Amor e fantasia: o que gostamos no outro?

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O escritor francês Stendhal (1783-1842) disse que, quando se está apaixonado, o que você ama não é a outra pessoa, mas o estado eufórico de estar apaixonado (STENDHAL, 1822). Quando se observa por esse ângulo, no início do relacionamento o que amamos não é a pessoa em si, mas as sensações que são geradas por esse sentimento, o aumento da frequência cardíaca, da energia, calor, bochechas vermelhas, pupilas dilatadas, a excitação, e o prazer que são desencadeadas por meio da liberação de neurotransmissores como a adrenalina e dopamina. 

O ser humano tem a necessidade de afeto, de ficar próximo, de amar e ser amado. A afetividade influencia nossos pensamentos, e nosso comportamento e formas de nos relacionarmos com o outro. A dimensão afetiva é feita de  sentimentos, emoções, relacionado a si mesmo, e ao mundo externo. Ela é essencial para a nossa humanidade, pois sem ela não passaríamos de autômatos (CARDELLA, 2009).

O ser humano é fundamentalmente social, se comunicar, interagir e estabelecer conexões parece de nossa natureza, por outro lado, a solidão pode ser uma fonte significativa de sofrimento, então o afeto demonstra ser  essencial na constituição humana, proporcionando acolhimento e sentimentos positivos, o afeto é fundamental na promoção do bem-estar. E frequentemente é durante essas interações humanas que se percebe que, diversas vezes, se manifesta a dificuldade de gerenciar os sentimentos e principalmente quais as expectativas sobre a outra pessoa.  

No drama Sul Coreano “Clean With Passion for Now” de 2018, a protagonista depois de uma série de eventos, percebe que passou anos de sua vida apaixonada por seu veterano da faculdade, não por ele ser uma pessoa legal, que se encaixava nas suas expectativas amorosas, mas sim pelas sensações que o sentimento desencadeou nela, e quando ela finalmente conhece melhor seu “crush”, ele não é exatamente um cara agradável, assim ela reflete que estava encantada pela ideia que tinha construído dele.  

Imagem by jcomp on Freepik

Na busca por afeto, é comum que se busque o encaixe perfeito, o par ideal, que se apresenta como a solução de um conflito interno, a necessidade de se sentir completo. No entanto, entre expectativa e realidade quase sempre a decepção se apresenta, ao ver o outro como você deseja e não suas reais características, defeitos e qualidades, e esperar que essas fantasias sejam respondidas, baseados em convicções pré-estabelecidas e a idealização sobre o outro, gera no mínimo descontentamento e relações que não vão muito longe. 

Relacionamentos são cercados por princípios e transições, uma dinâmica transformadora, no contato da subjetividade com o outro o do indivíduo consigo, é uma construção que movimenta o desenvolvimento da vida, que aparenta ser uma necessidade humana, que não é simples e demanda atenção e cuidado. Como Bauman (2004, p. 10) declara “[…] os relacionamentos são como a vitamina C: em altas doses, provocam náuseas e podem prejudicar a saúde.”. 

Inícios de relacionamentos são carregados de expectativas, porém em concordância com Bauman (2014), o ato de se relacionar é movimentar-se pela neblina sem nenhuma certeza, então com começos tão ambiciosos, essas relações se tornam fragilizadas, e tendem a não durar, assim um círculo vicioso toma forma, a necessidade por afeto inerente ao ser humano, que leva a essa busca incessante pelo relacionamento perfeito, que geralmente não se concretiza, que gera relações quebradiças, decepções e corações partidos.       

Vivencia a decepção em um relacionamento amoroso é mais comum do que a descoberta da felicidade, a criação da ideia de achar o par perfeito é uma narrativa fantasiosa, que quase sempre acaba se divergindo da realidade, manter uma relação saudável requer tempo, disposição, equilíbrio, e se responsabilizar pela própria felicidade, assim um relacionamento se constitui como um constante processo de aprendizagem, sobre si mesmo e o outro.

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos vínculos humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. 

CARDELLA, Beatriz H. Laços e nós: amor e intimidade nas relações humanas. São Paulo: Ágora, 2009.

STENDHAL, H. Do Amor. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

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FLOAT: Sobre celebrar o que seu filho tem de diferente

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“Float” é um curta-metragem de 7 minutos, produzido pela Pixar e lançado em novembro de 2019 para a plataforma de streaming da Disney. A animação conta a estória de um garoto que tem o poder de flutuar, dando nome ao título. O pai tenta por diversas vezes fazer com que o filho permaneça no chão, sem muito sucesso e através de olhares julgadores da vizinhança o mesmo decide isolar a criança, em uma tentativa frustrada de protegê-lo. 

 Como já esperado, um dia as crianças aprendem a voar sozinhas, logo então o garoto sai voando por aí, bem feliz e tranquilo, quando de repente resolve pairar em um playground onde outras crianças estão brincando no chão. Os pais ali presentes olham o garoto com olhar de desaprovação e julgamento, não permitindo que seus filhos se aproximem do menino. Diante um ato desesperado de descontrole em manter o menino no chão, temos a única fala do curta dita pelo pai “Por que você não pode simplesmente ser normal?!”. 

Fonte: Divulgação Disney+

O curta nos mostra a relação e o medo dos pais que cuidam de crianças neurotípicas, os mesmo vivenciam os próprios conflitos e lutam para proteger seus filhos do olhar maldoso e das dificuldades do mundo. Segundo Sassi (2013) Os pais que costumam ter um ideal para receber um filho, não se tornam capacitados para receber alguma “imperfeição” que este possa apresentar, juntamente com a falta de orientação profissional quanto às possibilidades de um transtorno. Logo, quando a criança nasce e se descobre algo assim, os pais passam por uma espécie de luto. 

 A criança só estava feliz em ser ela mesma, vivenciando da sua maneira as experiências e os prazeres da infância, a descoberta pelas coisas do mundo e o desejo de explorar. O final além de emocionar nos ensina (deixo aqui a curiosidade para você ir assistir) nos mostrando sobre aceitação, empatia e a importância de uma base de cuidadores sólida. 

Maia Filho (2016) nos ensina que a família é o primeiro grupo social do indivíduo, sendo então eles os principais responsáveis pelo desenvolvimento de sua criança. Tendo importante papel na formação dos sujeitos, sendo determinante na constituição da personalidade, e de grande influência no comportamento do indivíduo, isso se dá por meio de ensinamentos e ações (Pratta e Santos, 2007). Logo se faz necessário um ambiente acolhedor, de aceitação e cuidados, aliados à busca de tratamentos e informações.

O curta sensibiliza a olharmos com mais cuidado para os pais que estão passando por esse processo, ao mesmo tempo em que causa identificação daqueles que vivenciam essas questões no dia a dia. A informação e a compreensão são fortes aliados a qualquer diferença. No caso do TEA se unem também, um trabalho multidisciplinar entre pais, psicólogos, pedagogos, médicos, enfermeiros e afins.

 No fim temos uma dedicatória do criador para seu filho, De Bobby: “Para Alex. Obrigado por me tornar um pai melhor! Dedicado com amor e compreensão a todas as famílias que têm crianças consideradas diferentes”.

Fonte: Divulgação Disney+

FICHA TÉCNICA

Título Float (Original)
Ano produção 2019
Dirigido por Bobby Rubio (I)
Estreia 12 de Novembro de 2019 ( Mundial )
Duração 7 minutos
Classificação L – Livre para todos os públicos
Gênero Animação Drama Família Fantasia
Países de Origem

Estados Unidos da América

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O que a série Caverna do Dragão nos revela

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Caverna do Dragão (Dungeons & Dragons) foi uma série de animação produzida pela Marvel ProductionsTSR e Toei Animation, que tinha como inspiração o jogo de RPG de mesa. Foi exibido nos Estados Unidos entre 1983 e 1985, possuindo 27 episódios, divididos em três temporadas. Sendo somente em 1986 exibido no Brasil, inicialmente nas manhãs de sábado.

Como não se recordar, da grande aventura vivenciada por um grupo de amigos que ficaram presos em um mundo medieval de fantasia, passando a enfrentar diversas aventuras em forma de batalhas, que seriam teoricamente partes de um percurso que deveria ser atravessado para então retornarem ao seu mundo de origem, suas casas.

De imediato conseguimos acessar uma memória afetiva quando nos lembramos das manhãs em que essa série era exibida, no formato de animação em desenho. Sem dúvida, prendia nossa atenção para mais uma aventura desse grupo de amigos que, por muitas vezes chegava tão perto de retornar às suas casas e, por alguma situação permaneciam presos naquele mundo de fantasia. Conseguia deixar em alguns momentos um traço de frustração nos seus telespectadores, ao mesmo tempo que causava motivação para se continuar a assistir o próximo episódio, um misto de sensações que acompanhava as manhãs, tanto do público infantil como também de jovens e adultos.

Fonte: encurtador.com.br/pGKPT

A série trouxe para o seu público a oportunidade de refletir sobre o inesperado, o mistério que envolvia os personagens e os seus comportamentos, o lúdico que se manifestava no formato de super poderes e a busca pelo retorno ao lar. Algo que podemos trazer para o nosso cotidiano, quando de fato as telas nos fazem ampliar o olhar que chega através de uma simples animação.

Com certeza, a frustração do telespectador ao ver que o grupo sempre chegava tão próximo e algo os afastava do seu destino, nos faz compreender o quanto lidar com o inesperado é algo que está predisposto naturalmente em nossas vidas, mas ainda assim pode se constituir em algo desafiador. O mistério em torno dos seus personagens, que necessitava ser decodificado para a compreensão, e ainda como cada um se comportava frente aos obstáculos, com certeza pode ser comumente observado no campo das relações. E ainda os super poderes, que podem ser vistos, como talentos ou habilidades presentes em várias pessoas, como também a busca por estar em lugares ou situações que ofereçam proteção e conforto, podem ser aspectos que a série trouxe para que o seu público se sentisse atraído pelo enredo e ao mesmo tempo contemplado nas diversas situações em que por vezes, o mesmo se aproximava tanto da realidade dos fãs que acompanhavam o desenho.

Então não era uma simples série de animação, mas sim momentos que envolvia entretenimento e reflexões. Sua audiência e as repercussões, indicavam a grandiosidade do impacto causado quando a mesma deixou de ser exibida, ocasionando em vários comentários vindos do público em geral, que clamavam para que fosse dado um final a série acompanhada com apreço por tantos anos, pelos seus fãs. A sensação descrita por muitas pessoas foi de que algo faltava para um encaixe de toda uma trajetória vivida pelos personagens, mas principalmente por todos os momentos em que seu público se voltava para as várias possibilidades de imersão que provocava cada capítulo exibido.

Fonte: encurtador.com.br/arIJ3

Foi assim, que no ano passado, após 35 anos do final de sua conclusão, curiosamente o um grupo de pessoas fieis à série, que atravessa a infância de muitos adultos na atualidade, se reuniram para promover o final que já estava escrito pelo seu autor Michael Reaves, mas que não pôde ser exibido na época, por questões financeiras. Sem dúvida um grande presente a todos que acompanhavam esse desenho e que também sentiam a falta de um final que fosse a culminância dessa caminhada desses personagens que promoveram tantas reflexões e ensinamentos.

Nomeado como “Requiem” ou “capítulo perdido”, o final tão esperado, seria a grande oportunidade de oferecer aos fãs da série um desfecho para uma aventura tão envolvente, e ainda assim promover as últimas valiosas reflexões que o desenho se propunha desde o início. A versão escrita pelo o autor foi reproduzida pelo grupo de fãs, o mais próximo possível, respeitando a ideia do roteiro original elaborado.

No último capítulo, permanece a constante luta entre o bem e o mal presente na série e ainda, a importância de um olhar para as habilidades, que estão por trás de cada super poder de seus personagens, do quanto as relações de amizade podem trazer fortalecimento para se buscar algo desejado, e por fim, da necessidade de se ouvir além das palavras, mas também por diversas outras ações que demonstrem uma realidade.

Para alcançarem o objetivo de voltar para o seu mundo, o grupo de amigos no último capítulo precisaram de unir, sendo os laços de amizade decisivos na decisão de fazer o que deveria ser feito, a representação do mundo da fantasia como uma clausura em que todos estavam envolvidos e só poderiam se libertar, por meio da união, no oferece uma bagagem de reflexões sobre, como os super poderes são mais fortes quando agem em conjunto, e por fim, como as aparências podem nos enganar, quando julgamos e não aprofundamos, de forma a nos distanciar daquilo que reflete como o real, algo que merece ser visto com atenção, para assim ser integrado e até mesmo modificado em nós mesmos.

FICHA TÉCNICA

Formato: Série de desenho animado
Gênero: fantasia/aventura
Criador: Kevin Paul Coates, Mark Evanier, Dennis Marks
País de Origem: Estados Unidos
Temporadas: 3
Episódios: 27
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A sombra coletiva: uma reflexão sobre a representação do Coringa

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A sombra humana não é composta apenas de coisas moralmente repreensíveis, ela é também composta por boas qualidades como: instintos normais, reações adequadas, impulsos criadores entre outros.
Jung

Recentemente foi lançado o trailer oficial do filme solo do Coringa. Interpretado por Joaquin Phoenix como Arthur Fleck, o personagem é descrito como louco e com uma inocência macabra. Ele trabalha como palhaço durante o dia e tenta a sorte como comediante de stand-up à noite, mas não se dá muito bem. Assim, o personagem encontra dificuldades na interação com a população de Gotham City, e fica oscilando entre o que é real e a fantasia, seus problemas psicológicos são evidentes, tanto que a psicóloga do filme parece desistir de acompanhar o caso.

O Coringa tem uma personalidade ambivalente, não podendo ser caracterizado nem como negativo nem como positivo, assim ele é designado como anti-herói. Possuindo seu próprio jeito de fazer as coisas, com um aspecto geralmente atraente e/ou sedutor, um tanto ingênuo e sempre representado em forma de palhaço. Essas são características em comum que se faz presente em todos os filmes e animações da DC Universe.

Usando das diversas mitologias pode-se fazer um comparativo entre Coringa e o Trickster, onde ele é representado de diversas formas conforme o costume de cada povo. Geralmente são personagens egoístas e que cobram um preço por sua ajuda, conduzem a aventura de uma forma mais perigosa. Porém o desenvolvimento de quem interage com ele é sempre maior, devido à necessidade de ir além dos seus limites conhecidos para superar essas situações. Outro exemplo no cinema é o pirata Jack Sparrow; em todos os seus filmes, o personagem está sempre no limite do certo e do errado levando seus companheiros para muitos perigos.

Esses personagens representam o tipo de comportamento que em geral as pessoas escondem ou temem demonstrar, deixando apenas na sombra. O termo Sombra ou Arquétipo da Sombra na psicologia analítica, de acordo com Franz (2008), é a representação de qualidades e atributos desconhecidos ou pouco conhecidos que pertencem à esfera pessoal. Ela se desenvolve naturalmente em todas as pessoas na medida em que o indivíduo identifica e deposita na Sombra características que não são aceitáveis de acordo com a sociedade.

Nesse sentido, o Trickster pode ser considerado uma personificação da Sombra Coletiva, essa que contém tudo o que não é aceitável pela cultura. Essa sombra é o lado obscuro do ideal coletivo. Zweig e Wolf (2000) apontam que as manifestações da Sombra devem ser imaginadas como camadas, uma sobre a outra, na qual a parte pessoal dela se armazena dentro da Sombra familiar, da Sombra cultural e da Sombra coletiva. Então o Coringa/Trickster transita por essa Sombra, de forma que as imposições da sociedade pouco lhe importam.

Fonte: encurtador.com.br/uAGU6

Jung (1986) afirma que a sombra humana não é composta apenas de coisas moralmente repreensíveis, ela é também composta por boas qualidades como: instintos normais, reações adequadas, impulsos criativos entre outros. O arquétipo da sombra é enganosamente associado ao mal, e se faz necessário compreender o sistema complexo que não pode ser reduzido ao nome ou uma figura que o representa.

No filme do Batman – Cavaleiro das trevas, quando o Coringa encontra o promotor Harvey Dent no hospital, existe uma fala marcante, onde ele diz que “é na hora da morte que conhecemos verdadeiramente o caráter das pessoas”. A hora da morte é quando, como ilustrado em histórias, se passa um filme sobre toda nossa vida e com isso podemos ter acesso a partes que antes ignorávamos. Nesse sentido, o Trickster em nosso psiquismo nos impulsiona para uma morte simbólica para que saibamos do que somos feitos.

Dessa forma, o Coringa/Trickster propõe um encontro com a Sombra, e com isso media um processo de conhecimento de si próprio sobre as partes que anteriormente estavam ocultas ou eram negadas. Isso favorece a individuação, que é um processo em que o indivíduo assume sua própria identidade, reconhecendo e aceitando partes de si que inicialmente parecem negativas. Toda esta lógica arquetípica pode ser vista no Coringa. É, portanto, um filme de primeira ordem.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

CORINGA
Diretor:Todd Phillips
Elenco: 
Joaquin Phoenix; Zazie Beetz; Marc Maron;
Gênero: 
Drama; Suspense.
País: EUA
Ano: 2019

REFERÊNCIAS:

FRANZ, Marie-Louise von. O processo de individuação. In: JUNG, Carl Gustav; et al. O homem e seus símbolos. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

JUNG, C.G. Aion – Estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo, Petrópolis, RJ, 1986.

ZWEIG, Connie; WOLF, Steve. O jogo das sombras: iluminando o lado escuro da alma. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

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Fantasias e Deslumbramentos em Mary Poppins

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Concorre com 4 indicações ao OSCAR:

Melhor Design de Produção (John Myhre, Gordon Sim), Melhor Trilha Original (Marc Shaiman, Scott Wittman), Melhor Música Original (The Place Where Lost Things Go – Marc Shaiman, Scott Wittman), Melhor Costume Design (Sandy Powell)

‘O Retorno de Mary Poppins’ (2018), de Rob Marshall (o mesmo de ‘Chicago’, ‘Nine’, dentre outros), é um filme musical arrebatador. Na era digital conseguem-se efeitos visuais extraordinários, mas aqui estão servindo a uma belíssima história e não pairando, se sobrepondo a ela, como acontece bastante hoje, onde estes efeitos passam a ser os protagonistas das narrativas.

Até ‘Pantera Negra’ se perde nisto em correrias de carro e afins no país africano. O trabalho dos atores é excelente, principalmente o de Emily Blunt como Mary e do descendente de porto-riquenhos (do grande musical na Broadway, ‘Hamilton’) Lin-Manuel Miranda, como o acendedor de lampiões de ruas, numa Londres cinzenta dos anos 20, cenário de depressão econômica.

Os dois formam, como o filme precisava imperativamente, uma química surpreendente. Jack é quem mais entende Mary. A coreografia e as músicas são encantadoras. A interação com as animações também. E temos coadjuvantes de luxo como a prima Topsy de Mary, feita por Meryl Streep, que rouba a sequência toda, confirmando o quanto é uma excepcional atriz.

Fonte: https://glo.bo/2UuJdWj

Aparições de Dick Van Dick (o acendedor do filme de 1964) e de Angela Lansbury soam deliciosas; algo bastante próprio da personagem Mary é manter uma carinhosa distância de todos e só fazer seus sortilégios quando ela mesma decide. Não atende pedidos de outros.

Ela mantém uma pose de arrogância bem inglesa, mas light, nos momentos em que aparece. Fica atenta numa sequência crucial até que decide agir. Isto acontece em outras situações. O clássico anterior se passava nos anos 1910 e o grande conflito da família Banks era amolecer o coração do pai workalic, bastante tirano com os filhos.

Neste filme de agora temos uma era de depressão econômica, com desemprego, protestos dos anos 20, uma casa a ser logo encampada por um banco, na ausência de pagamentos etc. Tudo isto nos remete ao nosso 2018, antes e no horizonte depois que temos pela frente. Daí a necessidade de filmes assim que evocam os poderes da imaginação, da fantasia, como forma de mitigar, afastar por alguns momentos, as agruras da vida.

Fonte: https://glo.bo/2UuJdWj

Uma das coreografias musicadas com vários clones de Jack, bem longa, é arrebatadora. Só saberemos com o tempo se teremos um novo clássico, mas há um calcanhar de Aquiles neste filme de agora. Dentre outros trabalhos, Julie Andrews nasceu para fazer a noviça em ‘A Noviça Rebelde’ (The sound of music) e ‘Mary Poppins’!

Assisti ‘Mary Poppins’’ (1964) recentemente na sessão Clássicos Cinemark; por melhor que seja o trabalho de Emily Blunt como Mary em 2018, passa longe da grande magia de Julie em 1964. Inclusive, bem no final deste de 1964, Mary olha para trás e ela que sempre foi super-otimista, tem um leve e muito breve traço de melancolia, por ter de deixar a casa, os meninos, o pai já de coração amolecido, num breve e belíssimo plano, mas logo se recompõe e vai embora pelos céus com seu guarda-chuva e a valise. Não deixa de existir aí um elo bem forte entre os dois filmes.

Fonte: https://bit.ly/2RX5Eql

A favor deste de 2018 está a ideia de que Mary, em seu retorno, está tanto motivada pela saudade da família Banks, como quer ajudá-los numa era de depressão econômica, onde uma casa pode ser perdida. Um dos grandes encantos dos dois filmes é não sabermos nunca para onde vai e de onde vem Mary Poppins. A menos que isto seja revelado numa continuação futura que já pode ser tida como péssima, por quebrar este cativante mistério.

Houve um filme, que passou batido no circuito, onde havia discussões de Walt Disney (Tom Hanks) com a escritora do livro em que se baseou o filme de 1964, P.L.Travers, composta por Emma Thompson. Trata-se de ‘Walt nos Bastidores de Mary Poppins’ (2013) de John Lee Hancock. Ela quer mais fidelidade à sua história, mais realismo. Walt, grande gênio da fantasia no Cinema e Quadrinhos, claro que não concorda. E venceu esta queda de braços.

De certa forma gostei bastante de não ter visto este filme, para não receber uma ducha de água fria e perder o encanto destes dois trabalhos admiráveis.

Fonte: https://bit.ly/2FZgiGH

FICHA TÉCNICA:

O RETORNO DE MARY POPPINS

Título original: Mary Poppins Returns
Direção: Rob Marshall
Elenco: Emily Blunt, Lin-Manuel Miranda, Ben Whishaw;
País: EUA
Ano: 2018
Gênero: Comédia Musical, Fantasia

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Rapunzel – Em busca do seu lugar no mundo

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Os contos de fadas sempre tiveram grande importância no imaginário infantil e até mesmo dos adultos. Esses contos trazem em suas linhas a oportunidade de aprender sobre lutas, obstáculos, opressões, vitórias e finais felizes. Neles há um campo imenso de possibilidades de explicar fenômenos complexos na visão da criança, é claro que por vezes esses contos trabalham de uma forma mística, o que não lhes tira a linguagem facilitadora para a compreensão infantil em torno dos mais variados assuntos.

Os contos de fada têm uma estrutura que reflete os traços humanos mais gerais. Desempenham um grande papel porque através deles podemos estudar as mais básicas estruturas de comportamento. Mas para mim há também uma razão prática: através do estudo de contos de fada e mitos podemos vir a conhecer certos complexos estruturais, tornando-nos mais capazes de distinguir entre o que é e o que não é individual, e ver as possíveis soluções (VOZ-FRANZ, 1985, p. 18). 

Se eu pudesse dar um palpite, diria que cerca da metade da população já proferiu a seguinte frase: Jogue suas tranças, Rapunzel. A famosa frase surgiu do conto de fadas que leva o nome da garota Rapunzel, presa em uma torre inacessível e criada por uma bruxa.

A história foi apresentada ao mundo pelos irmãos Grimm. Sua versão original conta que uma mulher grávida desejou imensamente comer legumes que estavam no quintal de sua vizinha feiticeira. O marido, ao saber do desejo de sua esposa, resolve roubar os legumes, mas a feiticeira o pega em flagrante, e decide puni-lo. Como punição ela exigiu que, ao nascer, a criança deveria ser dada à ela. O homem não teve outra alternativa a não ser aceitar.

Devido à sua beleza, a criança foi mantida presa durante toda a vida em uma torre inalcançável. A única maneira de chegar até ela era pelos enormes cabelos entrançados que Rapunzel tinha. Depois de algum tempo um príncipe descobre a linda garota e a salva da grande torre.

No entanto, como estamos em uma nova era, em que até mesmo os contos de fadas sofreram alterações, preferiu-se trabalhar com o conto Enrolados, produzido pelos estúdios Walt Disney. Nessa nova versão, Rapunzel é a filha do Rei, que precisou de uma flor mágica para se curar de uma doença, essa planta permitiu que Rapunzel obtivesse o dom da cura e da juventude, dando àquele a quem tocá-la a possibilidade de rejuvenescer. No entanto, ninguém sabia desse dom, exceto a bruxa, que resolve então raptar o bebê e prendê-lo em uma enorme e inacessível torre.

Rapunzel sempre foi criada com muito amor e carinho, a bruxa dedicou toda a sua vida para a criança, e é claro usufruiu do seu dom. A criança jamais poderia pisar os pés fora da torre, pois não era “seguro”.

– Por que eu não posso ir lá fora? – Rapunzel

– O mundo lá fora é perigoso demais, cheio de pessoas cruéis e egoístas. Quero você aqui, onde está segura.  – Mãe-Bruxa

Na versão dos estúdios da Walt Disney, ao contrário de um cativeiro escuro e triste, Rapunzel desfruta de sua solidão de maneira que a torna mais leve, com atividades que a divertem: faz inúmeras pinturas, tem diálogos divertidos com seu animal de estimação e tem um dom incrível para a música.

Segundo Kris Mohandie, existe no mundo milhares de pessoas que vivem em cativeiros semelhantes ao de Rapunzel, em seu artigo o autor fala sobre as experiências do cativeiro humano. Para Mohandie todos os indivíduos que foram ou são vitimas de violência doméstica, perseguidos, o tráfico de pessoas, prostituição, cultos e seitas, escravidão, sequestros, ou até mesmo sob o domínio de um mais forte, é configurado como ‘cativeiro humano’.

Em Enrolados temos a visão de um cativeiro divertido, mas não deixa de ser um cativeiro, não há beleza nisso. A jovem está presa sob o domínio daquela que deveria priorizar sua saúde, aprendizado e educação, e pode ver somente o ser cruel que a cria. A mãe-bruxa, embora pareça se importar com a proteção de Rapunzel, preza inicialmente pelo seu próprio bem-estar.

Com o passar dos anos a jovem cultiva um único sonho: Conhecer as luzes. As lanternas flutuantes que toda a população do reino solta em homenagem à princesa perdida. É em busca deste sonho que Rapunzel sai em uma grande aventura, ao lado do ladrão – príncipe-, e descobre coisas além de sua imaginação, consegue finalmente sair do seu cativeiro. Mas ainda assim, a jovem fica apreensiva, pois acredita está cometendo um crime e que isso causará uma grande decepção em sua mãe. Fica evidente o sentimento de fidelidade e dedicação que Rapunzel dedica à mãe. Isso não nos deve causar espanto, porque faz parte do comportamento humano dedicar-se ao outro quando ele se dedica a nós.

É comum que muitas pessoas, por serem mantidas sob um ‘cativeiro’ sintam simpatia e até desenvolvam amor por àquela que a mantém presa. Segundo a Psiquiatria essa patologia é caracterizada como Síndrome de Estocolmo, por se tratar de um estado psicológico particular, onde um pessoa que está submetida a um tempo prolongado de intimidação, passa a desenvolver um sentimento de amor ou amizade perante seu agressor. A síndrome parte de uma necessidade inicialmente inconsciente.

Embora seja mantida presa e devota amor à mãe, a valorização e superproteção da mãe-bruxa, Rapunzel ainda possui um desejo de se autoconhecer, de saber quem de fato é, desafiando seu próprio agressor e fugindo de seu cativeiro.

Rapunzel de Enrolados é a clara imagem da mulher contemporânea, uma vez que, após muitos anos de lutas, ela consegue sua liberdade. A jovem quebra os estereótipos das princesas comuns dos inúmeros contos de fada, ao invés de esperar por um príncipe que a resgate, ela está à espera de uma só oportunidade, trabalhando nisso dia após dia, e quando finalmente a encontra, não deixa escapar, é a reinvenção da história que cabe perfeitamente na época atual.

Segundo a Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung, tem-se o conhecimento do processo de Individuação, para ele este processo seria o caminho de uma vida em direção ao próprio individuo, ou seja, a ampliação da consciência e a integração dos aspectos individuais, de modo que o indivíduo manifesta seu ser único que apenas ele pode ser. Nessa mesma linha tem-se

(…) todo indivíduo possui uma tendência para a Individuação ou auto desenvolvimento. Individuação significa tornar-se um ser único, homogêneo. Na medida em que por individualidade entendemos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio si mesmo. Pode-se traduzir Individuação como tornar-se si mesmo, ou realização do si mesmo (PSIQWEB, s/d, s/p).

A história de Rapunzel em “Enrolados” transmite a mudança pela qual o mundo feminino está enfrentado ao longo dos tempos, reflete a individuação feminina, a busca pelo autoconhecimento e independência. Nessa versão a jovem é uma boa negociante, tem o poder de persuasão, salva a si mesma e o ladrão, não desvia do foco, e toma a iniciativa do primeiro beijo, enfrenta os perigos da vida longe da proteção materna, e enfrenta até mesmo a “mãe”. Tudo em busca de se descobrir, de saber quem é e o que é para o mundo.

Todo o processo de autoconhecimento enfrentado por Rapunzel não foi uma tarefa fácil, uma vez que ela estava diante de um novo mundo, um mundo sem muros ou sem a barreira que a mãe-bruxa oferecia como proteção, mas é justamente devido à esses obstáculos que a garota obtém com êxito sua liberdade, e uma nova opção de vida. Como propôs Jung, a individuação não é uma tarefa fácil e agradável, é na verdade uma batalha. O Ego precisa ser forte o suficiente para suportar as mudanças tremendas, para ser virado pelo o avesso devido o processo de Individuação.

Ao atingir 18 anos, Rapunzel perde os cabelos mágicos, e suas longas madeixas, deixando para trás a superproteção da torre e da mãe bruxa. Não traz mais a imagem de criança indefesa, imaculada e preservada, mas a imagem de uma mulher independente, com conhecimentos sobre si mesmo e com seus próprios objetivos.

Referências:

VON FRANZ, M. L: A Sombra E O Mal Nos Contos De Fada / Marie-Louise Von Franz; [tradução Maria Christina Penteado Kujawski]. — São Paulo: Paulus, 1985. (Coleção amor e psique).

Síndrome de Estocolmo: http://www.brasilescola.com/doencas/sindrome-estocolmo.htm

http://www.onanyotherday.com/tangled-a-critical-analysis-of-rapunzel/

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Tiana: a magia e a realidade da quebra de preconceitos

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A Princesa e O Sapo, a produção norte-americana dos estúdios Walt Disney, lançada em 2009, conta a história de uma moça negra que vive na Nova Orleans dos anos 1920, nos Estados Unidos, e representa a mais contemporânea das histórias das princesas em termos de animação. Tiana é a única princesa que tem vínculos empregatícios e precisa se sustentar a partir do uso da sua força de trabalho, mostrando em parte como se deu a inserção da mulher negra no mundo do trabalho – antes mesmo que a mulher branca pudesse ser inserida nesse. Tiana faz dupla jornada e não é de verdade uma princesa, mas se torna uma quando encontra o príncipe.

Ainda que exista uma leve referência para nós brasileiros, poucos sabem que essa região dos EUA era no final do século XIX o grande mercado negreiro americano, sendo um dos últimos estados onde a abolição da escravatura aconteceu no país, e a história de Tiana ilustra o cotidiano de muitas moças da época, cumprindo longas jornadas de trabalho para poder levar uma vida minimamente confortável. Mais um caso aqui de mulher que precisa se resgatar por si mesma, uma vez que o príncipe é imperfeito e muito mais humano do que a maioria dos personagens que costumamos ver nos contos de fada. Ao invés de salvar Tiana, o príncipe de seu conto a coloca em diversas situações complicadas, como por exemplo, transformá-la em sapo e quase arruinar a possibilidade de que ela consiga seu restaurante.

O filme vai se desenvolvendo a partir da história da família de Tiana, em que sua mãe trabalha assim como o seu pai. Nesse primeiro momento da trama, já se percebe o contraste com a realidade da Charlotte, a “princesinha do papai”. Depois de algum tempo vemos uma Tiana crescida e que se torna endurecida pelo trabalho, uma moça que passa tanto tempo em atividade que não tem tempo para o lazer ou amigos, sempre em contraste com Charlotte, jovem rica e mimada, cuja maior preocupação é conseguir conquistar um príncipe.

Enquanto isso, Tiana tem tempo apenas para “se focar” em realizar seus sonhos: abrir um restaurante glamouroso e de sucesso.

Em outras palavras, sua personagem tem sonhos de construir um patrimônio seu e de ser bem-sucedida a partir de seu próprio trabalho. O príncipe pouco ou nada tem a ver com isso, e é assim que ele permanece na história, sem financeiramente contribuir para a abertura do restaurante, e se caracteriza como um personagem que tem defeitos, sentimentos e sonhos.

O casal não se apaixona à primeira vista, e o príncipe busca relações por interesse, pedindo um beijo à Tiana para que ele volte à forma humana, e em troca promete a ela dinheiro para o seu restaurante.

O filme mostra como a relação entre os dois vai se construindo, e como ambos, Tiana e o príncipe, precisam rever seus valores de felicidade para que possam se engajar em uma relação amorosa. Nesse aspecto, o amor aparece também como parte da magia responsável pela transformação da vida das pessoas.

O amor e a magia são sempre elementos essenciais dos contos de fada, histórias essas que no último século começaram a ser predominantemente feito para meninas, mostrando mulheres frágeis e que necessitam de alguém que as resgate dos apuros que sua condição feminina as colocou.  Contudo, alguns dos filmes de princesas produzidos na última década trazem não só o amor e a magia como elementos para que seus personagens se salvem das adversidades exteriores, mas a determinação e a ação concreta para que se salvem de si mesmos.

Surpreendida por um príncipe que não esperava, Tiana se depara com um homem atrapalhado, infantil e confuso, e que em consequência a coloca em diversas situações que a convida a entrar em ação.

Novas possibilidades de relacionamento também se descortinam com as tramas, e agora a mulher aparece constituindo e se constituindo nessa relação de outra forma, sendo também autora dos destinos desse relacionamento e de suas vidas. A princesa Tiana escolhe os rumos de sua vida, e ao invés de ser escolhida prioritariamente por sua aparência ou por predileção do destino, o é por suas características e pela maneira como se coloca no mundo.

Contudo, se por um lado vemos uma nova representação de mulher, forte, ativa, determinada e que usa esses recursos em detrimento da magia, o que vemos é a extensão dos valores do self-mademan também para as protagonistas de contos de fada: uma mulher que faz e não só acontece. Especialmente em A Princesa e o Sapo, que ao não explorar a questão racial – que é essencialmente social – com uma visão social e crítica sobre as consequências do racismo na vida das mulheres negras, tenta apresentar uma solução para superar a discriminação pela via do individual: Tiana é a típica mulher que precisa ir e fazer ela mesma, apresentando o sujeito do ideário neoliberal em que cada um deve estar por si.

Tiana é uma princesa que rompe com o ideário da típica princesa: é negra. Representando o que as mulheres já fazem e os dramas que vivem há décadas, os novos filmes trazem mulheres que precisam não só cuidar de seus homens, filhos e famílias, mas também de si, em duplas, triplas ou sabe-se-lá quantas jornadas. O que se pode dizer, ao final, é que a história contada através de Tiana traz novos valores nas telas que já são antigos conhecidos de todas nós mulheres da modernidade.

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