“O farol” e a fragmentação de uma personalidade

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Concorre com 1 indicação ao OSCAR:

Melhor Fotografia

A água é uma representação do inconsciente, dessa forma, no filme os personagens se encontram cercados como se não pudessem escapar.

O filme O farol (The lighthouse) conta uma história de Ephraim, que é levado a uma ilha para substituir o ajudante do faroleiro Thomas, em atividades diárias. Sendo que o acesso ao farol fica vetado a Ephraim e isso acaba despertando nele uma enorme curiosidade. O filme foi indicado ao Oscar na categoria de Melhor Fotografia e carrega em si muitos símbolos e referências à mitologia grega.

O longa é uma linha tênue entre a realidade e a loucura, e fica em aberto para a imaginação de quem assiste. Ambos os personagens dividem o espaço da ilha, onde no início Ephraim é submisso a Thomas em uma tentativa de agradar e/ou conquistá-lo, e acaba desempenhando as funções mais pesadas. Mas com o passar do tempo essa relação se torna uma disputa de poder tendo o farol como objeto de disputa. Este símbolo na visão lacaniana é um objeto fálico, e o psicanalista francês (1999) lembra que na antiga Grécia, o falo não tinha um formato do órgão, mas tinha uma representação de desejo e poder.

No início do filme Ephraim tem uma função semelhante ao do Superego, que conforme Freud (1976) atua como um juiz, um órgão psíquico da repressão, particularmente da repressão sexual. Dessa forma, ele estabelece uma censura nos impulsos que a sociedade e a cultura interpretam como errado, impossibilitando o sujeito de se satisfazer plenamente. Então agindo de tal forma ele segue à risca o código do faroleiro, se nega a dar vazão aos seus desejos reprimidos e acaba em seus devaneios.

Já Thomas pode ser encarado como o ID, que no mesmo texto Freud afirma ter a função de descarregar as tensões biológicas e é regido pelo princípio do prazer. Nesse sentido, Thomas afirma ser o próprio código do faroleiro e que as regras que segue são as suas, dando asas aos seus desejos e pulsões, onde faz um grande consumo de bebida alcoólica e nega o acesso ao farol para o seu novo ajudante.

Além de suprimirem seus passados, os dois personagens parecem fugir o tempo todo de quem são, acabam buscando algum tipo de conforto na relação que estabelecem ali na ilha, porém ocorre o contrário, ambos começam a ter um contato com tudo àquilo que estavam negando. Em uma entrevista no site Huffpostbrasil, o diretor Robert Eggers fala sobre um homoerotismo presente no filme e que fica mais evidente na cena da dança, na qual termina em socos, como se em mais de um momento eles negassem seus desejos.

Fonte: encurtador.com.br/ghmL3

Devido a isso, desde o início o filme apresenta uma relação de dominação em que Thomas se refere a Ephraim como cachorro, mas existe um medo de ambas as partes de chegarem a quem são de verdade. Enquanto Thomas tem o prazer de enlouquecer e parece ser culpado pela morte do antigo ajudante, Ephraim diz que era lenhador e está ali fugindo de um acidente de trabalho que mais parece ter sido um assassinato, tanto que está presente em seus devaneios a presença desse colega.

O filme, por ser em preto e branco, luz e sombra, também é a representação de que nenhum indivíduo é totalmente bom ou ruim. Assim como aponta Jung (2011), a sombra é um problema de origem moral e tomar consciência dessa sombra é reconhecer aspectos obscuros da personalidade. Por isso o personagem de Pattinson fica obcecado em alcançar essa luz do farol, que poderia vir a iluminar seus aspectos sombrios que o acompanham desde o início do filme.

Fonte: encurtador.com.br/mtCD1

A água é uma representação do inconsciente, dessa forma, no filme os personagens se encontram cercados como se não pudessem escapar e acabam imergindo em algo que sai do controle. Assim, as defesas do Ego são rompidas aos poucos diante das provocações de um com o outro. Fora que anteriormente ele sonha que entra na água em meio a toras de madeira enquanto mantém fixo o olhar em um corpo que flutua. E é a partir desse momento, no qual o barco não vem buscá-lo, que ele rompe de vez com a realidade, onde no filme parece ser justificado pela bebedeira incessante com Thomas.

Outro momento intrigante do filme é quando Ephraim revela que seu nome também é Thomas, num jogo de projeções de mal entendidos. Isso ocorre, em certa medida, porque as personas (JUNG, 2011) vão sendo deslocadas, e determinadas atuações, sobretudo de Ephraim, começam a colapsar, numa clara demonstração, no decorrer do filme, de fragmentação da personalidade.

O filme apresenta muitas outras coisas a se analisar, como a cena em que Ephraim mata Thomas com um machado, assim como provavelmente ele pode ter matado seu ex-colega de trabalho. Podemos pensar na ilha e em todos os integrantes, inclusive os pássaros, também como parte de uma personalidade fragmentada. Isto tudo em meio a uma pessoa em busca de uma iluminação acerca de seus medos e incertezas, movimento metafórico quando, no longa, Ephraim abre o farol e é tomado por aquela luz. Uma luz que é sedutora, redentora… mas, também, perturbadora. Como o próprio filme!

FICHA TÉCNICA:

O FAROL

Título Original: The Lighthouse
Direção: Robert Eggers
Elenco: Robert Pattinson, Willem Dafoe e Valeriia Karaman;
Gênero: Drama, Fantasia e Terror
País: EUA
 Ano: 2019

REFERÊNCIAS:

JUNG, C. G. Aion – Estudo sobre o simbolismo do si-mesmo. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

FREUD S. O ego e o id. Rio de Janeiro: Imago; 1976.

JACOBS, Matthew. Decodificando o homoerotismo em ‘O Farol’. 2019. Disponível em: <https://www.huffpostbrasil.com/entry/o-farol_br_5db72026e4b006d49172e589>. Acesso em: 21 jan. 2020.

LACAN J. (1999) O Seminário 5 – As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

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“Call me by your name” numa perspectiva gestáltica

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Concorre com 03 indicações ao OSCAR:

Melhor filme,  Melhor ator (Timothée Chalamet), Melhor roteiro adaptado

Love my way it’s a new road
I follow where my mind goes”

(Psychedelics Furs)

Call me by your name (Me chame pelo seu nome), produzido pelo italiano Luca Guadagnino e como obra homônima do livro de André Aciman (2007), é o romance que abriu 2018 derretendo os corações dos cinéfilos. Ambientado no norte da Itália, nos anos 80, o filme mostra mais um verão que Elio (Timothée Chalamet), um adolescente de 17 anos, passa na casa rural de seus pais. Porém, dessa vez ele é abalado pela presença de um novo visitante, Oliver (Armie Hammer), um americano que vai para outro continente desfrutar dos saberes de seu hospitaleiro professor, o pai de Elio.

Inicialmente, percebe-se que o cotidiano dos personagens é recheado por conhecimento erudito. A família Perlman domina as línguas inglesa, italiana e francesa, além de terem afinidade com a literatura, gramática, música e dados históricos que o rodeiam. Toda essa dinâmica dialoga com o ambiente rural e ensolarado, onde são aproveitados intensamente espaço e tempo (aqui e agora) em que se perpassa o filme.

Caracterizado como filho único e como um garoto muito reservado, Elio sente diversos impactos ao receber Oliver como visitante em sua casa. Ele cede seu quarto; de certa forma, também cede o pai, pois sabe que o mesmo terá uma dedicação maior a Oliver em detrimento aos seus estudos; e ainda convive diariamente com os costumes diferentes do que está habituado, como o modo de se despedir “Até mais!”, os cuecas jogadas pelo banheiro que compartilham e os não comparecimentos de Oliver durante algumas refeições.

Além disso, o fato de Oliver ser um homem galanteador e que atrai atenções de todos, também contribui para que Elio se distancie e seja um pouco ríspido com o hóspede. Isto pode ser contextualizado segundo Perls, Hefferline e Goodman (1997) onde “O contato é awareness da novidade assimilável e o comportamento com relação a esta; e rejeição da novidade inassimilável. O que é difuso, sempre o mesmo ou indiferente, não é um objeto de contato”. Porém, com o passar dos dias ele toma consciência (awareness, na Gestalt-terapia) que também sente uma admiração pelo mesmo e, ainda mais, uma atração afetiva. E, assim, os dois estabelecem uma trégua entre si e começam a se aproximar.

Fonte: https://goo.gl/TXkBYB

Tal aproximação se deu através do estabelecimento de contato. Loffredo (1994, p.83) ressalta que “[…] Todo contato é, então, um processo dinâmico e criativo […] deve ser entendido não como um estado, mas como uma ação: o contato é feito na fronteira eu-outro”. Enquanto que Silveira (2007) traz a ideia de que a vida entre companheiros (casal) se torna mais plena quando o contato e a empatia elaboram um ambiente facilitador e é delimitado de forma adequada o espaço entre esses.

O romance desenrola-se com as demonstrações de afeto de Elio e, a princípio, a negação de Oliver em viver o lhe que estava sendo proposto naquela ocasião. Também conta com alguns encontros entre Elio e Marzia (Esther Garrel), uma amiga da sua idade, por quem aparentemente ele é apaixonado, mas não tanto quanto Oliver. E, depois, com este se permitindo demonstrar e viver afetos com o jovem Elio.

Fonte: https://goo.gl/NDVQ6i

Para além da percepção do drama como de caráter homoafetivo, o foco principal do autor do livro e do diretor é a fluidez da sexualidade (SOBOTA, 2018). Em decorrência a isso, no filme mostra-se como se dá o envolvimento amoroso de duas pessoas num curto período de tempo. Entretanto, não quer dizer que não possa ser admirado e usado pela militância LGBT.  Aciman afirma, em entrevista ao O Estado de S. Paulo, que:

A ambiguidade é problemática porque faz com que as pessoas se questionem mais sobre o que a sexualidade é de verdade. Temos um sistema em que as pessoas querem saber se estão ou não apaixonadas, se é ou não amor. É isso ou aquilo. Sempre odiei todo tipo de rótulo. Não uso a palavra gay nem a palavra amor no meu livro. Não quis especificar nada. Sempre tive um pressentimento de que se você nomeia as coisas, o que acontece é parar de pensar e de sentir (SOBOTA, 2018).

Sem rótulos e com o apoio de uma família culta, aberta às novas culturas e modos de afetos, Elio se permite viver uma experiência inovadora, numa interação organismo-meio, que acrescentará no seu modo de constituir-se como sujeito. Na gestalt-terapia, essa experiência é conhecida como fronteira de contato e implica em mudanças e transformações no indivíduo (CARDELLA, p. 49).

“Me chame pelo seu nome e eu te chamarei pelo meu”. Fonte: https://goo.gl/z3tEx7

De acordo com Melo (2008), na fase do contato os parceiros compartilham um encontro genuíno e intenso, de forma que um se inclui no modo de vida do outro e se compreendem e se aceitam na sua singularidade, agindo de forma conjunta para solucionar a figura formada a partir da fusão de seus desejos. No caso, a figura que se formou nessa relação foi de obter êxito numa experiência conjunta, uma comunhão de afetos, saberes, ou melhor, vivências.

A autora ainda afirma que a fase conseguinte ao contato é a de resolução/conclusão. Nessa etapa, o casal faz a reflexão e, depois, expressa tudo aquilo que vivenciou; tenta entrar em acordo unanimemente; seus integrantes contemplam a si próprio e ao outro ou se compadecem do que poderiam ter vivido. Dessa forma, se finda esse período com o retraimento, cujo atua como uma pausa para dar início a um novo período (MELO, 2008). A despedida entre Elio e Oliver demonstra que como um casal eles já entraram nesse momento de conclusão e partem, de certo modo, felizes com tudo o que lhes foi experimentado.

Fonte: https://goo.gl/AWGnri

 É importante fazer contato e se afastar, tocar e ser tocado, e depois deixar ir” (MELO, 2008).


FICHA TÉCNICA 

ME CHAME PELO SEU NOME

Direção: Luca Guadagnino
Elenco: Armie Hammer, Timothée Chalamet, Michael Stuhlbarg, Amira Casar;
Gêneros: Drama, Romance
Ano: 2017

Referências:

CARDELLA, Betriz Helena Paranhos. A construção do psicoterapeuta – uma abordagem gestáltica. Editora Summus, 2002.

PEARLS, F.; HEFFERLINE, R.; GOODMAN, P. (1997). Gestalt-terapia. 2ª edição. São Paulo: Ed. Summus.

LOFFREDO, A. M. A cara e o rosto: ensaio sobre Gestalt-terapia. São Paulo, Escuta, 1994.

MELO, Maria Luíza da Silvera. (Monografia) O contato na relação conjugal.  Faculdade de Ciências da Educação e Saúde – FACES. Brasília – DF, 2008.

SILVEIRA, T. M. (2007). O papel da criatividade nas relações conjugais: os limites do “eu” e os limites do “nós”. Revista IGT na Rede. 4. 7. 199-207. Recuperado em 15 out 2008: www.igt.psc.br/ojs/include/getdoc.php?id=1021&article=165&mode=pdf

SOBOTA, Guilherme. ‘Call Me By Your Name’ foi a primeira ficção da elogiada obra de André Aciman. O Estado de S. Paulo, 2018.  Disponível em: <http://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,call-me-by-your-name-foi-a-primeira-ficcao-da-elogiada-obra-de-andre-aciman,70002152818>. Acesso em 14 de fev de 2018.

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Closet Monster: sob a óptica das teorias psicodinâmicas

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O Monstro no Armário (Closet Monster) é um filme canadense, escrito e dirigido por Stephen Dunn, lançado em 2016. Marcado pelo simbolismo do começo ao fim, o título pode ser confundido com o da animação Monster House (2006). Trata-se de um drama sobre um adolescente que passou por eventos potencialmente traumáticos na infância e que, na sua atual fase, faz descobertas sobre sua homossexualidade. Desse modo, este texto objetiva uma análise do filme de acordo com as teorias psicodinâmicas.

O longa inicia com Oscar (Jack Fulton) na infância, numa família nuclear e sendo filho único. Ele e o pai cultivam uma cumplicidade recheada de criatividade e fantasias, tanto nas brincadeiras quanto nos sonhos que este o presenteava todas as noites. Até dado momento, Oscar aparenta ser uma criança de cotidiano e família comum, mas logo acontecem situações que o abalam de forma veemente.

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Primeiramente, inicia-se o processo de separação entre os pais. Tudo ocorre de forma rápida e confusa. Os mesmos o presenteiam com um hamster como uma atitude compensatória após anunciarem a separação. É possível notar o descaso e falta de empatia dos pais quanto ao aspectos emocionais e psicológicos da criança nessa situação. Agindo de forma egoísta e discutindo continuamente, caracterizam-se numa relação parental conflituosa. Neste contexto, Raposo et al. (2010, p.31) ressalta que:

Relações parentais conflituosas, quando acontece o emaranhamento dos problemas conjugais na relação parental, têm não só efeitos diretos no funcionamento psicológico da criança, mas também efeitos indiretos, dado que interfere na qualidade do comportamento parental.

Nisso, a mãe vai embora de casa, repetindo o seu “sinto muito” (sua frase recorrente em situações difíceis) mesmo diante às tentativas do filho de impedi-la. E esse demonstra o medo do abandono (materno).

Logo em seguida, com apenas oito anos, ele presencia um grupo de garotos da sua escola agredindo brutalmente outro estudante, que teve uma barra de ferro introduzida em seu ânus. Sem entender tal atrocidade e ao ver a notícia na TV que o mesmo ficaria paralisado da cintura para baixo, o protagonista questiona o pai sobre o que teria motivado tal ato, contando-lhe o que tinha visto. “Ele é gay”, respondeu. Desse modo, a resposta do pai associada ao conteúdo presenciado provoca-lhe um trauma psicológico na infância que o perseguirá na seguinte fase da vida, a adolescência.

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Em vista disso, pode-se considerar que os eventos vividos por Oscar na infância foram situações potencialmente traumáticas (ZAVARONI, 2015), as quais são compostas de circunstâncias perturbadoras que expõem a criança a significantes perdas, podendo requerer ou suscitar (re)arranjos vivenciais relevantes. O Vocabulário Contemporâneo de Psicanálise (ZIMERMAN, 2008, p.419) define que o trauma “[…] está mais diretamente ligado a acontecimentos externos reais, que sobrepujam a capacidade do ego de poder processar a angústia e a dor psíquica que eles lhe provocam”. E ainda, estende-se a essa conjuntura a circunstância de que o trauma repercutido no psiquismo da criança é simétrico ao seu estado de indefesa precoce. Melhor dizendo, é de grande efeito e doloroso.

Stephen Dunn (2016) transparece na sua obra o peso que os caminhos da sexualidade (dicotomia: homossexualidade e heterossexualidade) possuem numa sociedade fálica. Concomitantemente às cenas de Oscar cortando seu cabelo, que estava com um tamanho inadequado para um menino, é apresentado um cenário onde seu pai mostra-se uma figura máscula em vigor cortando madeira para construir uma casa na árvore para ele, o seu querido filho. Assim, uma criança ainda que no seu pouco entendimento sobre sexualidade, de fato percebe que não pode fugir dos padrões da heteronormatividade, pois poderá ser punido, como foi o garoto que era gay.

Fonte: http://zip.net/bjtDp5

Ainda, é válido lembrar que o filme retrata Oscar como uma criança sem amigos e o hamster que ganhou de presente torna-se sua melhor amiga, seu nome é Buffy como a própria se intitula. (Sim, isto mesmo! Durante todo o filme ela dialoga com Oscar). Nas primeiras cenas do filme é apresentado Oscar como um bebê e logo em seguida alguns hamsters recém-nascidos. (Novamente uma característica simbólica). Mais à frente, na adolescência do garoto, ela o explica “Sou o seu espírito animal!”, o que remete a possibilidade do jovem está conversando consigo mesmo, ou seja, está tendo uma alucinação auditiva. No que tange este tema, Maurício Aranha (2004) levanta que:

Conforme a teoria desenvolvida ao longo da obra de Carl G. Jung, na doença mental o inconsciente começa a sobrepor-se à consciência, de tal modo que se rompem as barreiras de contenção do inconsciente e as alucinações apresentam claramente à consciência uma parte do conteúdo ali depositado, o qual passa para seu domínio. Assim sendo, as alucinações (assim como os delírios) não surgiriam de processos conscientes, mas sim, inconscientes, cujos fragmentos brotariam na consciência tal qual no sonho, ou seja, dissociados.

A transição da infância para adolescência de Oscar (a esta altura interpretado por Connor Jessup) é apresentada de relance, ele passa dos oito aos 18 anos. Possui, agora, uma nova amiga (humana), Gemma (Sofia Banzhaf), que juntos compartilham o interesse peculiar por maquiagem de cinema e ela é a modelo que incorpora as produções do amigo. É por meio de fotografias do seu trabalho que Oscar tenta ingressar na faculdade em Nova York. O psicanalista Alfredo Jerusalinsky (2004, p.56), em sua obra “Adolescência e Contemporaneidade”, discorre que a palavra adolescência remete a adoecimento; ao sofrimento típico da perda de proteção indispensável, pois alude à transição entre a proteção (da vida infantil) e à exposição (da vida adulta).

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Além disso, o enredo explicita que a relação de amizade entre pai e filho é rompida, já adolescente o protagonista passa a visualizar o pai como um “monstro”, uma pessoa que sempre afasta aqueles que os amam e que ele não quer se tornar parecido. No que concerne à psicologia do desenvolvimento, Aberastury e Knobel (1981, s/p) teorizam sobre o comportamento do adolescente que “sua hostilidade frente aos pais e ao mundo em geral se manifesta na sua desconfiança, na ideia de não ser compreendido, na sua rejeição da realidade, situação que podem ser ratificadas ou não pela própria realidade”.

O ápice da vida de Oscar acontece quando ele tem uma paixão de verão, que em grande parte da obra transparece ser platônica, mais conhecida no vocabulário contemporâneo dos adolescentes como crush. É no ambiente de trabalho que conhece Wilder (Aliocha Schneider). Este, além de despertar sentimentos e desejos em Oscar e constantemente provocá-lo sexualmente (com frases), lhe proporciona a possibilidade de ter novas experiências e novas perspectivas.

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Há um momento no filme em que Wilder desconstrói a fantasia de Oscar em relação a Buffy, mostrando-o que ela não é fêmea, na verdade trata-se de um hamster macho. Fica evidente o escroto do animal. Mesmo assim, ‘o hamster’ continua com uma voz de fêmea e diz que está numa crise de gênero, depois de tal notícia. Nessa conjuntura, Buffy é utilizada como uma porta-voz dos conteúdos inconscientes do personagem, remetendo à teoria junguiana acerca da alucinação supratranscrita em Marcelo Aranha (2004). Ao modo que, externamente, ele é um garoto introvertido que possui desejos homossexuais reprimidos e sente-se desassistido pelos pais, principalmente pela mãe que possui um novo grupo familiar, que ele não consegue integrar-se.

Num ímpeto de fúria, durante uma discussão com o seu pai, este não aceita que o filho vá à uma festa gay. Mauricio Knobel (1981, s/p) adverte a angústia provocada nos pais quando se deparam com os primeiros traços de conduta genital dos filhos na adolescência. Oscar chuta o pai para dentro do seu armário, que ainda contém roupas de sua mãe, e vai à festa de Wilder com ânsia de novas sensações. Partindo de tal fato surge o questionamento: seria este o monstro no armário, o seu pai? A figura masculina regida pela heteronormatividade que o impedia de se mostrar como realmente era?

Quanto à monstruosidade…

Para começar, o que é um monstro? Já a etimologia da palavra nos reserva uma surpresa um tanto ou quanto assustadora: monstro vem de mostrar. O monstro é o que se mostra, o que se aponta, o que se aponta com o dedo, o que se mostra nas feiras, etc. E quanto mais monstruosa é uma criatura, mais exibida deve ser.  (Tournier, 1986. p.15).

Fonte: http://zip.net/bktDxr

Não! O monstro no armário de Oscar, assim como o simbolismo usado na definição de Tournier, nada mais é do que a não aceitação da sua própria sexualidade, sempre negada e reprimida, que se opõe à figura dos seus semelhantes e necessita expor-se. Ademais, esta não aceitação associa-se ao trauma, cujo é incessantemente alimentado por alucinações, em que uma barra de ferro tenta diversas vezes sair de si mesmo.

Nesse contexto, Aranha (2004, p.38) afirma que os valores culturais atribuídos às relações e os acontecimentos podem atuar de modo significativo na percepção sobre um determinado objeto. Tal como a barra de ferro, neste caso. E acrescenta que a organização perceptual na maioria das vezes espelha os fatores pessoais daquele que está percebendo, como suas necessidades, emoções, atitudes e valores (ibidem, p. 39). Portanto, é justificável que tais alucinações sinestésicas de Oscar relacionavam-se com o evento traumático ocorrido na infância e com sua constelação de afetos e desejos sexuais característicos de sua personalidade e da adolescência.

Fonte: http://zip.net/bjtDp5

Finalmente, durante mais uma crise colérica e alucinógena, seu pai havia matado sua hamster. Oscar consegue tirar a barra de ferro da sua barriga e com as mãos ensanguentadas (fazendo com que o expectador também participe da alucinação) quase agride novamente o pai. É o momento de extravasamento da raiva e da inquietação contidas nele. De tal modo, infere-se que mesmo numa atitude violenta ele mostra ao pai que já detém a força de um adulto, tanto quanto este possuiu outrora, e que já passou da fase em que precisava de proteção. Retomando o conceito supracitado sobre adolescência de Jerusalinsky (2004), agora pode proteger-se sozinho, expondo-se como um adulto.

Ainda, observa-se que ao fim da trama Oscar está concluindo a passagem da adolescência para a fase adulta. Ele consegue se despedir do seu ‘animal espiritual’, Buffy, isto é, simbolicamente representa seu ego infantil. E começa uma vida acadêmica longe dos pais. Ao deparar-se com sua nova realidade rememora o pai quando lhe dava sonhos na infância. Porém, nesta situação, em seu pensamento, ao pedir um sonho de presente, o próprio lhe diz: “Está um pouco tarde para isso. É hora de começar a fazer seus próprios sonhos. Pode ter tudo que quiser neste mundo. Só feche os olhos”. Nisto, ele desperta e enxerga sua realidade atual: a vida adulta, na qual terá autonomia para criar e realizar seus objetivos, deixando seus pais orgulhosos.

Fonte: http://zip.net/bhtDCW

Nesse ínterim, o enredo do filme não elucida se Oscar consentiu ao seu monstro no armário ou não, em outras palavras, se continuou negando ou se aceitou sua homossexualidade. O telespectador, alicerçado na sua percepção, torna-se livre para chegar às suas próprias conclusões.

REFERÊNCIAS:

ARANHA, Maurício. Etiologia das alucinações. Ciênc. cogn.,  Rio de Janeiro ,  v. 2, p. 36-41, jul.  2004. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-58212004000200004&lng=pt&nrm=iso>. Acessos em 27 de janeiro de 2017.

ABERASTURY, A., & KNOBEL, M. Adolescência normal. Porto Alegre: Artmed, 1981.

JERUSALINSKY, Alfredo Nestor. Adolescência e Contemporaneidade. In Conselho regional de Psicologia 7ª Região. Conversando sobre Adolescência e Contemporaneidade. Porto Alegre: Libretos, 2004.

KNOBEL, M. A Síndrome da adolescência normal. In A., ABERASTURY & M., KNOBEL Adolescência Normal. Porto Alegre: Artmed, 1981.

RAPOSO, Hélder Silva et al. Ajustamento da criança à separação ou divórcio dos pais. Rev. psiquiatr. clín.,  São Paulo ,  v. 38, n. 1, p. 29-33,    2011 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-60832011000100007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 29 de janeiro de  2017.

TOURNIER, Michel. O Rei dos Álamos. Lisboa: Dom quixote, 1986.

ZAVARONI, Dione de Medeiros Lula; VIANA, Terezinha Camargo. Trauma e Infância: Considerações sobre uma Vivência de Situações Potencialmente Traumáticas. Psic .: Teor. E Pesq., Brasília, v. 31, n. 3, p. 331-338, setembro de 2015. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722015000300331&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 24 de janeiro de 2017.

ZIMERMAN, David. Vocabulário contemporâneo de psicanálise. Porto Alegre: Artmed, 2008.

FICHA TÉCNICA DO FILME: 

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CLOSET MONSTER

Direção e Roteiro:   Stephen Dunn
Elenco:  Connor Jessup, Jack Fulton, Joanne Kelly, Aaron Abrams;
País: Canadá
Gênero: Drama
Duração:  1h30

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Safo e um ideal de amor ainda contemporâneo

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O objetivo deste texto é discorrer sobre a influência dos gregos em nossas vidas cotidianas, ainda hoje, e de como o amor romântico é presente e de como este amor ânsia por Safo, além de ponderarmos sobre o que é natural. Mas o que é amor, desejo, realidade e sexualidade? Sempre existiram homossexuais e heterossexuais, independente das diferentes maneiras que os povos lidaram com o tema. É necessário que se faça uma discussão neutra sobre amor grego, se é que isso é possível, e descomprometida de posicionamento, mas carregada de possibilidades.

Esta análise transita nas tradições greco-latinas, que estão muito mais presentes em nossa vida do que imaginamos. Do lazer à política, da psicanálise à religião, o mundo clássico está por trás de todo o sistema de pensamento ocidental. Conhecer tais dados antigos, mas comumente atuais, se faz necessário para entendermos a aparentemente conturbada época em que vivemos, marcada por tantas formas de amar em tantos cantos, em tantas histórias.

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Fonte: http://migre.me/vsRNE

É preciso entender, então, as mais variadas formas de amar entre os gregos. Desta forma, há Eros, o amor desejo; Philia, o amor amigo; Ludus, amor divertido e Pragma, Amor maduro. Sobre este último, o psicanalista Erich Fromm disse que gastamos muita energia “caindo na paixão” e precisamos aprender mais como “ficar de pé no amor”. Talvez nos apropriar mais de um amor Ágape, aquele expresso de forma abnegada, despretensiosa, caridosa. Mas o que percebemos é a força crescente de um individualismo absoluto, o amor Philautia (auto-amor). Como disse Aristóteles, “todos os sentimentos amigáveis por outros são uma extensão dos sentimentos do homem por si mesmo”. Assim, cresce um amor narcisista.

Para tal discussão, conhecer sobre Safo nos ajuda a entender como nos posicionar diante de tais formas de amor. Safo foi uma poetiza grega, membro da aristocracia, nascida na Ilha de Lesbos por volta de 630 a.c, eternizada como a primeira mulher conhecida como homossexual, provavelmente devido a um famoso poema de Ovídio, o qual representa uma carta de Safo e devido a alguns de seus poemas eróticos serem dedicados a outras mulheres.

Devido à forma como escrevia e sua posição na sociedade, Safo foi exilada para a Sicília ainda jovem. Cinco anos depois do exílio, retornou a ilha de Lesbos e em Mitilene inaugurou uma escola para mulheres. Nessa escola, Safo ensinava poesia, dança, arte e música para suas alunas. No local também eram desenvolvidas atividades físicas, banquetes, cultos religiosos e concursos de beleza. As alunas, chamadas de hetarai (companheiras), vinham de todos os lugares da Grécia para serem discípulas de Safo, e há indícios de que se relacionavam amorosamente com ela e entre si.

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Fonte: http://migre.me/vsSBj

Lá, as alunas aprendiam a serem “mulheres completas”, ou seja: graciosas, femininas e elegantes, segundo a ideia de feminilidade de Safo. Há alguns que dizem que a poetisa as preparava para o casamento. A partir do século XVIII houve uma maior discussão acerca da sexualidade de Safo. A maioria dos estudiosos acredita que Safo realmente mantinha relações tribais, entretanto ainda não há um consenso sobre isso. Os pesquisadores que defendem a teoria de uma Safo lésbica, utilizam como forte argumento a existência de diversos paralelos entre imagens e palavras de poemas de pederastas e de poemas da poetisa. Além disso, também se utilizam da tradução da palavra lesbiazén (felação), “fazer como as mulheres de Lesbos”, para justificar a existência de lésbicas na Ilha e transformar Safo em uma famosa amante de mulheres.

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“Nem as garotas de Pirra ou Metimna [aldeias de Lesbos] me deleitam, nem o resto da multidão de mulheres lésbias. Nada é para mim Anactória, nada a bela Cidro; Átide não mais me apraz aos olhos, como antes, nem uma centena de outras a quem amei, não sem reprovação. Homem desavergonhado, o que outrora pertenceu a muitas garotas, agora é só teu”. Safo

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Safo mostra brilhantemente como a Grécia se parece com a imaginação sexual moderna; é a figura pela qual falamos do desejo, pintamos o desejo, fantasiamos o desejo. O que herdamos da Grécia está por toda parte. De certa forma os gregos nos levam a reflexão, em suas histórias, que os mesmos encontraram diversos tipos de amor em seus relacionamentos com uma ampla gama de pessoas – amigos, família, esposas, estranhos e até mesmo consigo. Este pensamento pode nos trazer um contraste com nossa obcecada procura por uma única relação romântica, onde esperamos encontrar todos os diferentes amores empacotados em uma única pessoa ou alma gêmea.

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Fonte: http://migre.me/vsSwq

A mensagem do amor grego, personificada em Safo, traz para nós a reflexão de alimentar as variedades de amor e conectar-se às suas muitas fontes, de acordo com que vive cada um no seu sentido de vida e nas mais variadas relações. Não procurar apenas eros, mas cultivar philia passando mais tempo com velhos amigos, ou desenvolver o seu ludus, dançando noite afora. Talvez esta seja a mais natural forma de amor advinda para o ser humano, suas mais variadas formas de amar e satisfazer-se com cada uma delas, em cada momento, com cada pessoa, de diferentes formas. Abandonando assim nossa busca pela perfeição junto ao outro, apenas pelo viés erótico.

REFERÊNCIAS: 

GOLDHILL, Simon. Amor, sexo e tragédia. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

MUNIZ, Fernando. Prazeres ilimitados – Fernando – Como transformamos os ideais gregos numa busca excessiva pela satisfação dos desejos. São Paulo: Nova Fronteira, 2015.

NEWMAN, Sandra. História da Literatura Ocidental sem as partes chatas – Um guia irreverente para ler os clássicos sem medo. São Paulo: Editora Cultrix, 2014.

PHARTÉNIO. Sofrimentos de Amor. Tradução do Grego, Introdução e Comentários. 2015.

ZIMERMAN, David. E. Os quatro vínculos – Amor, Ódio, Conhecimento, Reconhecimento na Psicanálise e em nossas vidas. Porto Alegre: Artmed, 2010.

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O castigo do corpo gay!

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Fonte: http://www.mundoboaforma.com.br/wp-content/uploads/2014/08/corpo-definido-620×330.jpg

GAY [guêi] adj. Informal. 1. Homossexual. Que se refere a homossexualidade: relacionamento gay. 2. Que demonstra comportamentos, particularidades e/ou ações características de homossexual: evento gay. s.m. e s.f. Aquele ou aquela cuja atração (afetiva e/ou emocional) é demonstrada e/ou direcionada a pessoas do mesmo sexo: ela é gay, logo, tem uma namorada. 3. (Etm. do inglês: gay) Alegre, vistoso.

A apropriação de termos ofensivos é um dos pilares da cultura de resistência. A palavra “gay” era utilizada em tom pejorativo por significar “alegre”, para deixar claro que a frescura – ou “alegria” – não era um traço desejável em um homem. Como o machismo necessita da constante afirmação do masculino, transforma tudo que é afeminado – ou seja, gay – em algo desprezível, menor. Chega a ser irônico que a palavra usada para definir homossexuais seja essa…

Ser gay dói. É difícil. Apesar de impressionantes avanços dos últimos 40 anos, perceber-se homossexual ainda envolve muita negação e rejeição. Há o medo de contar para a família, o medo de passar a vida sozinho, o medo de sofrer com a violência das ruas, o medo do preconceito nos espaços de trabalho… Tudo isso parece passar quando vivemos o momento libertador de “sair do armário”, já que admitir essa identidade tira o peso do segredo, de uma dor solitária. Acontece que esse “assumir-se” é uma resposta à pressão social por uma definição. Por mais gostoso que seja, transforma-se em outro pedido desesperado por aceitação, como um “tá bom, sou isso mesmo, já podem me encaixar em X modelo de sociedade”. E não há nada de alegre nisso.

Seria natural que a “Comunidade Gay” fosse um paraíso de aceitação pronto para receber seus filhos, inclusive com as variantes que formam nossa sigla atual, ALGBTTIQ. Entretanto, não é isso que acontece. Ao invés de buscarmos o respeito à diversidade – que gostamos tanto de dizer ser nosso objetivo – seguimos na eterna busca da aprovação dos heterossexuais. Por sermos definidos como divergentes do “padrão de referência”, procuramos obsessivamente “nos desculpar pelo incômodo” e corrigir a nossa falha, entrando num padrão definido para nós, por aqueles que nos rejeitam.

Alteramos nossos corpos.

“Gay” é um padrão que vai muito além de desejos sexuais ou de identidades culturais. É um nicho social que tem regras rígidas, reproduzidas quase sem pensar. Um “homem gay ideal” precisa ser melhor do que um heterossexual. Mais bonito, culto, bem cuidado, estiloso… É como se a “falha” da homossexualidade tivesse que ser compensada com uma série de qualidades fabulosas de anúncio de revista. Dentes brancos, cabelo liso e bem penteado, corpo sarado, porte atlético, barba desenhada porque a aparência masculina deve ser cultivada. Somos lindos e gays, mas apenas quando parecemos uma coleção de bonecos Ken!

A cada final de semana, as redes sociais são inundadas por milhões de fotos de homens gays, sempre exibindo a felicidade conjunta de festas e eventos badalados. É fumaça, bons drink com energético, corpos brilhando de suor e raios laser iluminando as pistas. Curiosamente, ninguém usa camisa. Somos lindos e nossos corpos conquistados à duras penas nas academias precisam ser exibidos. Ao que parece, é o único meio de sermos desejados e admirados. Validados pela luxúria alheia. Padronizados. Aceitos.

É o “bom estereótipo gay”, já que essa beleza branca e endinheirada nunca é questionada. O gay que incomoda é a “bichinha pão com ovo”. Os “machos sarados” são motivo de inveja entre homens HT e um desperdício na opinião das mulheres. Gordos “nem parecem gays”, e como não são aceitos pelo padrão vigente precisam criar um nicho próprio, a toca dos ursos. Negros são a minoria da minoria, transformada em um fetiche por pau grande.

Nesse mar de generalizações, só temos em comum o estigma da promiscuidade. Nossa liberdade sexual goza do sabor predatório que o machismo empresta à sexualidade de todos os meninos, com a vantagem de que nossos parceiros são nossos iguais, sem repressão. Talvez seja esse o nosso pecado imperdoável, que precisa ser coberto de culpa como forma de punição. Ao sermos reduzidos a nossos desejos sexuais, somos privados de nossa identidade e considerados um pouco menos humanos. Viados mesmo.

Esse castigo é doloroso porque não importa o tamanho do esforço, pois continuaremos à margem. Somos lindos, mas sacrificamos nossos afetos para manter um padrão inatingível, que nos oprime. Na busca por uma perfeição inventada, criamos outra coisa para rejeitar em nossos corpos e nossas subjetividades. Não há nada de alegre nisso… O que é TÃO gay!

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“Carol” e o caminho da completude feminina

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Com seis indicações ao OSCAR:

Atriz (Cate Blanchet), Atriz Coadjuvante (Rooney Mara), Roteiro Adaptado (Phyllis Nagy), Fotografia (Ed Lachman), Trilha Sonora Origial (Carter Burwell), Figurino (Sandy Powell). 

Banner Série Oscar 2016

O homem só conhece a sua verdadeira natureza no momento em que se enamora

                   Aldo Carotenuto

O prenúncio de Eros e Pathos

É natal, a beleza da neve fina que cai logo se transmuta na lama que suja as ruas de Nova York. Mas nada disso importa para Therese Belivet (Rooney Mara). O frio a expulsa do seu apartamento sem calefação para o trabalho, onde toma seu café. Lá, vai para o seu posto atrás de um balcão, no setor de bonecas. Therese não é muito diferente delas, ali, esperando inerte, passiva, repetindo as mesmas frases decoradas para agradar os clientes enquanto distribui um sorriso plástico para atraí-los. Mas aquele dia em especial teria duas novidades: o primeiro, ter que usar um gorro de natal e, segundo, a presença de Carol (Cate Blanchett). Ela era “alta e clara, com um longo corpo elegante dentro do casaco de pele folgado (…), seus olhos eram cinzentos, claros e, no entanto, dominadores, como luz ou fogo” (Trecho do livro Carol).

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Ao avistar Carol pela primeira vez, Therese não quer se desprender daquele corpo evanescente que parece flutuar longínquo em meio a balburdia da multidão na loja. Um instante ali, em um respirar, a garota perde seu objeto de curiosidade, expande sua procura para outras partes da loja e quando a decepção começa a se instalar, Carol materializa-se na sua frente, carne, osso e sedução. Olhos nos olhos, postura contida da jovem diante da força feminina que penetra o seu espaço. O enlace lembra um excerto de Shakespeare.

“Assim que se olharam, amaram-se; assim que se amaram, suspiraram; assim que suspiraram, perguntaram-se um ao outro o motivo; assim que descobriram o motivo, procuraram o remédio”. (William Shakespeare)

Com seu primeiro livro, Strangers on a Train, a jovem autora Patrícia Highsmith conseguiu a atenção do público e da crítica. Alfred Hitchcock imortalizou a obra nos cinemas com o clássico O Pacto Sinistro. Seu segundo livro, O Preço do Sal, foi rejeitado por conflitos editoriais; não queriam arriscar a carreira da escritora com um tema delicado sobre o romance de duas mulheres. Que continuasse com os suspenses. Mas Patrícia preferiu entregar seu livro para outra editora, não iria jogá-lo no esquecimento de um fundo de gaveta. Sob o pseudônimo Claire Morgan, O Preço do Sal chegou às mãos dos leitores em 1953.

Somente depois de quase trinta anos a verdade veio à tona em uma confissão da própria autora em um pós-escrito de uma nova edição. Agora temos uma versão cinematográfica primorosa feita pelo diretor Todd Haynes (Longe do Paraíso, 2002), com interpretações permeadas de sutilezas do elenco, principalmente das protagonistas Cate Blanchett e Rooney Mara, que concorrem, respectivamente, ao Oscar 2016 de Melhor Atriz e Melhor Atriz Coadjuvante.

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Afrodite: o arquétipo da Deusa do Amor 

Uma verdadeira história de amor tem doses de idealismo e romantismo, permeados de sofrimento, prenúncios de tragédia e, por vezes, redenção no seu encalço. E se o imaginário coletivo já é carregado por arquétipos gregos, a cultura de massa explora esse sentimento que arrebata o coração empurrando romances e filmes, provocando suspiros, lágrimas e, apesar de tudo, esperança. É peculiar notar que tramas com tamanha dor representam a essência do sentimento mais desejado pelo ser humano.

O drama é incontestavelmente parte da experiência amorosa, no entanto, com tantos sinais de aviso sobre os caminhos tortuosos deste sentimento utópico, o indivíduo quer, procura e sonha tê-lo.  Mas qual seria a razão para o desejo de um sentimento que pode, aparentemente, significar a destruição daquilo que já conhecemos, das nossas certezas e, principalmente, da identidade? Certamente não obteremos a resposta utilizando a razão.

No primeiro encontro, Carol chega curiosa à bancada da menina que a encarava de maneira incisiva. Sua experiência enxerga em Therese uma possibilidade, há uma faísca no olhar da vendedora que a atrai. O jogo de sedução é iniciado a partir do momento que ela deixa as luvas sobre o balcão, – com as mãos nuas, ela demonstra implicitamente que está aberta para um contato verdadeiro; outra leitura presente é que nos remete a cultura do desafio do passado: ao retirar as luvas e jogá-las no chão, chama-se o oponente para um embate, a pessoa ao se abaixar e pegar estaria aceitando o duelo. Therese percebe as intenções e aceita, de forma juvenil, as investidas da sedutora mulher à sua frente. Carol quer saber até onde vai a ousadia da menina; Therese quer provar que é digna de atenção.

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O ponto de partida do romance entre as duas mulheres é de reconhecimento dos anseios da psique e sua completude. Em uma identificação com os arquétipos das deusas gregas, segundo Bolen (1990, p. 82), temos Therese como uma das três deusas virgens. “Ártemis representa um sentido de integridade, uma-em-si-mesma, uma atitude de ‘sei cuidar de mim mesma’ que permite à mulher agir por conta própria, com autoconfiança e espírito independente”. Em vários momentos do longa há investidas masculinas sobre Therese, e ela renega todas tal qual como a deusa da lua. Na década de 50, isto representa um avanço na personalidade feminina e os primeiros passos do feminismo. De acordo com Bolen (1990, p. 55).

“(…) a propaganda posterior à Segunda Guerra Mundial enfatizava o casamento e a maternidade. Era um tempo de realização para mulheres que tinham a necessidade de Hera de serem uma companheira, e para mulheres com instinto maternal de Deméter. Era uma época difícil para mulheres tipo Atenas ou Ártemis, que eram intelectualmente curiosas e competitivas, mulheres que queriam expressar superioridade ou realização em qualquer tarefa que não a de construir família.”

Carol encarna a deusa Deméter, mãe acima de tudo, seu amor e devoção estão todos voltados para a filha e ninguém mais. A deusa Hera também traz a maternidade como uma de suas características, mas diferente da nossa protagonista, a deusa nutre um amor passional pelo marido, Zeus, sentimento inexistente entre ela e Harge (Kyle Chandler). “A mulher com um forte arquétipo de Deméter deseja ardentemente ser mãe. Uma vez que se torna mãe, acha isso um papel realizador. Quando Deméter é o arquétipo mais forte na psique de uma mulher, ser mãe é o papel mais importante e funcional de sua vida” (BOLEN, 1990, P. 240).

Esses modelos não são fixos, mas podem ser limitantes, refletindo características da época que podem suprimir ou permitir o seu desenvolvimento. Esclarece Bolden (p. 54): “A vida das mulheres são modeladas por papéis permitidos e imagens idealizadas da época”. Historicamente temos exemplos dessa influência com a caça às bruxas na Idade Média e o advento do feminismo na modernidade. Mas a psique do indivíduo nem sempre precisa da autorização da sociedade para buscar sua individuação. “Uma deusa pode tornar-se ativada e nascer para a vida quando um arquétipo é trazido à tona por uma pessoa ou por um acontecimento” (BOLEN, 1990, P. 58).

A mulher necessita expressar de maneira equilibrada os seus três aspectos: das deusas virgens – Ártemis, Atenas e Héstia -, das deusas vulneráveis – Hera, Deméter e Perséfone -, e da deusa alquímica – Afrodite. “As deusas, representando três categorias diferentes, necessitam de expressão em algum lugar na vida da mulher, para que ela possa amar profundamente, trabalhar significativamente, e também ser sensual e criativa” (BOLEN, 1990, p. 39).

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Ao se encontrarem, Afrodite permeia a psique de ambas as mulheres. O desejo de transformação é inerente a elas naquele momento; há uma escolha, mas suprimir essa ânsia pela completude da alma pode trazer conseqüências mais graves do que se render a inconsciente vontade de transformação. Para Bolen (p. 48), “quando diversas deusas disputam o domínio sobre a psique de uma mulher, esta precisa decidir que aspecto de si própria expressar, e quando expressá-lo. Ela, aliás, será arrastada primeiro numa direção e depois noutra”. Temos no filme, então, duas mulheres em contato direto com suas deusas, Ártemis e Demeter, onde a necessidade de transformação será ativada pelo arquétipo da deusa do amor. “O arquétipo de Afrodite motiva as mulheres a procurarem intensidade nos relacionamentos, em vez da permanência neles: motiva-as a valorizarem o processo criativo e a serem receptivas a mudanças” (BOLEN, 1990, p. 41).

Então, quais seriam essas mudanças que almejam e que somente com o florescimento da deusa do amor e da sedução será possível? Segundo o analista Aldo Carotenuto (1994, p. 17), enxergamos no outro a nossa redenção e nossa maldição. Há um reconhecimento do inconsciente de uma parte da psique necessária para a transformação alquímica. “Ativam-se, pois na relação amorosa, elementos ocultos ou até desconhecidos, que são levados à luz da subversiva força da emoção.” Assim, o perigo de amar é não reconhecer e não permitir a mudança dos aspectos da psique até então atuantes e ligar-se de maneira doentia ao outro. O autor esclarece:

O amor que une os amantes liga indissoluvelmente as partes “doentes” dos dois indivíduos. Por isso podemos dizer que a relação de casal apresenta aspectos delinquenciais que, se reforçados por um particular contexto ou por uma disposição patológica de ambas as pessoas, podem fazer emergir de modo dramático as zonas de sombra (CAROTENUTO, 1994, p. 17).

Carol necessita sentir Ártemis através de Therese e esta precisa aflorar seu lado de adoção e vínculo propiciados por Deméter. Afrodite é o elo para a manifestação dessa mudança. A retidão das duas até consumar o relacionamento está relacionada ao poder por vezes incontrolável dos arquétipos que permeia a mulher sedutora, mas casada e com filhos. “As mulheres que são direcionadas por uma dessas três deusas devem aprender a resistir, porque fazer cegamente o que lhes dizem Afrodite, Deméter ou Hera pode afetar adversamente a vida de uma mulher” (BOLEN, 1990, p. 40).

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A ideia não é resistir, mas tomar consciência da experiência que deve se tornar um rito de passagem, uma porta para outro cenário de desenvolvimento da psique. A negação desses ritos pode trazer à tona de forma neurótica pressões internas para com o indivíduo e a todos que o cercam. Assim, é necessário uma atitude. Para Bolen (p. 49), “quando diversas deusas disputam o domínio sobre a psique de uma mulher, esta precisa decidir que aspecto de si própria expressar, e quando expressá-los”.

Por isso que o título do filme carrega o nome da personagem Carol, ao contrário de Therese que ainda seria uma lagarta lutando contra a crisálida que segura o seu verdadeiro EU; a personagem de Cate Blanchet é uma borboleta presa em uma teia de aranha, lutando inexoravelmente para se libertar de poderosa prisão, porque ela já vivencia várias personas impostas por uma sociedade patriarcal. Para Carotenuto, o amor é um meio para essa transformação e Bolen (1990, p.58) reforça isso:

Quando a mulher se apaixona, a mudança põe em perigo as prioridades anteriores. Interiormente, ao nível arquetípico, os padrões antigos podem não permanecer. Quando Afrodite torna-se ativada, a influência de Atenas deve enfraquecer, fazendo do progresso na profissão algo menos importante do que o seu novo amor. Ou os valores de Hera em favor do matrimonio podem ser superados, se houver infidelidade.

A negação, a repulsa e perseguição dos homens que permeiam o universo das duas é uma clara faceta do masculino diante das exigências, antes mudas, do feminino de demonstrar sua força individual. “Nas sociedades patriarcais os papéis aceitáveis são os da jovem (Perséfone), da esposa (Hera) e da mãe (Deméter). Afrodite é considerada “a prostituta” ou “a sedutora”, o que é uma distorção e desvalorização da sensualidade e sexualidade desse arquétipo.” (Bolen, 1990, p. 54).

É uma encruzilhada onde os dois caminhos são cobertos de dor, mas somente um leva a individuação e ao empoderamento do EU. E é este caminho que Carol e Therese decidem seguir quando viajam juntas.

O arquétipo de Afrodite não é o mais perigoso, qualquer uma das deusas quando não vivenciadas de maneira adequada tem seus efeitos colaterais. Mas ser regido pela deusa do amor e da sedução é se permitir guiar pela emoção e perder totalmente as rédeas da razão pode trazer consequências de peso muito maior que a psique possa suportar. Para Carotenuto (1994, p. 110), “se não temos certo nível psicológico, o instinto sexual se torna cruel na sua repetição, na tentativa desesperada de captar o outro.” Assim, corre-se o risco da busca constante da repetição do rito não pela experiência, mas pela sensação.

Explica Carotenuto (p. 110): “É típica do homem a possibilidade constante e ininterrupta de amar e desejar, não vinculada a fases ou ciclos, provavelmente a vicissitudes evolucionistas.” Mas uma via que torna essa busca desesperada em algo mais profundo seria através da ternura, que, para o autor, distingue o ato do rito sexual. O reconhecimento da anima seria a única forma de permissão da psique para a possibilidade de cativar de maneira íntegra o amado. “Só o feminino (tanto na mulher como no homem) consegue fazer isso. A ternura se contrapõe a uma grande ameaça: a que nos vem do sentimento de morte” (CAROTENUTO, 1994, p. 110).

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O amor 

A pressão que Carol recebe do marido, partindo da ameaça para o cerceamento são o reflexo da sociedade para aqueles que ousam ir além do que é padrão. Segundo o analista junguiano (p. 24), o amor ajuda a romper essas barreiras, “as leis não podem proibir os seres humanos de se enamorarem, mas é a própria sociedade que deixa morrer quem ousou transgredir levando uma centelha divina para o sulco sempre igual e cinzento da existência”. Ou seja, a mesma sociedade que enche as salas de cinemas para ver filmes como Carol e Romeu e Julieta é aquela que atira a pedra quando vê isto transposto para a realidade. A tragédia vem imbuída com sentimentos de inveja.

No filme, temos duas mulheres bem conscientes do mundo que as envolve. Therese olha curiosa, através de sua redoma – sempre, no início, observando através de janelas ou da sua câmera – a vida de Carol e deseja ardentemente tudo aquilo que ela poderá lhe proporcionar. E não hesita em nenhum momento a esse desejo, porque ele é sincero e não uma simples pulsão. “Quem ama se descobre mais forte e mais rico, sente-se inesperadamente capaz de enfrentar também as situações perigosas” (CAROTENUTO, 1994, p. 42).

Carol fica a mercê desse conflito interior, precisa manifestar sua independência e sua sedução, infelizmente seu marido não é o meio para isso. E é esse desejo de não permanecer à mercê de um padrão um exemplo de mudança individual que afeta o coletivo e, consequentemente, uma época.  Quantas mulheres casadas e mães não abdicaram de seus sonhos e desejos por medo de perder literalmente tudo. Carol pressente que os tempos são outros, que sua voz tem presença e sua ação, poder. Então ela vive e fala sobre seu amor, sem inibições, mesmo que signifique perdas; pior seria a morte de sua alma. O que sucede é um abraço a esse lado desconhecido de maneira íntegra, ciente de todas as conseqüências necessárias para exercer sua liberdade. “É verdade, o amor nos torna livres, livres para manifestar sem inibições não apenas o próprio lado emocional, mas também a própria inclinação ao negativo, aquela que com sugestivo termo junguiano é chamada Sombra” (CAROTENUTO, 1994, p. 18).

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A ruptura posterior entre as duas é necessária para o desenvolvimento saudável de suas psiques. A vivência de Afrodite para elas é um meio para chegar à completude e não um fim. Se ali, na viagem, terminássemos em um final feliz, teríamos um casal amarrado pela necessidade neurótica uma da outra, parasitas de suas próprias almas.

Therese teve sua experiência com o arquétipo de Deméter de Carol, mas não encarnou para si esse modelo. Após a dramática separação, surge o arquétipo de Atena, onde a calma e a racionalidade passam a ser características naturais de sua persona.  Bolden (1990, p. 120) esclarece que “quando a mulher reconhece o modo intenso com que sua mente trabalha como uma qualidade feminina relacionada com Atena, ela pode desenvolver uma autoimagem positiva, ao invés de se amedrontar de estar masculinizada, isto é, imprópria.” Assim a menina cura sua anima através da amorosa Deméter e aceita seu animus de maneira positiva.

Já Carol necessita da independência de Ártemis, porém a sociedade quer prendê-la no arquétipo de Deméter ou que a abandone a favor de Afrodite.  Mas Carol percebe que há outra possibilidade, que há necessidade de sacrifícios para manter a integridade do seu EU verdadeiro: trazer o arquétipo de Ártemis à tona, assumir sua liberdade e independência com todos os prós e contras que as escolhas trazem. Isso não a impede de ser mãe e muito menos de amar.

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Em uma história feita de escolhas, o longa de Todd Haynes ainda traz uma surpresa no seu belíssimo desfecho. A cena que inicia o filme e volta a se repetir nos minutos finais exige de Therese um sacrifício a altura daquele feito por Carol na luta pela guarda da filha. Carol, no restaurante chama Therese para morar com ela e antes da resposta surge um amigo que a fisga de volta aos anseios da sociedade; existe um dilema, seguir a razão ou o coração. Ambas já tiveram sua mudança alquímica completa, a partir dali os contornos que a vida daria seriam outros. O rapaz pousa a mão no ombro esquerdo da garota – o racional -, e Carol se despede tocando seu ombro direito – o emocional. Cabe a ela decidir quem vai determinar sua história: a sociedade ou sua sombra. Uma escolha a qual todos passam, em maior ou menor escala, onde geralmente a mão mais pesada é a vencedora. Por isso que histórias de amor são únicas culturalmente e raras na realidade, são poucos que escolhem seguir o seu coração.

REFERÊNCIAS:

BOLEN, Jean Shinoda. As deusas e a mulhernova psicologia das mulheres. São Paulo, 1990;

CAROTENUTO, Aldo. Eros & pathosamor e sofrimento. São Paulo, 1994.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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CAROL

Direção: Todd Haynes
Elenco: Cate Blanchett, Rooney Mara, Kyle Chandler, Jake Lacy;
País: EUA
Ano: 2015
Classificação: 14

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Hoje Eu Quero Voltar Sozinho: pensando diferente

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“Existem momentos na vida
onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa,
e perceber diferentemente do que se vê,
é indispensável para continuar a olhar ou a refletir.”

Michel Foucault

Imagine ser tomado por uma paixão platônica avassaladora, mas sem nunca ter visto o rosto de seu objeto de desejo! Um sentimento jocoso e singelo que acontece devagar, pela convivência. No ouvir do som grave do timbre de voz, e da leveza como essa pessoa toca no seu ombro.

É assim que nasce o amor que da liga à história de dois adolescentes de uma mesma escola paulista.

Estou falando do longa Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, que conta a história de Leonardo (Guilherme Lobo), um adolescente com deficiência visual que está atravessando a adolescência: uma fase de vários questionamentos e conflitos internos. A trama se dá entre os desafios de Leo em conseguir autonomia juntos à sua mãe, diante de sua deficiência versus o dilema factual: Com quem será seu primeiro beijo?

A adolescência é uma fase da vida caracterizada pelo foco no presente, sem cogitar as consequências futuras dessas decisões (COLL, 1995). Para dar vazão aos conflitos (os internos e os familiares), Leonardo conta com o apoio de sua melhor amiga, Giovana (Tess Amorim), seu porto seguro, principal parceira e confidente.

A história começa com o início do ano letivo e a chegada de um aluno novo na escola, Gabriel (Fábio Audi), que logo se aproxima dos amigos Leo e Giovana.

Logo, os três adolescentes começam uma grande amizade que atravessa vários desafios: Giovana se vê apaixonada por Leo, e não suporta os ciúmes de vê-lo estar cada vez mais próximo de Gabriel, que por sua vez enfrenta a descoberta da sexualidade de ordem homoafetiva e o desejo que sente em segredo pelo seu novo amigo.

Para Cória-Sabini (2001) é durante a adolescência que ocorre a interação entre o sujeito com grupo de iguais, envolvendo gêneros distintos. É comum surgirem neste momento os relacionamentos de ordem sexual e afetiva entre os integrantes desses grupos com seus pares.

O Despertar da sexualidade na adolescência está diretamente ligado à puberdade e maturação dos órgãos genitais. O desenvolvimento de laços afetivos nesta fase, tem forte ligação ao grupo com o qual o jovem forma seus pares, o que envolve característica pessoais e de expressão da personalidade.

Arminda Aberastury (1981) afirma que o adolescente tem necessidade em romper seu elo com o mundo infantil, mortificando fases anteriores. Sua postura diante de tal “luto”, seria a justificativa para a postura que este sujeito toma diante do grupo social no qual está inserido.

A inquietação e comportamento rebelde, também comuns nesta fase, estariam diretamente ligados a perda da infância e necessidade de assumir uma nova postura de vida e ideais, o que nem sempre é bem aceito pelos pais, que não aceitam muito bem o fato de que o jovem está crescendo, encerrando assim o vínculo de dependência.

Leonardo sente essa necessidade de romper com a dependência da sua mãe, sobretudo pela deficiência visual, ele vê a necessidade de mostrar à ela que ele pode sim, ter uma vida normal, e gerir sua existência sem precisar da atenção constante da mãe frente à sua particularidade, a deficiência visual.

Ao falarmos em adolescência, é preciso entender que a Puberdade é vista tão somente como uma fase biológica de mudanças fisiológicas e hormonais no corpo do adolescente. Não apresenta faixa etária fixa, podendo variar dos 09 aos 14 anos de idade, ou mais, pesquisas atuais indicam que seu termino, no mundo contemporâneo, acontece por volta dos 25 anos.

É uma fase caracterizada por transformações bruscas no corpo da criança, resultando na maturação dos órgãos genitais masculinos e femininos. Estudos comprovam uma relação direta entre as mudanças físicas e o enfrentamento psicossocial do sujeito nessa etapa do desenvolvimento humano, demonstrando uma sobreposição entre Adolescência e Puberdade, ainda que ambas sejam estudadas e concebidas separadamente. Assim, torna-se necessário entender a adolescência como um fenômeno psico/sócio/cultural, e puberdade como um fator bio/sócio/cultural (COLL, 2004).

As alterações biológicas geralmente afetam emocionalmente o adolescente, interferindo em sua maneira de conceber o certo e distingui-lo do errado, nesta fase novos mecanismos de percepção estão à disposição do adolescente para auxiliá-lo a tomar decisões, contudo caberá a ele (o sujeito) distinguir.

É aqui que se dá a conflitiva de Leonardo: Como ser ele mesmo, diante de um mundo que a) pensa que ele é incapaz de ser autônomo e gerir sua existência e/ou b) o ridiculariza e se aproveita de sua limitação sensorial para demonstrar sua fragilidade. Em meio a tudo isso, há a descoberta da sexualidade acompanhada do desejo homoafetivo pelo novo amigo, o qual ele não sabe se irá corresponder às suas expectativas.

O grupo social de Leonardo está na escola e nos adolescentes dos quais ele está mais próximo. A maioria dos seus colegas de aula o aceitam no grupo independente da deficiência visual, isso se confirma ao longo do filme, exceto por eventos específicos nos quais alguns de seus colegas tiram vantagem de suas limitações com brincadeiras que podem facilmente serem comparadas a episódios debullying na escola.

Arrieta (2000) cita alguns estudos de Piaget que apontam para as interações sociais de agregação de valores culturais como resultantes das trocas de experiências do período escolar. Elas também seriam responsáveis pela formação moral do ser humano. Geralmente são os primeiros contatos, aqueles estabelecidos na segunda infância, que fornecerão à criança, regras de convívio social. A criança carrega esses valores consigo para o resto da vida. Lógico que em estágios futuros do desenvolvimento, onde ocorrem processos cognitivos e mais avançados, tais valores terão graus de complexidade maiores e melhores. Mesmo aqui, eles carregam bases desse primeiro contato na infância.

Na psicanálise, o Princípio da Dualidade Instintiva, é empregado para mostrar que o ser nasce reciprocamente com pulsões agressivas e amorosas. A estimulação desses instintos, ou maior estimulação de um deles, terá impacto no caráter do indivíduo. Quando falamos de estímulos, levamos em consideração, além de mecanismos internos de acomodação da informação, os estímulos externos, e fatores sócio-históricos (COLL, 2004).

A proximidade entre Gabriel e Leonardo cria, entre ambos, laços fraternos que logo culminam em um sentimento de amor, o qual eles demonstram não entender muito bem. Um dos pontos fortes da história está neles não se perderem em questionamentos sobre os motivos de seu interesse sexual de ordem homoafetiva, ou de sofrerem com a dúvida entre viver ou não essa relação? Os dois deixam-se levar pelo sentimento, e acabam se entregando ao amor que um sente pelo outro, que culmina num beijo tímido.

A cada nova aproximação, Leonardo conta com estímulos alheios à visão para tentar conhecer um pouco mais aquele garoto da escola que lhe desperta tanto interesse, e do qual sua melhor amiga não para de falar. Aqui, a audição, o olfato e o tato entram em jogo.

Aberastury (1981) afirma que na adolescência a percepção é bem mais detalhista que em fases anteriores do desenvolvimento. Nela, o sujeito pode distinguir em detalhes o que um estímulo sensorial lhe desperta. O sujeito, portanto, é capaz de discernir do que gosta ou não gosta, apresentando caráter seletivo. Começam a demonstrar características individuais e diferenciais quanto a gostos e interesses. Os adolescentes apresentam um pensamento abstrato, ilimitado e com ideais românticos.

Valores como amizade, cumplicidade, fidelidade e respeito são abordados na trama com uma linguagem leve e atual. O roteiro, apesar de muito próximo ao do curta metragem, do qual o filme é fruto  prende o expectador do início ao fim. Ao final, a atmosfera é envolvente, e valores como sexualidade e deficiência visual saem de cena para mostrar a história de dois adolescentes que estão descobrindo a vida e o amor.

FICHA TÉCNICA:

Direção: Daniel Ribeiro
Duração: 96 minutos
Elenco: Ghilherme Lobo, Fabio Audi, Tess Amorim, Isabela Guasco
Ano: 2014

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Ficção e Homossexualidade na Tv Brasileira: de Eduardo e Hugo à Félix

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Não é segredo que a telenovela ocupa um espaço importante na produção cultural brasileira. Mesmo entre os mais radicais frankfurtianos e dialéticos é necessário reconhecer o papel que a teledramaturgia, nas últimas décadas exerceu (e ainda exerce), nas representações sobre a sociedade brasileira. Muito se falou e escreveu sobre a telenovela no Brasil. Trabalhos acadêmicos, artigos em revistas e jornais e nas conversas do dia-a-dia, as opiniões e análises sobre esse produto televisivo são algo constante nos espaços eruditos e populares.

Nos últimos anos a telenovela se ocupou em inserir temas que procuram englobar questões sociais e que para os escritores de teledramaturgia seriam pertinentes. Esses temas são inseridos muitas vezes de forma didática, buscando uma conscientização do público receptor sobre essas temáticas propostas. Dependência química, transplante de órgãos, alcoolismo, tráfico de pessoas, desaparecimento de crianças são exemplos de temáticas que os escritores de telenovela inseriram em suas produções teleficcionais. Esse processo é conhecido como merchandising social, termo considerado como controverso, pois se tornou naturalizado no campo televisivo, porém criticado no espaço acadêmico.

Uma das temáticas que conseguiu um alcance relevante foi a da homossexualidade, discutida na telenovela Insensato Coração (2011), escrita por Gilberto Braga e Ricardo Linhares. Em seu histórico na construção do folhetim televisivo, esses escritores abordaram muitas questões como a corrupção, o comportamento das elites brasileiras e até mesmo questões morais. Essas questões estão presentes em novelas como Vale Tudo (1988), Pátria Minha (1994), Celebridade (2003) e que mostram as propostas realizadas pelos escritores em inserir temáticas para possíveis discussões.

Em Insensato Coração os escritores repetem essa fórmula, utilizando-se do melodrama e o reatualiza para alcançarem seus objetivos. Para ampliar suas intenções, ou mesmo seguir as demandas da indústria cultural, G. Braga e R. Linhares inserem o tema da homossexualidade, aproveitando o agendamento do tema, presente em discussões na sociedade civil e também em instituições religiosas, jurídicas e políticas.

A questão da homossexualidade é um tema polêmico e multidimensionado, pois envolvem relações de poder, práticas culturas e históricas, experiências sociais e interesses institucionais e de grupos. Nos últimos tornou-se uma questão de discussão pública na sociedade brasileira, pois com o fortalecimento da luta pelos direitos das minorias (como categoria sociológica) a “questão gay” se consolidou no debate público. A igualdade de direitos, como o reconhecimento da união homossexual, a adoção de crianças também por casais homossexuais são “bandeiras” – que é muito mais do que isso, pois são direitos e não privilégios – encampadas pelo movimento GLBTT (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transexuais e Transgêneros).

Os escritores de Insensato Coração “aproveitando” o agendamento público da temática homossexual inseriram na narrativa ficcional questões sobre a orientação sexual, especificamente a “questão gay”. Eles procuraram se afastar dos velhos estereótipos que a própria telenovela utilizou durante anos para representar os homossexuais. “Bichas” afetadas, gays violentos, paranoicos e infelizes são exemplos de como durante muito tempo a televisão representou os homossexuais.

Em Insensato Coração os escritores também utilizaram algumas dessas representações ao inserirem personagens afetados e afeminados como Rony (Leonardo Miggiorin) e Xicão (Wendel Bendelack). Porém, inseriram alguns personagens que não adotaram esses estereótipos, procurando adotar estratégias que politizem e didatizem a temática da homossexualidade. Pode-se perceber nessas estratégias duas questões que para os escritores se tornaram pertinentes. A primeira é o uso de personagens que não possuem comportamentos afetados e afeminados, como o Eduardo (Rodrigo Andrade) e o Hugo (Marcos Damigo) que adotaram o comportamento da “normalidade”. A outra questão foi a discussão sobre a homofobia com o objetivo de discutir a criminalização das práticas homofóbicas.

Eduardo e Hugo – Insensato Coração

Para tentar “educar” o público e destacar a importância do relacionamento homossexual dentro de uma possível normalidade, os escritores decidem optar por concentrar no relacionamento de dois jovens bonitos, pertencentes a classe média (Hugo e Eduardo). Um deles é professor universitário no curso de direito e outro é filho de uma comerciante que possui um quiosque na praia do Leblon (cidade do Rio de Janeiro) e que apoia a causa homossexual. G. Braga e R. Linhares assumem o discurso da heteronormatividade, ao procurar dar “voz” a novas representações sobre a homossexualidade.

O casal homossexual protagonista da novela assume as representações da normalidade heterossexual, isto é, os escritores apenas replicam no comportamento dos personagens as práticas da normativa heterossexual. Hugo e Eduardo se aproximam, se apaixonam, surgem algumas turbulências com a família (no caso de Eduardo) e para concretizarem a felicidade resolvem se casar, conciliando com todos: família, amigos e de certa forma com a sociedade.

Mesmo que os escritores queiram abandonar estereótipos que foram e ainda são representados na televisão, eles acabam adotando representações da família tradicional, heterossexual, moderna e burguesa. Outras questões que os escritores inserem é a judicialização constante da homossexualidade e principalmente da homofobia. Utilizando a estratégia do merchandisingsocial, eles utilizam a lei e a punição como forma de reduzir a prática homofóbica. Em alguns momentos torna-se pedante o uso didático para convencer o público que praticar homofobia é crime. O problema é que reduzem apenas a questões jurídicas, não percebendo as outras práticas presentes nesse processo.

Entretanto, em Insensato Coração os escritores procuraram ampliar as “vozes” homossexuais. O relacionamento desse mesmo casal homossexual, a inserção de personagens de classe média, com empregos estáveis, sem trejeitos afetados e/ou afeminados como um jornalista dois advogados e um estudante universitário. O estereótipo do homossexual, porém permanece, quando os escritores inserem a personagem Araci (Cristiana Oliveira) como “lésbica” usando “trejeitos” masculinizados.

Crô – Fina Estampa

Após a exibição de Insensato Coração as telenovelas exibidas no horário das 21 (vinte e uma) horas da Rede Globo com receio de não centralizar a polêmica sobre a homossexualidade resolvem “frear” a discussão. Na novela posterior Fina Estampa (2011-2012) o escritor Aguinaldo Silva insere um personagem homossexual Crô – Crodoaldo Valério (Marcelo Serrado) e que possui os “velhos” estereótipos homossexuais representados nas novelas: afetado, afeminado e com o toque cômico, com intenção apenas de entreter.

Félix – Amor à Vida

No momento atual a telenovela Amor à Vida (2013) de Walcyr Carrasco possui alguns personagens homossexuais. O personagem Félix (Mateus Solano) homossexual ou bissexual é um dos protagonistas da novela. Um outro núcleo homossexual é composto por Eron (Marcelo Antony) e Niko (Thiago Fragoso) que mantém um relacionamento estável e que estão adotando um criança através de um processo de “aluguel de uma barriga”. Questão também que está sendo discutido na sociedade brasileira (e também em muitos outros países) sobre a adoção de crianças por casais homossexuais. Esse casal de personagens de Amor à Vida também possui quase o mesmo perfil do casal de Insensato Coração, classe média, brancos e adotam a normalidade heteronormativa.

Eron e Niko – Amor à Vida

A telenovela cumpre uma função social ao discutir temas pertinentes às demandas da sociedade contemporânea no Brasil? Para muitos ela realiza um desserviço, pois ao discutir temas tidos como sociais e polêmicos, a telenovela os mercantiliza, pois opera dentro do processo da indústria cultural. O próprio termo merchandising social seria uma forma de apresentar esses temas, como a homossexualidade, a partir da lógica de ganhos de audiência e consequentemente aumento de publicidade e lucratividade.

Contudo, reduzir o papel que a ficção televisiva possui em mero produto mercadológico é negar décadas de interação com a sociedade brasileira. Nessa interação, as matrizes hegemônicas que predominam principalmente as dos escritores estão concatenadas com o eixo Rio-São Paulo. Outras realidades ou lógicas culturais brasileiras são pouco representadas e quando são estão carregas de estereótipos. Porém, não podemos reduzir o escopo da análise num economicismo que muitas vezes é estéril e pedante.

Para entender como a telenovela consegue operar nos códigos da cultura brasileira e de certo modo manter uma relação de décadas devemos perceber como ela consegue se reinventar, reinventando principalmente sua principal matriz narrativa: o melodrama. É na reinvenção do melodrama que abre a possibilidade dos escritores inserirem temas do cotidiano, perspectivas políticas e interesses ligados às da emissora. A discussão de questões da sociedade brasileira pela ficção televisiva é uma herança que está além do melodrama, recebendo também influências da literatura e do teatro, pelo menos na especificidade da teledramaturgia no Brasil.

Ao proporem a discussão sobre homossexualidade em Insensato Coração, G. Braga e R. Linhares procuram se conectar com as demandas da sociedade brasileira. Mas, não se pode esquecer que essa conexão não é mecânica, pois os escritores são condicionados por representações sociais, bem como o público que assiste e comenta a telenovela. Podemos perceber na quantidade de postagens que os internautas fizeram durante o período de exibição da novela, nas mídias sociais.

As mídias sociais talvez seja hoje o principal termômetro em que os escritores e as emissoras utilizam para avaliar a produção televisiva. A polêmica sobre a homossexualidade fez os escritores de novela, após Insensato Coração, possivelmente por pressão da maior emissora (Rede Globo) atenuar as discussões. Em Amor à Vida Wlacyr Carrasco utiliza estratégias para abordar o tema da homossexualidade. O escritor procurou estereotipar o personagem gay Félix para contrabalancear a discussão sobre o tema da adoção de um filho em que o casal homossexual Eron e Niko está realizando.

O escritor procura realizar uma polêmica mais “soft” e também para agradar o público estereotipa um personagem gay com ações de vilão, realizando coisas supostamente desagradáveis e condenáveis. O escritor apresenta o personagem Félix com problemas de caráter, insinuando uma relação entre comportamento e orientação sexual. Essa intenção talvez procure agradar pessoas que se opuseram a defesa da “causa gay” por Insensato Coração e que defendem a tão questionada “cura gay”. Como o sentido escapa da ação, talvez não seja a intenção do escritor, porém o significado interpretado poderia ser esse.

As postagens nas mídias sociais mostrou um caleidoscópio de representações sociais presentes nos posts dos internautas. Um elemento pertinente na análise desses posts é a insistência dos internautas em escrever sobre como a homossexualidade foi abordada em Insensato Coração. Mesmo que muitas aceitem e até defendem o direitos dos homossexuais de ter direitos e respeitem a suas orientações sexuais é necessário mais do que isso.

Citando um fala da filósofa Marilena Chauí é necessário uma revolução antropológica para que a revolução sexual realmente se estabeleça. Os escritores de Insensato Coração tiveram o mérito de problematizar uma temática complexa num produto cultural de alcance nacional e que possui tensões e interesses diversos. Na telenovela Amor à Vida, o tema da homossexualidade retoma como uma das questões centrais da narrativa. Muitos sentidos atravessam a temática, comportamento, moralidade e direitos civis. A família é uma instituição que atravessa a narrativa, principalmente o modelo nuclear e tradicional. Porém, para que essa mudança antropológica ocorra e que a liberdade sexual seja respeitada e vivida é necessário mais do que 185 capítulos de ficção.

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A militância que arrasa: Bruna La Close e a livre orientação sexual no Amazonas

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Respeito à livre orientação sexual e reconhecimento ao nome social. Duas grandes bandeiras do movimento LGBT do Amazonas, reunidos no Seminário Norte de Humanização em Manaus. O evento foi realizado pelo Coletivo Norte de Humanização, apoiado pelo Ministério da Saúde. Apesar do nome oficial, anotado em registro de nascimento e em outros documentos oficiais, o movimento pela livre orientação sexual em Manaus quer reverter os casos de constantes constrangimentos, vividos, sobretudo, nas instituições públicas.

O Portal (En)Cena entrevistou Bruna La Close, presidente da Associação Amazonense de Lésbicas e Travestis, que destacou o trabalho na Capital.

Bruna La Close em entrevista ao portal (En)Cena

(En)Cena – Na primeira roda do Seminário Macro Norte de Humanização em Saúde você pautou a importância do nome social para o movimento LGBT. Quais as implicações que a não observação desse direito traz para o usuário do SUS?

Bruna La Close – A Humanização em Saúde faz parte de todos os direitos humanos, não somente dos direitos de gênero. O não respeito ao nome social acontece somente na esfera da saúde, na educação e em várias outras políticas públicas onde o travesti é usuário. Existe, a prática de você chegar no local de atendimento e irem sempre pelo nome do RG [Carteira de Identidade]. Essa é uma luta que o travesti traz: o nome social, como eu me identifico naquele momento, esse é o principal empecilho que a gente encontra. O constrangimento, onde eu estou e como vou ser chamada e é isso que acontece. É o nome social o principal, porque representa o respeito: Como ela deve ser chamada? Como ela gosta de ser chamada? Como ela deveria ser chamada?

Bruna La Close – Foto: Divulgação

(En)Cena – Você acredita que os profissionais na hora dos atendimentos, em todas as esferas do serviço público, são maus orientados para o trato com as pessoas representadas pelo movimento GLBT, por exemplo?

Bruna La Close – Quando a gente fala em movimento, tem que tratar movimento com todas suas especificidades, ou seja, colocar um hétero para falar com um gay, evidentemente, ele vai ter empecilhos tanto da parte dele, quanto da parte do gay. Porque ele não tem uma capacitação por questões de linguajar diferenciado. Inicia desde o tratamento. O travesti gosta de ser tratado como ela, e não como ele. Por aí já inicia a falta de respeito e, às vezes, o diretor, gestor da pessoa que está atendendo, já discrimina sem saber. É onde entra a falta de humanização, de conhecimento e capacitação dessas pessoas para atender a comunidade LGBT.

(En)Cena – Sobre essas demandas, quais os impactos que a mobilização social já produziu nas políticas públicas aqui no Amazonas?

Bruna La Close – A gente já tem aqui no estado do Amazonas, através da Secretaria de Assistência Social – SEAS, e da SEMARG, um pequeno projeto que busca a inclusão do nome social dos travestis. Ele foi concretizado através do governo do Estado, foi sancionado, só que não tem prática. Aliás, o setor público municipal não reconhece, por mais que você exija, mas não reconhece, ou seja, foi publicado, mas não foi trabalhada essa questão dentro das próprias esferas para que seja resolvida, colocada em prática.

(En)Cena – Qual o tipo de ação quando há um tratamento que vocês não aceitam?

Bruna La Close – A gente denuncia, porque às vezes, através dessa situação de constrangimento, gera uma discriminação, gera uma fobia. Qual é o nosso principal parceiro de denúncia? É a imprensa, quando a gente denuncia na imprensa, rapidamente tem uma resposta, mas daquela situação localizada.

(En)Cena – É algo pontual, momentâneo?

Bruna La Close – Cito um exemplo: Universidade do Estado do Amazonas – UEA, uma universidade muito forte dentro do estado, que discriminou barbaramente um homossexual, foi resolvido e o professor se retratou, mas através do movimento. Mas como? O “Movimento La Close” chegou à Universidade e informou a denúncia.

(En)Cena – São conquistas no dia-a-dia?

Bruna La Close – Então, não são conquistas que se diga que o governo, a prefeitura e demais esferas estejam com o movimento, mas o movimento lutando paralelamente que conseguiu a conquista tal, no momento tal.

Bruna La Close em entrevista para a Rede Bandeirantes durante a Parada do Orgulho LGBT 2012 – Foto: Divulgação

(En)Cena – Teria mais alguma coisa que você gostaria dizer sobre a humanização em saúde? Como essa política pode ser fortalecida?

Bruna La Close – Política de humanização, como eu disse anteriormente, é chamar! Você não vai tratar de uma política de humanização sem chamar o usuário, a população, a pessoa que sofre na pele. É o usuário que vai saber discutir o que ele passa, a situação do posto de saúde, do hospital. O usuário tem que estar presente, por que discussão de gestor para gestor, diretor para diretor, vai ser só discussão, um apoiando o outro e não se tem resultado de nada. O caminho é trazer a população para discussão.

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