A Vida de Brian: a incomunicabilidade produzindo a religião e a política

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“A Vida de Brian” (1979) do grupo inglês de humor Monty Python é um filme que não só se tornou atemporal como, depois de 38 anos, ganhou novas leituras. Paradoxalmente, com a expansão das novas tecnologias de comunicação como Internet e redes sociais. Por que? Porque o filme explora a incomunicabilidade humana: Religião e a Política como subprodutos da mentira, ilusão e ideologias que sempre tentam justificar algum mal entendido resultante da radical incomunicabilidade da espécie: o fato de que cada um vê o que quer ver e ouve o que quer ouvir.

Brian é confundido com o Messias e passa a ser perseguido não só pelos romanos como também por uma multidão de seguidores que veem nele apenas aquilo querem ver. Pedem de Brian um “sinal” da sua suposta divindade. Não importa o quanto Brian se esforce para tentar desfazer o mal entendido. Involuntariamente criou uma nova religião. E o que é pior: a multidão está ávida por um mártir que morra por ela na cruz…

Certamente Jesus de Nazaré gostaria do filme Vida de Brian (1979) da trupe de humor inglês Monty Python. Afinal, Jesus tinha senso de humor, manifestado em trocadilhos ocasionais na Bíblia como, por exemplo, “É mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha do que um rico entrar no reino do Céu”. Ao contrário dos seus seguidores: na época do lançamento do filme, muitos representantes de religiões, sejam protestantes ou católicos, acusaram o filme de blasfemo e o grupo inglês de herege.

O filme chegou a ser banido em muitas cidades dos EUA. Apesar disso, A Vida de Brian não zomba da vida de Cristo, mas de um certo “Brian de Nazaré” que nasceu no mesmo dia e num estábulo vizinho ao recém-nascido famoso e aureolado. Aliás, no filme, Cristo aparece apenas duas vezes, sempre de passagem: na cena inicial como o vizinho famoso de Brian e na sequência do Sermão da Montanha. Diante de uma enorme multidão reunida, alguém se queixa: “Não consigo ouvi-lo! O quê ele disse?”. “Parece que ele disse que os gregos herdarão a Terra… e bem aventurados os produtores de queijo…”, alguém responde.

Depois de décadas, esse humilde blogueiro teve a oportunidade de voltar a assistir A Vida de Brian, o segundo longa do grupo depois do Em Busca do Cálice Sagrado (1975). O que me surpreendeu é que, 38 anos depois, o filme comprovou não só ser atemporal como também parece ter se renovado com o tempo ganhando novas leituras dentro do contexto cultural atual. Ao contrário de humoristas da mesma época que acabaram ficando datados como, por exemplo, as paródias de Mel Brooks (O Jovem Frankenstein, SOS Tem Um Louco no Espaço ou História do Mundo Parte 1).

Bem diferente, A Vida de Brian parece ter ganho ainda mais força paradoxalmente devido a posterior expansão das tecnologias de comunicação: TV digital, Internet, redes sociais etc. Apesar de toda banda larga tecnológica, o grande problema humano ainda é a incomunicabilidade. Algo parecido com o “ruído” do “telefone sem fio” da sequência do Sermão da Montanha no filme.

Como não poderia deixar de ser, tudo se passa sob o domínio e arbitrariedades do Império Romano que oprime o povo judeu. O filme acompanha a vida de um zé-ninguém chamado Brian Cohen (Graham Chapman) e a sua mãe Mandy Cohen (Terry Jones): ranzinza, autoritária e materialista, que o trata como fosse ainda uma criança. Toda a narrativa é como se fosse um acúmulo de mal entendidos, ruídos e enganos que vão se amontoando até chegar ao caos final. Já na primeira sequência o filme já dá o tom: os três reis magos entram no estábulo errado e acham que o recém-nascido Brian é o Messias. Sua mãe os trata como fossem bêbados pedófilos até que descobre que querem presenteá-lo com ouro, incenso e mirra. Ela fica com os presentes enquanto os magos rezam para o messias errado.

Claro que depois os reis magos descobrem o engano, empurram a mãe de Brian e retomam a força os presentes, enquanto o pobre bebê é esbofeteado pela mãe frustrada por não aguentar mais ouvir tantos choros, além de ter perdido os valiosos presentes. A Vida de Brian nos mostra como essa série de enganos (produzidos pela incomunicabilidade humana) se espalha não só pela infeliz vida de Brian, mas também se alastra na Política, na Religião e no Poder. É o ápice do senso de humor do grupo Monty Python: non sense, cinismo e humor negro – a capacidade de através do humor abordar temas muito sérios. De como o riso cínico pode desconstruir uma realidade aparentemente sólida e racional.

Após a impagável sequência inicial do engano dos três reis magos, acompanhamos Brian aos 33 anos, preocupado com sexo, em dúvidas se é realmente atraente para as mulheres e complexado pelo seu nariz grande. Chateado de ser ainda um filhinho da mamãe trintão, Brian vê a chance de ser alguém e se livrar da possessão materna: juntar-se à Frente Popular da Judéia, uma célula terrorista que pretende minar a dominação dos romanos sobre o povo judeu. O grupo planeja a ação mais ousada: sequestrar a esposa de Pôncio Pilatos. Mas na ação no subsolo do palácio de Pilatos, dão de frente com outro grupo terrorista que teve a mesma ideia.

Resultado: todos começam a brigar entre si enquanto, incrédulos, os soldados romanos observam esperando todos lutarem até cair para depois levar todo mundo preso. Brian é capturado e levado na presença de um impagável Pôncio Pilatos (Michael Palin) com língua presa (troca constantemente o “r” pelo “l”) e inseguro por perceber que os soldados o ridicularizam pelas costas. Enquanto Pilatos ameaça punir os soldados que o ridicularizam, Brian escapa e pula de uma janela, para cair em um beco onde estão diversos candidatos a “messias” fazendo discursos. Cada um com seus seguidores, todos tolerados pelos soldados romanos.

O Messias involuntário

Brian então finge ser mais um candidato a messias para passar desapercebido pelos romanos. Inventa um discurso qualquer e… pronto! Um pequeno grupo se forma para ouvi-lo. Brian fala de forma desconexa, preocupado com os soldados que o procuram e sai correndo, deixando incompleta uma frase. O pequeno grupo, que vira uma multidão, vai atrás de Brian, pedindo que complete a frase. Todos acreditam em algum desfecho de frase místico ou profético. Pronto!

A contragosto, Brian virou um novo messias, seguido por diferentes grupos que têm uma interpretação diferente para as palavras desconexas que ouviram. Não precisa de muito tempo para sabermos que ironicamente sua vida, que sempre correu paralela a de Jesus Cristo, poderá ter o mesmo desfecho trágico do filho de Deus. O cinismo em relação ao Poder, às burocracias e aos prestadores de serviço (seja dos pedintes aos comerciantes) são temas que perpassam o humor do Monty Python desde os tempos da série de TV Flying Circus (1969-1974) na BBC.

Em A Vida de Brian é ainda mais explícito: o ex-leproso revoltado porque Jesus o curou e ele perdeu seu ganha-pão de pedir esmolas; a Frente de Libertação propositalmente burocrática e inerte para evitar derrotar os romanos e chegar ao Poder porque não saberia o que fazer quando chegasse lá; comerciantes que precisam pechinchar não pela racionalidade econômica, mas por um obrigação moral; os seguidores de Brian que não aceitam os desmentidos do seu “messias”, não porque acreditam que ele seja um profeta mas porque sem ele não teriam outra coisa melhor para fazer; os romanos tão desorganizados que só conseguem dominar a Judéia porque os judeus parecem mais interessados em cuidar das suas vidas e fazer troça dos romanos, e assim por diante.

O cinismo do helenismo grego

Embora o humor do grupo a princípio trabalhe com estereótipos (o judeu materialista e covarde, um Pilatos gay enrustido etc.), vai muito mais além disso: explora uma forma especial de cinismo que remonta a tradição filosófica do período helenístico da Grécia antiga de Diógenes e Pirro – o cinismo (ou “kynismo” para os gregos da antiguidade) como forma crítica contra as três formas de falsidades que sustentam os poderes e a sociedade: a mentira (a má fé), a ilusão (a falsidade ontológica do mundo) e a ideologia (a ilusão mobilizada para finalidades políticas) – sobre isso clique aqui.

O cinismo do grupo inglês é cético: vê uma espécie de reversão irônica em cada ação humana – a fala de Jesus no Sermão da Montanha vira um “telefone sem fio”; a Frente política de oposição aos romanos vira um fim em si mesmo; tudo que Brian fala é filtrado por aquilo que seus seguidores querem ouvir. Por mais que Brian negue e insista que tudo foi um mal entendido, seus seguidores interpretam como algum tipo de mensagem mística cifrada. Por isso A Vida de Brian vê a Religião, a Política e o Poder de forma cínica – tudo é um conjunto de mal entendidos e incomunicabilidade na qual cada um entende o que quer entender, ouve o que quer ouvir.

Religião e política como racionalizações

Toda a mentira, a ilusão e as ideologias produzidas por elas seriam nada mais que racionalizações para justificar esse mal entendido radical. Assim como na emblemática sequência em que Brian foge desesperado não só dos romanos mas também de uma multidão de seguidores que pedem dele um “sinal” de sua divindade. Na fuga, Brian deixa derrubar uma cabaça (vaso de barro com gargalo estreito e comprido) e uma sandália acaba saindo do seu pé, ficando para trás.

O grupo que pegou a cabaça, ergue o objeto dizendo que é “a cabaça sagrada de Jerusalém” e passam a se autodenominar “cabacenos”. Enquanto outro grupo rival levanta a sandália para o céu e grita que aquilo é o verdadeiro “sinal”. Pronto! Acabou de ser criado o primeiro cisma religioso da história do Cristianismo. E sabemos que mais tarde o Império Romano adotou o Cristianismo como a religião oficial. Será que foi mais uma estratégia maquiavélica de “dividir para reinar” entre tantos outros exemplos que a História nos conta?

FICHA TÉCNICA DO FILME:

A VIDA DE BRIAN

Diretor: Terry Jones

Elenco: Graham Chapman, John Cleese, Terry Jones, Eric Idle, Michael Palin, Terry Gillliam

País: Reino Unido

 Ano: 1979

Classificação: Livre

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Amor, Sexo e Tragédia: somos mesmo originais?

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A forma como o Estilita Simeão viveu, em austeras penitências corporais, retrata a vida dos anacoretas de sua época. Seu biógrafo conta-nos que seus atos de sacrifício, eram de castigar seu próprio corpo, com um desejo de assemelhar-se à paixão de Cristo. Dava-se ao jejum de alimentos e água e se expunha ao calor, e ao frio exposto a “uma coluna de pouco mais de 18 metros em vigília continua; uma imagem viva do Cristo crucificado” (GOLDHILL, 2007, p. 97).

Ainda de acordo com seu biógrafo as torturas vividas por Simeão eram uma forma de chamar a atenção do mundo, despertando-o para existência de Deus. O mosteiro onde Simeão morava era cercado de pessoas que viam nele um homem santo e todos o admiravam e gostavam de ouvi-lo. “Por vezes ele realizava papel de juiz especial diante de alguma disputa” (GOLDHILL, 2007, p. 98).

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Simeão vivenciou um êxtase espiritual profundamente marcado pelo amor a Deus. Deu-se aos sacrifícios corporais até sua morte e ainda que seu corpo se esvanecesse pelas torturas, sentia-se fortalecido pela presença de Deus.

Simeão faleceu no ano 459. Ele foi uma superestrela no rol dos homens santos, todos grandes sofredores pela qual a Síria era especialmente famosa. Esses santos representavam o pináculo da nova atitude cristã relacionada ao corpo (GOLDHILL, 2007, p. 99).

Pregou e viveu um cristianismo que era contrário à cultura clássica. Para ele, ser cristão era ser capaz de penitências, asceses e renúncias; viver a negação dos laços sociais e dos prazeres que este oferece. E o monge deve retirar-se para o deserto, orar sozinho e viver em austeras penitências e jejuns. “Uma maneira dos cristãos mostrarem publicamente a sua crença era a recusa de participar de sacrifícios. Por vontade própria eles excluíam-se obstinadamente da comunidade” (GOLDHILL, 2007, p. 100). Alimentar-se para Simeão era algo confortável, de certa forma até de luxo, pois a sociedade do seu tempo vivia em penúria e até passavam fome.

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Para o pensamento grego um cidadão clássico tinha que trazer em si característica “de soldado, orador, homem do bem” (GOLDHILL, 2007, p. 100), versado em filosofia, e dado aos prazeres e alimentação farta. “Comer bem significava o triunfo da civilização, uma combinação do trabalho árduo do lavrador e da graça dos deuses” (GOLDHILL, 2007, p. 101). Porém os cristãos se contrapunham a essa realidade e se retiravam ao deserto para se desafiarem nessa civilização. “O calendário do cristão comum podia se alternar entre o jejum e o banquete, Quaresma e Páscoa” (GOLDHILL, 2007, p. 101).

Em síntese, os superestrelas da carne, mostra que o jejum deveria ser praticado e ajudaria os cristãos a refrear as paixões e a refrear os impulsos sexuais, como um combate ao pecado e a busca de santidade, uma vez que a defesa da castidade de monge era exercício disciplinar constante. “Toda história requer heróis, e, para o início do cristianismo eles são os ascetas e os mártires” (GOLDHILL, 2007, p. 103). O cristão era chamado a ser mártir e o martírio se tornava exemplo de vida virtuosa revelando a forma mais refinada de transcender a dor. E isso Simeão legou aos cristãos do seu tempo.

Essa forma de vida de martírio era inaceitável para os gregos e romanos, pois para eles “o corpo do cidadão devia ser inviolável” (GOLDHILL, 2007, p. 104), ainda que os escravos fossem submetidos à tortura. O orador clássico, cidadão herói grego, deve ser ereto, altivo e exibicionista. O cristão devia ser simples, modesto desprovido de vaidades. Apropriados dos seus próprios corpos, os cristãos deveriam apenas ser agradáveis a Deus.

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O sexo e a cidade – A carne e o mundo

Em “O sexo e a cidade”, Goldhill (2007) traz considerações acerca dos desejos da carne x cristianismo. O autor ressalta que com o Império Romano, tonando-se cristão, houve uma série de conflitos em relação à sexualidade e os valores cristãos. E esse fato repercute até hoje nas escolhas e formas de vida familiar. Para tanto, sendo o casamento “o alicerce da sociedade”, a concepção que temos dele é, também, a forma como nos percebemos na sociedade (GOLDHILL, 2007). O autor aponta, ainda, que o casamento cristão trazia algumas atitudes, consideradas estranhas, de como se deveria levar a vida, pois teve sua formação contra a cultura greco romana e organizada limitadamente pelo Império Romano.

Paulo recomenda, nas Sagradas Escrituras, que o casamento seja honrado pelos homens e, com isso, traça um conjunto de leis que, em suma, resulta em um tipo de casamento patriarcal, no qual a mulher deve ser subordinada ao homem. Por outro lado, há outro conselho deixado por ele, no qual ele ressalta que o homem deve se comprometer com o celibato e a mulher deveria permanecer virgem e cuidar das coisas do Senhor. Com isso, o casamento fica em segundo plano (GOLDHILL, 2007).

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Nesses parâmetros o autor adverte que: de fato, Paulo recomenda o casamento, mas o faz somente para evitar que aqueles que não conseguem suportar o celibato sejam queimados no inferno por cometerem o pecado do sexo ilícito. É isso que faz do casamento algo “honrado” (GOLDHILL, 2007 p. 107). Nesse ínterim Goldhill (2007), relata a história de duas mulheres que buscaram seguir o conselho de Paulo. Tecla e Maximila são duas mulheres que abriram mão de uma vida matrimonial para viver o celibato.

Tecla era uma jovem que estava noiva e após escutar as pregações de Paulo sobre castidade começa a sentir um novo desejo, o que deixa sua família e o noivo aflitos. Desse modo, Paulo é considerado como alguém que leva as mulheres para um mau caminho e destrói a vida dos casais. Com isso, Paulo é preso. Porém Tecla aumenta, ainda mais sua fé e devoção. Tecla é condenada a morte, porém “ela é sempre salva pelo milagre divino” (GOLDHILL, 2007 p. 108). Dessa forma, “Tecla tornou-se uma santa para a adoração cristã, um modelo para as virgens que evitam o casamento. Ela figura como heroína e inspiração em diversas histórias de vida de muitas moças” (GOLDHILL, 2007, p. 109).

Maximila é uma mulher casada que, ao escutar as palavras de Santo André: “ofereça-se a Deus” (p. 110), converte-se ao cristianismo e começa a fazer orações para que Deus a afaste do próprio marido e a mantenha casta. Dessa forma, para se privar de relações com o marido, ela coloca uma escrava para satisfazê-lo, sem que ele saiba. Porém, ao descobrir ele fica arrasado por ter sido enganado por ela. Maximila, então, confessa seu amor pelo Divino e deixa seu marido para se dedicar às obras de Deus (GOLDHILL, 2007).

E assim, Goldhill (2007), afirma que o cristianismo gera um declínio social, pois as pessoas deixam de viver muitas coisas por causa do Divino, impedido, dessa forma, a continuidade de uma família. Com isso, o autor acredita que: “o cristianismo requer um compromisso individual ‘com o mundo por vir’ – um sendo radicalmente diferente de futuro” (GOLDHILL, 2007 p. 110). 

Virgindade, Celibato ou Casamento?

Durante a Idade Média, quando o Cristianismo se instaura na Europa, as mulheres deveriam fazer a escolha entre o celibato ou o casamento. O celibato trazia grandes honras para a família, as “virgens de Deus” ou “noivas de Cristo” dedicavam sua vida a uma eterna virgindade, se dedicavam à igreja e a Deus. A virgindade era exaltada, a igreja considerava o desejo e a sexualidade como pecados, fontes de fraqueza humana.

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De acordo com Goldhill (2007) a reclusão, jejum e orações constantes eram necessárias como suportes contra a fraqueza. A mulher podia demonstrar sua fé e devoção na igreja e no lar por meio de uma dedicada virgindade, a mulher que optava por esse estilo de vida deveria se afastar do modo de vida convencional por vontade própria, sendo veneradas pela igreja. O casamento era considerado honrado contanto que um homem e uma mulher mantivesse relações sexuais com seus cônjuges e após o casamento, se não seria perversão. O divórcio e a oportunidade de um novo casamento era condenado pela sociedade, o sexo associado à culpa e à sujeira.

Por muito tempo foi discutido questões sobre virgindade, santidade, sexo e casamento, sendo temas polêmicos até os dia atuais, sendo que, muitas das incertezas sexuais vivida pela sociedade atual provêm do que foi imposto pela igreja católica, uma vez que o compromisso com valores tradicionais não avaliam a própria historia. A crise ainda compartilhada pelo corpo social moderno ocorre, pois todos participam das discussões sobre como deve funcionar um casamento, relações sexuais extraconjugais, relações sexuais com múltiplos parceiros e relações homossexuais são ditas como erradas. Entretanto, não cabe a sociedade como um todo, formular uma resposta. Goldhill (2007, p.116) cita que:

(…) está claro que sem uma compreensão histórica de como esses temas se tornaram as questões que hoje preocupam o Ocidente Moderno, qualquer resposta que dermos a essas perguntas será superficial. Se quisermos entender as tensões com as quais o casamento moderno se debate, precisamos compreender que a “tradição” é uma longa história de revolução, conflito e mudança, uma história que produz tais tensões.

O que é Atenas para Jerusalém?

Os valores humanos podem ter criado sua própria crença através da derrubada dos valores cristãos, mas foi muito difícil tirar os valores cristãos das mentes e dos corações dos cidadãos do Império Romano do que o planejado. Os cristãos continuaram vivendo dentro de sua cultura por mais que fosse combatida e assimilaram rotineiramente as ideias e o raciocínio do mundo grego-romano que os rodeava (GOLDHILL, 2007).

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Mas o cristianismo também tinha outra maneira de falar. Particularmente nas cidades, homens e mulheres cristãos precisavam manter um diálogo com os gregos e romanos entre os quais viviam e os homens e mulheres cristãos mal podiam evitar serem influenciados pela cultura que os circundava, mesmo que tivessem a intenção de rejeitá-la (GOLDHILL, 2007, p.118). A imagem de Jesus, não importa o quanto era importante para os cristãos, também foi incorporado aos modelos da sociedade grega e romana (GOLDHILL, 2007).

Filósofos e homens santos

Goldhill (2007), sugere a existência de um diálogo entre a filosofia e a cultura greco-romana, que se evidencia historicamente nas características da interação social. No cristianismo e na cultura greco-romana, homens se tornaram santos e heróis culturais, conhecidos como mártires e sábios. Caracterizados pela abdicação dos bens materiais, luxos, prazeres, optavam por uma vida de sacrifício, abstinência, jejuns, utilizando somente o necessário para vida. O autor cita Diógenes, um filósofo cínico, que optou por se desfazer de tudo, mantendo “apenas uma tanga e uma tigela- e quando viu um jovem pastor beber água de um rio usando apenas as mãos, jogou fora também a tigela” (GOLDHILL, 2007, p.123).

Jesus, a figura de fundamental importância para o cristianismo, também foi assimilada as características da sociedade grega e romana. De forma semelhante, o cristianismo recebeu influências filosóficas, pois a filosofia orientava para uma vida espiritualizada e de autorreflexão.

O poder dessa imagem do antigo filósofo é ainda hoje fortemente sentido. Uma avaliação serena, e a rejeição do tumulto da ambição, da cobiça e da avareza são como um negativo fotográfico da imagem da sociedade moderna apresentada pelos jornais, pelos filmes, pela televisão. Era um estilo de vida que foi facilmente incorporado ao desejo cristão por uma existência mais elevada, contrária ao Império deste mundo (GOLDHILL, 2007, p.125).

Assim, o cristianismo se desenvolve tanto por meio da rejeição como da negociação com a cultura grega e romana. E a cultura ocidental moderna se forma por essa mescla de tradições. Mesmo vivendo em uma sociedade moderna é impossível não dar uma grande importância para a religião, pois a mesma traz grande influência para o nosso dia a dia querendo ou não ao longo da nossa construção como ser humano carregamos princípios da religião e todos nossos clichês do certo ou errado e estilo de vida traz um pouco de algo que aprendemos através da nossa cultura religiosa. Até mesmo se somos desacreditados da religião temos que reconhecer que em tudo tem algo da Bíblia e que essa cultura religiosa está presente. Enfim, todos nós temos uma história cristã clássica dentro de nós.

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Segundo Goldhill (2007, p.94) “Devemos também reconhecer e não distanciar a civilização cristã como estudo do clássico”. O qual seu estabelecimento ocorreu durante o Império Romano não diferenciando assim o estudo do clássico e o estudo do período inicial da igreja sabendo assim que o Império Romano de tornou cristão, mas o cristianismo por sua vez tomou a forma do Império Romano.

O cristianismo tem grande envolvimento com a cultura grega tendo grandes influências da mesma. Porque o veículo para o transição de ensinamentos da Bíblia é a língua grega por isso podemos afirmar que a civilização ocidental não é apenas judaico-cristã, mas sim uma civilização grego-judaica – cristã (MURACHO, 2002, p.10). Não podemos esquecer as raízes do cristianismo e assim reconhecer que a tradição religiosa presente no ocidente se formou no mundo clássico. Se deixarmos toda essa cultura para trás seremos apenas turistas, e o importante é vivê-la.

REFERÊNCIAS:

GOLDHILL, Simon. Amor, sexo e tragédia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

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É possível um diálogo inter-religioso entre Budismo e Cristianismo?

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Diante das tentativas de aproximação entre o Budismo e o Cristianismo apresentadas por Bhikkhu Buddhadasa, que vê inúmeras semelhanças entre as duas tradições, se levado em conta – como ele mesmo diz – o que está “além das palavras, além das letras e da retórica”, e tendo por base as análises filosóficas contidas na obra eckharteana, bem como as pesquisas científicas levantadas por Henri de Lubac (2006) e Frank Usarsk (2009) – estes últimos apontam mais para as peculiaridades e, logo, para as diferenças de ambas as tradições – é possível, sim, estabelecer muitos pontos de contato entre duas das mais importantes expressões religiosas de abrangência mundial.

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Papa Francisco se reúne com monges budistas no Sri Lanka (Foto: O Globo)

 Afora toda tentativa de generalizações apressadas que, não por menos, acabam por nivelar por baixo, através de processos comparativos superficiais, estruturas filosóficas, doutrinárias e teológicas construídas há pelo menos dois mil anos, não é possível negligenciar aproximações de caráter simbólico, soteriológicos, doutrinários (panos de fundo de ordem universalistas, como paz mundial e boa nova, por exemplo) e até estruturas mais sutis, como ênfase missionária e viés que remete a uma abordagem/discurso totalizador contido não apenas no Cristianismo, mas também no Budismo.

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É frequente o encontro dentre monges cristãos católicos e leigos evangélicos  com monges budistas, sobretudo da tradição Zen

Essa aproximação, no entanto, apesar de ter começado já lá na antiga Alexandria, nos primórdios da cristandade – e, assim, tendo passado seis séculos desde a aparição do Buda Histórico – com as recíprocas influências decorrentes da inter-culturalidade do mundo helênico, só ganha ênfase e substancialidade, para Usarski, a partir do final do século XIX. O ápice ocorre durante os primeiros intercâmbios entre cristãos e a comunidade tibetana exilada na Índia e, paralelamente, com o esforço conjunto entre cristãos católicos e protestantes que desenvolveram um robusto programa de parceria com tradicionais centros de Zen Budismo, no Japão. E as respostas não poderiam ser melhores. Elas sinalizaram para frutos positivos desde a publicação de várias obras do monge cristão Thomas Merton sobre o Zen, nos anos 60, até os encontros globais promovidos na Itália pelo movimento católico Focolares, com enfoque na “unidade na diversidade”, nas décadas de 70 e 80 e, por fim, culminando com o recente encontro do Papa Francisco e os líderes das religiões globais, ocasião em que três representantes budistas de diferentes escolas (duas do Zen Budismo e uma do Budismo da Terra Pura) discutiram temas centrais para as tradições, nos âmbitos da Ética, da Ecologia, Paz Mundial e questões que envolvem a diminuição das diferenças sociais.

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De acordo com Frank Usarsk (2009), há tanto no Budismo quanto em vertentes do Cristianismo um espírito “metaprático” para se abrir a um número crescente de possibilidades de aproximação com o “outro”. Especificamente em relação ao Dharma budista, na própria estrutura argumentativa da doutrina, procura-se remeter a uma variedade de técnicas para situações e momentos diferentes e oportunos. Neste sentido, a comparação com o Cristianismo, mesmo em aspectos mais delicados como a questão do teísmo (como foi visto no movimento da Escola de Kyoto), ganha caráter de “meio correto” e adequado para chegar ao maior número de pessoas, sem que a “homogeneidade funcional da doutrina budista e a legitimidade das especificidades de todas as suas facetas” (USARSKI, 2009, pág. 196) sofra degeneração. Isso fica claro na estratégia de upaya, que se apresenta como uma figura argumentativa interessante para permitir a “representantes do Mahayana um olhar construtivo diante de fundadores e protagonistas de sistemas não-budistas, interpretados como coparticipantes do trabalho salvífico universal do Buda” (idem, pág. 198).

Ainda levando-se em conta o conceito de gênese condicionada, no Budismo,

o Mahayana concebe todos os partidos envolvidos em uma situação inter-religiosa como essencialmente idênticos. Isso vale não apenas para diálogos em uma atmosfera construtiva, mas também para situações de conflito em que o grau da hostilidade entre os partidos envolvidos é a expressão da incapacidade de enxergar o verdadeiro caráter do interlocutor, falha que o Mahayana pretende superar mediante o insight no fato de que em nenhum lado de uma disputa, mas sim um portador definitivo, poderia ser ofendido por argumentos em oposição à “sua” opinião. (USARSKI, 2009, pág. 199)

No mais, Usarsk (2009) destaca a tendência Mahayana para se orientar por princípios como o altruísmo e a compaixão diante do sofrimento dos outros. Desta forma, antes mesmo de qualquer abordagem proselitista, é-se observado o caráter da intervenção dos protagonistas envolvidos no diálogo, tendo como meta a atenuação e/ou superação de eventuais contratempos. Para tanto, como ficou claro no decorrer deste trabalho, os encontros inter-religiosos não dão ênfase a questões doutrinárias mais delicadas e que, por vezes, nos processos de comparação, possam irritar os cristãos. O tema da imanência e da transcendência, portanto, é levantando no Budismo pela escola de Kyoto, que recebe pressão dentro da própria comunidade japonesa para que, no processo de aproximação [com o Cristianismo], atente-se em preservar pecualiaridades-chaves do Dharma de Buda, notadamente os conceitos de Karma, originação co-dependente, agregados e vacuidade.

Do lado cristão chama a atenção, sobretudo, um forte interesse pelos temas budistas, num movimento que se acentua no pós-Segunda Guerra e que culmina com as recentes intervenções feitas pelo Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-religioso, do Vaticano, que acompanha com atenção o calendário anual budista e, com frequência, emite avisos públicos de congratulações pelos referidos eventos. Além disso, como foi exortado pelo documento Reflexões e orientações para o diálogo inter-religioso e o anúncio do Evangelho de Jesus Cristo, Documento comum do Conselho Pontifício para o diálogo inter-religioso e da Congregação para a evangelização dos povos, de 1991, o diálogo (e daí, obviamente se inclui o inter-religioso) é parte inseparável da própria missão evangelizadora da Igreja. Aqui, se refere a Igreja Católica, mas como foi destacado no decorrer deste trabalho, várias agremiações evangélicas – notadamente batistas e luteranos – também mantém a mesma postura.

Por fim, de acordo com o cristão Manuel Hurtado, s.j. (2000), mesmo em questões mais espinhosas, os eruditos do Cristianismo têm optado por uma postura de “compromisso e abertura”. Para tanto, ele se vale da tese de J. Dupuis, para quem o compromisso serve para

aquele que está em diálogo não pôr em questão as convicções mais profundas de sua fé. Mas também “abertura”, pois sempre há um risco para todo crente de absolutizar sua tradição de maneira indevida, e o diálogo deve ser justamente o lugar de uma abertura, que pede a cada um dos que estão em diálogo que não absolutize aquilo que é simplesmente relativo em sua respectiva tradição.  (HURTADO, 2000, pág. 3)

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Ou seja, há uma fundamentação sólida do lado cristão, de amadurecimento, que favorece o ambiente para o diálogo. Além disso, os eruditos cristãos, de acordo com os autores estudados, partem do pressuposto de que, no diálogo inter-religioso entre budistas e cristãos, há necessariamente uma transformação mútua, “num movimento que consiste em ‘ir mais além’ de sua própria tradição para voltar a ela”, talvez ainda mais convicto de sua fé. No entanto, tanto Usarsk (2009) quanto Lubac (2006) demonstraram a dificuldade – especificamente no campo teológico – de se conciliar compromisso com abertura. Este certamente é um desafio atual e que, no momento, está na pauta primeira dos líderes globais das tradições em questão.

Além de tudo, é importante destacar que tanto o Cristianismo – no Ocidente – quanto o Budismo – no Oriente – influenciaram a Filosofia de suas respectivas macro-regiões e, pelo menos nos últimos 100 anos, vêm marcando um intenso diálogo nesta esfera. Este é, certamente, um importante elo que aproxima as duas grandes religiões universais.

Do lado Budista, por exemplo, a Escola de Kyoto – como apresentado no decorrer do trabalho – teve um papel preponderante no sentido de estabelecer um colóquio frutífero entre a produção filosófica influenciada pelo Budismo e a Filosofia Ocidental, notadamente a vertente alemã. Dentre os pensadores europeus que, de alguma forma, “beberam” da fonte Oriental encontra-se os filósofos Friedrich Nietzsche, Arthur Schopenhauer e Martin Heidegger. Como apresentado pelo professor Joaquim Monteiro (2015), já houve ampla apreciação acadêmica em torno da produção destes autores, e suas relações com o Oriente, de forma geral, e com o Zen-budismo, de forma particular, foram alvo de várias teses de dissertações. No entanto, Monteiro (2015) e Neto (2011) destacam, cada um a sua forma, que as abordagens dos pensadores alemães sempre estiveram contingenciadas ao modo de filosofar grego. Desta forma,

A idéia de abertura ao diálogo com o Oriente em Heidegger tem como referência direta o diálogo com o universo grego, o retorno ao início, que se torna central em seu pensamento a partir do final da década de 1930 e que se expressa em sua forma mais evidente no texto O que é isto – a filosofia, de 1949, no qual é apontada a necessidade do diálogo com o mundo grego como possibilidade de resgate do caráter ontológico da linguagem, visto que,  naquele momento, as coisas eram ditas de forma tal que, ao serem nomeadas, o próprio Ser se  mostrava nelas mesmas. A idéia do desvelamento do Ser, no início do pensamento grego, em Heidegger, vincula-se, portanto, ao fato da linguagem enquanto Logos possibilitar o acesso direto às coisas. Nesse sentido, as obras de Heidegger que tratam do retorno ao universo  Grego estão em sintonia e dão continuidade ao problema do esquecimento da pergunta sobre o Ser, apontado inicialmente em Ser e Tempo. O pensamento pré-socrático, particularmente Parmênides, Anaximandro e Heráclito, é considerado por Heidegger como anterior a filosofia, visto que, até eles, o próprio termo filosofia ainda não havia sido usado e seu caráter  metafísico somente se desenvolve a partir de Platão e Aristóteles. (NETO, 2011, págs. 29 e 30)

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Superando esta questão, volta ao foco o fato de tanto o Cristianismo quanto o Budismo se configurarem como tradições que vão muito além de um conjunto doutrinário (religioso) e que, portanto, conseguiram expandir seus raios de influência para o chamado “fazer/produzir filosófico”, podendo até mesmo, em alguma medida, serem consideradas vertentes filosóficas com sustentação própria (XAVIER, 2001). Neste sentido, se no Budismo nomes como Nagarjuna, Atisha e Eihei Dogen, dentre tantos, tiveram uma efusiva produção (intelectual) para tentar sistematizar suas concepções sobre o dado conjunto de pensamentos, no Cristianismo isso ocorre por Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino e Mestre Eckahrt, só para citar três grandes nomes. Em comum entre ambos, mais uma vez, está a vontade de realçarem suas tradições como originais e universais, com forte impacto global.

Desta forma, se por um lado as vertentes filosóficas cristãs, por vezes, penderam para as “dominâncias correlativas do tema de Deus” e Sua relação com o Homem (XAVIER, 2001), numa concepção classicamente teísta, por outro lado o Budismo oferece explicações filosóficas que se contrapõem às grandes questões teológicas, e ao mesmo tempo reclama para si uma posição que está além do Teísmo, do Ateísmo, do Naturalismo e do materialismo mecanicista. Desta forma, como pontua Joaquim Monteiro (2015), são duas tradições que se complementam, pois nas suas constantes abordagens de caráter universalizantes, acabam por se configurar como contraposições naturais – e indispensáveis – para que ambas cresçam e experimentem novos patamares na investigação filosófica.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LUBAC, Henri de. Budismo Y Cristianismo. Salamanca – Espanha: Ediciones Sígueme, 2006;

BUDDHADASA, Ajah. Ensinamentos de Cristo, Ensinamentos de Budha. Belo Horizonte: Edições Nalanda, 1ª. Edição, 2014;

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XAVIER, Maria Leonor. O Cristianismo e a Filosofia Ocidental – I Colóquio sobre Filosofia da Religião (2001). Disponível em < http://religioes.no.sapo.pt/leonor2.html > – Acesso em 15/09/2015;

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MIKLOS, Cláudio. Palestra realizada em Seshin na cidade de Goiânia – Goiás. Maio de 2015.

 

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O que Budismo e Cristianismo têm de diferente, pela análise de Lubac e Usarski

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Um dos maiores estudiosos contemporâneos da aproximação entre o Budismo e o Cristianismo, o francês Henri de Lubac parte do pressuposto de que há um núcleo central entre estas duas tradições. Desta forma, apresenta o conceito de piedade que, nas duas expressões, acabam por tentar tirar o homem de suas projeções egóicas. E a piedade, neste contexto, de acordo com o francês, pode ser definida, dentre outras coisas, como “amar ao próximo como a si mesmo”, ainda que a importância do “eu” seja diminuída na abordagem oriental, ao ponto de tornar-se (esse “eu”) quase que insignificante. Haveria, portanto, um ideal contemplativo no sentido último da piedade. No Budismo, este ideal se expressa, sobretudo, no Caminho do Bodisatva (Bodi = mente, Satva = compaixão: ser de mente compassiva), que é aquele que renuncia ao Nirvana (ou ao Reino de Deus, como exemplifica Buddadhasa) até que todos os seres tenham alcançado a libertação/salvação.

Nas práticas contemplativas cristãs e budistas, lembra Lubac, a piedade ganha um novo sentido na medida em que, pela prática espiritual, o agente (que realiza a piedade) não é influenciado por fatores meramente emocionais e, portanto, é possível manter um estado de serenidade em que o colocar-se no lugar do outro, sofrer com o outro transcende e ganha um sentido ampliado. No entanto, esta abordagem causou confusão nos historiadores ocidentais, diz Lubac.

Habiendo visto bien que la piedad budista no se ocupa de los casos particulares y que no debe confundirse en modo alguno com lós movimientos de uma fácil sensibilidad, han considerado demasiado rápidamente su carácter general como un signo de universalidad; de esa forma han olvidado que entre ló general y ló universal existe aún toda la diferencia que hallamos entre ló abstracto y ló concreto […]. (LUBAC, 2006, pág. 52)

Lubac lembra que a piedade tem três sentidos para o Budismo Mahayana¹, sendo a sattvalambana karuna, a dharmalambana karuna e a analambana karuna. Na sattvalambana karuna a piedade é focada para os seres que sofrem, de modo particular. Ela é uma manifestação incompleta pois ainda leva em conta uma realidade fenomênica, aquela visível aos olhos, apresentada pelo ser que sofre. No caso da dharmalambana karuna há um avanço na percepção de inseparatividade entre aquele que se apieda daquele que é objeto de piedade. Portanto, como nesta fase se superou o sentido de dualidade, o que fica é apenas as sensações dolorosas por si mesmas (já que o “eu” que sente tal sensação é visto como um conjunto de agregados, e não como um ente intrínseco e imutável). “Pero este es todavia um conocimiento aproximado, porque lãs sensaciones dolorosas no existen pó sí ni em si. Este segundo tipo de piedad implica aún um tipo de avidya (desconocimiento)” (Lubac, pág. 56). Por fim, a analambana karuna se refere a piedade pura, aquela que não tem um objeto. Ela ocorre não por as criaturas, não para remediar os sofrimentos, mas sim de um modo totalmente gratuito, pelo puro amor da piedade. Assim, “una virtud resulta tanto más alta cuanto más pura sea […]. [Allí entonces] habria la piedad perfecta, ideal” (idem, pág. 57).

Tanto no Budismo quanto no Cristianismo a piedade é um fator de valor universal, mas para o primeiro ela não pode ter caráter antropomórfico, sob o risco de perder importância. “Incluso aquel que se sacrificara a favor de todos lós seres, sin preferências particulares” (idem, pág. 54). Este sentido de piedade, destaca-se, se assemelha ao amor indiscriminado de Cristo, que considerava todos como parte de sua família, independente dos laços consanguíneos. À frente, São Paulo ampliaria esta visão ao estabelecer a mensagem cristã como de caráter universal e com forte ideal de justiça, não restrita a um único povo ou região, com um apelo que, num olhar mais aguçado, estende a visão cristã, lembra Lubac.

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O Budismo é uma religião não-teísta

Passado este primeiro momento, é necessário debruçar-se sobre o conceito de amor “com” e “sem” Deus. Para o Cristianismo, de acordo com Lubac, o Mandamento do amor do homem por Deus tem as mesmas bases do amor de Deus pelos homens. Amar ao próximo, então, estaria ancorado no amor a Deus, já que Ele também ama e se expressa no próximo, “porque el hombre há sido creado a imagen de Dios” (idem, pág. 54). Assim, através da imagem divina que se expande pela criação, o homem participa, com efeito, da eternidade de Deus. Desta forma, a vida eterna inclui, também, o conceito de amor ao próximo – e amar ao próximo é amar a si mesmo. “La Fe y la esperanza pasarán, para ceder su lugar a la vida y a la posesión; pero la caridade no passará nunca” (idem, pág. 55).

No Budismo, no entanto, pela falta de enfoque ontológico, toda prática caridosa e todo altruísmo levam à liberação dos desejos, e há uma negação de qualquer abordagem eternalista. A caridade e a piedade, portanto, “es uma virtud provisional. Dicho de outra forma, esa caridad forma todavia parte de ló que lós budistas llaman ‘el orden mundana’. Por médio de ella no puede definirse, em modo alguno, el ser – o el no-ser – supremo” (idem, pág. 55). Vale ressaltar que o Buda considera o amor como uma forma de redenção do coração, no entanto

este amor no toma su sentido de los esfuerzos que hace aquel que ama, a fin de reafirmar y de sostener el valor del que es amado, sino de lós esfurzos dirigidos hacia la aniquilación y supresión de la realidad y del modo de ser de aquel ama […]. (LUBAC, 2006, pág. 56)

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O Budismo, sobretudo o tantrayana, concebe a existência de deidades; na imagem, Mahakala

Sobre a questão de deidades no Budismo, ou mesmo em relação à existência de algo que transcende a realidade, numa referência teísta (obviamente, um teísmo sem traços antropomórficos), Lubac destaca a doutrina Yogacara, dentro do Budismo Mahayana (escritos e comunidades posteriores às primeiras comunidades budistas), que se divide em duas teorias. De um lado, a abordagem Yogacara diz que há budas que atraem os seres até eles, envolvendo-os até que (os seres) amadureçam ao ponto de despertar, de alcançar a budeidade.

Por otra parte, añaden que, sin esperar El cumprimiento de esa ‘maduración’, lós budas ofrecen a los seres un pregusto de la felicidad suprema, manifestándose a ellos a través de su sambhogakaya¹. Pero em realidad estas dos teorias no recuerdan em nada al Dios Cristiano dela caridade. (LUBAC, 2006, pág. 58)

A primeira teoria, de acordo com Lubac, lembra o deus da concepção aristotélica, imutável e sem amor, para o qual convergem todos os seres movidos pelo desejo (de se reconectar). No entanto, o francês lembra que na própria concepção de Asanga, um dos doutos das doutrinas budistas mahayana, a existência dos budas e de todos os outros seres (sencientes ou não) surge a partir de relações interdependentes, não havendo, portanto, um único ponto de partida, mas um conjunto destes. Desta forma, ante uma “multitud de lós seres que, sin ninguna causa (sin ningún Dios que lês impulse), van avanzando hacia la maduración completa, en todos lós lugares, de todas las formas” (idem, pág. 58). Ou seja, mesmo se se levar em conta que há uma influência dos budas sobre os seres sencientes, estes budas, por si próprios, não têm existência separada. São aspectos da budeidade impessoal e insubstancial que absorve a todos em um único dharmakaya².

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A segunda teoria, de acordo com Lubac, evoca a divindade contida na filosofia spinozana, para quem Deus é tido como único motivo da existência de tudo o que existe. Desta forma, Deus é substância única, sendo que nenhuma outra realidade pode existir fora d’Ele, e a partir d’Ele surgem todos os outros elementos. Assim, a essência de Deus implica a sua própria existência. Desta forma, em Lubac

En la raiz de la caridad ha de haber necesariamente independencia. Si los budas no se contentan com su dharmakaya, en el cual están unificados, si se manifiestan a los bodisatvas por mediación de sus sambhogakaya, esto significa que están interesados en ello. (LUBAC, 2006, pág. 59)

Passada esta observação inicial, sobre algumas das características principais da cristandade, que é o amor ilimitado a Deus, ao próximo (como expressão de Deus) e a si mesmo (dentro de certos limites, para evitar cair na armadilha da autopistis e respeitando a centelha divina que há em cada criatura), Lubac lembra que a concepção budista para “amor” se assemelha ao “amor ao próximo” dos cristãos. Para tanto, cita outro douto das doutrinas budistas, Shantideva³, que defendia que todos os seres são semelhantes aos budas, na medida em que possuem uma parcela das virtudes de um Buda. “Esta parcela insigne está presente em las criaturas; en virtud de esta presencia, las criaturas deben ser honradas” (idem, pág. 59).

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Superando mal-entendidos

Lubac diz que, depois de destrinchar a conceituação do amor, própria do Cristianismo, e procurando estabelecer os pontos de contato com o Budismo, há alguns aspectos defendidos por vários historiadores que merecem especial atenção. O francês lembra que no decorrer dos últimos 200 anos

no resulta em modo alguno sorprendente que los historiadores hayan descubierto que muchos textos cristianos se relacionan com otros budistas, a medida que estos han sido más conocidos. A veces se han sugerido acercamientos sorpredentes, que parecen obligarnos a plantear la hipótesis de que existen lazos reales entre las dos religiones. (LUBAC, 2006, pág. 105)

Os principais pontos que marcam as aproximações são calcados em algumas indagações importantes, como a necessidade de supor ter existido uma relação histórica entre as duas concepções – através do elo comum entre elas, o helenismo4 –, além do pressuposto de que o lastro doutrinário comum pode ter sido decorrente de um movimento do espírito humano que se pulverizou por todo o planeta, mais ou menos num mesmo período, numa série de processos análogos. Além disso, é questionado se no atual momento de conhecimento advindo de pesquisas de toda ordem, as relações entre a Índia e o Mediterrâneo atingiram tal estágio de influência mútua. “Si hubiera que admitir una influencia, habría que perguntarse todavía en qué sentido se ha dado” (idem, pág. 106).

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Budismo e Cristianismo provavelmente se cruzaram no antigo mundo helênico

Lubac (2006) lembra que a Europa tem pressa para compreender este processo, sobretudo porque o que se entende por Ocidente, na realidade, começa no Irã, região que abrigou um entreposto de diferentes tradições, que acabaria por resultar nas grandes religiões que sobreviveram até a contemporaneidade. Além disso, há ressonâncias neoplatônicas (assim como houve no Cristianismo) nos escritos de Asanga5, grande influente da doutrina budista. Outro detalhe é a presença da cosmologia helenista na Índia através dos mistérios de Mitra6, sendo que movimentos como o Amidismo7 budista do extremo oriente pode ter sofrido alguma influência desta abordagem (assim como alguns historiadores também atribuem essa mesma influência sob o Cristianismo). A grande questão levantada por Lubac é saber se foi o helenismo quem influenciou o Budismo ou vice-versa, ou ainda se houve uma influência recíproca entre estas tradições.

Especificamente sobre a possível influência hindu na formação do pensamento neo-platônico, Lubac prefere não entrar nesta seara, pois a existência de uma colônia budista em Alexandria é algo que, até o momento, ainda não se conseguiu provar totalmente. O que se sabe, a partir da análise dos escritos da época, é que os alexandrinos tiveram um conhecimento menos deturpado dos temas budistas, em relação às outras regiões pertencentes ao antigo Império Romano, o que sugere que aquela sociedade, de alguma forma, teve um contato mais próximo com o Dharma de Buda.

Lubac (2006) diz que são legítimos os estudos e comparações dos escritos de Orígenes8 de Alexandria que geraram estreitas aproximações tanto com o conceito de “manifestação de Deus em Fílon9” quanto com a exegese mais universalmente aceita do sutra budista Parinibbana-sutta. De acordo com Lubac, a ideia de Orígenes de universalidade na redenção de Cristo, além da eficácia sem limites do sangue derramado na cruz e, por fim, uma visão particular em relação os diferentes estados do Logos, aproxima-se sobremaneira da visão budista dos corpos de Buda, mas que de maneira alguma as duas versões podem ser consideradas idênticas.

Em Orígenes um dos pontos analisados é o de que o Logos assume diversos estados (corpos) – inclusive a forma angelical – para não apenas dirigir-se aos homens, mas a todas as criaturas. Para reforçar este aspecto, Lubac cita um dos comentários de Orígenes aos escritos de São Mateus:

Si tú puedes contemplar al Logos que ha vuelto a su primer estado, después que se há hecho carne y después que se ha hecho todos los tipos de cosas para los hombres, habiéndose hecho para ellos aquello de ló que cada uno de ellos tenía necesidad, a fin de ganarlos a todos; si tú puedes contemplarle después que ha vuelto a esse estado em El que él era em el principio junto a Dios… etc. (LUBAC, 2006, pág. 110)

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Haveria uma analogia, de acordo com Lubac, entre este escrito – só para citar um deles -, e o pano de fundo tanto do gnosticismo quanto do Budismo. O francês diz que os textos oferecem uma ideia comum que aponta para uma “economia” nas manifestações divinas, “economia” que os budistas aplicaram, por sua parte, às manifestações de Buda. Assim, “Cristo es ángel entre los ángeles, como Buda es Bodisatva entre los bodisatvas y dios entre los dioses” (idem, pág. 115). No entanto, mais a fundo, alerta Lubac, existem diferenças entre a encarnação do Logus cristão com o conceito de nirmanakaya (corpo de aparência – físico – dos seres puros) presente no Parinibbana-sutta. Da mesma forma, a transfiguração de Cristo, que é comparada ao sambhogakaya, pode ter aproximações apenas sob um aspecto, o da sutileza envolvida no processo, que transcende a expectativa do que se espera de uma manifestação física. No entanto, a insubstancialidade do sambhogakaya se opõe ao idealismo contigo na concepção cristã, lembra Lubac.

 

Naturalização e desnaturalização

Por fim, Lubac (2006) diz que não se pode negar que budistas e cristãos encontraram elementos comuns para a elaboração de seus símbolos. E estas semelhanças ocorrem no campo da linguagem, do discurso e das sucessivas tentativas de aproximação, e talvez a mais sólida destas aproximações é a herança genealogicamente semelhante (estruturalmente falando), em que ambos partem de arcabouços doutrinários muito antigos – no caso do Budismo, uma continuação dos Vedas, no caso do Cristianismo, uma “atualização” do Antigo Testamento – que, em certo sentido, representaram rupturas. Mas as aproximações ocorreriam apenas em análises simbólicas desta ordem, e não nos detalhes doutrinais. Ou seja, enquanto que para os budistas a espiritualidade se recobre de colorações espirituais naturistas, “todo ensayo de interpretaión naturista sería, en su caso, totalmente desnaturalizador” para o Cristianismo (idem, pág. 90). O homem, portanto, na sua tentativa de reconexão com o Sagrado, aponta para um caminho de transcendência. Mais do que isso, no Budismo a salvação vem do conhecimento que o homem descobre por si próprio, com auto-poder e, desta forma, tem a capacidade mental e emocional para cessar os aparecimentos futuros (encarnações futuras). No Cristianismo, no entanto, a “árvore do conhecimento” brota de Deus, é a árvore da vida eterna, da fonte de toda a vida, expressa pelos sacramentos da igreja.

Desta forma, Lubac (2006) parece querer apresentar um antídoto para toda tentativa de generalizações apressadas entre as aproximações das duas tradições ora estudadas. No coração de ambas as religiões, em que pese uma semelhança simbólica – de caráter histórico -, doutrinariamente há diferenças no sentido de caridade/compaixão e na abordagem que defende igualdade entre a transfiguração de Cristo e o conceito dos corpos de Buda.

Já Frank Usarski (2009) aponta um problema central, a questão de Deus, como um dos fatores preponderantes que diferenciam as doutrinas cristã e budista. Uma vez que o Budismo rejeita a ideia de que há um Deus a partir do qual todo o restante surge – ele defende a gênese condicionada12 -, a investigação começa a partir do suposto problema da teologia cristã que detém

um modelo que pretende explicar a existência do cosmo físico ou das forças nele existentes, [e ainda assim] precisa recorrer a uma concepção teísta. Também escapa à lógica budista a necessidade de postular uma “causa primeira” da qual dependem todos os demais aspectos da existência. (USARSKI, 2009, pág. 254)

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Além disso, destaca Usarski (idem), pela interpretação geral cristã, Deus é criador e senhor de um universo produzido ex nihilo (a partir do nada). Há, portanto, uma visão dualista do mundo, sendo o conceito de Deus totalmente transcendente e “completamente outro” em relação à criação.

O fato de a Bíblia atribuir a Deus o poder de interferir nesse mundo não muda a ideia de separação da existência em duas esferas, uma vez que as intervenções divinas que culminaram com a encarnação de Deus em Jesus Cristo são de caráter escatológico e não ontológico – elas, portanto, não questionam o dualismo cosmológico. (USARSKI, 2009, pág. 254)

Este tipo de abordagem é visto com reservas pelo Budismo de forma geral, e pelo Theravada13 em particular. Isso porque o Buda estaria essencialmente interessado na concepção psicológico-antrológica da existência, e as eventuais “consequências soteriológicas”. No entanto, sempre que questionado sobre assuntos de ordem metafísica, dava de ombros ou ficava em silêncio, ou ainda dizia claramente que considerava tais discussões inócuas, irrelevantes. No entanto, essa posição – de negação dos aspectos ontológicos no Budismo – não demorou muito tempo. O próprio surgimento do movimento mahayana é, segundo Usarski, uma resposta a esta questão. Isso teria ficado claro quando os budistas apresentaram a o conceito dos três corpos do Buda (ou Trikaya). Sobre este tema e a tentativa de aproximá-lo a alguns dogmas cristãos, Masao Abe – um dos principais expoentes da escola de Kyoto – dedicou boa parte da sua vida.

Se, por um lado, isso foi encarado como algo bem-sucedido do ponto de vista budista, por outro Abe a seus colegas foram acusados de tentar reformular a ideia de um Deus monoteísta a partir das categorias mahayanistas, em detrimento da autenticidade dos ensinamentos cristãos centrais. […] A doutrina dos três corpos é uma teoria budológica, segundo a qual a última realidade não-substancial e impessoal (dharmakaya) se manifesta em dois planos “concretos”. Esses dois planos correspondem aos Budas sutis, com seus corpos de glória (samboghakaya), e ao Buda histórico, cuja forma corporal “grosseira” é denominada de nirmanakaya. […] Nesse sentido, o plano de nirmanakaya é associado a Cristo, enquanto o Deus monoteísta cristão é colocado em analogia ao plano de samboghakaya. (USARSKI, 2009, pág. 255)

Usarski (2009) lembra que a primeira grande dificuldade desta abordagem – como já se viu em Lubac – é que para um budista esta analogia pode soar de forma não-problemática, mas “corre o risco de ser classificado, do ponto de vista cristão, como uma espécie de blasfêmia” (Idem, pág. 257). Além disso, segundo Usarski, a teoria de Abe revelou que a Teologia cristã até então não tinha sido pensada até as últimas consequências.

De acordo com uma leitura mais construtiva da obra de Abe, pode-se dizer que o filósofo da escola de Kyoto tentou melhorar a imagem teologicamente deficitária do Cristianismo. Para esse fim, praticamente realizou concessões teológicas a ambos os lados, sugerindo que tanto a concepção mahayanista, impessoal-monista da vacuidade (sunyata) quanto a ideia cristã refletem as respectivas construções básicas da outra religião. (USARSKI, 2009, pág. 257)

Por fim, sunyata é praticamente apresentada por Abe como uma espécie de “causa primeira” que se esvazia constantemente, num frenético movimento dialético em que a existência passa a oscilar entre dois estados (o vazio gerado pelo próprio vazio). “Com isso, a concepção monista-ontológica da unidade de samsara14 e nirvana torna-se um ‘princípio da criação’” (idem, pág. 258). Desta forma, a partir das contribuições de Abe, há uma aproximação tangível entre a teologia budista e a cristã.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Aproximações e distanciamentos: além da insubstancialidade

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De acordo com Joaquim Monteiro (2015), até bem pouco tempo a Filosofia da Religião se calcava, basicamente, em problemáticas que tinham como base a dinâmica das construções argumentativas em torno do teísmo, seja na tentativa de corroborá-lo, seja na tentativa de desenvolver um arcabouço de conhecimentos que gira em torno de conceitos como “essências, substâncias e Verdade” (MONTEIRO, 2015, pág. 3), que invariavelmente tenderiam a convergir para a questão da existência (ou inexistência) de Deus. Assim, elas [as tendências] teriam desenvolvido um quadro temático

extremamente limitado na medida em que consideram o teísmo como a questão central e a essência auto evidente da religião. A meu ver, este posicionamento das tendências dominantes da filosofia da religião acaba limitando-se à reconstrução de algumas temáticas tradicionais, obstaculizando desta forma um questionamento mais radical a respeito do que constitui a essência das religiões. (MONTEIRO, 2015, pág. 3)

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Joaquim Monteiro diz que não há dúvidas de que “a filosofia precisa interessar-se pelas asserções de verdade das religiões” (idem, pág. 4), mas que as perspectivas e problematizações levantadas neste âmbito teriam que levar em conta as principais configurações antagônicas – históricas e/ou contemporâneas – para que se evite cair numa postura limitante, numa polarização entre o teísmo e o materialismo mecanicista. Haveria, portanto, outras matizes para delinear tal diálogo. Monteiro lembra que o Budismo, por exemplo, não se enquadraria em nenhuma destas duas vertentes. Para ele,

o discernimento da impermanência, da insatisfatoriedade e do vazio de categorias como os “agregados” […] exclui de forma radical a perspectiva teísta, mas ao mesmo tempo, a distinção clara presente na filosofia budista entre os “dharmas da mente” e os “dharmas da forma”, assim como a resoluta negação de que os “dharmas da mente” possam se extinguir naturalmente constitui-se como uma clara recusa de qualquer perspectiva de um materialismo mecanicista. (MONTEIRO, 2015, pág. 4)

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O monge trapista Thomas Merton estabeleceu profícuo diálogo com os budistas

As implicações primeiras desta constatação, de acordo com Monteiro, é a de que “na medida em que uma das religiões mundiais explicita um ponto de vista crítico em relação tanto ao teísmo quanto ao naturalismo esse ponto de vista não pode ser ignorado por uma filosofia da religião” (idem, pág. 5). Com isso, sendo o Cristianismo – e todas as suas vertentes filosóficas – a maior expressão atual do teísmo, e embora as tendências da Filosofia da Religião tenham atingido elevados patamares de rigor e sofisticação “através dos procedimentos da filosofia analítica” (idem, pág. 3), elas precisam de contraposições filosóficas radicais para que possam levar algumas questões até as suas últimas consequências. Desta forma,

Uma interrogação radical a respeito da essência da religião não pode ignorar de forma alguma que o pensamento budista representa o contraponto filosófico mais forte ao ponto de vista dos monoteísmos. Uma filosofia da religião que ignore esta realidade do Budismo como o mais forte e mais sistemático contraponto ao teísmo entre as religiões mundiais está fracassando de forma essencial em sua interrogação sobre a essência da religião por mais rigorosos que possam ser os seus instrumentos lógico-semânticos.  (MONTEIRO, 2015, págs. 4 e 5)

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Monges cristãos visitam comunidade budista (tibetanos) no Nordeste da Índia

Joaquim Monteiro diz, no entanto, que “não é fácil pensar o vínculo necessário existente entre a filosofia e a religião em meio ao pensamento budista” (idem, pág. 5).  Isso porque, no cerne do Budismo, pressupõe-se “uma passagem da ignorância para a sabedoria mediada pelo ensinamento do Buddha” (idem, pág. 5). Por esta ótica, o exercício da filosofia se dá “como um processo de auto conhecimento e de auto transformação” (idem, pág. 5). E embora essa definição possa parecer vaga, é importante destacar aqui que a filosofia budista “não só pressupõe um conjunto de conceitos articulados de forma clara e rigorosa, como possui também uma história do desenvolvimento de suas temáticas” (idem, pág. 5).

A meu ver, o campo das temáticas da filosofia budista se define por um lado através da consolidação da “teoria dos dharmas”16 na escola Sarvãstivãda, e por outro, em função das sucessivas críticas desenvolvidas em relação a esta teoria por escolas posteriores como a Sautrântica e a Yogacãra. Nesse sentido, é possível falar não só de temáticas teóricas constitutivas da filosofia budista, como também de uma história da filosofia budista. (MONTEIRO, 2015, pág. 5)

 De acordo com Joaquim Monteiro, há uma explicação sobre a “teoria dos dharmas”, empregada num âmbito mais restrito [de estudo do Budismo], que aponta para a categorização dos “5 agregados”, das “12 entradas” e das “18 esferas”, sendo estas últimas uma tentativa de abarcar a chamada “gênese condicionada”. Esta divisão elucida uma das questões centrais para a discussão filosófica oriental, a da diferenciação entre dharma e fenômeno.

Especificamente sobre as “18 esferas”, trata-se das

6 bases sensoriais (os cinco sentidos mais a mente entendida como um processo de captação dos processos mentais imateriais), os 6 objetos (os objetos dos cinco sentidos e os eventos mentais sem referência sensorial) e as 6 consciências que surgem da interação entre as bases e os objetos. Essa categoria analítica possui dois aspectos importantes. No primeiro deles, ela inclui toda a experiência possível, mental e sensorial. Ou seja, essa categoria pressupõe a capacidade de abarcar em si a totalidade da experiência possível. Na segunda, ela pressupõe a análise das características comuns de todas as “18 esferas”, ou seja, da impermanência, da insatisfatoriedade e do vazio de ãtman comuns a todas essas “18 esferas”. Essa segunda característica nos conduz ao problema de sua relação com o mais importante objeto de negação na filosofia budista: o conceito de ãtman”. (MONTEIRO, 2015, pág. 7)

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Vale destacar que, ao não aceitar o conceito de ãtman, a negação se dá pela própria categorização das esferas, tendo em vista que a existência do “ãtman só poderia se dar como algo idêntico às esferas, como idêntico a alguma das esferas em particular ou como distinta de todas as esferas” (Idem, pág. 7). Desta forma, caso uma existência seja pensada pela ótica das “esferas”, como cada “uma das esferas está associada a um domínio específico da experiência, existe aí o referencial concreto de consciências auditivas, mentais ou visuais mas absolutamente nada que possa tornar-se o referencial do ãtman” (idem, pág. 7).

Desta forma, levando-se em conta que todas as esferas são “impermanentes e insatisfatórias nenhuma delas apresenta a característica do ãtman”. Já sobre a diferença entre dhama e fenômeno, Monteiro diz que a categorização pelas “18 esferas” também acaba por elucidar os contrastes.

No que diz respeito ao conceito de “fenômeno” como aquilo que aparece ou aquilo que vem à luz, em contraste com a “ideia do gato” presente no mundo platônico das ideias, o gato concreto sujeito ao nascimento e à morte como um indivíduo seria o “fenômeno”. Ou seja, conceito de gato como “fenômeno” implica em sua unidade. No entanto, o conceito das “18 esferas” decompõe essa unidade em uma multiplicidade. (MONTEIRO, 2015, pág. 7)

Desta forma, em Monteiro (2015), a aplicação do conceito de “dharma” à análise da experiência conduz necessariamente à dissolução da unidade em multiplicidade. No entanto, surge um problema ainda não resolvido e que, portanto, poderia ser alvo de novas investigações em trabalhos futuros: é possível estabelecer mediações entre o autoconhecimento e autotransformação subtendido na filosofia budista com as provocações concretas de historicidade, ética e política?. Monteiro diz que esta indagação está em aberto e que aponta para um sentido de “liberdade absoluta” e “liberdade relativa”, no arcabouço filosófico budista.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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MIKLOS, Cláudio. Palestra realizada em Seshin na cidade de Goiânia – Goiás. Maio de 2015.

 

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A genealogia do diálogo inter-religioso entre Budismo e Cristianismo

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O historiador das religiões Frank Usarski, da PUC-SP, apresenta duas similaridades explícitas entre o Budismo e o Cristianismo, quais sejam, o caráter universal de ambas e o fato de que o público alvo das duas tradições é irrestrito “tanto em termos geográficos quanto em termos étnicos” (USARSKI, 2009, pág. 97). Isso ocorre porque ambas possuem enfoque missionário, carregam em sua gênese o ímpeto de se espalharem por todo o mundo. Desta forma, defende Usarski, era só questão de tempo para que os líderes das duas tradições se encontrassem e, a partir destas trocas iniciais, estabelecessem um diálogo inter-religioso.

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O primeiro representante da Igreja [Católica] que se referiu explicitamente ao Buda e seus seguidores foi Clemente de Alexandria (150-215). Logo depois, ganharam relevo as primeiras atividades missionárias cristãs realizadas em regiões onde o Budismo já desempenhava um papel cultural significante. A frequência, qualidade e densidade dos contatos entre cristãos e budistas dependiam de uma série de fatores. Além das configurações internas de cada partido envolvido e seus interesses espirituais propriamente ditos, as situações de intercâmbio foram moldadas por constelações socioeconômicas e ambições políticas “externas” constitutivas para o “horizonte” em que os contatos inter-religiosos ocorriam. (USARSKI, 2009, pág. 98)

Partindo deste pressuposto, Usarski estabelece três grandes cenários de intercâmbio entre o Budismo e o Cristianismo, ocorridos na Índia, na China e no Japão. Os frutos destes “encontros” não se resumiram a um interesse imediato, aponta Usarski, e foram decisivos para que o diálogo inter-religioso prosperasse e resultasse em novas determinantes subjacentes das respectivas relações. Especificamente no Japão, como também defenderia o erudito japonês D. T. Suzuki (1870-1966), tanto o Cristianismo quanto o Budismo se influenciaram mutuamente, já que foi possível perceber estas nuances de forma mais detalhada.

A expansão do Cristianismo para o Oriente começa pela Índia e, depois, se estende ao Norte pela “Rota da Seda”, isso já nos dois primeiros séculos de formação da cristandade. Os primeiros contatos, comenta Usarski, foram feitos de forma esporádica e por representantes cristãos individuais, apesar de pertencerem a determinadas ordens que já se esforçavam para fundar comunidades locais na Ásia. Assim, como era de se presumir, os primeiros grupos cristãos foram estabelecidos na Índia, e há “índicos claros da existência de cristãos indianos desde o século III” (idem, pág. 99). Mais à frente, por volta de meados do século IV, “um delegado do imperador romano Constantino II (337-340) viajou ao Sul da Índia para reformar as comunidades cristãs já existentes na região, conforme a prática romana” (idem, pág. 99). Pouco tempo depois, por volta do ano 550, Kosmas Indikopleustes, autor e viajante grego, diz ter visto florescentes comunidades nestorianas11 no subcontinente e, por fim, já quase no período de extinção do Budismo na Índia, no século XI, o franciscano italiano Giovanni di Montecarvino (1264-1328) entra em contato com uma comunidade católica nascente naquele país. Vale destacar, diz Usarski, que a expansão do Império Português para aquela região, no século XIV, foi fundamental para que os processos missionários começassem a tomar força. No entanto,

Apenas recentemente a relação Budismo versus Cristianismo ganhou relevância na Índia. Entre as últimas décadas do século XVIII e a Primeira Guerra Mundial, missões protestantes, particularmente batistas, tiveram especial sucesso entre os sem-casta e os representantes das castas mais baixas. Muitas dessas conversões foram motivadas pelo desejo, por parte dos conversos, de deixar um status desprivilegiado no sistema social hindu. Essa tendência, válida até os dias de hoje, coloca o Cristianismo (que em 2001 era a religião de cerca de 2,4% da população indiana) em uma situação de concorrência com o Neobudismo de Bhimrao Ramji Ambedkar. O movimento criado por este último tem atraído uma clientela semelhante e representa uma parcela considerável dos cerca de 8% budistas no país atualmente. (USARSKI, 2009, pág. 98)

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E é justamente nesta constelação de competição, destaca Usarski, que começa de fato a acontecer o diálogo inter-religioso entre cristãos e budistas, tal qual conhecemos hoje no país. Em 1981, tanto cristãos luteranos quanto budistas seguidores de Ambedkar percebem que era necessário dialogar, já que ambas as religiões eram minoritárias no subcontinente marcadamente regido pelo Hinduísmo. Desta forma, “foi sugerido que as programações dos encontros não se restringissem a um intercâmbio acadêmico. Seria necessário incluir nas agendas […] cursos de meditação e projetos sociais como plataforma para ações conjuntas” (idem, pág. 100). E vários encontros destes ocorreram na primeira metade dos anos 80 do século passado. Vale ressaltar que

Todos os encontros mostraram-se relativamente desinteressados de temas teológicos clássicos, típicos dos diálogos eruditos. Em vez disso, salientaram assuntos relacionados a problemas sociais, políticos e culturais relevantes tanto para os cristãos quanto para budistas. (USARSKI, 2009, pág. 101)

Esse contato se aprofundou na década de 80, notadamente em decorrência do deslocamento de parte dos refugiados tibetanos que fugiram do Tibete junto com o Dalai Lama e se instalaram no Nordeste da Índia. Começa a haver, então, uma inédita e frutífera aproximação entre o Cristianismo e a vertente tibetana do Budismo, conhecido como Vajrayana10, que nas palavras do Lama argentino Zopa Norbu, é o que mais se aproxima da abordagem cristã tanto em relação a aspectos simbólicos quanto doutrinariamente falando.

Do ponto de vista histórico, contatos com o Tibete, devido à sua localização geográfica, eram relativamente raros. Os poucos missionários que, nos séculos XVII e XVIII, venciam as condições geográfico-climáticas extremamente difíceis não deixaram marcas significativas no “País das Neves”. […] Com a anexação do Tibete à China em 1949 e a fuga subsequente de 80 mil tibetanos [para a Índia] a situação mudou, oferecendo novas condições para encontros in loco entre cristãos e budistas da tradição tibetana. (USARSKI, 2009, pág. 101)

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A entrada e consolidação do Cristianismo no Oriente se deu de forma lenta

As primeiras experiências não foram nada amistosas. Usarski destaca que ao entrarem nas escolas de confissão cristã, os jovens tibetanos protestaram por ter que, obrigatoriamente, estudar o Cristianismo. No entanto, algum tempo depois a aproximação ganharia novos contornos, desta vez de forma positiva. Em 1968 o monge trapista americano Thomas Merton visita o Dalai Lama em sua casa em Dharamsala. Surge daí novas “intenções e condições mentais de cristãos ocidentais interessados em um intercâmbio com o Budismo” (idem, 102). No mais, o diálogo se ampliou nos anos 80, e se consolidou nos anos de 1990 e na última década em particular. Simultaneamente a todo este movimento, foi firmado um convênio entre o Dalai Lama e “o North American Board of East-West Dialogue referente a um programa de intercâmbio de longa duração entre integrantes de mosteiros budistas e cristãos” (idem, pág. 102).

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Na China, os nestorianos se deparam com um misto entre Budismo e Confucionismo

Na China, por sua vez, o Cristianismo entra através da abordagem nestoriana11, no ano de 635. “Três anos depois, fundaram um mosteiro em Xianfu, cidade no leste da China. […] No século IX a religião desaparece temporariamente na China, e reaparece com vigor” (idem, pág. 103) durante o reino dos mongóis, entre 1271 e 1368. No entanto, em meados do século XIV, “os nestorianos foram definitivamente expulsos, sem que tivessem deixado impacto marcante e duradouro sobre a cultura chinesa” (idem, pág. 103). Sobre o declínio dos nestorianos na região, Usarski diz que é importante

lembrar a existência de uma pintura em seda, feita por volta do ano 1000 em Dunhang, noroeste do país, que mostra Jesus na forma de um bodisatva. Muitas cruzes que os nestorianos deixaram são ornamentadas com uma flor de lótus, uma das metáforas mais conhecidas do Budismo. Havia até mesmo uma igreja cristã em Shuipang, cidade no oeste da China, cuja torre foi construída de acordo com a arquitetura em que a construção de santuários budistas (stupas) se baseia. Essas e outras concessões dos nestorianos ao seu ambiente, assim como a dificuldade do público de identificar o diferencial da oferta cristã, podem ter contribuído para o declínio gradual e desaparecimento completo desta primeira comunidade cristã no país. (USARSKI, 2009, pág. 101)

Já os missionários jesuítas que entraram por Macau, no entanto, estabeleceram uma sólida onda proselitista que durou pelo menos dois séculos. Eles ocuparam inicialmente a região do Cantão (1556) e, em seguida, partiram para Pequim, capitaneados pelo missionário Matteo Ricci (1552-1610), que era ciente da importância do Confucionismo na formação cultural dos povos daquela região e, assim, optou por um método missionário “de acomodação, destinado a diminuir as tensões culturais entre o Cristianismo e o Budismo” (idem, pág. 106). Uma das primeiras consequências desta aproximação foi a veneração a Confúcio, por parte dos cristãos, e a inclusão do culto aos ancestrais na liturgia da igreja. O Lama Zopa Norbu, no livro “O Coração da Bondade”, diz também que outro importante elemento da cristandade sofreu forte influência confucionista: o uso de batinas pelos sacerdotes cristãos. Este paramento já era usado há séculos pelos sacerdotes confucionistas e, acredita-se, “o contato com a cultura chinesa fez com que os cristãos incorporassem este paramento em particular na sua ritualística” (NORBU, 2009, pág. 82).

Outro ponto importante é que, àquela época, a comunidade local não diferenciava os seguidores cristãos dos praticantes budistas. E durante os primeiros anos na China, Usarski disse que tudo leva a crer que os jesuítas não fizeram nenhum movimento para tentar estabelecer esta diferenciação.

De acordo com o método de acomodação, vestiam-se como se fossem membros da sangha, referiam-se a si próprios usando o termo chinês que significa monge budista (seng) e moravam ou em mosteiros budistas ou ao lado deles. No início, aceitavam também que os chineses confundissem a atitude ascética dos jesuítas diante dos prazeres mundanos com o estilo de vida de um recluso budista, e também não se incomodavam com o fato de Jesus ser visto como emanação do bodisatva Avalokiteshvara [da compaixão]. A tendência a igualar Cristianismo e Budismo não se restringia ao público geral, mas também entre os eruditos da época. (USARSKI, 2009, pág. 101)

No entanto, o tom muda em 1603 quando Matteo Ricci publica a primeira de uma série de trabalhos de autores jesuítas onde tenta chamar a atenção dos chineses eruditos para o caráter diferenciador da fé católica como religião. Numa das obras, a Tianzhu Shiyi, por exemplo, Ricci além de apontar as incompatibilidades entre o Cristianismo e o Confucionismo, por um lado, e entre esta e o Budismo e Taoísmo, por outro, “também criticou fortemente determinados aspectos taoístas e budistas. Entre os conceitos budistas rejeitados encontravam-se a doutrina de sunyata, o imaginário de infernos e céus e a ideia de reencarnação sem alma” (idem, pág. 108). Além disso, outro ponto central da crítica, foi a acusação de que

o Budismo identificava a consciência humana como realidade última, dessa maneira negando a existência de um criador superior do mundo. Esse conceito seria um resultado da influência diabólica. No início, o Budismo não se pronunciou a respeito dos ataques dos jesuítas, mas finalmente as hostilidades foram registradas e provocaram reações tanto em controvérsias orais quanto através de artigos e panfletos. (USARSKI, 2009, pág. 108)

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Outro desafio cristão foi entender e dialogar com o Taoísmo

 Esta contenda permaneceu mesmo após a morte de Ricci, em 1610, e chega ao ápice em 1633, quando um leigo budista chamado Huang Chen, incomodado com a crescente influência cristã na região, e sem argumentos convincentes para contratacar ideologicamente os jesuítas, “se dedicou à elaboração de um raciocínio crítico conciso, processo que originou alguns textos contra os jesuítas” (Idem, pág. 110). A situação para os cristãos ficou ainda mais confortável quando, em 1692, o imperador Kangxi (1654-1722) fez o lançamento do “Édito da Tolerância”, autorizando a livre prática da fé cristã em todo o Império do Meio. Mas essa situação viria mudar em meio século depois, em 1724, quando o imperador Yongzheng (1678-1735) tomou conhecimento de que o Vaticano havia abolido completamente o método de evangelização por acomodação, e vinha sistematicamente se opondo às ritualísticas confucionistas e budistas. Os jesuítas, então, passaram a ser vistos como potenciais grupos que defendiam os interesses políticos europeus.

Depois de expulsar os jesuítas da região e confiscar todos os bens da igreja, uma nova onda missionária só iria voltar ao país durante a Guerra do Ópio (1840-1842), quando o império chinês fecha acordos de cooperação com poderes ocidentais. Neste período, de acordo com Usarski, não houve grandes conflitos entre cristãos e budistas, apesar da crescente onda de padres católicas que partia da Europa rumo à Ásia. E o intercâmbio inter-religioso, também, não prosperou, já que os monges budistas, àquela época, desprezavam completamente o estudo e o eruditismo, e se voltavam completamente para as práticas espirituais de apoio às comunidades.

Do final do século XIX até os anos de 1920, o Cristianismo sofre uma crise na região, que passaram a ser vistos como cúmplices dos “exploradores ocidentais”. Esta foi uma época de grande efervescência política, que viria resultar numa rebelião popular. “No decorrer da revolta, uma massa descontrolada assassinou cerca de 23 mil chineses convertidos ao Cristianismo” (idem, pág. 116), suspeitos de colaborarem  com o Ocidente. De qualquer forma,

Independente do movimento sectário chinês, alguns intelectuais chineses começaram a se orientar segundo as tendências científicas e filosóficas europeias. Foram essas inclinações que estimularam uma série de manifestações de estudantes em Pequim contra o conservadorismo da cultura chinesa. Tais sentimentos culminaram nas articulações iconoclastas, anticlericais e antitradicionais do chamado Movimento de 4 de maio (de 1919), considerado uma das mais claras indicações de uma revolução intelectual na China moderna. (USARSKI, 2009, pág. 117)

Mesmo com todo o panorama desfavorável, é nesta época que o Cristianismo atinge aproximadamente dois milhões de fiéis no país, quando em 1924 fica proibido o ensino religioso em nome do Cristianismo. Já entre 1937 e 1945 há um outro baque às missões ocidentais, devido à guerra sino-japonesa. Mas ainda assim havia aproximadamente um milhão de cristãos evangélicos organizados em 20 mil congregações, e os católicos atingiram algo em torno de 2,7 milhões de fiéis. No entanto, na chamada “Revolução Cultural” (1966-1976) o Cristianismo sofreu o destino de todas as outras religiões na região (inclusive o Budismo), e foram abolidos completamente do país, sob ameaças constantes. Ainda assim, cristãos continuaram praticando sua fé na clandestinidade e, por volta dos anos de 1990, os números indicavam que cerca de 10 milhões de chineses eram protestantes e quatro milhões eram católicos.

Apesar das circunstâncias políticas hostis, lembra Usarski, houve o florescimento do diálogo inter-religioso entre budistas e cristãos notadamente depois da consolidação do estado comunista chinês e seu viés ateísta. Houve então uma ação conjunta no sentido de defesa da liberdade religiosa e de culto, e a colaboração entre as duas religiões passa a fazer parte dos conselhos consultivos populares.

Concomitante ao avanço na China, no Japão a relação se deu sob a mesma tensão política, onde ora o Cristianismo era tolerado, ora era completamente banido do país. No entanto, na terra do Sol Nascente houve um profícuo diálogo intelectual com o Ocidente, notadamente através da Escola de Kyoto, que estabeleceu fortes paralelos entre a doutrina budista e setores da filosofia ocidental (Schopenhauer e Heidegger, só para citar alguns). De maneira geral, no entanto, o aprofundamento nesta seara daria um novo trabalho acadêmico, devido às peculiaridades na relação da cristandade e o Japão.

De forma geral, Usarski defende que o Budismo vem conseguindo construir o diálogo com o Cristianismo, embasado num “rico repertório de figuras retóricas e estratégias argumentativas que lhe permitiram firmar posição em situações inter-religiosas” (idem, pág. 165). Mas isso só teria ocorrido após a Segunda Guerra Mundial, quando de fato acontece uma abertura espiritual, num movimento recente e ainda em construção.

As perspectivas que se desenvolveram desde então podem ser atribuídas, grosso modo, a três categorias. Elas representam, em primeiro lugar, um tipo mais orientado na experiência; em segundo lugar, um acesso majoritariamente intelectual-filosófico; e, em terceiro lugar, um princípio prioritariamente sociopolítico-pragmático. (USARSKI, 2009, pág. 185)

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No Japão, o Zen-budismo é uma das expressões mais marcantes

Em relação à perspectiva orientada na experiência, destaca-se a tentativa de buscar pontos de aproximação entre as vertentes místicas das tradições, “especialmente pela prática conjunta do zen” (idem, pág. 185). O aspecto intelectual-filosófico, por sua vez, procura “desnudar” o que está por trás das escrituras e das mensagens religiosas, buscando assim apontar interpretações mais sutis e passíveis de consenso. E, por fim, o princípio sociopolítico-pragmático dá ênfase ao chamado Budismo socialmente engajado, que defende metas claras e abrangentes, como o esforço pela paz global e pela justiça social.

De acordo com Usarski, na perspectiva orientada pela experiência, a difusão do Zazen (a meditação típica do Zen Budismo) ganha um peso central. Incentivada predominantemente pelo mestre zen japonês Yamada Koun Roshi (1907-1989), teve como objetivo formar multiplicadores ocidentais da prática com o objetivo central de “ampliação da base de encontro com cristãos” (idem, pág. 186). O primeiro grande evento promovido por este esforço ocorreu em 1967, nos arredores de Tóquio, quando por uma semana cristãos e zen-budistas se reuniram para praticar meditação e discutir as questões espirituais comuns. “Discussões sobre questões dogmáticas foram consideradas menos importantes” (idem, pág. 186).

No final dos anos 70 do século passado o esforço foi ampliado e monges zen-budistas iniciaram uma série de visitas a ordens cristãs em diversos países europeus, como a Alemanha, Holanda, Bélgica, França e Itália. Já nos anos 80 estas visitas foram retribuídas pelos europeus, em sua maioria da ordem beneditina, que foram ao Japão para participar da rotina dos monges zen-budistas.

Sobre o segundo enfoque, nos aspectos intelectuais e filosóficos, a representação maior fica por conta do movimento iniciado pela chamada Escola de Kyoto (a antiga capital imperial do Japão). Além disso, houve vários movimentos de intelectuais no Ocidente, notadamente na Europa, com ambições semelhantes: procurar os pontos de contato entre os saberes do Leste e do Oeste. Como primeiro resultado deste esforço, no Ocidente aumentou a quantidade de oferta de cursos universitários sobre o Budismo. As universidades japonesas também passariam a inserir em suas grades uma série de cursos sobre cultura, filosofia e religiosidade ocidentais. O objetivo era fomentar a elaboração de um conhecimento que gerasse compreensão mútua.

Já a abordagem sociopolítica-pragmática é uma expressão mais recente do chamado movimento neobudista Rissho Kosei-kai, cujo foco central é colaborar ativamente para a paz e a harmonia entre as diferentes religiões do mundo, face às crises globais.

Essas ambições têm correspondências múltiplas também por parte dos cristãos, que analogamente – e, muitas vezes, com o mesmo conteúdo dos demais princípios – articularam-se no intercâmbio monástico. Como exemplo, podemos citar uma iniciativa do Gurukul Theological College de Madras, Índia, que a partir do outono de 1981 organizou diversos encontros entre representantes cristãos e budistas. O programa, que não somente abrangia questões teológicas, mas também questões mútuas sociais, política e culturais face aos desafios globais da humanidade, foi financiado conjuntamente pelo governo de exílio tibetano e pelas Lutheran Churches of India. (USARSKI, 2009, pág. 188)

Esta abordagem avança para o que Usarsk (idem, pág. 189) denominaria de “pontos extraordinários de interseção”, quando se evitar a qualquer custo, no diálogo entre budistas e cristãos, criar pontos de tensão. Isso ocorre pelo desinteresse em figuras retóricas e/ou abordagens filosóficas/metodológicas que acentuam as diferenças doutrinárias. Em vez disso, o foco vai para os problemas emergentes “mundanos” de ordem social e política, por exemplo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LUBAC, Henri de. Budismo Y Cristianismo. Salamanca – Espanha: Ediciones Sígueme, 2006;

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MIKLOS, Cláudio. Palestra realizada em Seshin na cidade de Goiânia – Goiás. Maio de 2015.

 

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Eckhart é um elo com o Oriente

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“E digo mais, que todo sofrimento provém do amor àquilo de que a perda me privou. Portanto, se a perda de coisas exteriores me faz sofrer, eis aí um indício seguro de que tenho amor às coisas exteriores e, por conseguinte, de que na verdade eu amo o sofrimento e o desconsolo. Com efeito, que há de estranhável em que eu me depare com o sofrimento se amo e busco o sofrimento e o desconsolo? O meu coração e o meu amor apropriam à criatura o Ser-Bom que é propriedade de Deus. Volto-me para a criatura, fonte natural de desconsolo, e viro as costas a Deus, fonte de toda consolação. E acho estranho que entre a sofrer e a sentir-me triste. Em verdade, nem Deus nem o mundo inteiro seriam capazes de proporcionar verdadeira consolação ao homem que procura consolo nas criaturas. Mas quem na criatura só amasse a Deus e só em Deus amasse a criatura, este encontraria, em toda a parte, consolação verdadeira, merecida e sempre igual.”

MESTRE ECKHART (1260-1328), EM “O LIVRO DA DIVINA CONSOLAÇÃO”.

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Na imanência, o homem é co-partífice da totalidade

Por sua abordagem que, em alguma medida, coloca em xeque a visão clássica que se tem da transcendência, Eckhart muitas vezes foi mal interpretado e chegou a ser investigado pela Inquisição. Em Le Goff apud Guerizoli, “Eckhart é fundamentalmente um místico que, como tal, na crescente dissociação entre razão e fé que teria marcado o panorama intelectual dos séculos XIII e XIV, faz uma clara opção por esta em detrimento daquela”, no que seria (de forma indireta) uma explícita aproximação com a abordagem contida no Budismo, notadamente em sua vertente japonesa (Zen), que rechaça o uso do intelectualismo (ou mesmo da razão) como mecanismo de compreensão do mundo. “Aliás, pelo contrário, o excesso de informação [por parte do praticante budista] e a tendência deste de querer demonstrar que sabe, acaba por lhe afastar de um entendimento que é essencialmente decorrente da prática e dos anos de experiência [meditativa]” (CHALEGRE, 2015).

Ainda sobre este tema, vale ressaltar que

Eckhart nos deixou uma extensa obra em médio-alto-alemão onde os principais temas daquilo que, em certa medida, pode-se chamar uma doutrina da união entre criatura e criador são desenvolvidos e assumidos como parte fundamental de seu pensamento. Não obstante, ainda que possa parecer legítimo aplicar-se à obra eckhartiana o adjetivo “místico” e a Eckhart o epíteto de um autor interessado no problema da unio mystica, isso ainda não é motivo para que, de imediato, tachemos sua doutrina como antiintelectual. (GUERIZOLI, 2008, pág. 65)

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Pseudo-Dionísio: deificação do homem

Guerizoli ressalta que dentre os autores que mais influenciaram Eckhart destacam-se Orígenes, Gregório de Nissa e Pseudo-Dionísio Areopagita (no chamado neoplatonismo), e algumas das características marcantes de sua abordagem é “a ‘deificação’ do homem e sua ‘união’ – ou ‘unificação’ – com Deus, que se daria somente através do reconhecimento de sua filiação divina” (idem, pág. 66). Há de ressaltar, no entanto, que esta visão teológica, do medievo tardio, acabaria por desembocar no próprio humanismo nascente no Iluminismo. Não por menos, como destaca o professor, escritor e monge Cláudio Miklos (2015), o budismo (notadamente em sua vertente Zen), antes mesmo de ser classificado como religião, é uma espécie de humanismo, pois resgata um conjunto de preceitos cujo eixo, em alguma medida, está inserido no reconhecimento da autogestão [do homem] e da imanência.

A abordagem de Eckahrt (1999), como já destacado anteriormente, não passou incólume às tensões internas que permearam a efervescente produção intelectual da Idade Média. Ele é uma das provas, diriam alguns estudiosos, que nem todos os doutos e clérigos que compunham as fileiras das universidades cristãs eram meramente “orgânicos”. No entanto, havia um preço a ser pago pela visão “destoante” em relação à escolástica:

Através da condenação do “averroísmo latino”, a Igreja fecha as portas da universidade ao mais expressivo movimento anticlerical da alta escolástica. A consequência desse ato é o aumento, ao longo do século XIV, do fosso que separa a cultura universitária, da qual o intelectual é o representante por excelência, e a cultura laica que experimentava um grande enriquecimento com o desenvolvimento das línguas vulgares as quais, posteriormente, tornar-se-iam línguas nacionais.10 O século XIV assiste, portanto, ao crescente enclausuramento da figura do intelectual, que, segundo Le Goff, acaba formando com seus poucos pares uma “tecnocracia” cada vez mais isolada da realidade urbana, possibilitando, assim, o surgimento, a partir do século XV, de um novo tipo social letrado, solitário e atrelado preferencialmente ao poder temporal: o humanista. (Guerizoli, 2008, pág. 60)

Haveria na filosofia de Eckhart, no fundo, uma “tentativa de supor a real possibilidade de superação de todas as diferenças entre divindade e humanidade”. Um dos exemplos máximos desta teoria seria a doutrina da “existência de algo de incriado na alma, a qual entreabriria a possibilidade de reconhecer nesse “algo incriado” uma instância que fugiria à condição de ‘criatura’ e de pôr em xeque […] o próprio sentido de Deus como criador de tudo o que existe” (idem, pág. 69).

Mesmo se tecido sobre um pano de fundo teológico, o pensamento de Eckhart não se faria como descrição de uma experiência religiosa pessoal – tendo por base uma pura cognitio dei experimentalis – mas trafegaria, antes, por discussões, demonstrações e argumentos. No fundo dessa possibilidade estaria, mais uma vez, a convicção de que a revelação bíblica poderia ser descrita em argumentos racionais, de que teologia e filosofia, fé e razão, longe de se contraporem, integrar-se-iam, formando um todo compreensível”. (Guerizoli, 2008, pág. 68)

Assim, numa leitura sobre Le Goff, Guerizoli (2008) diz que, do todo, seria um equívoco entender a abordagem eckhartiana como meramente anti-intelectualista/antirracionalista, ou mesmo estritamente mística.

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Ainda na abordagem eckhartiana, em Dourado (2009), constantemente o homem se (re)posiciona em relação ao Todo e, neste movimento, o Criador não submete as criaturas ao que é basicamente seu, homogeneamente falando. Essas criaturas também não são substâncias fixas, mas a repercussão de Deus que se dá através das pluralidades. Haveria uma “plenificação” da natureza dos homens/mulheres, mesmo no movimento. Portanto, a vontade própria reposiciona-se em relação à vontade maior, numa troca incessante, ora com aspectos imanentes, ora transcendentes. Ou seja, o ser humano se relacionaria com o mundo numa perspectiva de presença e partilha, e não vê o homem como um fim em si mesmo (como aborda correntes do humanismo). Há, portanto, um fundo comum entre todas as criaturas. Na Bíblia, diz Dourado (2009), isso se apresenta no Sermão 12, quando se espera que

Ao homem que assim tivesse saído de si mesmo, de tal modo que fosse o Filho unigênito, a ele seria próprio o que é próprio ao Filho unigênito (…). Quando Deus vê que somos o Filho unigênito, ele se precipita e se lança ao nosso encontro com tanta veemência, (…) como se seu ser divino se lhe fosse  despedaçar e quisesse tornar-se  nada em si mesmo, a fim de nos revelar todo o abismo  de  sua  deidade e a plenitude do seu ser e da sua natureza; Deus se apressa para ser totalmente o nosso próprio, assim como é o seu próprio. (Sermão 12, I, pág. 102)

Eckhart (1999) ainda defende que esta dimensão do homem, na constituição mesma de sua ontologia, implica em sujeição, obediência e humildade. Em Dourado (2009), essa sujeição quer dizer, analiticamente, que todas as coisas estão sujeitas (subjectum) à uma totalidade, inclusive as coisas que não dispõe de consciência.

Todos os entes são criaturas, e por isso mais pertencem à totalidade do real, à doação integral de Deus enquanto criador, do que a si próprios. Ou seja, os entes são o que suas naturezas delimitam,  e por isso possuem algum nível de substancialidade, mas são o que são pela presença de Deus, e não pela pulsão de sua autonomia. Neste sentido, todas as criaturas são submetidas à totalidade. (DOURADO, 2012, v.6, n.2)

Na concepção budista, notadamente através da expressão da Soto Zen, não são os homens/seres que vivem a vida. É a vida que vive o ser. Em súmula, há um enfraquecimento do homem (enquanto unidade separada e autossuficiente) em detrimento da unidade. Essa visão de interdependência (do ser humano em relação à totalidade da vida) coloca os seres em total dependência de algo absoluto. Haveria, portanto, uma negação do “eu” provisório, que ora se manifesta (ou o não-eu budista). Sobre isso, Eckhart (1999) foi enfático: “As criaturas todas não têm ser, pois o seu ser depende da presença de Deus. Se Deus, apenas só por um instante, desviasse sua face das criaturas, elas seriam aniquiladas” (ECKHART, Sermão 4, I, p. 59). No entanto, parece paradoxal, mas cada criatura manteria resguardada o “criador no bojo de seu ser” (DOURADO, 2012, v.6, n.2), e assim como ocorre na concepção budista, a vida se apresenta como compartilhamento de Deus (ou do Dharma, na visão de Buddhadasa) em todas as criaturas. Assim, “as coisas são em Deus, e, por isso, ao serem, sinalizam toda a divindade” (idem).

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A anulação do ego, no Cristianismo, é uma “disposição para Deus”

Neste ínterim, a sujeição (ou aniquilamento do ego) é um mecanismo para que o ser humano (ou toda a criação, numa visão mais abrangente), ultrapasse a sua própria natureza, o que possibilita a comunhão com a totalidade. Aliás, mais que uma comunhão, como lembra Dourado, trata-se aqui de uma forma para que a totalidade possa passar.

E a insistência no verbo ‘poder’ e não simplesmente no ‘passar’ é o seguimento de uma indicação de Mestre Eckhart, ao concluir a questão da doação de Deus: ‘Ele se doa como Deus, como ele o é  em  todos  os  seus  dons,  à  medida  que  há  disposição  em quem gostaria de recebê-lo (DOURADO, 2012, v.6, n.2).

Vale ressaltar que esta “disposição para Deus” só pode ocorrer, no Cristianismo, a partir da noção de que existe algo de caráter totalizante, que une e precede toda a existência. Campbell diz que, desta forma, para que todos os povos se redimam, para que haja a apreensão da mensagem salvífica, é necessário ter um entendimento mínimo de alguns conceitos, como temporalidade, contingência e interdependência. Ou seja, assim como ocorre no Budismo (para quem é preciso haver um aspecto mínimo de senciência para adentrar o Sagrado), no Cristianismo sob o viés eckharteano Deus apesar de ser onipotente, respeita os limites de cada criatura, que só pode reestabelecer o caminho de comunhão à medida que reconhece a fagulha divina que há em todos.

Para os budistas, quem não se reconhece como expressão do Sagrado está inebriado pela ignorância (não no sentido intelectual, mas de sutileza em relação à identificação do aspecto de co-dependência) e pela concepção de cegueira e afastamento. O “ser búdico” já o é desde sempre, mas por não reconhecer-se como tal (por não permitir a aproximação com Deus), acaba por distanciar-se de sua real natureza. Em Eckhart, quando isso ocorre (este afastamento), supõe-se que o homem vem cobrindo o seu coração de terra, criando camadas com respaldo meramente mundanos, tornando-se ele mesmo (o homem) obstáculo de sua própria vida, já que “… quando o olho está doente em si mesmo, e enfermiço, ou velado, é-lhe impossível perceber o brilho” (ECKHART, O homem nobre, O livro da divina consolação…, pág. 93). Impossível não comparar esta assertiva eckharteana à abordagem budista que compara um homem ignorante de seu aspecto divino com alguém que teve os olhos atingidos por flechas.

REFERÊNCIAS:

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MIKLOS, Cláudio. Palestra realizada em Seshin na cidade de Goiânia – Goiás. Maio de 2015.

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Pontos de contato filosófico entre o Cristianismo e o Budismo

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Para o Budismo, a ideia de separação (entre os seres) é mera ilusão

 

Perifericamente, um desavisado poderia concluir que o cristianismo tem um viés exclusivamente transcendente, e o budismo seria predominante imanente. No entanto, em Mestre Eckhat, místico e filósofo cristão do medievo, há várias chaves para um entendimento de aproximação entre estas duas religiões. Alguns escritores contemporâneos do budismo, como o Monge Genshô, chegam mesmo a dizer que as similaridades são tantas, que bastaria substituir algumas palavras (das escrituras de ambas as religiões) para que se chegue ao mesmo entendimento.

Na obra “O Livro da Divina Consolação”, por exemplo, Eckhart aborda, dentre outros aspectos, como é possível chegar à unidade do múltiplo com o uno, do homem com Deus (ou com o Dharma, na linguagem budista). Assim, nesta tentativa de “buscar Deus para além de qualquer realidade, onde tudo se esvai diante d’Ele”, não haveria – no estudioso tailandês Buddhadasa – a menor diferença entre a prática budista de esquecer-se do próprio “eu” para mergulhar no Absoluto e/ou Sagrado.

Obviamente, neste ínterim, pode-se questionar a completa negação transcendente do budismo, focado na autopistis – autopoder – de que fala Pondé em seu livro “Crítica e Profecia”. Mas a própria igreja latina, diria Pondé, é acusada pela ortodoxia Oriental de incentivar, em alguma medida, o “auto-poder” e a esfera imanente de Deus. Sobre esse assunto, Buddhadasa diz não haver contradições:

“o significado preciso da palavra Deus dependerá do nível de educação do orador, da cultura na qual é falada ou do uso intencionado naquela ocasião. Ainda assim, o significado real e central será o mesmo para todos, isto é, ‘a coisa superior’. Trata-se de algo livre do poder do tempo, e que não pode ser aplicado na linguagem convencional”. Admite-se, em alguma medida, que mesmo com uma prática cotidiana focada na imanência, através das interpelações filosóficas, os budistas entendem e aceitam a concepção de uma “força” superior, transcendente, que abarca inclusive similaridades entre “os conceitos de Salvação, Libertação, Reino de Deus e Nirvana”. (Buddhadasa, 2014, pág. 26)

Para avançar sob esta seara, no entanto, faz-se necessário entender mais profundamente (e diferenciar) os conceitos de “imanência” e “transcendência”. Em Comte-Sponville (2011), por exemplo,

Imanência (immanence) é a presença de tudo em tudo (imanência absoluta) ou em outra coisa (imanência relativa). O contrário, pois, da transcendência. É transcendente o que se eleva (scandere) além (trans); imanente o que permanece (manere) em (in). Diz-se especialmente do que existe na natureza e dela depende. Se tudo é material, se não existe nada, a não ser o universo ou a natureza (nada, a não ser tudo!), forçoso é concluir que tudo é imanente: a transcendência não é senão uma exterioridade imaginária e, como tal, imanente (a imaginação faz parte do universo). (Comte-Sponville, 2011, págs 299 e 300)

Comte-Sponville se alonga no conceito ao dizer que a imanência, num sentido clássico, é tudo aqui que é interior, “o que permanece em (in-manere) algo ou alguém” (pág. 300). Ele lembra que em Husserl e nos fenomenologistas o aspecto imanente se expressa em tudo o que é interior à consciência. Já no materialismo, o imanetismo ganha contornos absolutos, pois “somente Deus, que não existe [para os materialistas], seria transcendente” (pág. 300).

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Meister Eckhart em pintura centenária

Neste entendimento específico defendido por Comte-Sponville, o “Reino ausente” dos judeus/cristãos, num âmbito absoluto, é a própria condição de comunhão com Deus. Na terra, esta “ausência” é preenchida por Canaã, a “Terra Sagrada” dos profetas ancestrais responsáveis pelo recebimento, compilação e transmissão de um conjunto de preceitos éticos capazes de, se levados a cabo, reaproximar as criaturas do Criador. Além disso, por transcendência se entende uma “superação de todo dado ou de todo limite […]” (idem, pág. 603). A liberdade seria possível, desta forma, pela possibilidade de transpor qualquer situação e, no mais da verdade, até aceitar a contingência e a privação tendo em vista uma dada finalidade (a união com o Sagrado, com “O Eterno”). Neste aspecto, há uma grande aproximação entre as vertentes cristãs e budistas, se se aprofundar sobre os conceitos de “Reino de Deus” e “Nirvana”, como será detalhado mais à frente.

Ainda de acordo com o mesmo autor, a transcendência é a exterioridade e a superioridade absolutas, “o outro lugar de todos os aquis (e até de todos os lugares), e sua superação” (pág. 602). Vale destacar que, em Comte-Sponville, transcendência também pode ser entendida como a ausência suprema e, por isso mesmo, “o auge da presença”. Assim, “‘o sentido do mundo deve ser encontrado fora do mundo’, escreve Wittgnestein. A transcendência é esse fora ou o supõe. É o Reino ausente” (Idem).

Vale salientar que este sentido de transcendência comporta variações, já que é transcendente tudo o que se encontra “além de”. Mas além do quê?, questiona Comte-Sponville. Além

da consciência (é o sentido fenomenológico: a árvore que avisto não está na consciência, é um objeto transcendente para a consciência); além da experiência possível, além do mundo ou de tudo. (Comte-Sponville, 2011, págs. 602 e 603)

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O auto-poder é rechaçado pela ortodoxia

Em oposição a esta visão, há a abordagem teológica/filosófica da ortodoxia, destacada pelo filósofo brasileiro Luiz Felipe Pondé, para quem o

o pecado mais temido […] é a auto-pistis (literalmente, ‘fé em si mesmo’), ou ‘suficiência’. Trata-se da ideia do ser humano como um ser suficiente, concebido no contexto exclusivo da ‘natureza natural’. (PONDÉ, 2013 – pág. 21)

Pondé lembra que, para a ortodoxia, o “homem é um ser sobrenatural ao qual a natureza é agregada”. Desta forma, a religião e o sobrenatural são encarados como o espaço do bem, “enquanto o mal encontra-se ligado ao regime de imanência, ao que é deste mundo (‘o inferno é aqui’)”. O demônio, portanto, dentre outras definições, seria a crença exclusiva na materialidade, o que definitivamente não está no “script” nem de budistas, muito menos de cristãos.

Vale ressaltar, em complemento, que “Deus, e somente Ele, neste sentido, seria totalmente transcendente, pois é exterior a toda e qualquer experiência” (pág. 604), mesmo levando-se em conta as assertivas de Luc Ferry, para quem o homem também tem aspectos de transcendência,

não porque seria exterior ao mundo ou à sociedade, mas porque não pode ser reduzido totalmente a um e outra: há nele uma capacidade de excesso, de desarraigamento, de liberdade absoluta, e essa ‘transcendência na imanência’ (a expressão é de Husserl) faz dele uma espécie de deus, de que o humanismo seria a religião. (Comte-Sponville, 2011, pág. 604)

Especificamente sobre os aspectos de imanência em Mestre Eckhart (logo serão abordados os vieses de transcendência), há de se destacar que a introspecção, assim como ocorre na maior parte das abordagens budistas, pode ser entendida como um “desprender da vontade” que leva, invariavelmente, a transformar o homem num detentor da vontade divina (ou da vontade do Dharma, como diria Buddhadasa). Mas isso não ocorre por acaso, nem tampouco é uma expressão de mero “auto-poder”, como poderia presumir alguns. Neste ínterim, “é preciso que os impedimentos da vontade própria se desfaçam, que o reconhecimento da liberdade como uma ligação e não como uma particularidade se configure” (Dourado, 2012, pág. 2). Ou seja, haveria, portanto, uma “dimensionalização do eu”, que levaria invariavelmente à uma integração com o Sagrado, com Deus. É uma via que opta, em algum sentido, pela negação da clássica estrutura de sujeito-objeto, uma vez que a “vontade própria”, base do contraste que vem desde Platão (reforçado depois por Descartes) e que convida para o deslocamento rumo ao “outro mundo, o mundo ideal”, em Eckhart é desconfortantemente dissolvida por algo que está além da anulação do indivíduo, “do apego ao próprio eu”. Assim, “ao assumir o ser de Deus, o homem assumirá a liberdade que o constitui” (idem, pág. 3). Portanto,

[se] eu fosse para com as [imagens] tão livre da vontade própria a ponto de não ter me apropriado de nenhuma delas no fazer ou no deixar, com antes e com depois (…), ou seja, no presente instante, livre e solto para a mais amada vontade de Deus e para realiza-la plenamente, sem cessar (…), nesse caso, em verdade eu seria sem impedimento através de todas as imagens, tão certo como eu o era quando ainda não era (Sermão 2,  I,  p. 46)

Em continuação, a imanência presente na abordagem de Mestre Eckhart é uma via de aproximação com a própria mística oriental, cujo viés é essencialmente irracionalista.

Referências:

LUBAC, Henri de. Budismo Y Cristianismo. Salamanca – Espanha: Ediciones Sígueme, 2006;

BUDDHADASA, Ajah. Ensinamentos de Cristo, Ensinamentos de Budha. Belo Horizonte: Edições Nalanda, 1ª. Edição, 2014;

ECKHART, Mestre. O Livro da Divina Consolação e outros textos seletos. Petrópolis: Editora Vozes, 4ª. Edição, 1999;

GUERIZOLI, Rodrigo. Mestre Eckhart: misticismo ou “aristotelismo ético”? – Cadernos de Filosofia Alemã (nº 11 | P. 57 – 82 | JAN-JUN 2008). Disponível em < http://www.revistas.usp.br/filosofiaalema/article/download/64788/67405 > – Acesso em 06/09/2015;

NORBU, Lama Zopa. O Coração da Bondade. São Paulo: Clube de Autores, 1ª. Edição, 2010;

USARSK, Frank. O Budismo e as Outras. Aparecida, SP: Editora Idéias & Letras, 2009;

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MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;

PONDÉ, Luiz Felipe. Crítica e profecia. São Paulo: Leya Brasil, 2013;

DOURADO, Saulo Matias. A distinção entre vontade própria e desprendimento em Mestre Eckhart. Revista de Filosofia v.6, n.2, dezembro/2012;

WILKINSON, P. O livro ilustrado da mitologia: lendas e histórias fabulosas sobre grandes heróis e deuses do mundo inteiro. Tradução de Beth Vieira. 2ª edição. São Paulo. Publifolha. 2002;

WATTS, Alan. Budismo. Barcelona: Editora Kairós, 2ª. Edição, 2005;

Vaticano: Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso. Disponível em < http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/interelg/index_po.htm > – Acesso em 07/09/2015.

MARQUES, Leonardo Arantes. História das religiões e a dialética do sagrado. São Paulo: Madras, 2005;

O Movimento Focolares. Disponível em < http://www.focolare.org/pt/in-dialogo/grandi-religioni/ > – Acesso em 15/07/2015;

MONTEIRO, J. A. Ensaios Filosóficos, Volume XI. Disponível em < http://www.ensaiosfilosoficos.com.br/Artigos/Artigo%2011/JoaquimAntonioMonteiro.pdf > – Acesso em 13/09/2015;

NETO, Antonio Florentino. Heidegger e o inevitável diálogo com o mundo oriental. Disponível em < https://anaiscongressofenomenologia.fe.ufg.br/up/306/o/ConftFlora.pdf > – Acesso em 14/09/2015;

MONTEIRO, Joaquim. Budismo e Filosofia (audiolivro). São Paulo: Universidade Falada, 2009;

XAVIER, Maria Leonor. O Cristianismo e a Filosofia Ocidental – I Colóquio sobre Filosofia da Religião (2001). Disponível em < http://religioes.no.sapo.pt/leonor2.html > – Acesso em 15/09/2015;

SCHUON, Frithjof. De l’Unité transcendante des Religions. Disponível em < http://www.frithjof-schuon.com/unite.htm > – Acesso em 26/09/2015;

MIKLOS, Cláudio. Palestra realizada em Seshin na cidade de Goiânia – Goiás. Maio de 2015.

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Budismo e Cristianismo: há mais em comum do que se possa imaginar

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Há vários estudiosos tanto da tradição cristã (Thomas Merton é um deles, por exemplo) quanto da budista (o mestre e erudito budista tailandês Buddhadasa é outro exemplo) que apontam para muitas similaridades no chamado “entendimento profundo” destas duas grandes religiões universais. Os pontos em comum vão desde o extraordinário nascimento de Jesus Cristo e Budha, passando pela formação de discípulos e o enfoque missionário e, por fim, culminando numa doutrina com grande enfoque no altruísmo/compaixão, no amor universal e “enfraquecimento” do ego, no autodesenvolvimento e no “desprendimento” das coisas do mundo (se se levar em conta que tais coisas, para algumas pessoas, são um fim em si mesmas).

O Budismo surge por volta de 2.600 anos atrás, numa região que atualmente compreende o Nepal. Sua doutrina (ou conjunto de doutrinas) é baseada na vida e nos ensinamentos do príncipe Sidarta Gautama, ou Gautama Sakyamuni (do clã dos guerreiros Sakyas, casta imediatamente abaixo dos brâhmanes).

De acordo com Marques, a estrutura de ensino do Budismo, bem como o modo de evitar o samsara (múltiplos renascimentos), o coloca em contraposição à estrutura rígida e autoritária da antiga religião dos Vedas. Há, neste contexto, mais uma similaridade em relação ao Cristianismo, que traz a “boa nova”, a perspectiva de inclusão de todos no bojo da espiritualidade, em contraposição ao até então restrito circulo judaico baseado na consanguinidade.

Há afirmações que dizem ser o Budismo uma religião sem Deus, ateia. Este não era o pensamento inicial do século V a. C., quando se reconheciam vários deuses védicos como características exclusivamente nibutta (ideal), “tal como Sakka, versão budista mais serena e humana do védico Indra”. A possibilidade de uma religião sem Deus [não em sentido antropomórfico] deve ter surgido mais fortemente no século XIX, com os escritos de Nietzsche […]. Possivelmente, alguns religiosos budistas – não compreendendo o verdadeiro búdico (nibutta), que está demonstrado nas Quatro Nobres Verdades – tenham criado o estigma de uma religião ateia (sem Deus) (MARQUES, 2005, p. 59).

Passada esta observação, vale ressaltar as Quatro Nobres Verdades que são a base do Budismo. Na ordem, trata-se da verdade da existência do sofrimento (dukkha), sua natureza, a verdade que há uma cessação para o sofrimento e, por último, o caminho que conduz a essa cessação. Há, portanto, um viés com apelo para o ascetismo ou, no mínimo, como destaca Marques (pág. 60), para a adoção de uma conduta ética que, em muito, se assemelha a determinados setores da cristandade, notadamente a ordem monástica dos trapistas, só para citar uma.


Região onde surgiu e de onde se expandiu o Budismo

Para Frank Usarski (2009), a aproximação do Budismo a elementos do Cristianismo, em que pese a discordância sobre o enfoque teísta/antropomórfico (no Budismo, abre-se o leque para uma interpretação monista ou, de forma muito liberal, para um panteísmo spinozano), marca uma característica que, pelo menos desde a modernidade, opta pela inclusão e pelo pluralismo.

Além de terem em comum a própria base histórica dos grandes mestres que deram origem a tais tradições (a exemplo do nascimento excepcional atribuído a Buda e Cristo, da emissão da “boa nova” como elemento de ruptura com uma antiga tradição, da “ampliação para o mundo” através da mensagem universal de amor e despojamento e, por fim, do caráter universalista de ambas as abordagens), tanto o Budismo quanto o Cristianismo, em Usarski (2009), reconhecem “uma base comum entre o ‘próprio’ e o ‘outro’ no sentido de uma identidade fundamental entre sistemas religiosos envolvidos” (p. 184).


Típico templo budista da tradição Theravada

Especificamente sobre o Cristianismo, esta visão está sintetizada, dentre outras, na abordagem do Movimento dos Focolares, sob a batuta de Chiara Lubic, que prega a unidade na diversidade, onde a “fraternidade universal, um projeto global, passa através da dimensão local” e da aproximação “com o outro” que, em síntese, “é uma expressão de mim mesmo”. O que haveria de imediatamente comum entre as abordagens, então?

Para Chiara, o “amor”, por ser considerado uma Regra de Ouro universal. Mas, aqui, o amor é apresentado como expressão de beatitude, na tradição cristã. Sendo assim, ele depende de um esvaziamento do ego e uma aproximação com o outro e com Deus. Trata-se, portanto, de um estado de perfeita satisfação e plenitude, semelhante à descrição dada à compaixão, pelos budistas. Este tema vem desde Aristóteles, quando o Estagirita concebe o sentido de “felicidade beatífica”. Voltando à concepção cristã, notadamente na abordagem dos Focolares, é pelo amor que se pode iniciar um diálogo de aproximação.

Assim, além deste ponto de contato, a experiência individual com o “campo sagrado” (sentido de realização e aproximação com Deus) acaba por gerar entendimentos e “insights” que, no campo místico (das duas religiões), deságuam em mais pontos de contato. Em Usarski, isso ocorre principalmente na prática conjunta do Zen e alguma vertente católica, a exemplo do que ocorreu com Thomas Merton. Mas à medida que tais experiências, de fato, são experimentadas num esforço de introspecção (e, portanto, de treinamento individual), é na exteriorização que elas podem ser compartilhadas (mesmo que apenas a título de incentivo aos demais praticantes). Os componentes intelectuais e filosóficos são, então, chaves para a compreensão de tais entendimentos.

O acesso intelectual-filosófico busca, de forma especulativa, captar o ‘espírito atrás das letras’ e pretende, portanto, alcançar as camadas de significado mais sutis e passíveis de consenso das mensagens religiosas. O princípio sociopolítico-pragmático apresenta afinidades com o denominado Budismo socialmente engajado, que tem metas como a paz global ou a justiça social [dois dos preceitos cristãos] (USARSKI, 2009, p. 185 e 186).

Essa aproximação começou de forma sistematizada em 1967, sobretudo a partir de encontros que começaram com leigos e, mais à frente, acabou por envolver integrantes de ordens monásticas das duas religiões (Cistercienses entre os Cristãos, e Soto Zen entre os Budistas). Em Usarski (2009), isso se deu tanto como uma primeira resposta ao Concilio Vaticano, num movimento de abertura do Catolicismo, como pelo esforço dos mestres zen-budistas japoneses que passaram a receber ocidentais em seus templos; esses ocidentais – alguns cristãos praticantes – se transformaram em multiplicadores do Zazen (a meditação do Zen). Foi dada a largada para o intercâmbio tal qual se conhece hoje.


Jesus Cristo na postura de zazen, a meditação do Zen Budismo

No mesmo período o engajamento se expandiu para a academia. No Japão, a chamada Escola de Kyoto iniciou uma profusão de estudos na tentativa de encontrar pontos de contato entre o Budismo e a Filosofia ocidental e a maior de suas expressões religiosas, o Cristianismo.

A Escola de Kyoto foi fundada por Nishida Kitaro (1870-1945) e é uma associação informal de intelectuais japoneses, geralmente de orientação religiosa zen, com conhecimentos fundamentados sobre a filosofia europeia. Nos encontros mais recentes entre budistas e cristãos, o conteúdo foi especialmente ditado por Masao Abe (1915-2006). Como resultado, Abe obteve a amizade e colaboração do teólogo norte-americano John B. Cobb, que nos anos 80 consolidou a Society for Buddhist-Christian Studies com uma série de conferências e a publicação do jornal Buddhist-Christian Studies. É característico da orientação leiga dessa sociedade que os fóruns internacionais não tenham sido planejados somente como oportunidades para informações detalhadas. Ao contrário, os fundadores pretendiam iniciar, dentre os participantes, um processo de “autoconversão”, com o conhecimento e a compreensão mútuos (USARSKI, 2009, p. 187 e 188).


Tradições apontam para um caminho comum, baseadas na regra de ouro universal do Amor

Vale ressaltar, por fim, que a postura de não sectarismo presente em setores da cristandade e entre linhas budistas recebe, entre estes últimos, o nome sânscrito de upaya. Tal abordagem prima por apresentar-se como algo “imune de criar tensões com outras religiões […]. Em vez disso, chama a atenção para a capacidade de cada uma [das religiões] contribuir para a solução de problemas emergentes ‘mundanos’ nos âmbitos social, econômico, político e ambiental” (idem, pág. 188). Neste aspecto, ainda de acordo com Usarski, Budismo e Cristianismo (sobretudo Católico) se destacam por se preocuparem com a intolerância contra as minorias em diferentes partes do mundo.

Essa é, inclusive, a tônica do Papa Francisco, que neste ano de 2015 se reuniu com os líderes religiosos das principais tradições mundiais não cristãs. Entre os budistas, “essa postura é autenticamente pluralista na razão em que busca alianças pragmáticas igualitárias, independentemente ou apesar de possíveis discordâncias dogmáticas” (p. 189). Assim,

a questão repercute no discurso de protagonistas budistas que pregam a abertura e o apoio a todos os esforços coletivos e individuais que objetivem criar uma atmosfera de entendimento, confiança e respeito mútuo entre os seres humanos e que, com determinados movimentos budistas, estão comprometidos com a redução de preconceitos e complexos de inferioridade e superioridade (USARSKI, 2009, p. 189 e 190).

No mais, há de se destacar o trabalho de Frithjof Schuon (2000), metafísico, filósofo das religiões e pintor suíço da chamada Filosofia Perene, sobre a unidade transcendente de todas as expressões religiosas. Haveria, portanto – assim como defende Buddhadasa – um núcleo central, nas aparentemente opostas visões religiosas, que remetem a uma compreensão que está além (transcendente) dos enunciados especulativos de cada dogma, tendo em vista que, numa construção lógica, é possível acessar um Conhecimento Universal a partir de duas vertentes aparentemente discordantes, “como se considerasse dois pontos, situados num só e mesmo círculo, o qual, unindo-os pela sua continuidade, os conseguisse reduzir à unidade” (SCHUON, 2000). Para que isso ocorra, de acordo com o suíço, é necessário levar as discordâncias (de pontos de vista) ao extremo, a partir das aparentes contradições. Assim, um enunciado especulativo deve sempre se reportar a integralidade do inteiro (da construção argumentativa), sob pena de uma afirmação dogmatizante ser confundida com a sua própria forma, sem considerar qualquer outra afirmação. Isso, por si só, já denunciaria esta base argumentativa, pois “é comparável a um ponto que contradiz, por definição, todos os outros pontos [que defende]” (idem).

Podemos comparar uma noção teórica com a visão de um objecto: da mesma forma que a visão não revela todos os aspectos possíveis a natureza integral do objecto, cujo conhecimento perfeito mais não é do que a nossa identidade com ele, também a noção teórica não corresponde à verdade integral, da qual representa forçosamente um só aspecto, seja ele essencial ou não. Neste exemplo, o erro seria a visão inadequada do objecto, enquanto a concepção dogmatizante se poderia comparar à visão exclusiva de uma só faceta do objecto, supondo-se com isso a imobilidade do sujeito vidente. Quanto à concepção especulativa, intelectualmente ilimitada, ela seria aqui comparável ao conjunto indefinido das diversas visões do objecto em causa, visões que pressuporiam a faculdade de deslocamento ou de mudança de ponto de vista do sujeito (Schuon, 1907).

Em Campbell (2007), os auxílios simbólicos herdados da tradição, como os rituais de passagem ou os sacramentos geradores de graça apresentados direta ou indiretamente pelos redentores, apontam para dois caminhos que, ao final, se cruzam. Campbell chega a dizer que, na dinâmica da vida, ai daqueles que não optarem seja pelo chamado interno, seja pela doutrina externa. Pois, assim como ocorria na abordagem tolstóiana, relata, há uma desorientação generalizada ocorrida pela total ausência de simbolismo, restando apenas o terror como ponto de referência para as mentes humanas colocadas diante das contingências fenomênicas. Não por menos, a literatura – em diferentes momentos – despreza os finais felizes por considerá-los falsa representação do mundo.

Por outro lado,

a piedade é o sentimento que toma conta da mente na presença de tudo o que é grave e constante nos sofrimentos humanos e que a une ao sofredor humano […]. A mente meditativa (em qualquer tradição) está unida, na representação de mistérios, não com o corpo cuja morte é apresentada, mas com o princípio de vida contínua que o habita (CAMPBELL, 2007, p. 32 e 33).

 


Campbell aponta as similaridades, notadamente no “caminho do herói”

Para Campbell (2007), há nas estruturas religiosas – assim como ocorre em parte da representação mítica, mas muito além desta representação – uma alternativa viável para que se transceda “a tragédia universal do homem” (idem, pág. 34), notadamente porque o sólido lastro de simbolismo e doutrina destas tradições, essencial para o desenvolvimento psíquico e para a própria expansão do humano nas regiões onde predominam, oferece uma mudança de ênfase notadamente no sentido de tempo. Haveria, portanto, uma tentativa de ordenação, seja pela linearidade temporal presente no Cristianismo, seja pelo aspecto cíclico contido no Budismo. Assim, o mundo objetivo permanece como tal, mas a percepção deste, nos adeptos de tais conjuntos doutrinários, muda radicalmente. “Onde antes lutava a vida e a morte, agora se manifesta o ser duradouro” (idem, pág. 24). Desta forma, Campbell defende que a expressão religiosa representa, em súmula, o triunfo da natureza psicológica – mais sutil, idealista – sob a natureza física – concreta, realista.

Campbell (2007) diz que há um “caminho do herói” presente tanto na lógica da constituição cristã quanto na budista, cujo objetivo, em última análise, é redimir o mundo. Isso se dá, inicialmente, pela “Boa Lei” deixada por Buda, no Oriente, ou pelo “Decálogo de Moisés” e a “Boa Nova” de Jesus, algumas das “peças-chaves” do Cristianismo. A narrativa dos primeiros pode ser influenciada por uma miríade de simbolismos, típicas do Oriente. No Cristianismo, diz Campbell, a Bíblia apresenta-se majestosa e com um viés mais racionalista, no entanto em ambos os casos há um trajeto que segue uma dinâmica idêntica que se revela por um processo de “identificação” (dos atributos de Cristo e de Buda), passando por um atendimento ao chamado (do Pai, no caso dos cristãos, e do Dharma, no caso dos budistas), desembocando no trilhar de um caminho, passando por provas e tentações, até chegar ao sentido de unidade (com o Pai, em um caso, e com a Verdade, em outro caso) que gera uma verdadeira apoteose e uma bênção de caráter universal.


O Cristianismo se faz presente no extremo-oriente

Por fim, um adendo deve ser expresso, tendo em vista o caráter ainda limitante da discussão racional em torno da experiência religiosa. Como defenderam alguns teóricos da Escola de Kyoto e, no Ocidente, o filósofo Frithjof Schuon (2000), apesar de a razão imprimir um discurso de viés totalizante, ela não consegue abarcar a dimensão espiritual. Portanto, elementos irracionais devem ser vistos como parte integrante de uma estrutura de saber robusta e não menos importante do que os esquemas lógicos.

Em Schuon, apesar de a filosofia partir de um raciocínio que tenta resolver uma dúvida, sendo a dúvida o seu próprio ponto de partida, é na metafísica que este ponto de partida expressa uma “certeza que se pretende comunicar”. Para que fique mais explícita esta linha de pensamento, em Otto “o racionalismo hegeliano e a tradição filosófica que buscava compreender Deus por meio de conceitos racionais são incapazes de exprimir a infinitude de Deus e de descrever corretamente o fenômeno religioso” (UCB – Filosofia da Religião – aula 2, p. 1).

Sua abordagem é, portanto, a da religião como uma experiência irracional. Deus, portanto, não poderia ser entendido pela razão, e sim pela experiência. Neste ponto, há total concordância com a posição budista – particularmente a Zen Budista – de que, a fundo, a explicação racional não consegue abarcar a experiência com o Sagrado. Neste aspecto, a razão pode ser utilizada apenas como meio intermediário para tentar sistematizar o conhecimento imanente e transcendente, mas não se sustentaria com autonomia (a razão) tendo por base apenas a intuição intelectual. É necessário, portanto – e como defende Schuon – levar em conta outras fontes de saber, como as experiências de revelação, as experiências místicas e, em súmula, as proposições apresentadas a partir de elaborações metafísicas. Neste aspecto, é importante lembrar que o componente da “fé” está presente tanto no Cristianismo quanto no Budismo, tendo em vista que, como já explicitado, em alguma medida a razão é contingente ou insuficiente no que pretende responder e/ou sistematizar.

Desta forma, a fé é algo que não se resume ao campo exclusivo da crença. Ela se desvela na experiência direta que, em alguma medida, irá culminar numa certeza. Mesma genealogia, portanto, da estrutura metafísica.

 

Referências:

LUBAC, Henri de. Budismo Y Cristianismo. Salamanca – Espanha: Ediciones Sígueme, 2006;
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