seu marido, um chaveiro francês que a acompanhara na queda, como todo europeu polido, tentava repreendê-la pelo acontecido. E ela, como toda charmosa chave brasileira, sorria, com ar de sapeca, ao contemplar a dedicação de seu esposo que trazia no peito a imagem da Torre Eiffel. (Até os chaveiros franceses são patriotas ….)

“Bem feito”, sentenciei. E, caímos as duas na maior gargalhada, eu e a chave paraquedista. O francês só esboçou um leve sorriso pelo canto da boca. Acho que ele é europeu demais, ainda, para sorrir uma alegre risada com gosto de feijoada e samba bem brasileiros.

Então, a chave, com ar de menina que pede o primeiro beijo, disse “Me coloca na fechadura que eu fecho a porta para você, tá?” .

Como é dissimulada a chave da minha casa! Mas, como amo as loucuras que ela faz (como saltar de paraquedas e fazer ballet clássico), além de adorar a forma como ela manda e desmanda no chaveiro francês, sempre perdoo o que ela faz.

E foi exatamente no momento que baixei para pegá-la que vi, escondidinho bem no canto da sala, um bilhete vestido de papel vermelho que dizia “Comprei um vinho. Vamos tomá-lo hoje à noite? Levo AS TAÇAS.”

Meu coração enlouqueceu e começou a pular e dar tantas cambalhotas que tive que cerrar os dentes para que ele não saísse pela boca.

AH! ERA A LETRA DELE!

A chave que dá palpites, até no que ela não é chamada, sugeriu afoita “Responde logo!”. E, eu respondi no mesmo papel vermelho, usando a tinta rosa da surpresa misturada com a alegria: “À NOITE”.

O Ventinho, Ventinhoso, mensageiro e amigo, encarregou-se de levar a resposta, carregado por um desses redemoinhos da paixão.

Não preciso dizer que o dia passou tão lento que me deu a impressão de que as horas,  minutos e segundos haviam se sindicalizado e estavam em alguma greve geral, lutando por um tempo mais vagaroso.

Finalmente, a noite vestida de rendas negras com enfeites de purpurinas estrelares começou a bailar pelo céu embalada pela canção romântica que cantava meu coração.

Resolvi abrir a janela. Afinal, quem eu estava esperando era a estrela mais brilhante do meu céu de sentimentos, por isso imaginei que ele fosse chegar trazido pela mão negra da noite. Acreditava que, quando ele chegasse, na sua mão direita traria a garrafa de vinho e, na esquerda, uma rosa de Santiago.

Nem tinha pensado todo esse pensamento tão menino, quando a campainha tocou. Tentei conter a ansiedade. E, lembrando Clarice Lispector, caminhei lentamente para vivenciar cada segundo dessa minha felicidade, literalmente, “tão clandestina”.

A chave, antes de abrir a porta, piscou com aquela piscadela de melhor amiga e aconselhou “Tente ficar calma”. Já o Chaveiro francês, educadíssimo, mostrou-me um pote verde com pontinhos laranja. Disse que era para eu guardar toda a minha ansiedade.

Então………………respirei fuuuuuuuuuuundo e ………….minhas mãos começaram a tremer. Tremiam tanto que foi preciso a Chave paraquedista dar um rodopio, que ela havia aprendido na aula de ballet clássico, para que a porta se abrisse.

ERA ELE!

E consigo parecia trazer, além do vinho, a primavera com as flores e borboletas para enfeitar a minha alma.

Sentamos no sofá cinza e eu me sentia nas nuvens. Aliás, eu me imaginava como um astro na Galáxia onde ELE era o SOL. Ah! Se ele soubesse que bastava um pedido seu para que eu orbitasse pelo tempo que ele quisesse ao seu redor. Ele seria MEU SOL e eu, seu planeta cativo.

Tomamos o vinho lentamente. Conversamos sobre tudo e sobre nada, como sempre.

Cada palavra doce que ele proferia, fazia-me compreender o porquê de ele me despertar tanto fascínio e encantamento.

Quis brincar, dizendo que ele possuía “olhos do Pacífico Sul”, que de tão azuis era impossível não querer desvendar seus encantos e mistérios.

Impressionante como é enigmático gostar de alguém que conhecemos tão pouco, contudo que invade nosso coração, sem autorização prévia , e faz com que tudo passe a ter sentido, de repente.

Quando a coragem quase me convencia para perguntar se nos veríamos novamente, ele disse “Preciso ir”.

Ah! Fez-se dentro de mim um silêncio tão profundo porque tive medo de não vê-lo nunca mais. Ficamos mudos, tão mudos que tive receio de que ele ouvisse a saudade que chamava por ele pela voz do meu coração.

Despedimo-nos à porta. E, como em uma tentativa de prolongar cada segundo ao lado dele, disse , intempestivamente, “Volte sempre”.

Então, ele olhou profundamente nos meus olhos, passou a mão nos meus cabelos, segurou minhas mãos, acariciou levemente meu rosto, aproximou lentamente sua face à minha, e sussurrou no meu ouvido “Sempre tenho a impressão de que você nunca me deixará ir por inteiro”…..

Realmente, são os enigmas da vida.

Ele se foi, mas teve o cuidado de deixar comigo as duas taças de vinho que logo se converteram em cálices de solidão.

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