“Altered Carbon” e um sombrio futuro próximo

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Uma elite de abastados têm agora a eternidade para perpetuarem a fortuna e o poder, se afastando da realidade mundana através de “capas” cada vez mais aprimoradas, morando em palácios acima das nuvens, no topo de arranha-céus.

O sonho tecnognóstico por séculos, desde a Teurgia e Alquimia, foi transcender a matéria – abandonar os nossos corpos como condição para a verdadeira evolução espiritual. Mas como Santo Irineu de Lyon alertou no século II, “O que não é assumido não pode ser redimido”. E o sonho milenar pode se transformar em pesadelo com uma tecnologia que promete a imortalidade: a consciência digitalizada em “pilhas cervicais” que podem, a qualquer momento, serem transferidas para qualquer corpo (ou “capa”). Mas isso acabou provocando uma sociedade tremendamente desigual e violenta. Essa é a série Netflix “Altered Carbon” (2018-), um cyberpunk-noir que suscita profundas reflexões teológicas: se pudermos ser ressuscitados após a morte em uma nova “capa”, a alma persistirá entre os códigos que transcreveram nossa consciência e memórias? Ou nos transformaremos em “capas” ocas manipuladas por uma elite amoral? Uma elite que alcançou a verdadeira imortalidade – fazer backups da própria consciência via satélite.

No clássico Blade Runner (1982) de Ridley Scott, a grande questão que se colocava ao final para os espectadores era: o policial Deckard (Harrison Ford), especialista em eliminar androides fugitivos, era sem saber também um replicante? Como distinguir um replicante de um ser humano nas gerações cada vez mais avançadas de androides? Estava colocado o sonho tecnognóstico cujas origens milenares estão na Teurgia, Alquimia e Cabala: imitar Deus criando Vida. Tentar retornar a Deus imitando o próprio ato da Criação.

Mas na série Netflix Altered Carbon (2018 -) descobrimos como o milenar sonho tecnognóstico pode se transformar em pesadelo: aproximamo-nos de Deus quando descobrimos o segredo da imortalidade – nossas consciências podem ser digitalizadas e “baixadas” em “pilhas cervicais” ou simplesmente “cartuchos” armazenados nas vértebras das pessoas. Há qualquer momento, com a eventual morte do corpo, o cartucho pode ser transferido para uma nova “capa” ou corpo, para viver uma nova “encarnação”.

O cartucho mantém memórias das muito frequentes múltiplas vidas anteriores em diferentes “re-capamentos”. Porém, outra incerteza, ainda mais sinistra, surge: os cartuchos digitalizaram memória e consciência. Mas será que a alma persiste entre os bytes desses discos rígidos? Todos os personagens de Altered Carbon ainda permanecem “humanos”, com uma alma e consciência? Ou se tornaram invólucros animados unicamente por sombras do passado, memórias transcritas digitalmente? Zumbis bio-químico-digitais?

Essa é a dúvida que perpassa toda a primeira temporada de Altered Carbon: a realização tecnognóstica da alma finalmente transcender a matéria poderia ter resultado numa bizarra paródia – tudo o que conseguimos foi a imortalidade dos códigos que transcrevem nossas consciências em um disco rígido. E não mais a alma.

Uma elite brutal

Nesse cenário em que qualquer um pode se tornar imortal (a não ser que seja destruído o próprio cartucho invólucro da consciência), conhecemos através da série uma sociedade futura brutalmente desigual que se alastra em megacidades de luz néon, carros voadores, arranha-céus que alcançam as nuvens, sob uma constante chuva ácida que cai sobre becos e ruas estreitas. Relembrando o cenário distópico de Blade Runner.

Uma elite de abastados têm agora a eternidade para perpetuarem a fortuna e o poder, se afastando da realidade mundana através de “capas” cada vez mais aprimoradas, morando em palácios acima das nuvens, no topo de arranha-céus. Viveram centenas de anos, tempo suficiente para acumularem riqueza, conhecimento e sensação de estar sempre acima da Lei.

Por milênios o Gnosticismo aspirou a transcendência sobre o corpo, dentro da dualidade radical espírito/matéria: o corpo nada mais era do que uma prisão para a evolução espiritual, em um mundo cuja Criação resultou numa forma de prisão cósmica para a humanidade. Teurgia, Alquimia, Cabala e demais conhecimentos herméticos foram as tecnologias iniciáticas de cada época mobilizadas para a libertação espiritual.

A revolução tecnognóstica figurada em Altered Carbon é a realização dos sonhos alquímicos e cabalísticos – e os simbolismo do ouroboros (a serpente que morde a própria cauda) e Caduceus (a serpente subindo o corpo de uma mulher como a descrição esotérica da evolução espiritual) estão presentes desde a abertura dos créditos dos episódios para representar isso.

Porém, de uma forma pervertida, como estratégia de perpetuação de uma elite que detém o poder e dinheiro para dominar a tecnologia. A questão é que o tecnognosticismo esqueceu a afirmação de Santo Irineu de Lyon (séc. II) segundo a qual “aquilo que não foi assumido, não foi redimido”. O corpo perdeu a totalidade do seu valor sagrado (foi reduzido a “capa”) enquanto os demiurgos mantêm a ordem material que, em última instância, permanece sendo a prisão espiritual.

A Série

Com o cancelamento da série Sense 8 das irmãs Wachowski, do fracasso de bilheteria de Blade Runner 2049 e o resultado nada entusiasmante de Mudo do diretor Duncan Jones, a Netflix fez uma aposta arriscada em insistir mais uma vez com o universo cyberpunk-noir de Altered Carbon.

Como a maioria das séries atuais, a narrativa já começa em plena ação deixando o espectador sem saber as motivações dos personagens. O que nos obriga a buscar aqui e ali, em cada flash back ou flashs de memórias do protagonista, pistas para reconstruir os eventos anteriores ao enredo atual.

A estória acompanha Takeshi Kovacs (Joel Kinnaman), um ex-membro de uma facção de elite de rebeldes (os “emissários”) que foi morto em um confronto contra soldados do “Protetorado” (governo totalitário comandado pela elite imortal). Seu cartucho foi extraído da cervical e mantido “no gelo” (como denominam o estado de prisão sem corpo) por 250 anos até ser dado a ele um novo corpo para ser “re-encapado”.

Takeshi descobre que sua nova “capa” foi uma liberdade condicional concedida pelo oligarca imortal Laurens Bancroft – James Purefoy. Ele foi recentemente assassinado antes de o backup feito a cada 10 minutos (sua consciência e memórias são transmitidos por satélite para bancos de dados para garantir a imortalidade, mesmo com a destruição da sua pilha cervical) ser feito. O que o impossibilitou de gravar em sua memória quem cometeu o atentado com a reinicialização subsequente em um novo corpo.

Sem a memória da própria morte, Bancroft acredita que as habilidades lendárias de um antigo rebelde “emissário” ajudará a descobrir quem foi o assassino. Aqui temos o início de todos os elementos dos clássicos filmes noir de investigação policial: um investigador estoico, uma detetive policial que nutre uma relação de suspeita com o investigador (Kristin Ortega – Martha Higareda), mulher fatal (esposa de Bancroft, Miriam – Kristin Leheman) e inúmeros vilões que aparecerão para tentar tirá-lo do caminho. Na medida em que a narrativa se expande, passamos a conhecer as regras e uma série de peculiaridades do universo de Altered Carbon.

Desprezo ao corpo

Em um mundo definido pela “imortalidade da alma” (e nisso que acreditam) o corpo foi rebaixado de identidade central a mera ferramenta. Pelo fato de os corpos poderem ser facilmente substituídos, prostituição, violência e agressões (principalmente contra as mulheres) se torna uma normativa. Enquanto consciências podem ser torturadas por dias e até anos em simulações de realidade virtual – o grande problema para alguém é despertar dentro do seu limbo sem corpo, no interior de um dos “cartuchos”. Mas essa imortalidade só é mesmo garantida para a elite de poderosos como Bancroft.

Os pobres podem geralmente trabalhar recebendo como cheque de pagamento um novo corpo (ou “capa”). Porém, esses novos invólucros são de baixa qualidade, provenientes de mercados negros. Mas apenas a oligarquia tem o privilégio dos backups via satélite que garantem a imortalidade sem o risco da perda da pilha cervical.

Mas há grupos de oposição como os chamados “Neo-cristãos” que se recusam a receber novas “capas”: acreditam que após a morte a alma abandonou o corpo e que os novos re-capamentos são sacrilégios aos olhos de Deus.

Os perigos do tecnognosticismo

O que não é assumido, não pode ser redimido”, com isso Santo Irineu quis dizer que Jesus não veio para esse mundo com uma pilha cervical, foi crucificado e o conteúdo do “cartucho” retornou ao seu Pai. Ele levou também as cicatrizes do sofrimento corporal.

As consequências do fato do tecnognosticismo não considerar a advertência de Santo Irineu estão representados em toda a primeira temporada de Altered Carbon. A finitude, temporalidade e senso de fragilidade não são meros limitadores da evolução espiritual.

Como observa Michael Heim, sem essas espécies de âncoras corporais para o Eu temos o crescimento da amoralidade a partir do momento que os limites físicos com o Outro desaparecem. O corpo é a base cinestésica de toda ética e moralidade – leia HEIM, Michael. The Metaphysics of Virtual Reality.

O resultado é o mundo de abusos, violência e desigualdade sem limites. O tecnognosticismo, a gnose sem ascese como uma espécie de atalho para o Satori. Em um mundo que não foi redimido, de nada adianta a evolução espiritual. Principalmente quando ela é pensada como simples negação da matéria.

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Doutor Estranho: elementos místico-gnósticos no clichê da quebra e retorno à ordem

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Indicado ao OSCAR:

Melhores Efeitos Visuais (Stephane Ceretti, Richard Bluff, Vincent Cirelli e Paul Corbould )

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Por um lado, “Doutor Estranho” é uma evolução no universo Marvel: no lugar de super-soldados e playboys tecnológicos, a magia e a inteligência. Mas do outro, a magia (com referencias gnósticas e budistas) não é libertária mas destinada a manter a “ordem natural”: a seta do Tempo, a entropia e a morte – justamente as falhas cósmicas que o Gnosticismo de produções como “Matrix” ou “Sense8” e o budismo tibetano (uma fonte de inspiração do personagem) denunciam como prisões na “Roda do Samsara” – ciclo vicioso da morte/reencarnação. Em “Doutor Estranho” quem pretende romper com a ilusão são os vilões (a “Dimensão Negra”) e os heróis são aqueles que punem quem pretende quebrar a Ordem. “Doutor Estranho” explicita o clichê narrativo hollywoodiano que é o cerne ideológico do entretenimento comercial: “quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem” – a luta para que a ordem seja mantida. Mas o que realmente fascina o público no filme é o show da possibilidade de que a ordem será toda mandada pelos ares. Até a magia colocar tudo no lugar.

A virtude de Doutor Estranho é levar o universo cinemático da Marvel para uma nova direção: das histórias sobre playboys dotados de genialidade tecnológica e super-soldados nobres e heroicos, passamos para um mundo dominado pela magia e inteligência. Além de uma eletrizante utilização dos efeitos digitais para criar um universo bem diferente de qualquer outra coisa que vimos em adaptações cinematográficas recentes sobre super-heróis – multi-universos, loop temporais, portais interdimensionais e a desconstrução do Tempo.

Mas tudo isso é apenas a superfície. Para além desse avanço evolutivo da Marvel, Doutor Estranho explicita clichês do entretenimento hollywoodiano. Mas principalmente, um clichê narrativo que é, na verdade, o cerne ideológico do entretenimento comercial: quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem – protagonistas que lutam para que uma ordem seja mantida, mas o que realmente fascina o espectador é o show da possibilidade de que a ordem será toda mandada para os ares. Até que a magia coloque tudo no lugar.

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O personagem Doutor Estranho faz parte do desenvolvimento de um sub-zeitgeist místico, religioso e sobrenatural formado nos EUA por toda uma literatura de HQs, magazines, pulp ficctions e filmes B sci-fi, horror e fantasia no Pós-Guerra. Enquanto na Europa o misticismo gnóstico e o Fantástico sempre esteve associado à literatura e movimentos artísticos de vanguarda (Romantismo, Gótico, Expressionismo etc.), ao contrário, nos EUA associou-se à subliteratura e entretenimento de massas.

Essa “nova religião americana” (na expressão de Harold Bloom) tornou-se um gnosticismo de massas. Porém, associado a uma indústria de entretenimento no qual o místico e o sagrado é estetizado e neutralizado, convivendo confortavelmente com hábitos ritualizados de consumo. Se os quadrinhos de Stan Lee ainda criavam a mitologia dos super-heróis associada à autodivinização (o que sempre indignou os fundamentalistas religiosos), nas adaptações cinematográficas as mitologias mística e gnóstica serão enquadradas nos clichês hollywoodianos de entretenimento – super-heróis amorais e a neurótica quebra e retorno à ordem: função ideológica do cinema de massas para criar resignação e conformismo no público.

Doutor Estranho explora os elementos mais críticos do questionamento ontológico que o Gnosticismo faz à Ordem: multi-universos, a realidade como um constructo e, principalmente, o Tempo como a principal falha cósmica que aprisiona a humanidade. Mas ao contrário do universo Matrix no qual o protagonista luta para desligar a ilusão e quebrar a prisão do Tempo, em Doutor Estranho (e de resto, em todo universo Marvel no cinema), os super-heróis lutam pela manutenção da Ordem – mortais vivem na realidade ilusória prisioneiros da seta do Tempo (entropia e morte) enquanto os heróis (magos supremos e mestres da magia) lutam para que a ilusão seja mantida.

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O Filme

Dr. Stephen Strange (Benedict Cumberbatch) é um gênio da Medicina: um rico neurocirurgião com ego tão inflado como o do Homem de Ferro Tony Stark. Trata com desdém os profissionais aos eu redor e escolhe a dedo apenas os casos médicos mais desafiadores para ele. Guiando velozmente o seu carro esporte ao som de Interestellar Overdrive, música do primeiro disco do Pink Floyd (sutil referencia ao psicodelismo dos anos 1960, década na qual Doutor Estranho estreou nos quadrinhos da Marvel), simultaneamente olha para relatórios médicos (Strange pode ser inteligente, mas seu ego o faz parecer invulnerável) quando sofre um brutal acidente com o carro devido a uma momentânea distração no volante.

Suas mãos são as mais atingidas no acidente, o que é fatal para um neurocirurgião: cheias de cicatrizes e sem mais precisão e firmeza, são agora uma pálida lembrança do profissional de sucesso que era. Mas isso não faz repensar sua vida. Após sucessivos fracassos em cirurgias, torna-se cada vez mais agressivo e retraído, a ponto de bater em sua ex-amante e colega de trabalho Christine Palmer (Rachael McAdams), a única pessoa em quem poderá confiar. Strange vê todas as soluções da Ciência e da Medicina falharem, ao mesmo tempo que conhece um ex-paciente, recusado por ele, chamado Jonathan Pangborn. Um paraplégico que voltou a andar após um período sob a tutela da Anciã (Tilda Swinton) no Nepal, onde aprendeu o controle do corpo através da mente.

Falido e carregando no pulso o último relógio da sua cara coleção (simbolismo importante no filme), Strange junta o pouco de dinheiro que sobrou e viaja ao Nepal para encontrar a cura. Mas lá encontrará muito mais: um novo mundo se abrirá (literalmente, para outras dimensões) com ajuda não só da Anciã, mas também de Mordo (Chiwetel Ejiofor). Acabará aprendendo como a magia é utilizada para proteger o planeta de “fanáticos” como Kaecilius (Mads Mikkelsen), um ex-discípulo da Anciã que abandonou o Templo para se associar a Dormammu, Deus da Dimensão Negra cujo propósito é a de consumir a nossa.

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Tempo e Imortalidade

Toda a narrativa gira em torno do tema do Tempo e da Imortalidade. Para a maga suprema, a Anciã, proteger o planeta é lutar pela manutenção a ordem da Natureza, que a Dimensão Negra pretende quebrar. “O mundo não é o que deveria ser. A humanidade anseia pela vida eterna. Um mundo além do tempo, pois o tempo nos escraviza. O Tempo é um insulto. Não queremos governar esse mundo, queremos salvá-lo”, diz a certa altura Kaecilius na primeira luta com Doutor Estranho.

Aqui temos nessa linha de diálogo uma síntese da crítica Gnóstica à falha fundamental da imperfeição do nosso Cosmos – cópia imperfeita da Plenitude, o chamado “Pleroma” para os gnósticos. A combinação dessa crítica ao Tempo com o toque místico budista da Anciã do Nepal, converge à própria visão da mortalidade/reencarnação como a essência da prisão em que se torna esse mundo, capturando as almas e obrigando-as à reencarnação (a Lei da Repetição) até que conseguam “fugir” por meio da iluminação espiritual – escapar da “Roda do Samsara”, para o Budismo Tântrico.

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O Yantra Místico

Curiosamente, essa filosofia libertária (de filmes como Matrix ou séries como Sense8) é o propósito dos vilões da Dimensão Negra. Anciã, Doutor Estranho e Mordo travam batalhas invisíveis aos humanos no Universo Espelhado (que lembram bastante as sequências do filme A Origem – Inception, 2010) justamente para manter a Ordem. Ironicamente o design dos escudos energéticos manipulados tanto pela Anciã como pelo Doutor Estranho possuem uma gestalt semelhante ao dos manuscritos originais do Livro Tibetano dos Mortos, assim como do Yantra Místico, a representação simbólica do aspecto de uma divindade, inestimável para ajudar o caminho espiritual.

Na tradição tibetana são símbolos para alcançar a união com Deus e escapar da Roda do Samsara, encerrado o ciclo de mortes e renascimentos. Ao contrário, em Doutor Estranho ajudam a manter a “ordem natural” da seta do Tempo, a falha cósmica que mantém a lei da Repetição. E todas as lutas serão travadas em torno do hospital no qual Stephen Strange trabalhava – nada mais simbólico: é no hospital onde médicos travam a batalha contra a seta do Tempo, a entropia e a morte.

tibetanoYantra: Livro Tibetano do Mortos e no filme “Doutor Estranho”
Fonte: http://migre.me/vAdL6

Quebra e retorno à Ordem

Por isso, Doutor Estranho trabalha com uma clássica variação do clichê “quebra-da- ordem-retorno-à-ordem: quem quebra as regras deve ser punido, inclusive os próprios super-heróis. Em repetidas linhas de diálogo do filme repete-se o mantra: “Mas um dia é preciso pagar a conta”, diz Mordo seguidas vezes. Anciã salva a Terra por meio da própria quebra das regras pelas quais luta – drena a energia da Dimensão Negra para ter uma vida longa e fugir da morte. Enquanto Doutor Estranho, através da joia chamada “Olho de Agamotto”, manipula o Tempo – avança e retrocede os eventos de acordo com as necessidades das batalhas contra a Dimensão Negra.

Por isso, é simbólico o relógio quebrado no pulso de Doutor Estranho, a única coisa que restou da antiga vida: ele também deverá quebrar as regras do Tempo, assim como almeja a Dimensão Negra. E por que a ênfase na autodivinização nos HQs originais de Doutor Estranho é substituída pelo clichê da punição à quebra da ordem na adaptação cinematográfica? Para pesquisadores como o alemão Dieter Prokop, essa é a essência ideológica da linguagem do entretenimento para manter todos os espectadores na linha. Ao se divertir e, subliminarmente, receber essa mensagem sobre as consequências e punições sobre desobediências à Ordem (qualquer ordem), o espectador sai do cinema disposto à enfrentar, resignado, mais um dia seguinte de trabalho e disciplina – saiba mais sobre esse conceito.

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Narrativa inverossímil

Além disso, Doutor Estranho peca por outra velha narrativa clichê hollywoodiana que é totalmente inverossímil: a história de um homem branco que viaja para uma terra “exótica”, cuja cultura e pessoas não respeita, e muito menos conhece a língua. Apesar disso, de alguma forma, descobre que tem um dom natural pela magia e rapidamente fica bom o suficiente para bater os praticantes que têm vivido nisso há séculos! Na verdade, Stephen Strange não muda e o seu ego permanece tão inflado como no início: tudo deve acontecer de acordo com seus próprios termos.

Mas, apesar de tudo isso, Doutor Estranho tem um virtude irônica: pelo menos os civis inocentes estão à salvo das batalhas amorais dos super-heróis, capazes de realizar destruições em larga escala para derrotar inimigos que também querem destruir tudo. O que deixa duas opções para os pobres civis: ou são mortos pelos super-heróis como efeitos colaterais, ou mortos pelos vilões como vítimas de atentados terroristas. Em Doutor Estranho, as batalhas ocorrem no Universo Espelhado, plano dimensional invisível para os humanos – apesar de em alguns momentos sentirem alguns efeitos. Com exceção na batalha em Hong Kong na qual a Dimensão Negra destrói o prédio do Sanctum Sanctorum – um dos escudos etéricos que protegem a Terra das forças do mal.

Mas, prontamente Doutor Estranho gira o Olho de Agamotto retrocedendo o Tempo e reconstruindo tudo, o prédio e a vida das vítimas. Mais do que dinheiro, as adaptações cinematográficas do sub-zeitgeist gnóstico das HQs da Marvel parecem cumprir uma função místico-ideológica bem clara: no lugar da autodivinização libertária, super-heróis que lutam para que a Ordem seja mantida sob a ameaça da punição. Afinal, sempre chega o dia de “pagar a conta”.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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DOUTOR ESTRANHO

Direção e Roteiro: Scott Derrickson
Elenco: Benedict Cumberbatch, Tilda Swinton, Chiwetel Ejiofor, Mads Mikkelsen
Ano: 2016
País: EUA
Classificação: 12
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Transumanismo e imortalidade em “Robocop”

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O transumanismo está lidando com questões como
“qual poderia ser o futuro da humanidade?”, e
“como podemos alterar este futuro?”

O novo trabalho do diretor Alexandre Padilha (Tropa de Elite) – que marca a sua entrada em Hollywood – estreou com boa bilheteria no Brasil, apesar da pouca aceitação nos Estados Unidos. Robocop retrata um futuro não muito distante e já amplamente discutido pela Filosofia e pela Ciência em que a humanidade tem que conviver com “drones” não tripulados e robôs que desenvolvem as mais variadas funções. O mote é se estas Inteligências Artificiais Generalizadas (IAG)¹ podem ser usadas para garantir a segurança dos cidadãos norte-americanos, sendo que um grupo dominado pelo setor industrial defende a imediata inserção social (dos robôs e “drones”), enquanto outro grupo resiste, ao afirmar que falta às máquinas um componente tipicamente humano: a empatia.

Opositores aos planos da superpoderosa empresa Omnicorp, detentora da tecnologia, dizem que, caso as máquinas saiam às ruas para combater o crime, ao decidirem sobre a vida e a morte de seus alvos, irão basear-se em estruturas “frias”, rígidas, que não correspondem à complexa rede de elementos disponíveis no repertório humano. É daí que surge a ideia da Omnicorp de criar uma máquina híbrida com o ser humano, uma máquina que esteja a serviço da condição humana, que seja sua extensão (transumanismo²), e não um mero equipamento de apoio.

Para “fechar” as peças do enredo, surge o policial Alex Murphy (Joel Kinnaman), que milagrosamente sobrevive a um atentado, mas que só vê chances de ter continuidade na vida caso aceite o ambicioso projeto da empresa. Há, neste movimento, um dos temas mais recorrentes dentro da ficção científica e da própria filosofia, o da “humanização” da máquina. E é aí onde está o X da questão: ao abordar o tema sempre controverso das Inteligências Artificiais, o filme acaba por colocar o homem (e não a máquina) no centro das discussões.

De acordo com o filósofo e neurocientista do Departamento de Filosofia da Universidade de Oxford, na Inglaterra, Anders Sandberg, o uso “responsável e racional da tecnologia e a desejabilidade de mudarmos radicalmente a condição humana com a tecnologia”, o chamado transumanismo, é algo que está em franco desenvolvimento, hoje, em diferentes partes do mundo.

Para Sandberg, a tecnologia ordinária altera, em alguma medida, o modo como vivemos, mas ela ainda está atrelada a processos restaurativos (uma prótese, por exemplo, é usada para substituir um dado membro do corpo). No caso das tecnologias transumanistas, como as abordadas em Robocop, “há uma mudança da natureza humana”, já que há um esforço que incide diretamente na extensão da vida, na “transferência e reprojeção de nossas mentes, mais além ainda”, fala Anders Sandberg, em recente entrevista à Revista Filosofia Ciência & Vida. Há, no fundo, uma tentativa de se atingir a imortalidade através da tecnologia.

Em outras palavras, o transumanismo está lidando com questões como “qual poderia ser o futuro da humanidade?”, e “como podemos alterar este futuro?”. Obviamente, isso tudo esbarra em questões éticas. Entre os mais eminentes pensadores mundiais, há os defensores da contingência humana. Para eles, esta particularidade é o que, de fato, define o “ser” humano. Querer inverter esta ordem, então, seria subverter um processo que deveria – para estes pensadores – ocorrer de forma natural. O principal dos eventuais problemas seria uma nova forma de eugenia³, já abordado aqui no (En)Cena.

Peter Singer, por exemplo, defende que a busca desenfreada pelo conhecimento apriorístico – o que os teólogos dizem ser possível apenas a Deus – é, em alguma medida, uma expressão patológica; essa busca, no fundo, renega as imperfeições humanas, transformando a condição diferente “cada vez menos tolerada e suscetível de ser aceita como uma variação normal da humanidade”. Mas Anders Sandberg, ao contrário, não acredita que o avanço tecnológico e o transumanismo resultem em “uniformização” e/ou acentuação de divisões sociais. Para o pesquisador inglês, “um futuro superinteligente conteria diversidade mental”.

De acordo com Sandberg, a extensão da vida com a ajuda de tecnologias “é moral e pragmaticamente importante”. Ele argumenta que o processo irá alterar sobremaneira a sociedade, “mas vai levar um bom tempo para as experiências de laboratório passar a ser utilizadas em terapias de fato”. De qualquer forma, se comparadas às mudanças que ocorrem de maneira “natural”, quando houver a consolidação das IAGs, estas transformações passarão a acontecer numa velocidade estrondosa.

Mas o próprio Sandberg admite, também, que o mundo (Physis4) demonstra constantemente que “tem mais poder computacional do que nossos cérebros – segue que nós devemos esperar surpresas”, para explicar que, apesar de defender uma emulação do cérebro por softwares, esse “melhoramento” pode enfrentar barreiras na contingência geral expressa na vida. Esse é, portanto, um desafio a ser superado num futuro muito distante.

Em suma, há em toda esta discussão levantada tanto pelo filme quanto por filósofos e pesquisadores (como os do Departamento de Filosofia da Universidade de Oxford), uma tentativa de que o “contínumm mental” (o que alguns, sobretudo influenciados pelo Cristianismo, vão chamar de alma) não fique à mercê apenas de especulações metafísicas. Procura-se, no fundo, criar mecanismos tecnológicos para que se possa preservar indefinidamente tais estruturas (mentais). O objetivo é ambicioso e ainda conta com muitas incertezas. Afinal, como já apontava Michel de Montaigne, é “muita arrogância o homem querer apossar-se irrestritamente dos atributos da criação”. De verdadeiro, no momento, só há o fato de que a vida é bem mais dinâmica e imprevisível do que se possa imaginar, e que a morte, essa sim, é ainda uma certeza absoluta.

Notas:

¹- IAG significa Inteligência Artificial Generalizada; trata-se de inteligências que podem dar conta e solucionar uma ampla gama de problemas variados, e que possuem um desempenho semelhante ou superior ao humano nessas tarefas.

²- Transumanismo

³ – Galton definiu eugenia como “o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou mentalmente”. Fonte: Wikipédia – disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Eugenia acesso em 23/03/2014.

4– Physis, segundo os filósofos pré-socráticos, é a matéria que é fundamento eterno de todas as coisas e confere unidade e permanência ao Universo, o qual, na sua aparência é múltiplo, mutável e transitório. Fonte: Dicionário de Filosofia. MORA, José Ferrater – São Paulo: Martins Fontes, 2001.

REFERÊNCIAS:

SINGER, Peter. Fazendo compras no supermercado genético. Disponível emhttp://moodle2.catolicavirtual.br/mod/url/view.php?id=553145  [com senha]. Acesso em 29/08/2013.

MONTAIGNE, Michel de. Ensaios – Livro II – Montaigne (Disponível emhttp://moodle2.catolicavirtual.br/mod/resource/view.php?id=554550  [com senha]. Acesso em 21/08/2013.

ROBOCOP. Disponível em http://www.cinemais.com.br/filmes/filme.php?cf=5371 – Acessado em 23/03/2014.

Prospectos da pós-humanidade: entrevista com Anders Sandberg. Revista Filosofia Ciência & Vida, Ano VII, número 90, janeiro de 2014, páginas 5 a 13.

FICHA TÉCNICA:

ROBOCOB

Elenco: Gary Oldman, Michael Keaton, Abbie Cornish, Jay Baruchel, Joel Kinnaman, Samuel L. Jackson
Direção: José Padilha;
Duração: 108 minutos
Classificação:  12
Gênero: Ação Drama Ficção Científica Policial
País: Estados Unidos da América

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