A Mulher e a família na contemporaneidade

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Ao longo da história a mulher tem assumido diferentes papéis no âmbito familiar. Com as diversas configurações socioculturais, o que se entende como “ser” mulher e o que se espera dessa figura, ao mesmo tempo em que influenciam diretamente a dinâmica das relações familiares, são modificadas por ela. Neste texto serão abordados, em um contexto familiar ocidental, os papéis e funções da mulher como são apresentados na contemporaneidade e sua influência na construção psíquica dos indivíduos, bem como um panorama histórico do feminino na instituição de família como conhecemos atualmente.

Entre as teorias de origem da família, enquanto umas se fundamentam em funções biológicas e outras em funções psicossociais, o chamado “vértice evolutivo” é considerado a base para construção de teorias sobre origem e estruturação do que se entende como grupo familiar. Nele considera-se que a família e seus membros devem passar por etapas sucessivas no curso do seu desenvolvimento, como encontramos em distintas culturas no decorrer do processo civilizatório (OSORIO, 1997) [1].

Acredita-se que inicialmente as famílias se organizavam em modelos matriarcais, possivelmente por desconhecer o papel do homem na reprodução; ou em decorrência da vida nômade dos povos primitivos, onde os homens saiam á procura de alimento e os filhos ficavam sobre influência quase que exclusiva da mãe. O desenvolvimento da agricultura, o sedentarismo e a divisão de tarefas teriam sido os responsáveis pela instalação progressiva do patriarcado [1].

Fonte: http://migre.me/wbrJW
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Com o desenvolvimento da ideia de propriedade ao longo do processo civilizatório da sociedade ocidental, a família patriarcal passa a adotar a monogamia, onde a fidelidade conjugal é condição para a garantia da legitimidade dos filhos para a transmissão de bens. Seria a família monogâmica, possivelmente, a primeira a ser fundada com base em condições sociais e não naturais, prevalecendo até hoje no mundo ocidental. A noção de propriedade se entendeu para a esposa e o contrato matrimonial passou a assumir as esferas comercial (com os dotes), místico-religiosa e de direitos civis. Porém, a coexistência primeva da composição entre as figuras de pai, mãe, e filhos, não configuraria o que se entende por família [1].

Com os mais variados modelos, as famílias atuais não se enquadram no que o senso comum, em partes, adota como “modelo”, uma vez que as definições de família (que também são variadas) descrevem as relações entre as funções de seus membros, e não quem deve ocupar essas funções. Capitão e Romaro (2012) discorrem sobre uma visão de família entendendo-a como uma referência inter-relacional para seus membros, onde se formam regras, valores e crenças em um sistema ativo em transformação permanente [2]. As mulheres contemporâneas estão inseridas nesse contexto, sendo mães, avós, filhas, tias; elas passam a ocupar “funções” e não “cargos” pré-determinados.

Fonte: http://migre.me/wbrL6
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Bilac (2006) atribui ao pensamento feminista o trabalho do conceito de “reprodução” social, que como uma instância, seria a produção social da vida humana, em termos cotidianos e geracionais. Essa reprodução, ligada à família ou não, estaria ligada ás relações de gênero e á divisão sexual do trabalho [3]. A classe social à qual pertence a família, e o modelo familiar que se sucede, estão ligados entre si e ainda ás relações de gênero entre seus membros, influenciando na reprodução.

Dessa forma, para Bilac (2006), a variabilidade histórica da instituição família, desafia qualquer conceito geral, uma vez que o mesmo envolve aspectos econômicos, sociais, culturais, históricos e de gênero. As mudanças na organização familiar estão se dando a partir das mudanças na condição feminina, provocando uma revisão dos demais papéis na família. As diferenças entre os gêneros são socialmente construídas e normatizadas, portanto, a capacidade de (re)negociação de sujeitos individuais em um grupo social, estaria ligada a possibilidade de obliteração das diferenças de poder e desigualdade entre homens e mulheres, afetando os destinos individuais e da família na contemporaneidade [3].

Fonte: http://migre.me/wbrLv
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Para Sarti (2006), o controle da natalidade permitiu que a mulher que reformulasse seu lugar na esfera privada e participação na esfera pública, e a individualidade (que tem cada vez mais importância na pós-modernidade) teve seu espaço para desenvolvimento, e os familiares se tornaram conflitivos na sua forma tradicional. A autoridade patriarcal e os papéis familiares se modificam, e consequentemente as relações de gênero [4].

As obrigações, direitos e deveres ficam passivos a renegociações. Esse desenvolvimento provoca uma transformação na esfera intima que potencializa o atual modelo social com a valorização da ética pessoal. A execução positiva da requalificação da “autonomia” (como condição de se relacionar com os outros de modo igualitário) possibilitaria a configuração de limites pessoais e a administração bem sucedida dos relacionamentos [4].

Com a crescente participação do feminino no mercado de trabalho e a atuação das correntes do movimento feminista, as mulheres adquirem uma nova posição na estrutura doméstica e nos vínculos com seus familiares. A crescente inclusão da mulher nos domínios públicos e a visão das representações femininas diferentes do que era o estereótipo, redefiniu o papel da mulher na família e sociedade [5]. Essas mudanças, a curto e longo prazo, afetam a sociedade intergeracionalmente, facilitando a igualdade de gêneros, de direitos e a busca pelas liberdades individuais.

Fonte: http://migre.me/wbrLO
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Maternidade: a individualidade e os males da família contemporânea

Os aspectos desse tópico poderiam ser tratados independendo de gênero ou da família, porém como visto acima, as circunstâncias do feminino influenciaram e influenciam as dinâmicas pessoais de comportamento ao longo da história, e como citado, na contemporaneidade.

Para Campos (2012) a sociedade pós-moderna tem contribuído para que as pessoas, cada vez mais, se individualizem, assumindo posições narcísicas, e seria o papel da psicologia elucidar esse fato e se fazer presente para evitar que ele ocorra. Com a virada do milênio, as famílias se encontraram situadas em uma confusão de problemas não superados, como a própria existência de seus componentes ao se deparar com a ação do tempo [6].

Em uma adultez fragilizada, os pais cada vez mais egoístas, narcisistas e individualistas se encontram perdidos na tarefa de educar, de modo a manifestar uma negação às funções parentais. Adultos que não são referências para seus filhos impossibilitam que eles experimentam frustrações, de modo a apresentar sempre “infinitas” possibilidades aos filhos em uma busca de auto-superação e compressão de experiências. Filhos que podem fazer o que querem não são livres ou mais amados, uma vez que a construção do “eu” exige orientação e o aprendizado da renuncia [6].

Fonte: http://migre.me/wbrQV
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De acordo com Campos (2012), pais e mães na sociedade atual estão influenciados pelas diversas mudanças sociais que contribuem para a procrastinação da formação de uma nova família [6]. Os novos papéis das mulheres e as suas novas funções na sociedade fazem com que elas passem mais tempo fora de casa, dedicando mais tempo aos seus trabalhos (assim como os trabalhadores de modo geral).

 Entre outras, as características de personalidade que foram supracitadas contribuem no aumento da dificuldade amar cumulam em uma ausência constante na criação dos filhos, que por sua vez, recorrem a outros meios de aprendizado, como babás, TV, videogames e internet. A presença e interação positiva dos pais se fazem, portanto, indispensável para a formação da personalidade e caráter [6].

As mulheres devem se dedicar exclusivamente a cuidar da casa e família? As mulheres devem ter liberdade para decidir o rumo de suas vidas, assim como qualquer outra pessoa. Fala-se aqui de pais, não somente mulheres. Pessoas que optam por ter uma família devem se ater ás suas responsabilidades como provedores, visto a importância dessas figuras para o desenvolvimento humano.

Fonte: http://migre.me/wbrSD
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A desordem nas relações familiares, para Campos (2012), causa a desordem social. As más resoluções em divórcios, assistência parental e trabalho, são um manifesto do que Bauman definiu como “tempos líquidos”, onde a solidez das relações se desmancha no ar. A ideia de supermães que tem qualidades divinas ainda assombra as mães modernas e a comum ausência de outras figuras de apoio, tornam as relações familiares devoradoras [6].

Segundo Capitão e Romaro (2012) [2], os pais transmitem uma herança de ajustamento de desejo para com a criança, que mesmo antes do nascimento já faz parte de suas fantasias, sendo a maior parte das pressões parentais direcionada para a criança com o intuito de fomentar a cumplicidade para com essas fantasias inconscientes. Dessa maneira, o desejo dos pais desde a concepção já influenciaria no desenvolvimento da criança.

De acordo com Moura (2013) [7], é a pessoa que ocupa a função materna quem escreve o primeiro capítulo da vida da criança, interpretando-a. No que concerne uma visão de si mesmo, a criança precisa do Outro para a construção de um registro imaginário, portanto, o inicio da história de vida da criança se situa no contato com o Outro, no caso, a figura dos pais. É a partir de uma identificação com os pais, que com o abandono dos “pais edípicos”, o ideal de ego se constitui como superego, uma formação intrapsíquica de censura e de auto-observação, que surge ou com o superego deles, que é adotado como modelo, servindo como referência ao ego para apreciar todas as suas realizações afetivas (CAPITÃO E ROMARO, 2012).

Fonte: http://migre.me/wbrVJ
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Os novos papéis e desafios das mulheres contemporâneas, assim como todas as mudanças, causam um impacto na sociedade e no modo como as relações humanas se dão, ultrapassando o conceito de gênero e indo para outro muito mais amplo: humanos. A dinâmica familiar está, portanto, “à mercê” de sua capacidade de redefinição, no âmbito parental, independentemente do estilo familiar.

Em um pensamento igualitário de gêneros e sexualidade somado a uma inexistência de um modelo de família ideal, pensa-se na família como primeiro contato social, onde se projeta a oportunidade de uma mentalidade grupal, e somente nessa modalidade pode-se pensar a igualdade coexistindo com as diferenças, algo fundamental para se definir o conceito de “humanidade”.

REFERÊNCIAS:

[1] OSORIO, L. C. A Família como Grupo Primordial in ZIMERMAN, D. E.; OSORIO, L. C. [et. al]. Como Trabalhamos com Grupos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997, p. 51-56.

[2] CAPITÃO, C. G; ROMARO, R. A. Concepção Psicanalítica da Família in BAPTISTA, M; TEODORO, M. Psicologia de Família: Teoria, Avaliação e Intervenções. Porto Alegre: Artmed, 2012, p. 27-33.

[3] BILAC, E. D. Família: Algumas Inquietações in CARVALHO, M. C. B. A Família Contemporânea em Debate. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2006, p. 30-37.

[4] SARTI, C. A. Família e Individualidade: Um Problema Moderno in CARVALHO, M. C. B. A Família Contemporânea em Debate. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2006, p. 42-46.

[5] ROMANELLI, G. Autoridade e Poder na Família in CARVALHO, M. C. B. A Família Contemporânea em Debate. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2006, p. 77.

[6] CAMPOS, D. C. “Saudade da família no futuro ou o futuro sem família?” in BAPTISTA, M; TEODORO, M. Psicologia de Família: Teoria, Avaliação e Intervenções. Porto Alegre: Artmed, 2012, p. 74-81.

[7] MOURA, D. F. G. Maternidade e poder. Rev. Mal-Estar Subj,  Fortaleza,  v. 13, n. 1-2, pp. 387-404, jun.  2013. Disponível em: <http://www.redalyc.org/pdf/271/27131673015.pdf >.

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Raça, gênero e sexualidades: despatologizando os discursos

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No dia 16 de agosto de 2016, na Universidade Federal do Recôncavo Bahiano – UFRB em Cruz das Almas aconteceu a mesa redonda “Raça, gênero e sexualidades: despatologizando os discursos” que fazia parte do evento do Encontro Nacional dos Estudantes de Psicologia (ENEP) e foi ministrada por três convidados trans.

Fonte: http://migre.me/w9gz2
Fonte: http://migre.me/w9gz2

A primeira palestrante, Jackeline Gomes de Jesus, trouxe à mesa uma perspectiva histórica de vários acontecimentos relacionados ao tema. Primeiramente, no século XVI, gênero era pensado a partir de uma visão anatômica. A mulher não era tão valorizada devido ao fato de anatomicamente não possuir pênis, ou melhor, por este ser incompleto: clitóris; e isso seria um defeito de gênero. Portanto, naquela época só o homem era importante e detinha o poder.

Jackeline Gomes de Jesus. Fonte: http://migre.me/w9gEj
Jackeline Gomes de Jesus. Fonte: http://migre.me/w9gEj

Sobre século XX foi relembrada a Alemanha Nazista que exterminava como roedores (comparação) as pessoas com culturas divergentes (judeus, ciganos, etc.) e deficiências físicas e/ou mentais. Enquanto isso, na mesma época, acontecia o Apartheid nos Estados Unidos. E ainda, no Reino Unido ocorria o tratamento com eletroterapia em mulheres lésbicas. E, por fim, no Brasil transcorria em Barbacena a venda, pelos hospícios, de corpos para serem estudados; e as mulheres negras que estavam (andando) na rua, tidas como “desocupadas”, também eram aprisionadas em hospícios.

Fonte: http://migre.me/w9gIT
Fonte: http://migre.me/w9gIT

No término de sua apresentação ela trouxe questões para serem refletidas, como o Apartheid de Gênero (segregação social, exemplo: banheiros femininos e masculinos e quarto da patroa e quarto de empregada). Também citou que a campanha da despatologização iniciou-se na Espanha e que o Conselho Federal de Psicologia (CFP) já se posiciona sobre, até mesmo lançou um site especial Despatologização das Identidades Trans, em 2015.

O segundo palestrante, Pietro Akin, afirmou que era necessário localizar algo que delimita o poder para conseguir fazer o “empoderamento”. Este não se resume apenas a identidade pessoal (social), mas também à identidade política, ressaltando que os conceitos e identidades são formados pelo social. Desse modo, aqueles que vivem na norma padrão possuem privilégios, cujos são negados às minorias: pretos, comunidade LGBT, mulheres (sociedade misógina), por exemplo. Portanto, muitas vezes as mesmas têm sua representatividade deturpada, por isso é importante a existência de grupos, como as militâncias, para buscarem os seus direitos e defendê-los.  Para finalizar, ele sugeriu o site do IBRAT – Instituto Brasileiro de Transmasculinidade como um exemplo de militância TRANS.

Pietro Akin. Fonte: http://migre.me/w9gLv
Pietro Akin. Fonte: http://migre.me/w9gLv

E por último, tivemos a presença de Fran Demétrio que explanou seus conhecimentos acerca do Campo da Saúde, cujo é restringido e tem como objetivo ampliar a saúde (conceito e prática) para além da ausência de doença. Quanto às pesquisas científicas sobre os cuidados em saúde TRANS, afirmou que são poucas produções. Estas iniciaram em 2009 e tiveram seu pico em 2014, e constatou-se que a região sudeste é a maior produtora destas. Ademais, advertiu que a maioria das pesquisas foi feita por pessoas cisgêneros.

Nesse contexto, fez uma breve distinção entre os termos cisgênero e transgênero. O primeiro tem sua orientação sexual concordante com seu sexo biológico, ao passo que no segundo o sexo biológico não concorda com a orientação sexual que a pessoa constrói; se identifica; e/ou se reconhece. Além do mais, afirmou que a medicina (maioria) não considera o gênero a partir da subjetividade da pessoa, mas apenas o sexo biológico dela, destacando, também, que os TRANS no Brasil ainda são vistos como objetos de estudo.

Fran Demétrio. Fonte: http://migre.me/w9gQC
Fran Demétrio. Fonte: http://migre.me/w9gQC

Segundo ela, o Campo da Saúde precisa humanizar-se, reconhecer as pessoas e distingui-las dos objetos. É necessário manter o processo civilizatório em curso: começando pelos direitos humanos, depois civis, em seguida coletivos… Pessoas TRANS são patologizadas, consideradas (trans)tornadas, neste campo e é desse modo que o governo dá subsídio a essa minoria. Destarte, torna-se um círculo vicioso: TRANS(tornado) = doente = atendimento no SUS.

Nessa conjuntura, a palestrante conclui elencando alguns autores que contribuem com a fundamentação teórica sobre a despatolização, são eles: Canguillhem, Michel Focault e Mary Douglas. E, ainda, ressalvou o papel da pessoa cis ao ser militante/falar sobre as causas dos grupos discriminados, oprimidos, pois ela terá mais visibilidade (do grupo opressor) apontando para o grupo oprimido. E que o movimento sanitarista precisa repensar o significado dos movimentos sociais na área da saúde, considerar o individuo como ser biopsicossocial e a abarcar a luta antimanicomial.

Na minha perspectiva, esta foi a mesa redonda com maior qualidade em relação aos conteúdos apresentados no evento. Os temas abordados já me despertavam o interesse, mas nunca os tinha encontrado na esfera da despatologização propriamente (e explicitamente) dita. Outrossim, também tive a oportunidade de vivenciar a cultura afrodescendente, conhecer as cidades vizinhas e conviver uma semana com acadêmicos de psicologia de diversas regiões do país que demonstravam disposição e ação (essa em menor quantidade) na realização de mudanças sociais.

Faixada do Pavilhão II da UFRB – Cruz das Almas. Fonte: http://migre.me/w9gTd
Faixada do Pavilhão II da UFRB – Cruz das Almas. Fonte: http://migre.me/w9gTd

Neste ínterim, toda esta experiência significativa afetou-me como pessoa, acadêmica e futura profissional, me auxiliando a descontruir, desmistificar e ressignificar meus conceitos. E posso afirmar que desde então meu olhar sobre o outro, independente de gênero, etnia e orientação sexual, acima de tudo o enxergará como outro ser humano.

VIVA A DIVERSIDADE!

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Contemporaneidade e os obstáculos para a igualdade de gênero

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No dia 25 de agosto de 2016, recebemos no auditório central do CEULP/ULBRA (Centro Universitário Luterano de Palmas), a presença das professoras Dra. Cynthia Miranda e Dra. Temis Parente, juntamente com Hareli Fernanda Garcia Cecchin, fazendo parte da mesa redonda no quarto dia da 1° Semana Acadêmica de Psicologia. A mesa redonda foi sobre o tema “A construção do Feminino: impasses entre o moderno e o contemporâneo”.

A professora Dra. Temis Parente abordou o conceito de gênero e a discriminação da mulher, tanto profissional (a desigualdade salarial e desvalorização do serviço prestado no mercado de trabalho); também falou da exclusão da mulher em cursos considerados de homens (engenharia civil, por exemplo) ao longo da história e fez uma leve discussão sobre a descriminação de negros e pobres.

Equality woman man conceptFonte: http://ec.europa.eu/justice/newsroom/gender-equality/news/150429_en.htm

Já a professora Dra. Cynthia Miranda relacionou mulher e comunicação, dando ênfase ao espaço e o papel da mulher na mídia. Expondo que as mulheres ainda são representadas nos meios de comunicação como vítimas e não como protagonistas e também quanto à banalização da imagem do corpo da mulher, alimentando com isso a ideia de mulher como objeto, propagando a cultura de estupro, assédio sexual e moral e, por fim, o machismo na sociedade.

Dra. Cynthia Miranda citou vários exemplos de violência simbólica (conceituada pela mesma como danos morais e psicológicos, sem danos físicos), como foi o caso das mulheres nas Olimpíadas Rio2016, que foram retratadas como musas e não como atletas e também do tratamento de mulheres que cobrem notícias sobre esporte. Finalizando suas palavras falando a cerca do desafio que é esta busca por igualdade de gênero na nossa sociedade, regada pelo machismo e patriarcado.

Resultado de imagem para igualdade de generoFonte: http://educarparacrescer.abril.com.br/imagens/comportamento/igualdade-genero.jpg

Com um discurso temático pertinente, observei um debate polêmico acerca da identidade de gênero e não apenas ao gênero feminino (da mulher, biologicamente falando). Então houve esta inquietação quanto ao tema. Por fim, suas falas estenderam-se até às 10h, quando Hareli Garcia agradeceu a presença das professoras, fez seu comentário sobre o assunto e abriu oportunidades aos estudantes para fazerem perguntas.

Após debaterem algumas questões como feminismo, identidade de gênero (quando veio à tona a quebra de expectativa quanto ao tema) e a aprendizagem dos participantes, por fim às 11h15min houve o encerramento, acalentado com aplausos do público presente.

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“Carol” e o caminho da completude feminina

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Com seis indicações ao OSCAR:

Atriz (Cate Blanchet), Atriz Coadjuvante (Rooney Mara), Roteiro Adaptado (Phyllis Nagy), Fotografia (Ed Lachman), Trilha Sonora Origial (Carter Burwell), Figurino (Sandy Powell). 

Banner Série Oscar 2016

O homem só conhece a sua verdadeira natureza no momento em que se enamora

                   Aldo Carotenuto

O prenúncio de Eros e Pathos

É natal, a beleza da neve fina que cai logo se transmuta na lama que suja as ruas de Nova York. Mas nada disso importa para Therese Belivet (Rooney Mara). O frio a expulsa do seu apartamento sem calefação para o trabalho, onde toma seu café. Lá, vai para o seu posto atrás de um balcão, no setor de bonecas. Therese não é muito diferente delas, ali, esperando inerte, passiva, repetindo as mesmas frases decoradas para agradar os clientes enquanto distribui um sorriso plástico para atraí-los. Mas aquele dia em especial teria duas novidades: o primeiro, ter que usar um gorro de natal e, segundo, a presença de Carol (Cate Blanchett). Ela era “alta e clara, com um longo corpo elegante dentro do casaco de pele folgado (…), seus olhos eram cinzentos, claros e, no entanto, dominadores, como luz ou fogo” (Trecho do livro Carol).

1

Ao avistar Carol pela primeira vez, Therese não quer se desprender daquele corpo evanescente que parece flutuar longínquo em meio a balburdia da multidão na loja. Um instante ali, em um respirar, a garota perde seu objeto de curiosidade, expande sua procura para outras partes da loja e quando a decepção começa a se instalar, Carol materializa-se na sua frente, carne, osso e sedução. Olhos nos olhos, postura contida da jovem diante da força feminina que penetra o seu espaço. O enlace lembra um excerto de Shakespeare.

“Assim que se olharam, amaram-se; assim que se amaram, suspiraram; assim que suspiraram, perguntaram-se um ao outro o motivo; assim que descobriram o motivo, procuraram o remédio”. (William Shakespeare)

Com seu primeiro livro, Strangers on a Train, a jovem autora Patrícia Highsmith conseguiu a atenção do público e da crítica. Alfred Hitchcock imortalizou a obra nos cinemas com o clássico O Pacto Sinistro. Seu segundo livro, O Preço do Sal, foi rejeitado por conflitos editoriais; não queriam arriscar a carreira da escritora com um tema delicado sobre o romance de duas mulheres. Que continuasse com os suspenses. Mas Patrícia preferiu entregar seu livro para outra editora, não iria jogá-lo no esquecimento de um fundo de gaveta. Sob o pseudônimo Claire Morgan, O Preço do Sal chegou às mãos dos leitores em 1953.

Somente depois de quase trinta anos a verdade veio à tona em uma confissão da própria autora em um pós-escrito de uma nova edição. Agora temos uma versão cinematográfica primorosa feita pelo diretor Todd Haynes (Longe do Paraíso, 2002), com interpretações permeadas de sutilezas do elenco, principalmente das protagonistas Cate Blanchett e Rooney Mara, que concorrem, respectivamente, ao Oscar 2016 de Melhor Atriz e Melhor Atriz Coadjuvante.

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Afrodite: o arquétipo da Deusa do Amor 

Uma verdadeira história de amor tem doses de idealismo e romantismo, permeados de sofrimento, prenúncios de tragédia e, por vezes, redenção no seu encalço. E se o imaginário coletivo já é carregado por arquétipos gregos, a cultura de massa explora esse sentimento que arrebata o coração empurrando romances e filmes, provocando suspiros, lágrimas e, apesar de tudo, esperança. É peculiar notar que tramas com tamanha dor representam a essência do sentimento mais desejado pelo ser humano.

O drama é incontestavelmente parte da experiência amorosa, no entanto, com tantos sinais de aviso sobre os caminhos tortuosos deste sentimento utópico, o indivíduo quer, procura e sonha tê-lo.  Mas qual seria a razão para o desejo de um sentimento que pode, aparentemente, significar a destruição daquilo que já conhecemos, das nossas certezas e, principalmente, da identidade? Certamente não obteremos a resposta utilizando a razão.

No primeiro encontro, Carol chega curiosa à bancada da menina que a encarava de maneira incisiva. Sua experiência enxerga em Therese uma possibilidade, há uma faísca no olhar da vendedora que a atrai. O jogo de sedução é iniciado a partir do momento que ela deixa as luvas sobre o balcão, – com as mãos nuas, ela demonstra implicitamente que está aberta para um contato verdadeiro; outra leitura presente é que nos remete a cultura do desafio do passado: ao retirar as luvas e jogá-las no chão, chama-se o oponente para um embate, a pessoa ao se abaixar e pegar estaria aceitando o duelo. Therese percebe as intenções e aceita, de forma juvenil, as investidas da sedutora mulher à sua frente. Carol quer saber até onde vai a ousadia da menina; Therese quer provar que é digna de atenção.

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O ponto de partida do romance entre as duas mulheres é de reconhecimento dos anseios da psique e sua completude. Em uma identificação com os arquétipos das deusas gregas, segundo Bolen (1990, p. 82), temos Therese como uma das três deusas virgens. “Ártemis representa um sentido de integridade, uma-em-si-mesma, uma atitude de ‘sei cuidar de mim mesma’ que permite à mulher agir por conta própria, com autoconfiança e espírito independente”. Em vários momentos do longa há investidas masculinas sobre Therese, e ela renega todas tal qual como a deusa da lua. Na década de 50, isto representa um avanço na personalidade feminina e os primeiros passos do feminismo. De acordo com Bolen (1990, p. 55).

“(…) a propaganda posterior à Segunda Guerra Mundial enfatizava o casamento e a maternidade. Era um tempo de realização para mulheres que tinham a necessidade de Hera de serem uma companheira, e para mulheres com instinto maternal de Deméter. Era uma época difícil para mulheres tipo Atenas ou Ártemis, que eram intelectualmente curiosas e competitivas, mulheres que queriam expressar superioridade ou realização em qualquer tarefa que não a de construir família.”

Carol encarna a deusa Deméter, mãe acima de tudo, seu amor e devoção estão todos voltados para a filha e ninguém mais. A deusa Hera também traz a maternidade como uma de suas características, mas diferente da nossa protagonista, a deusa nutre um amor passional pelo marido, Zeus, sentimento inexistente entre ela e Harge (Kyle Chandler). “A mulher com um forte arquétipo de Deméter deseja ardentemente ser mãe. Uma vez que se torna mãe, acha isso um papel realizador. Quando Deméter é o arquétipo mais forte na psique de uma mulher, ser mãe é o papel mais importante e funcional de sua vida” (BOLEN, 1990, P. 240).

Esses modelos não são fixos, mas podem ser limitantes, refletindo características da época que podem suprimir ou permitir o seu desenvolvimento. Esclarece Bolden (p. 54): “A vida das mulheres são modeladas por papéis permitidos e imagens idealizadas da época”. Historicamente temos exemplos dessa influência com a caça às bruxas na Idade Média e o advento do feminismo na modernidade. Mas a psique do indivíduo nem sempre precisa da autorização da sociedade para buscar sua individuação. “Uma deusa pode tornar-se ativada e nascer para a vida quando um arquétipo é trazido à tona por uma pessoa ou por um acontecimento” (BOLEN, 1990, P. 58).

A mulher necessita expressar de maneira equilibrada os seus três aspectos: das deusas virgens – Ártemis, Atenas e Héstia -, das deusas vulneráveis – Hera, Deméter e Perséfone -, e da deusa alquímica – Afrodite. “As deusas, representando três categorias diferentes, necessitam de expressão em algum lugar na vida da mulher, para que ela possa amar profundamente, trabalhar significativamente, e também ser sensual e criativa” (BOLEN, 1990, p. 39).

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Ao se encontrarem, Afrodite permeia a psique de ambas as mulheres. O desejo de transformação é inerente a elas naquele momento; há uma escolha, mas suprimir essa ânsia pela completude da alma pode trazer conseqüências mais graves do que se render a inconsciente vontade de transformação. Para Bolen (p. 48), “quando diversas deusas disputam o domínio sobre a psique de uma mulher, esta precisa decidir que aspecto de si própria expressar, e quando expressá-lo. Ela, aliás, será arrastada primeiro numa direção e depois noutra”. Temos no filme, então, duas mulheres em contato direto com suas deusas, Ártemis e Demeter, onde a necessidade de transformação será ativada pelo arquétipo da deusa do amor. “O arquétipo de Afrodite motiva as mulheres a procurarem intensidade nos relacionamentos, em vez da permanência neles: motiva-as a valorizarem o processo criativo e a serem receptivas a mudanças” (BOLEN, 1990, p. 41).

Então, quais seriam essas mudanças que almejam e que somente com o florescimento da deusa do amor e da sedução será possível? Segundo o analista Aldo Carotenuto (1994, p. 17), enxergamos no outro a nossa redenção e nossa maldição. Há um reconhecimento do inconsciente de uma parte da psique necessária para a transformação alquímica. “Ativam-se, pois na relação amorosa, elementos ocultos ou até desconhecidos, que são levados à luz da subversiva força da emoção.” Assim, o perigo de amar é não reconhecer e não permitir a mudança dos aspectos da psique até então atuantes e ligar-se de maneira doentia ao outro. O autor esclarece:

O amor que une os amantes liga indissoluvelmente as partes “doentes” dos dois indivíduos. Por isso podemos dizer que a relação de casal apresenta aspectos delinquenciais que, se reforçados por um particular contexto ou por uma disposição patológica de ambas as pessoas, podem fazer emergir de modo dramático as zonas de sombra (CAROTENUTO, 1994, p. 17).

Carol necessita sentir Ártemis através de Therese e esta precisa aflorar seu lado de adoção e vínculo propiciados por Deméter. Afrodite é o elo para a manifestação dessa mudança. A retidão das duas até consumar o relacionamento está relacionada ao poder por vezes incontrolável dos arquétipos que permeia a mulher sedutora, mas casada e com filhos. “As mulheres que são direcionadas por uma dessas três deusas devem aprender a resistir, porque fazer cegamente o que lhes dizem Afrodite, Deméter ou Hera pode afetar adversamente a vida de uma mulher” (BOLEN, 1990, p. 40).

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A ideia não é resistir, mas tomar consciência da experiência que deve se tornar um rito de passagem, uma porta para outro cenário de desenvolvimento da psique. A negação desses ritos pode trazer à tona de forma neurótica pressões internas para com o indivíduo e a todos que o cercam. Assim, é necessário uma atitude. Para Bolen (p. 49), “quando diversas deusas disputam o domínio sobre a psique de uma mulher, esta precisa decidir que aspecto de si própria expressar, e quando expressá-los”.

Por isso que o título do filme carrega o nome da personagem Carol, ao contrário de Therese que ainda seria uma lagarta lutando contra a crisálida que segura o seu verdadeiro EU; a personagem de Cate Blanchet é uma borboleta presa em uma teia de aranha, lutando inexoravelmente para se libertar de poderosa prisão, porque ela já vivencia várias personas impostas por uma sociedade patriarcal. Para Carotenuto, o amor é um meio para essa transformação e Bolen (1990, p.58) reforça isso:

Quando a mulher se apaixona, a mudança põe em perigo as prioridades anteriores. Interiormente, ao nível arquetípico, os padrões antigos podem não permanecer. Quando Afrodite torna-se ativada, a influência de Atenas deve enfraquecer, fazendo do progresso na profissão algo menos importante do que o seu novo amor. Ou os valores de Hera em favor do matrimonio podem ser superados, se houver infidelidade.

A negação, a repulsa e perseguição dos homens que permeiam o universo das duas é uma clara faceta do masculino diante das exigências, antes mudas, do feminino de demonstrar sua força individual. “Nas sociedades patriarcais os papéis aceitáveis são os da jovem (Perséfone), da esposa (Hera) e da mãe (Deméter). Afrodite é considerada “a prostituta” ou “a sedutora”, o que é uma distorção e desvalorização da sensualidade e sexualidade desse arquétipo.” (Bolen, 1990, p. 54).

É uma encruzilhada onde os dois caminhos são cobertos de dor, mas somente um leva a individuação e ao empoderamento do EU. E é este caminho que Carol e Therese decidem seguir quando viajam juntas.

O arquétipo de Afrodite não é o mais perigoso, qualquer uma das deusas quando não vivenciadas de maneira adequada tem seus efeitos colaterais. Mas ser regido pela deusa do amor e da sedução é se permitir guiar pela emoção e perder totalmente as rédeas da razão pode trazer consequências de peso muito maior que a psique possa suportar. Para Carotenuto (1994, p. 110), “se não temos certo nível psicológico, o instinto sexual se torna cruel na sua repetição, na tentativa desesperada de captar o outro.” Assim, corre-se o risco da busca constante da repetição do rito não pela experiência, mas pela sensação.

Explica Carotenuto (p. 110): “É típica do homem a possibilidade constante e ininterrupta de amar e desejar, não vinculada a fases ou ciclos, provavelmente a vicissitudes evolucionistas.” Mas uma via que torna essa busca desesperada em algo mais profundo seria através da ternura, que, para o autor, distingue o ato do rito sexual. O reconhecimento da anima seria a única forma de permissão da psique para a possibilidade de cativar de maneira íntegra o amado. “Só o feminino (tanto na mulher como no homem) consegue fazer isso. A ternura se contrapõe a uma grande ameaça: a que nos vem do sentimento de morte” (CAROTENUTO, 1994, p. 110).

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O amor 

A pressão que Carol recebe do marido, partindo da ameaça para o cerceamento são o reflexo da sociedade para aqueles que ousam ir além do que é padrão. Segundo o analista junguiano (p. 24), o amor ajuda a romper essas barreiras, “as leis não podem proibir os seres humanos de se enamorarem, mas é a própria sociedade que deixa morrer quem ousou transgredir levando uma centelha divina para o sulco sempre igual e cinzento da existência”. Ou seja, a mesma sociedade que enche as salas de cinemas para ver filmes como Carol e Romeu e Julieta é aquela que atira a pedra quando vê isto transposto para a realidade. A tragédia vem imbuída com sentimentos de inveja.

No filme, temos duas mulheres bem conscientes do mundo que as envolve. Therese olha curiosa, através de sua redoma – sempre, no início, observando através de janelas ou da sua câmera – a vida de Carol e deseja ardentemente tudo aquilo que ela poderá lhe proporcionar. E não hesita em nenhum momento a esse desejo, porque ele é sincero e não uma simples pulsão. “Quem ama se descobre mais forte e mais rico, sente-se inesperadamente capaz de enfrentar também as situações perigosas” (CAROTENUTO, 1994, p. 42).

Carol fica a mercê desse conflito interior, precisa manifestar sua independência e sua sedução, infelizmente seu marido não é o meio para isso. E é esse desejo de não permanecer à mercê de um padrão um exemplo de mudança individual que afeta o coletivo e, consequentemente, uma época.  Quantas mulheres casadas e mães não abdicaram de seus sonhos e desejos por medo de perder literalmente tudo. Carol pressente que os tempos são outros, que sua voz tem presença e sua ação, poder. Então ela vive e fala sobre seu amor, sem inibições, mesmo que signifique perdas; pior seria a morte de sua alma. O que sucede é um abraço a esse lado desconhecido de maneira íntegra, ciente de todas as conseqüências necessárias para exercer sua liberdade. “É verdade, o amor nos torna livres, livres para manifestar sem inibições não apenas o próprio lado emocional, mas também a própria inclinação ao negativo, aquela que com sugestivo termo junguiano é chamada Sombra” (CAROTENUTO, 1994, p. 18).

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A ruptura posterior entre as duas é necessária para o desenvolvimento saudável de suas psiques. A vivência de Afrodite para elas é um meio para chegar à completude e não um fim. Se ali, na viagem, terminássemos em um final feliz, teríamos um casal amarrado pela necessidade neurótica uma da outra, parasitas de suas próprias almas.

Therese teve sua experiência com o arquétipo de Deméter de Carol, mas não encarnou para si esse modelo. Após a dramática separação, surge o arquétipo de Atena, onde a calma e a racionalidade passam a ser características naturais de sua persona.  Bolden (1990, p. 120) esclarece que “quando a mulher reconhece o modo intenso com que sua mente trabalha como uma qualidade feminina relacionada com Atena, ela pode desenvolver uma autoimagem positiva, ao invés de se amedrontar de estar masculinizada, isto é, imprópria.” Assim a menina cura sua anima através da amorosa Deméter e aceita seu animus de maneira positiva.

Já Carol necessita da independência de Ártemis, porém a sociedade quer prendê-la no arquétipo de Deméter ou que a abandone a favor de Afrodite.  Mas Carol percebe que há outra possibilidade, que há necessidade de sacrifícios para manter a integridade do seu EU verdadeiro: trazer o arquétipo de Ártemis à tona, assumir sua liberdade e independência com todos os prós e contras que as escolhas trazem. Isso não a impede de ser mãe e muito menos de amar.

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Em uma história feita de escolhas, o longa de Todd Haynes ainda traz uma surpresa no seu belíssimo desfecho. A cena que inicia o filme e volta a se repetir nos minutos finais exige de Therese um sacrifício a altura daquele feito por Carol na luta pela guarda da filha. Carol, no restaurante chama Therese para morar com ela e antes da resposta surge um amigo que a fisga de volta aos anseios da sociedade; existe um dilema, seguir a razão ou o coração. Ambas já tiveram sua mudança alquímica completa, a partir dali os contornos que a vida daria seriam outros. O rapaz pousa a mão no ombro esquerdo da garota – o racional -, e Carol se despede tocando seu ombro direito – o emocional. Cabe a ela decidir quem vai determinar sua história: a sociedade ou sua sombra. Uma escolha a qual todos passam, em maior ou menor escala, onde geralmente a mão mais pesada é a vencedora. Por isso que histórias de amor são únicas culturalmente e raras na realidade, são poucos que escolhem seguir o seu coração.

REFERÊNCIAS:

BOLEN, Jean Shinoda. As deusas e a mulhernova psicologia das mulheres. São Paulo, 1990;

CAROTENUTO, Aldo. Eros & pathosamor e sofrimento. São Paulo, 1994.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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CAROL

Direção: Todd Haynes
Elenco: Cate Blanchett, Rooney Mara, Kyle Chandler, Jake Lacy;
País: EUA
Ano: 2015
Classificação: 14

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“A Garota Dinamarquesa” e o fim da era das certezas

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Com quatro indicações ao OSCAR:

 Ator (Eddie Redmayne), Atriz Coadjuvante (Alicia Vikander), Figurino e Design de Produção 

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Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.
Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.
Entendemo-nos porque nos ignoramos.
A vida que se vive é um desentendimento fluido,
Uma média alegre entre a grandeza que não há
E a felicidade que não pode haver.

 Fernando Pessoa, in “Mensagem”.

Garota Dinamarquesa 1

Dirigido por Tom Hooper, “A Garota Dinamarquesa” é um drama norte-americano que concorre a quatro estatuetas no Oscar 2016 (Melhor Ator, Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Design de Produção e Melhor Figurino) e aborda um dos temas mais atuais e instigantes das ciências humanas, a teoria queer. O longa é baseado num romance sobre a vida de Lili Elbe (Eddie Redmayne), que nasceu Einar Mogens Wegener e foi uma das primeiras pessoas a se submeter a uma cirurgia de mudança de sexo no mundo. A obra traz questões ontológicas e existenciais, além de abordar com singularidade “o relacionamento amoroso do pintor dinamarquês com Gerda (Alicia Vikander) e sua descoberta como mulher”.

Coincidentemente ou não, dias depois de ler uma curta análise sobre as últimas obras de David Bowie, por ocasião de sua morte, e de perceber a forma sensível e apurada com que ele lidou com a destruição das bases do pensamento que prevaleciam até o início do século XIX, acabei por assistir o filme americano que ecoa, em alguma medida e dentre outras coisas, com os excertos pulverizados nas produções de Bowie – um “camaleão” que compendiava na aparência e no fazer artístico, parte da dinâmica social e psicológica das últimas décadas.

Assim como em Bowie, “A Garota Dinamarquesa” – além de apresentar-se como um relato histórico acurado para a teoria de gênero – tem como pano de fundo a consolidação da simbólica morte do Deus cristão (já profetizada por Nietzsche), a compreensão de tempo e espaço pela via da relatividade de Einstein (este, não iremos nos aprofundar) e, por fim, a descoberta do inconsciente por Freud – ampliada magistralmente por Jung. Somados, tais pontos levariam a um “alargamento” do que viria a se configurar como uma espécie de autopoieses do indivíduo e a um amadurecimento do humanismo liberal contemporâneo. Além, claro, de referendar as posições que questionam a “rigidez” com que eram tratados os papéis sociais destinados a homens e mulheres.

Garota Dinamarquesa 2

E de que forma estes aspectos estão presentes enfaticamente em “A Garota Dinamarquesa”? Na medida em que o longa retrata a fase aguda da transição de uma época calcada em certezas absolutas para um período profundamente permeado pelo sentido de que tudo o que pensávamos até então poderia estar errado, a começar pela “austera” delimitação de homem/mulher.

Dentre os tópicos mais tocantes, o fato de a efervescente sociedade moderna, a partir de Freud, perceber que poderia haver “outro ser humano dentro do ser humano”, aliada à revolução copernicana de Kant, resultou na formação de indivíduos com um profundo sentido de autopercepção, de “delimitação e identificação do eu em contraposição ao outro” e, por fim, detentor de uma estrutura interna mínima – já sem tanta pressão das convenções coletivas – para pôr em prática as argúcias pessoais mais originais, como a troca de sexo por entender que a genitália herdada (no nascimento) não corresponde ao panorama psíquico adulto.

Garota Dinamarquesa 3

Há, portanto, a consolidação “da morte do Deus cristão” na medida em que se coloca em xeque – e mesmo rechaça-se – a legislação externa (transcendental) sob a própria vida. Além disso, os sujeitos passam a abraçar – inclusive com o ônus decorrente das escolhas, como fica claro no filme – suas existências, a partir de suas próprias vontades, o que acaba por transformar estes indivíduos em protagonistas, logo, em criadores e responsáveis por pavimentar seus futuros. Trata-se de um processo que ainda está em formação e que já se mostrou como um dos mais emblemáticos na recente história da nossa espécie, cujos resultados ainda são imprevisíveis.

Transgerenidade

Lili Elbe é um marco para a teoria queer, justamente por compor o balizamento, a gênese – na prática – de um movimento de “política pós-identitária” que tenta superar a abordagem binária homem-mulher. Pelo estudo/observação das minorias sexuais, tendo por base disciplinas como sociologia, filosofia, antropologia, psicologia e estudos culturais, dentre outras, pretende ampliar o entendimento acerca da constituição sexual. Os componentes sociais passam a ocupar forte espaço, em detrimento da predominância do viés exclusivamente biologicista (determinista).

Trata-se de uma abordagem que nega a oposição entre homens e mulheres, e que enxerga na cultura e trocas sociais – e o impacto que as mesmas exercem sob os indivíduos – a verdadeira origem do processo de “sexualização” do sujeito. Desta forma, a heterossexualidade, a homossexualidade e a bissexualidade não passariam de formações de identidades sociais estabelecidas, com a primeira (aceita como “normal”) prevalecendo sobre as duas últimas (“desviantes”); as três expressões, para a teoria de gênero, ainda são fruto de culturas sexuais normativas, limitantes e, em alguma medida, excludentes entre si.

Garota Dinamarquesa 4

A transexualidade, a travestilidade e a intersexualidade, por sua vez, são apontadas como culturas sexuais não hegemônicas. Logo, têm caráter subversivo e diametralmente oposto às normais sociais prescritas, sobretudo no que tange ao comportamento sexual e às relações amorosas de maneira geral.

Isso se dá porque a teoria queer simplesmente afasta qualquer tentativa de emparedar os indivíduos em estruturas de caráter universal (homem ou mulher, homossexual ou heterossexual). Com isso, defende que cada pessoa contém uma gama de variações culturais – onde nenhuma pode reclamar superioridade sobre qualquer outra – que, por fim, acaba por nivelar todas as identidades sociais como anômalas. Esta abordagem tenta fazer cair por terra toda tentativa de classificação entre o “normal” e o “desviante”.

Garota Dinamarquesa 5

Coadjuvante que se agiganta

No mais, a atriz Alicia Vikander encarnou uma Gerda de dá inveja a qualquer Ivete Sangalo da vida. De personalidade forte e destemida, ela se agiganta ao passar de apêndice (inclusive na falta de reconhecimento artístico, no início da carreira) à posição de destaque (indispensável, registre-se) no turbulento percurso que transformou Einar Mogens Wegener em Lili Elbe.

No ínterim, percebe-se em Gerda uma mulher que supera os próprios medos e apegos, e que transforma o amor conjugal numa expressão mais universal de afeto, em que o bem-estar do cônjuge vem em primeiro lugar, nem que para isso tenha que se sacrificar a própria vida.

Esta postura resultou numa total entrega e confiança por parte de Lili. Isso ocorreu porque as restrições que estreitam e aprisionam – e que poderiam muito bem estar no repertório de Gerda – foram substituídas pela constante tentativa de (re)conhecer o outro que, em certa medida, está além de qualquer classificação. Ao final, havia a tentativa (de Gerda) de “experimentar” a si mesma.  Trata-se de uma atitude que demonstra um elevado nível de maturidade e de desprendimento, em que pese os momentos de sofrimento e de angústia.

“A Garota Dinamarquesa”, com isso, acaba por se configurar numa obra que demonstra a complexidade – e grandiosidade – de parte da constituição humana. É um convite para se aproximar do “absolutamente outro”, num movimento em que o estranhamento e o medo devem ser superados pela empatia e pela abertura. Provavelmente é um filme que se tornará um clássico.

Crítica

Destoante desta posição, a teórica ateia, acadêmica, ensaísta, crítica de arte e crítica social americana Camille Paglia (que esteve recentemente no Brasil) diz que a teoria de gênero representa, em última medida, uma espécie de derrocada da civilização Ocidental. Homossexual assumida – e muito criticada pelo movimento feminista –, Paglia é autora do famoso livro “Personas Sexuais”, e apresenta-se como uma das intelectuais contemporâneas mais enérgicas na contraposição a elementos da citada teoria.

Para Paglia, apesar de ela própria ser muitas vezes identificada como transgênero, o que, em alguma medida, é verdadeiro – já que ao nascer ela não se identificou com o papel que lhe apresentaram na polarização sexual vigente à época –, ainda assim ela considera que só existam fundamentalmente dois sexos, o masculino e o feminino, que são determinados biologicamente. “De qualquer forma, comecei a escrever sobre a androginia, que está no limite entre estes dois polos, que fica na área cinzenta entre os extremos do cérebro. No entanto, trata-se de uma quantidade muito pequena de pessoas [que se enquadram na androginia, ou seja, gêneros autênticos que são ambíguos]”, diz Paglia, para quem “a propaganda dos transgêneros faz alegações muito infladas sobre a multiplicidade de gêneros”.

Camille Paglia diz que, mesmo atualmente com todos os avanços, a cirurgia de redesignação sexual “não pode mudar o sexo de ninguém […], uma vez que só se pode identificar como um ‘homem trans’ ou como ‘mulher trans’”. No entanto, defende a americana, “toda célula do corpo humano, o DNA dessa célula segue codificado para seu nascimento biológico”.

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Ela diz que o que mais a preocupa é a popularidade e a disponibilidade da cirurgia de redesignação sexual. “Alguém que não sente que pertence ao gênero biológico é encorajada a intervir no processo”, diz. Diferente do que ocorreu no caso de “A Garota Dinamarquesa”, onde Lili Elbe, já adulta, pondera e decide pela intervenção, atualmente “pais estão sendo encorajados a submeter às crianças a tipos de procedimentos […], como a utilização de hormônios para a desaceleração da puberdade, e até manipulações cirúrgicas”. Paglia considera estas investidas equivocadas, tendo em vista que “as pessoas devem esperar até terem idade para dar consentimento”. De acordo com a ensaísta e acadêmica, “até na adolescência é cedo demais para dar este salto [cirúrgico], já que as pessoas crescem, mudam [de ideia] e se adaptam”.

Por fim, Paglia diz que no estudo histórico realizado para o livro “Personas Sexuais” identificou padrões cíclicos, em que nas fases mais avançadas ou decadentes de uma cultura, “quando se começa o declínio [desta cultura] você tem um surgimento de fenômenos transgênero. Isso seria o sintoma do colapso de uma cultura”, fruto do liberalismo humanista contemporâneo. A teórica diz que o atual surgimento e recrudescimento do Estado Islâmico, por exemplo, é uma resposta a este movimento.

Curiosamente, em alguns países islâmicos considerados “linha dura” em relação à homossexualidade, como o Irã, é encorajada a cirurgia de mudança de sexo. Isso ocorre para que rapidamente os indivíduos que se julgam ter nascido com o sexo errado possam se enquadrar numa das duas polaridades heterossexuais dominantes. O país só fica atrás da Tailândia no número de cirurgias de troca de sexo. A homossexualidade (masculina, sobretudo) continua sendo punida com castigos físicos e até pena de morte.

Mais sobre “A Garota Dinamarquesa”

Garota Dinamarquesa 7

À esquerda, Lili Elbe, quando se identificava como homem. Nas imagens do centro de da direita: Elbe nos anos 30.

De acordo com recente texto publicado no jornal El País, a história de “A garota dinamarquesa” começa em 1925. Einar e Gerda Gewener são um casal de ilustradores unido desde o começo do século XX. Casaram-se jovens, ele com 22, ela com 19, quando ainda estudavam na escola de arte de Copenhague. Einar é um paisagista de renome (ganhou o prêmio Neuhausens em 1907), e as delicadas ilustrações de Gerda mostrando jovens damas cheias de glamour aparecem habitualmente na Vogue francesa e na La Vie Parisiense. Um casal invejável e muito bem sucedido. Uma tarde, uma das modelos de Gerda não aparece no ateliê.

Einar se voluntaria para ajudá-la e coloca um vestido de seda que se transforma numa revelação vital. Sente-se tão à vontade com a roupa que decide passar a se vestir de mulher e a posar habitualmente desse jeito para sua esposa. Fará o mesmo também, esporadicamente, durante viagens à França e à Itália. Quando se instalam definitivamente em Paris, Einar abandona sua masculinidade e se apresenta ao mundo como Lili, a irmã de Gerda. Gerda mantém aventuras com outras mulheres, e os dois dão festas selvagens para o mundo artístico parisiense dos anos 1930. Essa é parte da extraordinária vida de Lili Elbe, uma das primeiras pessoas submetidas a uma cirurgia de mudança de sexo da qual se tem notícia.

Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/01/cultura/1441141530_264923.html

________

* Disponível na Amazon.com, pela WS Editora.

REFERÊNCIAS:

Sinopse de “A Garota Dinamarquesa”. Disponível em < http://www.adorocinema.com/filmes/filme-140552/ >, Acesso em 16/01/2016;
David Bowie: sobre a vida, a morte e o significado da existência. Disponível em < http://www.fronteiras.com/entrevistas/david-bowie-sobre-a-vida-a-morte-e-o-significado-da-existencia >, Acesso em 15/01/2016;
Eddie Redmayne vive primeira trans conhecida em ‘A garota dinamarquesa’. Disponível em < http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/01/cultura/1441141530_264923.html >, Acesso em 15/01/2016;
Análise da cena de ciúmes de Ivete Sangalo. Disponível em < http://www.brasilpost.com.br/anna-haddad/ciume-ivete-relacoes_b_8919598.html >, Acesso em 15/01/2016;
Roda Viva entrevista Camille Paglia. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=KlYR1isM2o8 >, Acesso em 15/01/2016;
Irã diz sim à transexualidade. Disponível em < http://www.gazetadopovo.com.br/mundo/ira-diz-sim-a-transexualidade-aoao2u271id5pekjf50a13qry >, Acesso em 16/01/2016;
COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;
O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;
PONDÉ, Luiz Felipe. Crítica e profecia. São Paulo: Leya Brasil, 2013.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

Garota Dinamarquesa cartaz

A GAROTA DINAMARQUESA

Direção: Tom Hooper
Elenco:
Eddie Redmayne, Alicia Vikander, Amber Heard, Tusse Silberg;
País: EUA
Ano: 2015
Classificação:
14

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50 tons de cinza: porque o óbvio passa despercebido

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Concorre ao OSCAR de Melhor Canção Original

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Furor entre as mulheres. Este é o principal efeito do filme 50 tons de Cinza, que estreou recentemente no Brasil, embora uma boa parte do público já soubesse o final, devido ao fato da obra ser baseada na trilogia da escritora britânica E.L. James, um romance erótico que já vendeu mais de 100 milhões de cópias no mundo, e 5 milhões somente no Brasil (VEJA, 2015a).

O filme, uma adaptação de um livro de mesmo nome, conta a história de Anastasia Steele (interpretada por Dakota Johnson), uma ingênua e desastrada estudante de literatura de 21 anos que conhece o empresário Christian Grey (interpretado por Jamie Dornan), um bilionário de 28 anos. Apesar de sua inexperiência, Ana se mostra decidida se envolver com Christian e se entregar a relação amorosa que se inicia entre os dois. A estudante se deixa seduzir por um homem que ela idealiza como perfeito. Mas a medida que a relação se desenvolve, Grey mostra que tem gostos peculiares e é adepto a práticas sexuais sádicas.

Do ponto de vista do espectador que não leu o livro, e não faz ideia de como a trilogia se desenvolve, toda a trama parece desconcertante. Em vários momentos do filme, Anastasia se mostra hesitante. Não consegue compreender porque sente tanto amor e tanta repulsa pelo mesmo homem. Seus sentimentos estão confusos. Ao lado de presentes, passeios e aparentes demonstrações de afeto, estão a indiferença, o ciúme, a possessividade e uma violência psicológica sutil. Percebe-se claramente que ele atua por meio de um esquema de reforço intermitente, onde o reforço não ocorre após a emissão de um tipo de comportamento, mas forma aleatória (Skinner, 1972). Deste modo, a jovem Anastasia não entende porque o namorado tem comportamentos tão destoantes.

No entanto, Grey percebe intuitivamente que suas ações mantém o comportamento de interesse de Ana por mais tempo e diminui os riscos de uma extinção rápida. Apesar de ser uma ferramenta muito poderosa, este tipo de reforço (Pinto & Ferreira, 2005) apresenta conseqüências perniciosas, pois Ana se mostra cada vez mais confusa e mais incapaz de perceber o que está acontecendo, ao passo que se envolve cada vez mais intensamente com o milionário, experimentando práticas sexuais envolvendo violência.

Para um espectador mais atento, esta dualidade não passa desapercebida. Trata-se de uma relação doentia e perigosa, permeada por abuso físico e emocional (Grossman, 2015). O papel agressivo cabe ao homem, enquanto a Anastasia se limita a um papel passivo e defensivo. Tudo indica que se trata de um caso de perversão, em que Grey manifesta desejos sádicos, pois o que ele “sente, é tão somente o desejo de cometer atos violentos e cruéis em pessoas do outro sexo e uma sensação de volúpia” (Krafft-Ebing, 2009, p. 2) conjunta aos atos de crueldade

Nesse ponto do filme, o espectador começa a se perguntar se Anastasia é masoquista ou se não está compreendendo os desdobramentos dos encontros com Grey, que se tornam mais violentos a medida que se repetem. Pois no masoquismo “o sujeito se faz objeto diante do parceiro transformado em atormentador do seu fantasma, e goza pela erotização da dor infligida no seu parceiro” (VALAS, 1990, p.66). E a protagonista se mostra uma mulher bonita, mas que não percebe sua própria beleza, sendo extremamente ingênua e demostrando baixa autoestima.

Para além das especulações psicológicas, é preciso atentar-se para a fórmula midiática e comercial da mocinha boba que se apaixona por um homem poderoso, já vista outras vezes no cinema, como na saga Crepúsculo (MAIA, 2013; VEJA, 2015a). No entanto, a moça pretensamente ingênua, depois de experimentar o máximo de violência que Grey se diz capaz, resolve recuar e abandonar o relacionamento. O filme termina, e as luzes se acendem. O público sabe que haverá continuação da história, porque ainda faltam dois livros. As mulheres saem do cinema num frenesi desmedido. Mas, o que passou despercebido?

A problemática das relações de gênero. Mais uma vez a mulher está num papel de submissão. Há séculos a condição biológica feminina tem sido utilizada para legitimar processos sociais (PEDRO, 2005; SCOTT, 1995), em que homens e mulheres, são categorizados de forma diferente, onde o aquele ocupa uma posição de superioridade, dominação, racionalidade, e o último o de submissão e subserviência. Para Scott (2012) a dimensão social da relação entre homens e mulheres precisa ser problematizada, porque a “anatomia das mulheres não é o seu destino” (p.335), e os papéis e comportamentos determinados pelo nascer homem ou mulher devem ser discutidos.

O que 50 tons de cinza pode significar em termos de subjetividade? Que as questões de gênero encontram-se tão arraigadas, as normas culturais sexistas e androcêntricas estão institucionalizadas, que as próprias mulheres não conseguem perceber isso, excitando-se com cenas em que o feminino é tido como submisso, frágil, inocente e desprovido de auto-estima.

Para Fraser (2006) a desvantagem social das mulheres restringe sua “voz”, impedindo sua a participação igualitária nas esferas públicas e na vida cotidiana, inclusive na formação da cultura. Apesar da história ter sido escrita e roteirizada por mulheres, os críticos consideram que ainda se constituiu numa produção machista, devido a muita nudez feminina e quase nenhuma masculina (VEJA, 2015b). Se o filme foi criado para o público feminino, é possível que “elas iam querer ver a câmera se demorando mais em Jamie Dornan” (VEJA, 2015b, p.1), o ator que interpreta Christian Grey.

A reação do público feminino, que não percebe a dominação masculina, nem quando ela é escancarada em alta definição, corrobora com as questões postas por Bourdieu (1999):

A força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la. A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça (Bourdieu, 1999, p.19).

Trata-se de um círculo vicioso de subordinação cultural e econômica (FRASER, 2006), que, se não é percebido, não pode ser modificado. O que aponta que a injustiça de gênero deve ser combatida com mudanças não só na economia, como querem as mulheres de agora, mas também em outras esferas, como a política e a cultura (FRASER, 2006). Aguardamos as cenas dos próximos capítulos, ou melhor, da trilogia.

 

Referências:

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro, Bertrand do Brasil, 1999.

FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da Justiça numa era pós-socialista. Trad. Julio Assis Simões. Cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006.

Grossman, Miriam. A ‘carta de uma psiquiatra sobre 50 tons de cinza para os jovens. Trad. Marcos M. Dal Ponte. Psico On-line News, 2015. Disponível em: <http://www.psiconlinews.com/2015/02/a-carta-de-uma-psiquiatra-sobre.html>. Acessado em 25 fev. 2015.

KRAFFT-EBING, R.. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental,  São Paulo,  v. 12, n. 2, Jun.  2009.   Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1415-47142009000200012&script=sci_arttext>.  Acessado em 27 fev. 2015.

MAIA, Ygo. Resenha: 50 tons de cinza. Mergulhando na Leitura – Blogspot, 2013. Disponível em: <http://ymaia.blogspot.com.br/2013/05/resenha-cinquenta-tons-de-cinza.html>. Acessado em 27 fev. 2015.

PEDRO, Joana Maria.Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. Revista História, São Paulo, v.24, n.1, p.77-98, 2005.

PINTO, Rodrigo Diniz; FERREIRA, Lívia Freire. Ciência do Comportamento e aprendizado através de jogos eletrônicos. Anais do I Seminário Jogos Eletrônicos, Educação e Comunicação – construindo novas trilhas. UNEB, Salvador – Bahia, outubro/2005. Disponível em: <http://www.comunidadesvirtuais.pro.br/novastrilhas/textos/rodrigopinto.pdf>. Acessado em 28 fev. 2015.

SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, pp. 71-99.

SCOTT, Joan Wallach. Usos e Abusos do Gênero. Projeto História, São Paulo, n. 45, pp. 327-351, dez. 2012.

SKINNER, B.F. Tecnologia do Ensino. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1972.

VALAS, Patrick. Freud e a Perversão. Trad. Dulce Henrique Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.

VEJA. Quem é quem em ‘Cinquenta Tons de Cinza. Cinema, fev. 2015a. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/noticia/entretenimento/quem-e-quem-em-cinquenta-tons-de-cinza>.  Acessado em 28 fev. 2015.

VEJA. Diálogos de ’50 Tons de Cinza’ provocam risos em Berlim. Cinema, fev. 2015b. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/noticia/entretenimento/dialogos-de-50-tons-de-cinza-provocam-risos-em-berlim>. Acessado em 28 fev. 2015.

Trailer:

Mais filmes indicados ao OSCAR 2016: http://encenasaudemental.com/serie-oscar-2016


FICHA TÉCNICA 

CINQUENTA TONS DE CINZA

Título Original (EUA): Fifty Shades of Grey
Direção: Sam Taylor-Johnson
Roteiro: Kelly Marcel
Baseado em: Fifty Shades of Grey de E. L. James
Música: Danny Elfman
Estúdio: Focus Features
Ano: 2015

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Marco Feliciano e o frágil discurso da “família natural”

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Uma simples revisão histórica, já amplamente feita por pesquisadores desde o século 17, aponta para a família como fruto de movimentações culturais, e não decorrente de processos “naturais”, como faz entender o parlamentar-pastor.

Há poucos dias, durante uma viagem de avião entre Brasília e São Paulo, o deputado Pastor Marco Feliciano (PSC) foi interpelado por dois jovens rapazes – seus conterrâneos – que, de forma descontraída, cantaram ao lado da poltrona do parlamentar a música “Robocop Gay”, dos Mamonas Assassinas, em protesto por supostas declarações homofóbicas e misóginas por parte do político/pastor. Já em “terra firme”, Feliciano apressou-se em escrever na sua conta no Twitter que foi “assediado por um grupo de gays”, e que não é contra os gays, apenas defende a manutenção da “família natural”. Depois do ocorrido, a imprensa apurou que os dois jovens são heterossexuais. Tratou-se apenas de um episódio para chamar a atenção do deputado. “Não foi ativismo gay”1, disseram os jovens.

Rapidamente – como de regra ocorre nesta contemporaneidade marcada pelas redes sociais – os apoiadores do conservador pastor se puseram a defender o direito de Feliciano lutar pela “família natural”. Até aí, tudo bem. Afinal, todos – numa democracia de fato – têm o direito de se manifestar, dentro de certos limites. A questão é que, ao usar o termo “família natural”, este grupo de pessoas representado por Feliciano esquece – ou propositadamente assim o faz – de procurar o sentido etimológico e epistemológico do que é ser “família natural”.

Pois bem, a Filosofia e a Sociologia – além da Antropologia, obviamente – têm uma ampla pesquisa sobre este tema. Neste artigo, há uma ênfase ao trabalho do filósofo alemão Friedrich Engels (1820-1895), em sua “A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, livro baseado nas pesquisas do cientista americano e historiador da sociedade primitiva, Lewis Henry Morgan (1818-1881).

A obra faz um “mapa histórico” do refinamento do núcleo familiar no decorrer dos anos até o modelo que conhecemos hoje, e o associa ao próprio desenvolvimento do trabalho, da acumulação de bens e da “eterna” guerra de gêneros, em que finalmente o aspecto masculino foi sobreposto aos elementos femininos, numa escalada de “costuras” que remonta a milhares de anos.

Para Engels, desde sempre a família é um princípio ativo, e a concepção tradicional que se conhece hoje (monogamia, com poder tutelado ao homem) só foi existir no limiar da Antiguidade, tendo o seu ápice na sociedade grega (provavelmente o leitor já deve ter lido alguma frase desdenhosa do Estagirita Aristóteles em relação às mulheres). Engels faz uma crítica ferrenha aos historiadores que, convenientemente, acabam por tentar suprimir de suas pesquisas outras formas de arranjo familiar, provavelmente por considerá-los não honrosos à escalada humana.

No entanto, o estudo da história primitiva “revela-nos situações em que os homens praticam a poligamia ao mesmo tempo em que as mulheres praticam a poliandria2 e, portanto, os filhos de uns e outros tinham de ser considerados comuns”. É o chamado casamento grupal (por tribos), numa espécie de “todos pertencem a todos”.

Vale destacar que, no arranjo familiar exposto acima, os núcleos tanto poderiam ser comandados por homens quanto por mulheres. Se um “descendente” nascesse numa tribo (gens) cujo escopo partisse do matriarcado, naturalmente ele teria como referência hereditária (na visão da comunidade) apenas o referencial materno e, nestes casos, pouco importava a presença do pai. Mas com o passar do tempo e o aumento da tensão entre a “disputa de gênero”, este modelo foi aos poucos sendo substituído pela “família consanguínea”, onde algumas normas passaram a cristalizar-se, como a proibição de relações sexuais entre irmãos, já que até esta altura, não havia a concepção de incesto. “Não só irmão e irmã eram marido e mulher, como também, ainda hoje, em muitos povos são permitidas as relações sexuais entre pais e filhos”, relata Engels, ao se reportar à pesquisa de Hubert Bancroft sob o modo de vida dos nativos da América do Norte. “A única coisa definitivamente certa é que o ciúme se desenvolveu relativamente tarde”.

As transformações da família prosseguem, sendo que “o círculo de união conjugal comum, que era muito amplo em sua origem, estreita-se pouco até que, finalmente, compreenda o casal isolado que hoje predomina”. Não se deve esquecer, no entanto, que na contemporaneidade ainda há vestígios da família “pré-monogâmica”, sobretudo entre bolsões dominados pelos árabes conservadores. Ou seja, apesar de haver um modelo que condena o adultério, ainda é dado ao homem o direito de praticar a poligamia. A mulher, no entanto, tem que fazer votos de total obediência e fidelidade ao homem.

Um período que certamente evidencia explicitamente a “virada” de influência [muitas vezes, à força] de um gênero (o masculino) sobre outro (feminino) é o da Grécia Antiga. Foi também neste período onde começou a se desenvolver o controle da herança pelo sexo masculino, sendo os homens os “herdeiros naturais” das posses de seus antepassados. Isso implica numa abolição total da linha de descendência feminina e do “direito hereditário materno”.

É também na Grécia Antiga que se observa mais claramente outro fenômeno que, atualmente, parte da sociedade tenta “esconder para debaixo do tapete”: as relações homossexuais, notadamente as masculinas. Com o amplo domínio sobre a mulher e os escravos, além de ser depositário dos bens de herança, os homens que mantinham relações sexuais com “amigos próximos”3 e mesmo com “escravos do sexo masculino”4 não sofriam, em sua maioria, qualquer tipo de interpelação social. Isso só começou a mudar com o avanço e influência da moral Patrística5, entre os séculos I e VI da era cristã.

Outra característica essencial da “família natural” defendida pelo Pastor Marco Feliciano e que remonta tanto aos gregos antigos quanto aos semitas é seu caráter que remete “à escravidão como também a servidão”. Para Marx, em “A Sagrada Família”, “ela [a família] contém em si, em miniatura, todos os antagonismos que se desenvolverão mais tarde na sociedade e em seu Estado”. Foi este modelo, diz Engels, que os filisteus se apropriaram para, depois, supostamente espalharem-no por toda a cultura indo-europeia. E é justamente daí, deste ponto, que surge a ideia de que a mulher tem que ser subserviente ao homem.

Desta forma, o atual modelo de família, baseado na monogamia, no domínio do homem sob a mulher, e numa espécie de ojeriza à homossexualidade (provavelmente por esta se remeter à elementos do feminino), é proveniente de movimentos culturais, e não necessariamente de uma ordem “natural”. Como bem explicitou Engels, se o homem tivesse se mantido no domínio do “natural”, ainda estaria sob a influência dos mais diversos modos de constituição familiar (todos de todos, poligamia etc.), modos estes comuns entre as espécies próximas, como os macacos. “A monogamia, portanto, não entra de forma alguma na história como uma reconciliação entre o homem e a mulher e, menos ainda, como a forma mais elevada de casamento. Pelo contrário, surge sob a forma de subjugação de um sexo [masculino] pelo outro”.

Assim, é no mínimo irresponsabilidade, nos dias atuais, clamar por uma espécie de “família natural” em detrimento de outros arranjos familiares, sobretudo quando de fato este modelo reclamante sequer chegou a existir nos primórdios. A definição de família, sob este aspecto, é decorrente de transformações sociais e políticas, e muito provavelmente jamais se restringirá a um modo de ver o mundo sob o prisma do dogmatismo religioso.

Notas:

1 – Referência à matéria “Não foi ativismo gay”, dizem jovens que dançaram para Feliciano; gabinete diz que irá processá-los, publicado no UOL Notícias em 12/08/2013 – Disponível emhttp://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2013/08/12/nao-foi-um-ato-gay-e-isso-quebrou-feliciano-diz-jovem-que-dancou-para-o-deputado-em-aviao.htm acesso em 17/08/2013.

2 – Poliandria: (grego: poly- muitos, andros- homem) entende-se a união em que uma só mulher é ligada a dois ou mais maridos ao mesmo tempo. Ainda comum atualmente em sociedades “distantes”, como o Tibete. FONTE: Dicionário Houaiss.

3 – NAPHY, William. Born To Be Gay. Lisboa: Trafalgar Square, 2004, pág. 137.

4 – DOVER, Kenneth James. A Homossexualidade na Grécia Antiga. São Paulo: Nova Alexandria, 2007.

5 – Filosofia influenciada pelo cristianismo dos primeiros sete séculos, e elaborada pelos Padres da Igreja (alguns, designados doutores), considerados os primeiros teóricos do Catolicismo. Consiste, em linhas gerais, “na elaboração doutrinal das verdades de fé do Cristianismo e na sua defesa contra os ataques dos pagãos e contra as heresias”. FONTE: DROBNER, Hubertus. Manual de Patrologia. Petrópolis: Vozes, 2003.

Referências:

ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da propriedade privada e do Estado; tradução Ciro Mioranza. São Paulo: Lafonte, 2012 (Coleção Grandes Clássicos da Filosofia)

PLATÃO. O Banquete. Disponível em

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraDownload.do?select_action=&co_obra=2279&co_midia=2 . Acesso em 20/05/2013.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; Tradução de BACKES, Marcelo. A Sagrada Família. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

YALOM, Marlyn. Como os franceses inventaram o amor. São Paulo: Editora Prumo, 2013.

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