“Olá, adeus e tudo mais” reflete as relações líquidas da pós-modernidade

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A dinâmica dos casais na era pós-moderna e o peso da cultura tradicional sobre as mulheres.

O filme “Olá, adeus e tudo mais”, desenvolvido por Michael Lewen em 2022, explora temáticas contemporâneas sobre relacionamentos juvenis e o impacto de transições significativas na vida dos jovens adultos. A obra cinematográfica, que se caracteriza no gênero de drama e romance adolescente, aborda de forma ampla sobre as complexidades emocionais que envolvem o término de um relacionamento às vésperas de grandes mudanças, como a transição para a faculdade. A trama apresenta uma jornada de autoconhecimento e reflete sobre os modos como as escolhas individuais afetam não só as relações interpessoais, mas também a própria construção identitária.

A narrativa do filme centraliza-se na história de Clare (Talia Ryder) e Aidan (Jordan Fisher), um jovem casal que possui um acordo para se separarem antes de iniciar a vida universitária. Esse acordo, no entanto, gera questionamentos e incertezas sobre os reais sentimentos de ambos e a viabilidade de manter um vínculo, mesmo diante da separação física. O filme se passa ao longo de uma última noite dos dois juntos, onde os personagens revisitam marcos importantes de seu relacionamento e buscam encerrar a relação de forma amigável.

O filme “Olá, adeus e tudo mais” pode ser interpretado como uma alusão das transições que marcam o fim da adolescência e o início da vida adulta. Essas transições são frequentemente acompanhadas por um sentimento de perda e de incerteza, à medida que os jovens se distanciam das estruturas familiares e sociais que antes definiam suas identidades (Mota e Matos, 2008). A separação de Clare e Aidan não é apenas o término de um relacionamento amoroso, simboliza também o término de uma fase da vida, onde as decisões não são mais mediadas pelas expectativas externas, mas pela construção de uma autonomia.

Fonte: imagem criada por Sarah Coelho utilizando elementos do Canva

“Olá, adeus e tudo mais”, nos dá uma oportunidade para refletirmos sobre os relacionamentos na era pós-moderna, especialmente em relação às transformações socioculturais que questionam os paradigmas tradicionais. A partir da história de Clare e Aidan, o filme nos convida a refletir sobre as mudanças nas expectativas em relação ao amor, à intimidade e à individualidade em um contexto em que a liquidez das relações e a fragmentação das identidades são características centrais (Bauman, 2014). A protagonista Clare, em particular, personifica muitos dos dilemas vividos por indivíduos na contemporaneidade, expressando de maneira clara um medo de fracasso associado ao seguimento dos padrões sociais do passado.

Na era pós-moderna, conforme argumenta Zygmunt Bauman (2004), as relações interpessoais tornaram-se “líquidas”, ou seja, menos fixas e mais fluídas, caracterizadas pela ausência de compromissos permanentes. Isso contrasta diretamente com os valores de antes, onde as relações eram vistas como duradouras e baseadas em compromissos rígidos, como o casamento e a monogamia estável. No filme, Clare, ao decidir terminar o relacionamento com Aidan antes de ir para a faculdade, exemplifica esse desejo de liberdade e autonomia que é tão característico dos relacionamentos pós-modernos.

A questão do medo do fracasso é um tema central na trajetória de Clare. Ela expressa medo em relação ao futuro e à possibilidade de que, ao tentar manter o relacionamento com Aidan, acabaria comprometendo sua liberdade pessoal e seu desenvolvimento individual. Este medo é exacerbado pela percepção de que os modelos tradicionais de relacionamentos, especialmente aqueles que envolvem sacrifício e compromisso a longo prazo, são incompatíveis com as demandas da vida contemporânea da protagonista, no qual é marcada por mudanças constantes e por uma maior ênfase na realização pessoal. Na era pós-moderna, o sucesso não é mais medido pela capacidade de manter uma relação duradoura, mas pelas possibilidades de transitar pelas mudanças sem perder a autonomia ou comprometer os projetos individuais.

A postura de Clare pode ser interpretada como uma crítica implícita aos padrões sociais de antigamente, que colocavam as mulheres em papéis de subordinação e sacrifício dentro das relações amorosas (Dias, 2004). Durante muito tempo, as expectativas sociais sobre as mulheres estavam ligadas à ideia de que o sucesso feminino era alcançado através do casamento e da maternidade (Zanello, 2022). Na era moderna, as mulheres eram socializadas para aceitar a ideia de que o compromisso amoroso era uma responsabilidade central de suas vidas, muitas vezes em detrimento de suas próprias ambições profissionais e pessoais (Zanello, 2022). Clare, no entanto, se afastada dessa ideia ao expressar seu desejo de se concentrar em seu futuro acadêmico e pessoal, sem que o relacionamento a defina ou limite suas possibilidades.

Esse medo de fracasso, associado ao não cumprimento das expectativas tradicionais, pode ser analisado na percepção das teorias feministas contemporâneas, que questionam a imposição de papéis rígidos de gênero nas mulheres. As autoras como Simone de Beauvoir e Judith Butler argumentam que o feminino foi historicamente construído em torno de expectativas sociais que limitam a agência das mulheres, colocando-as em posições de dependência emocional e econômica em relação aos homens (Beauvouir, 2014). No filme, Clare parece consciente de que manter um relacionamento a longo prazo poderia significar uma perda de sua independência recém-conquistada, e seu medo de fracasso está profundamente enraizado na ideia de que seguir os padrões de antigamente seria abdicar de seu direito de traçar seu próprio caminho.

Outro aspecto importante a ser considerado é a maneira como Clare se posiciona diante do amor romântico. O amor, que na era moderna era concebido como um ideal a ser alcançado e mantido a qualquer custo, na era pós-moderna assume uma forma mais flexível e menos central na vida dos indivíduos (Zanello, 2022). Para Clare, o término do relacionamento não é necessariamente um fracasso, mas uma escolha racional de não seguir o caminho tradicional que poderia limitar suas opções futuras. Isso exemplifica o que Giddens (2003), em sua teoria sobre a transformação da intimidade, chama de “relações puras”, que são baseadas no reconhecimento mútuo da individualidade e no desejo de que a relação funcione enquanto for satisfatória para ambos.

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2004. 

BAUMAN, Zygmunt. Cegueira moral. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2014.

DE BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Nova Fronteira, 2014.

DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre a mulher e seus direitos. Livraria do Advogado Editora, 2004.

GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. Unesp, 2003.

MOTA, Catarina Pinheiro; MATOS, Paula Mena. Adolescência e institucionalização numa perspectiva de vinculação. Psicologia & Sociedade, v. 20, p. 367-377, 2008.

ZANELLO, Valeska. A prateleira do amor: sobre mulheres, homens e relações. Editora Appris, 2022.

 

 

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A pós-modernidade e seus impactos na saúde mental

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A transição da modernidade para a pós-modernidade vem sendo uma temática bastante estudada e debatida no âmbito da Sociologia, Filosofia, Psicologia e outras áreas do conhecimento. Esses estudos surgem a partir da perspectiva de compreender o ponto de vista individual e coletivo e as transformações que ocorrem na sociedade.

A pós-modernidade é o nome denominado para o momento histórico que estamos vivendo, tempos de ruptura de fatos socioculturais da modernidade e do surgimento de novos, assim, a modernidade e a pós-modernidade se complementam e se contrapõem. Conforme apresenta Goergen (1997, p.63 apud Gatti, 2005, p. 602), “modernidade e pós-modernidade não se encontram numa relação de superação de uma pela outra, mas numa relação dialética”.

A juventude que passa por esse momento de transição afeta e é afetada por esse novo cenário, cada indivíduo é responsável pelo seu próprio progresso através de maneiras imediatistas. Nesse contexto, surge o “neo-individualismo” pós-moderno, no qual o sujeito vive sem projetos, sem ideais, a não ser cultuar sua autoimagem e buscar satisfação aqui e agora, “admirando-se a si mesmo e amando-se perdido na multidão” (GOMES; CASAGRANDE, 2002, p. 698).

Ainda nesta mesma perspectiva Gomes e Casagrande (2002), apontam que essa transição que os jovens estão passando se dá por circunstâncias pós-modernas de um mundo com pouca segurança psicológica, econômica e intelectual, sendo esse, um dos pontos negativos desta nova era, pois o mundo moderno é um lugar de certeza e ordem.

Fonte: Imagem por rawpixel.com no Freepik

Estamos em um tempo de desvalorização da cultura, novos valores estão se formando enquanto ocorre a desconstrução de valores construídos até então, e algumas dessas mudanças podem ser consideradas desfavoráveis, como por exemplo, o individualismo. Um indivíduo voltado para si próprio poderá ter problemas pessoais e grupais, considerando que a sociedade é multicultural, que considera valores, história, e além disso, vivemos em constante socialização para manutenção da sobrevivência.

Existe uma preocupação acerca da influência do individualismo que está relacionada a perda de laços sociais que acompanha a desconstrução de formas de relacionamentos e as possibilidades de diálogos fruto da redução das identidades sociais e culturais. Por outro lado, a pós-modernidade limita as chances de reconstrução desses laços que foram afetados no decorrer do tempo.

Conforme Lacaz (2001), essas novas características favorecem o capitalismo, pois os pós-modernistas compactuam com a forma de convívio social e modelo político-econômico, e o capitalismo traz uma ilusão de pluralidade, quando na verdade ele procura padronizar e homogeneizar. Lacaz ainda salienta que é importante estudar e ter conhecimento da realidade para o enfrentamento do capitalismo hodierno.

Outro ponto que se originou através do capitalismo e que perpetua no período pós-moderno é o consumo excessivo. Para Santos (2002), nos tempos atuais está havendo a sedimentação de um sistema econômico que afeta a todos e permeia as relações humanas. Pois, o modo como vem sendo cultivado e estabelecido o consumo acaba criando falsas necessidades que alimentam o desejo do indivíduo alienado na busca pelo objeto do consumo. Dessa maneira, todas as vezes que os desejos alienados de consumo forem satisfeitos, logo serão substituídos por outros em razão da frequência incessante do consumismo.

Fonte: Imagem no Freepik

Pode-se notar que a lógica dessa busca pela felicidade imediata não consiste apenas nas relações de consumo, como também nas relações sociais, onde o outro é influenciado cada vez adquirir o aspecto de um objeto também de consumo. Portanto, percebe-se que a felicidade se encontra num produto de consumo, que rapidamente é substituída por outro.

Freud (1930/1974), em sua obra “O mal-estar na civilização” destaca a busca das pessoas pela felicidade, relacionando com o princípio do prazer:

O que chamamos de felicidade no sentido mais restrito provém da satisfação (de preferência, repentina) de necessidades represadas em alto grau, sendo, por sua natureza, possível apenas como uma manifestação episódica. Quando qualquer situação desejada pelo princípio do prazer se prolonga, ela produz tão-somente um sentimento de contentamento muito tênue (FREUD, 1930/1974, p.95).

Nessa passagem, Freud (1930/1974) afirma que a felicidade é de caráter temporário e que esta satisfação se prolonga, sendo mais flexível.

Fonte: Imagem no storyset no Freepik

A pós-modernidade não se resume nas subjetividades e nas relações sociais e políticas, mas, em igual medida, interpõe no modo de vida que interfere diretamente nas dinâmicas culturais, criando um problema que aparentemente é de ordem individual que acomete, sobretudo, os jovens contemporâneos. É preciso pensar, pois, nas gerações futuras, amplamente impactadas por um modo de vida que, de acordo com Bauman (2007), Birman (2013) e Freire Costa (2004), afirmou a autoviolência e a vertigem existencial – falta de perspectiva no futuro – como aspectos aceitáveis.

A saúde mental diante a pós-modernidade é afetada diretamente, pois os sujeitos tendem a ser mais individuais, egocêntricos e movidos por relações de poder, que de alguma maneira traga benefícios para si próprio. Por outro lado, o avanço da tecnologia ganha cada vez mais espaço, com isso as pessoas se aproximam sucessivamente desse movimento que a partir disso surgem as reflexões sobre o desenvolvimento do ser humano e os impactos que isso causam no bem-estar dos usuários.

A pós-modernidade está voltada para a tecnologia e para o presenteísmo, as pessoas têm tido uma necessidade de estar bem o tempo todo, produzindo e consumindo, mas a produção da saúde mental não acompanha esse ritmo a qual a sociedade vem se submetendo. A característica da tecnologia em saúde mental é peculiar, pois ao se cuidar do ser humano, não é possível generalizar condutas, mas sim adaptá-las às mais diversas situações, a fim de oferecer cuidado singular (GONÇALVES, 2009, p. 179).

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmund. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

BIRMAN, Joel. Novas formas de subjetivações. In: CPFL CULTURA – INVENÇÃO DO CONTEMPORÂNEO. Campinas-SP: CPFL, 2013. Disponível em: Acesso em: 22 mai. 2016.

FREUD.S. O mal-estar na civilização (1930). In:_______. Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. XXI, p. 37-171. Edição Standard Brasileira.

GATTI, BERNARDETE A. Pesquisa, educação e pós-modernidade: confrontos e dilemas. Cadernos de Pesquisa, [S. l.], v. 35, p. 595 – 608, 1 dez. 2005.

GONÇALES, Cintia Adriana Vieira. Cotidiano de atenção à pessoa com depressão na pós-modernidade: uma cartografia. 2010. Tese de doutorado (Enfermagem) – Aluna, [S. l.], 2009. DOI 10.11606. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/7/7136/tde-11012010-123208/en.php. Acesso em: 25 nov. 2021.

LACAZ, Francisco Antônio de Castro. O sujeito n(d)a saúde coletiva e pós-modernismo. 2001. [S. l.], 2001. DOI https://doi.org/10.1590/S1413-81232001000100019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/YpbcLDxHVmYxsfXmTLV3YQv/?lang=pt. Acesso em: 25 nov. 2021.

SANTOS, L. A. R. dos. Psicanálise e educação: um olhar sobre a criança-consumidora e a escola nos dias atuais. Pulsional Revista de Psicanálise, v. 15, n. 155, p. 74-76, mar. 2002.

SOUSA, Sonielson. L.; MIRANDA, Cynthia Mara. Pós-modernidade e vertigem existencial entre jovens. Revista Humanidades e Inovação v.5, n. 4 – 2018.

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O Ressentimento é sempre do Outro?

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A Era do Ressentimento: Uma Agenda para o Contemporâneo, do filósofo e psicanalista Luiz Felipe Pondé, através da palestra organizada pelo Psicologia em debate, em uma exposição claramente proferida pelo acadêmico em Psicologia Lenicio Nascimento, no dia 08/03/2017, deixou todos os presentes já de início reflexivos, ao questionar: “Você é uma pessoa ressentida?”.

Penso que nesse momento, todos se voltaram para seus próprios pensamentos, e se deixaram refletir acerca desse tema, que coloca em xeque, um sentimento tão forte e negativo, quanto o ressentimento. Sabe por quê? Acredito que talvez seja, por pensarmos que o outro seja um ressentido, porém nós não somos. Nesse sentido, o autor coloca de maneira expressiva sua visão desse homem que age pelo ressentimento, sequer questionando sua verdadeira essência, entre o ter e o ser.

Fonte: http://zip.net/bctGbv
Fonte: http://zip.net/bctGbv

Nesse diálogo contemporâneo da Psicologia com a Filosofia, o autor segue apontando críticas pertinentes aos relacionamentos sociais, em que as pessoas estão preocupadas muito mais com a quantidade de “curtidas” nas redes sociais, que mostram em tempo real tudo o que elas desejam que vejam; tendo assim seus segundos de fama. Para o autor, vivemos a era do ressentimento, perdemos tempo vivendo pela exteriorização, individualismo onde “eu me basto”, um consumismo exacerbado; e constantemente correndo atrás de uma singularidade, assim buscando um reconhecimento dessa imagem que criou; imagem que não corresponde ao seu eu real; fora a isso, essa geração vive a solidão e o adoecimento com as psicopatologias, que nasce desse descompasso em não olhar para nosso interior, como somos de verdade.

Para o autor, a palavra ressentimento carrega um teor negativo; porém acredita que o primeiro passo é se perceber como sendo um ressentido, aceitando e assim buscar uma mudança que poderá trazer um crescimento pessoal. No desespero, a auto superação será a única e viável saída para uma cura e melhora interior.

Fonte: http://zip.net/bxtG7B
Fonte: http://zip.net/bxtG7B

O filósofo, apontando várias nuances dos relacionamentos superficiais, dos casais modernos que não desejam ter filhos; a secularização do papel da mulher na qual ela vive em busca de uma autonomia frente à sociedade, que nos permite perceber essa mulher correndo em busca de uma realização superficial; em que a perfeição do corpo surge como uma feminilidade vazia e inútil. Nesse ponto, possibilitamos entender a preocupação que o autor demonstra frente às demandas que nosso tempo se apresenta.

Portanto, para fugir disso, o autor sinaliza para que sejamos extra contemporâneos; seria basicamente lutar contra essa onda de ter mais do que ser; em um movimento socrático de levar o individuo a sair de dentro para fora. E, principalmente não colocar a culpa do seu ressentimento no outro, procurar a verdade, o sentido da vida.

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As influências midiáticas sobre a aparência e o corpo feminino

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O presente ensaio visa retratar as mudanças na configuração do corpo ao longo dos tempos, resultando no ideal de corpo midiático. Este rompeu com barreiras, tabus e repressões, e posteriormente passou a ser cultuado, desejado, concomitantemente sinônimo de bem estar e saúde. Tendo como fonte inspiradora a mulher, formula que permite construir e reconstruir o novo, a moda, a ostentação, a beleza dentro de um contexto mundialmente copiado, a busca constante corpo imaginário.

Essa amostra, parte do Livro Corpos Mutantes, o qual analisa o corpo canônico, ou seja, corpo modelado, sendo resultado de uma busca desenfreada nas academias de ginástica, modificado, adaptado a realidade vigente, fugindo do tradicional, do básico, sendo molde pra mais diversas faixas etárias, promovendo e estruturando um modelo comum, para o fabricado. Visto que, a mídia se utiliza do investimento no corpo, para vender imagens de mulheres, produtos, cosméticos e cirurgias plásticas. De acordo com Fontes (2004):

Publicizado exaustivamente nos meios de comunicação de massa e tido como desejável e sinônimo de beleza, saúde e bem estar, o corpo canônico é, em essência, resultado de um conjunto de investimentos em práticas, modos e artifícios que visam alterar as configurações anatômicas e estéticas (FONTES, 2004, p. 73).

O que contrapõe a este corpo canônico passa a ser dissonante, o modelo estruturado pela comunicação de massa como ideal, demonstrado repetidas vezes pela mídia, em determinados grupos principalmente os que buscam uma vida alternativa, estão em contramão a este conceito, foge a essa realidade, para tanto, estão em desacordo ao modelo estabelecido. As mulheres diferentes fogem a essa regra, tido como corpo dissonante, ou seja, não estão inseridas a este modelo contemporâneo, ocasionando frustrações por não alcançar o desejado, ou estipulado por uma corporeidade canônica.

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Fonte: http://www.coisasdegraziella.com/2014_11_01_archive.html

As trajetórias do corpo na contemporaneidade e as influências midiáticas sobre o corpo feminino

O corpo passou por diversas configurações no decorrer do tempo, tempo este, que expressa seus valores de muitas formas, e o formato do corpo é uma delas, pois cada país, cada cultura, região apresenta o que estimam e, constroem-se padrões de belezas que vão mudando assim como determina o contexto. Na Idade Média, prevalecia o domínio da igreja católica, muitos atos eram tidos como pecados, alguns até mortais. Neste contexto o corpo, em especial da mulher, era tido como sagrado e, até a higiene era considerados imorais e impuros, e tanto o corpo das mulheres quanto o dos homens eram totalmente coberto (DAMBROS; CORTE; JAEGER, 2008).

A esse respeito, Foucault (1988) analisa que, no espaço social a sexualidade só era reconhecida dentro do âmbito familiar, como forma de reprodução, dessa forma, o decoro das atitudes escondia os corpos e higienizava os discursos. O sexo e desse modo, o corpo, sofriam repressões. Fontes (2006) retrata as mudanças ao longo do século XX, pelas quais o corpo passa, sendo estas:

O corpo representado, visto e descrito pelo olhar do outro, da igreja, do estado, do artista; o corpo representante, um corpo ativo, autônomo quanto às suas práticas, consciente do seu poder político e revolucionário, porta voz do discurso de uma geração, contestador, sujeito desse próprio discurso e agente propositor e defensor de reformas que vão da sexualidade à política (FONTES, 2006, p. 7).

Posteriormente, vivenciamos o que Fontes (2006) descreve como o corpo apresentador de si mesmo, ou seja, o corpo canônico, o qual deriva-se de uma cultura pautada pelo efêmero e pelo imediato, perpassado por cirurgias plásticas e implantes de substâncias químicas “que busca incessantemente apagar da pele as marcas biológicas do tempo, ao mesmo tempo inscrever na forma física os sinais da corpolatria. Este corpo é, em si mesmo, o próprio espetáculo” (FONTES, 2006, p. 7.)

Nessa direção, Freire Costa (2005), ao traçar o corpo na sociedade contemporânea, destaca que o mito cientificista ocupou um espaço moral na vida dos sujeitos, pois, se antes, o cuidado de si era voltado para os sentimentos, alma e longevidade, na contemporaneidade, vivenciamos um novo modelo de identidade: a bioidentidade, sendo esta a valorização do corpo saudável, belo e jovem, e para chegar aos resultados esperados utiliza-se da bioascese, ou seja, a disciplina, uma vez que “ser jovem, saudável, longevo e atento à forma física tornou-se a regra científica que aprova ou condena outras aspirações à felicidade” (FREIRE COSTA, 2005, p. 190).

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Fonte:http://www.blogdaje.com/page/11/

Indubitavelmente, o lugar do corpo se modificou, pois, antes esse era tido como matéria bruta, ou seja, um meio para se atingir um ideal, era garantia de saúde para buscar aspirações sentimentais, porém, o prazer sensorial hoje é buscado como antes se buscava valores sentimentais, passando a fazer parte da subjetivação, entretanto, Freire Costa (2004) nos alerta que “diferentemente do prazer sentimental, que pode durar na ausência dos estímulos sensórios-motores, o prazer sensorial depende do estímulo físico imediato e da presença do objeto fonte da estimulação” (p. 6), sendo assim, o individuo precisa buscar nos objetos sua fonte constante de prazer, uma vez que, o corpo tem suas limitações biológicas. (FREIRE COSTA, 2004)

Assim, o sujeito passa cada vez mais a investir nos objetos de consumo, como forma de obter satisfação pessoal e deixa de investir em bens comuns. O corpo ideal é produzido pelos meios de comunicação de massa, torna-se um simulacro, propagado pela mídia, a qual se aproveita do individualismo vigente para vender os produtos e fabricar os corpos desejados. Freire Costa (2005) chama essa sociedade pautada no corpo de “sociedade somática”, a qual hiperinveste afetivamente na imagem corporal e a coloca no mesmo patamar que os atributos sentimentais. Nas palavras do autor:

O narcisista cuida apenas de si, porque aprendeu a acreditar que a felicidade é sinônima de satisfação sensorial. Assim, o sujeito da moral hodierna teria se tornado indiferente a compromissos com os outros -faceta narcisista- e a projetos pessoais duradouros- faceta hedonista (FREIRE COSTA, 2005, p. 186).

Desse modo, o corpo passa a ser lugar de destaque na vida dos sujeitos. E a publicidade se utiliza disso, tornando o corpo por vezes, como um produto a ser vendido, e por vezes também ligado a um ato político.

Fontes (2006) argumenta que, nas primeiras décadas do século, o corpo foi reprimido, após, observa-se que o corpo reivindica o próprio espaço de apresentação, sobretudo nas décadas do pós-guerra, na qual se transforma em bandeira de luta, de quebra de tabus e de discurso político. Enquanto que nos anos 90, o corpo toma outra configuração e pode ser definido com o corpo que representa, o corpo representante. O avanço médico e cientifico contribuiu para o descortinamento do corpo, e a mídia instituiu seus discursos sobre o corpo canônico, sobretudo, no corpo feminino.

Muitas épocas foram marcadas por formatos de belezas midiáticos que jamais deixarão a historia, como a beleza estonteante Marilyn Monroe, mulher de seios fartos com cintura de “pilão” que era o próprio padrão de beleza da época. E assim décadas foram passando com seus padrões de belezas estabelecidos conforme determinava momento. No entanto o ano de 1980, Arnold Schwarzenegger, entra no circuito para deixar um modelo de físico que perpetuaria durante décadas, pois foi depois dos concursos que o mesmo ganhou de fisiculturista por seis vezes consecutivas que o seu corpo tornou-se um modelo a ser seguido.

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Fonte: http://seuhistory.com/etiquetas/marilyn-monro

Observa-se assim, que os discursos médicos sobre boa forma aliada a sinônimo de saúde (é preciso ter baixas taxas de glicose e colesterol, se alimentar corretamente, etc.) ultrapassaram o âmbito da saúde e passaram a possuir uma denotação estética, pois hoje, o sujeito não vai a academias para ser saudável, mais que isso: este deseja ter o corpo da moda. Além disso, o imediatismo e hedonismo fazem com que o sujeito queira práticas rápidas, por isso, as intervenções cirúrgicas ganharam destaques. A corporeidade canônica é caracterizada, então:

Como aquela que recorre à adoção voluntária de um conjunto de práticas, técnicas, métodos e hábitos que têm como firme propósito (re)configurar o corpo biológico, transformando-o em um corpo potencializado em seus aspectos estéticos e em suas formas de gênero: grosso modo, homens musculosos e mulheres de seios voluptuosos e curvas definidas (FONTES, 2006, p. 10).

A publicidade em muito contribui para isso, na medida em que se utiliza da figura de mulheres famosas, com seus corpos malhados, peles perfeitas, cabelos sedosos e sorrisos radiantes, para apresentar um produto.

Sobre isso, Debord (1997) elucida que “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”, nesse sentido, temos as redes sociais, como o instagram no qual imagens são postadas para gerir o espetáculo, não havendo mais a distinção entre a vida pública e privada, porém, o que vemos é o que o espetáculo tem se convertido no real.  Desse modo, o sujeito não apenas almeja apenas ter o corpo de tal famosa, mas anseia também por ser tão feliz quanto essa aparenta ser.

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Fotos: http://geralcodigos.blogspot.com.br/

Para Lipovetsky (2000) apud Samarão (2007)  Ao longo do século XX a publicidade passou a ter muita influencia sobre as mulheres generalizou a “paixão” pela moda, favoreceu a expansão social dos produtos de beleza, contribuiu para fazer da aparência uma dimensão essencial da identidade feminina para o maior número de mulheres. Samarão (2007) analisa que isso levou a propagação de normas e imagens ideais do feminino, submetendo as mulheres à ditadura do consumo e inferiorizarão da mulher “ora intensificando as angústias da idade, ora reforçando os estereótipos de mulher frívola e superficial” (SAMARÃO, 2007, p. 7).

Desse modo, quem foge desse discurso midiático e publicizado sobre o corpo, é tido como dissonante, sendo este visto como corpo in-válido, ou seja, aquele que não adere aos artifícios de adequação da aparência, não segue os padrões reproduzidos pelas redes sociais ou televisão, este é visto com estranhamento e até mesmo de repulsa (FONTES, 2006). O corpo passou por diversas transformações, todas elas influenciadas pelo contexto político e histórico de uma época, sendo que, na atualidade, a mídia e publicidade têm tido poder sobre o corpo, principalmente no que concerne ao corpo feminino. Diante disso, caberia nos perguntar, será que somos mesmo donos do nosso corpo?

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Fonte: http://meubatomnaoechanel.blogspot.com.br/2012_10_01_archive.html

 No que tange o corpo feminino, este é palco de discussões até mesmo no âmbito de saúde pública, uma vez que, as mulheres não possuem o direito sobre o aborto, e para as feministas, a mulher deveria ser dona do seu próprio corpo. Na contemporaneidade, tem-se influencia do hedonismo e narcisismo, o que leva os indivíduos a hiperinvestirem no corpo, deixando de lado os valores duráveis e de bem comum.

A publicidade assim, tem se beneficiado na medida em que, se utiliza de imagens de mulheres bonitas e padronizadas para vender seus produtos. Por fim, vemos que o sujeito na contemporaneidade, tem recorrido a intervenções cirúrgicas, acreditando que dessa forma, irá alcançar a felicidade, porém, o que vemos é que isso é um simulacro, é a inversão do real, pois, o sujeito não tem consciência das reais motivações que talvez o faça buscar em um bisturi, uma forma de cicatrizar seu ego fragilizado.

REFERÊNCIAS

DAMBROS; CORTE; JAEGER. O corpo na Idade Média. Revista Ef de Portes, Ano 13 , N° 121, Buenos Aires, 2008. Disponível em: http://www.efdeportes.com/efd121/o-corpo-na-idade-media.htm. Acesso em: 06 de setembro de 2016.

 

DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Ed. Contraponto. Rio de Janeiro, 1997.

FREIRE- COSTA. Perspectivas da juventude na sociedade de mercado. In: NOVAES, R;VANUCHI, P. (orgs). Juventude e sociedade: trabalho, educação, cultura e participação.São Paulo, Perseu Abramo, 2004.

 

______________O vestígio e a Aura: Corpo e consumo na moral do espetáculo. E. Garamond. Rio de Janeiro, 2005.

 

FONTES, M. Os Percursos do Corpo na Cultura Contemporânea. XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – UnB, Brasília, 2006 .

 

FOUCAULT, M. História da Sexualidade. A vontade de saber. Ed. Graal. Rio de Janeiro, 1988.

 

SAMARÃO, L. O espetáculo da publicidade: a representação do corpo feminino na mídia. Revista Contemporânea. v. 5. n. 1, 2007. Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/contemporanea/article/view/17200/12633 Acesso em: 08 de setembro de 2016.

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Corpo Cyborg e o dispositivo das novas tecnologias

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A cultura é o que define a forma como age um determinado grupo de pessoas. Ao nascermos, temos nosso corpo biológico como mediador do contato com o que é externo e que, por sua vez, faz relação com o mundo privado. Os padrões a serem seguidos estão em constante mutação, mesmo aqueles ditos como normatizados e hegemônicos, devido ao intenso processo de evolução social em áreas como a política, economia, ciências humanas e o advento da tecnologia avançada. Desta forma, se faz presente um dinâmico processo de releitura das estruturas basilares nas quais se assenta o Modus Operandi de nós seres humanos que, outrora sólidas, passam por reajustes os quais alteram nossa percepção da realidade e nos conduz aos desafios do mundo contemporâneo.

Dentro desta proposta, Lima (2009), traz conceitos como os de hipertexto, adaptação tecnológica do corpo, cibernética, nanotecnologia, ciberespaço e o impacto direto dos dispositivos tecnológicos sobre nossa subjetividade e a ideia do que vem a ser inerente, exclusivamente, à condição humana. Na perca progressiva do concreto, oriunda do atual mundo cibercontextualizado, nós, enquanto indivíduos, inconscientemente, acabamos optando por um superinvestimento do único objeto que realmente temos de concreto: o corpo.

Sobre isso, Quevedo (2003) aponta que a mente dissociou-se do corpo que, a partir de então, passou a não ser mais regido pela vontade do próprio indivíduo, mas sim pela mídia, assentado na visão mercadológica por meio da qual os meios de comunicação e controle em massa se utilizam para passar suas mensagens, padrões inatingíveis os quais vem em forma de cápsulas, cremes, e toda uma extensa linha de produtos e aparatos que prometem um resultado que se adeque aos ideais de saúde e beleza regentes. O avanço tecnológico e sua contribuição para as ciências naturais, humanas e exatas configura um ápice do progresso intelectual da humanidade vigente que contribuiu para a transição da noção de sociedade de produção para a de consumo.

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Fonte: http://www.sexenio.com.mx/nuevoleon/articulo.php?id=9196

Esses fatores remodelaram a forma como o homem da modernidade lida com sua autoimagem, saúde e bem estar. A organização mundial da saúde (OMS), ao expandir o conceito de saúde para além da ausência de doença, aponta para áreas do campo humano até então não muito exploradas. Com o surgimento da psicologia moderna, a ideia do ser biopsicossocial veio apontar para a saúde como fruto de um tríplice aspecto do social, biológico e psicológico. Somados aos imperativos da modernidade líquida, conceito trazido por Bauman (2003), tais fatores colocam o corpo como protagonista do espetáculo moderno. Um roteiro no qual nossa máquina biológica é a nossa principal fonte de prazer e frustração, expectativa e consumo, abuso e salvação à mercê de um mundo moderno onde reina o individualismo, imediatismo e competitividade.

Em meio a este grande cenário, a ideia de corpo ciborgue nasce e ganha força desmedida, sendo este, um mero produto de um contexto maior, que é esta cultura ciborgue. Sobre o corpo na modernidade, Bucci e Kehl afirmam que:

Na modalidade de concorrência predatória, sociedades capitalistas dominadas pela indústria da comunicação e da imagem, são mais opressivas do que a que explorava a força braçal, o esforço, a dedicação ou a competência dos trabalhadores. A sexualidade juntamente com a beleza (reduzida a um simples material de signos que se intercambia) é que orienta hoje por toda a parte a redescoberta e o consumo do corpo. No corpo erotizado o que predomina é a função de permuta. (BUCCI; KEHL, 2004, p. 172).

Ou seja, trazendo o corpo para o contexto de uma máquina utilizada segundo nossas necessidades, este perpassou tempos históricos nos quais foi instrumento de construção, desde a arquitetura e aspectos físicos objetivos até os morais. Porém, agora nesta era pós-moderna, perde seu protagonismo e se transforma num expectador passível o qual desfruta dos avanços da tecnologia, período histórico que serve de bojo para os conceitos emergentes da cultura cyborgue.

Lima (2009) cita três abalos fronteiriços trazidos por Dona Haraway, que serviram de pano de fundo para o surgimento do “personagem” ciborgue. As fronteiras entre humano/animal, orgânico/maquínico e o físico/não-físico. Ambos os autores apontam como sendo ciborgue toda e qualquer pessoa que tenha em si a junção do orgânico com o maquínico. Porém, deixa claro que esta visão não se restringe apenas a acoplação/inserção de estruturas artificiais ao corpo biológico, mas desde isto até o usufruto de qualquer tipo de recursos oferecidos para mudar, alterar o funcionamento normal do organismo, seja para manutenção da saúde ou por meros fins estéticos. Desta forma, se pode afirmar que boa parte da população moderna é um ciborgue:

As diferentes formas de se modificar e se marcar fazem com que os corpos humanos estejam em constante transformação e manipulação: as marcas com fogo, as penetrações (do piercing às tatoos), as escarificações e implantes metamorfoseiam o corpo em pergaminho ou objeto de arte. (MUSSÉS DE MARSEILLE, 1994 apud MACHADO, 2011).

O corpo, como modo de linguagem, expressão e subjetividade, ganha variadas tônicas e, assim como todos os outros aspectos inerentes ao ser humano, é um processo. O processo de construção dos quesitos que correspondem ao que é ser ser humano: linguagem, costumes, moral, ética, crenças e religiosidade. Tais aspectos se encontram, na contemporaneidade, plásticos e os mesmos se extravasam devido à diminuição das fronteiras, consequentemente causada pela cibernética e o ciberespaço.

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Fonte: https://medium.com/arqueologias-do-futuro/eu-rob%C3%B4-f80efb701b42#.i5f2lvexw

A grande aldeia global na qual o mundo tem se tornado naturalmente faz com que haja o surgimento de novas formas híbridas de existência que se metamorfoseiam e fazem nascerem novas formas de ser e estar no mundo. Um mundo pós-gênero, abstrato, maquínico, simbólico. É dentro desde grande quadro moderno que os estudiosos em geral, linguistas, sociólogos, antropólogos, dentre os demais teóricos da área humana, se debruçam para tentar visualizar o prognóstico da humanidade enquanto a drástica mudança e/ou perda de seus aspectos tidos como genuinamente humanos.

A onipresença atual das máquinas e sua tecnologia permeiam a vida humana transformando-a em variados aspectos. Facilita, media, acelera e altera os processos antes administrados pelo puro labor humano. Norbet Weiner (1970, apud COUTO, 2009) exemplifica esta temática ao evidenciar sobre como a cibernética transformou os processos antes tipicamente humanos e analógicos, culminando em diversas teorias como as da eletronificação da informação, automação do trabalho e mecanização da guerra. Isso aponta para quão vivo se encontra, na história humana, a transformação e constituição da nossa realidade por meio do avanço tecnológico.

Nesse sentido, Lima (2009) se utiliza de uma pergunta chave para nos despertar no que tange ao calcanhar de Aquiles proveniente do constante progresso tecnológico. Quem somos nós? Ao lançar esta provocação, o autor se refere à linha tênue que separa o ser humano da máquina. É colocado em cheque o sentido de humanidade o qual é perdido nesta era pós-humana. O ideal capitalista que reina na sociedade hipermoderna prega a ideologia do progresso ininterrupto. O homem hipermoderno, segundo Lipovetsky (2005, apud GONÇALVES, 2011), surge no século XXI como um indivíduo gozando de total liberdade, livre para ser e se assumir como bem quiser na sociedade sem se preocupar com padrões disciplinares já previamente estruturados. Ou seja, vivendo o presente sobre a perspectiva do aqui e agora, sem se preocupar com sua raiz histórica ou tradições.

Com isso, há o hiperinvestimento na vida privada, delineando o narcisismo e individualismo originários do mundo hipermoderno. Mas até que ponto é permitido a nós, enquanto sociedade, mantermos a incessante marcha do progresso tecnológico sem nos deixarmos virar reféns da crise de subjetividade vinda deste ápice do progresso que, apesar de alcançado, em contraponto, faz a humanidade padecer de um vazio existencial?

O entendimento do velho como sendo ultrapassado e a necessidade do novo, o consumismo desenfreado e o ideal de superação reproduzido e reforçado no psiquismo do homem moderno, faz com que o ser humano se perca no meio de suas próprias criações, vivendo unicamente para si e perdendo o contato com o outro. Assim, estão presos às redes sociais, aos smartphones, servindo ao capitalismo para seguirem uma ascensão econômica, buscando atingir um padrão de vida preconizado pela mídia e fazendo com que tenha cada vez menos tempo para se reconhecer, tendo sua subjetividade roubada.

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Fonte: http://www.bluebus.com.br/escravos-da-tecnologia-ilustracao-de-banksy-que-define-nossa-vida-digital/

É detectável, ao projetar este quadro atual para o futuro, a evidente persistência do viés tecnológico por meio de tudo o que foi exposto. A eterna busca pelos avanços tecnológicos continua instaurando a era da “Alta Performance” para satisfazer as necessidades do ego humano. O uso de próteses continua a ganhar força enquanto traz um desempenho que muitas vezes supera o do corpo biológico, estreitando cada vez mais a barreira que diferencia o artificial do natural.

O resultado é o corpo ganhando uma identidade tecnológica progressiva. Por fim, tendo como base a construção sociocultural apresentada aqui, se considera que tal questão continua em um paulatino processo, o qual ainda não se encerrou. O ser humano está e, provavelmente, continuará inserido nas questões do progresso tecnológico, migrando entre os aspectos do ser que cria e o ser que se beneficia de suas criações. Uma eterna busca da melhoria, da perfeição e do alto desempenho, enquanto, paralelamente, aprende a lidar com o poder libertador e aprisionador de suas próprias obras configurando um processo, o qual tende a se manter até quando o planeta ainda conseguir promover esta ininterrupta marcha do progresso à custa de seus finitos recursos.

REFERÊNCIAS:

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. 258p.g

CAMPOS, Ivanir Glória de. A influência da mídia sobre o ser humano na relação como corpo e autoimagem de adolescentes. Disponível em: <http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/884-4.pdf>. Acesso em: 03 de Setembro. 2016

COUTO Edvaldo Souza (Org.); GOELLNER, Silvana Vilodre (Org.). Corpos mutantes: ensaios sobre novas (d)eficiências corporais. 2. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009.

GONÇALVES, Marco Antonio. Indivíduo hipermoderno e o consumo. Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar. 2011. Disponível em: < http://www.ufscar.br/~semppgfil/wp-content/uploads/2012/05/marcogoncalves.pdf>. Acesso em: 3 de Setembro. 2016.

KIM, Joon Ho. Cibernética, ciborgues e ciberespaço: notas sobre as origens da cibernética e sua reinvenção cultural. Horiz. antropol.,  Porto Alegre ,  v. 10, n. 21, p. 199-219,  June  2004.  Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832004000100009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em:  02 de Setembro.  2016.

MACHADO, Afonso Antônio; CALLEGARI, Marcelo; MOIOLI, Altair. O corpo, o desenvolvimento humano e as tecnologias. Motriz: rev. educ. fis.,  Rio Claro ,  v. 17, n. 4, p. 728-737,  Dec.  2011 .   Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1980-65742011000400018&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 02  de Setembro.  2016.

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Lost in Translation: a lateralidade inefável

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Desencontros encontrados

O modelo escolhido para a feitura da análise de Lost in Translation (2003) se pautará na narrativa e desenvolvimento do enredo e direção de Sofia Coppola, mas, sempre que possível, buscando dialogar, evidenciar ou confrontar os movimentos, imagens e situações com seu longa-metragem “irmão”, se assim nos permitirmos interpretar: Her do diretor e roteirista Spike Jonze, lançado em 2013, exatamente dez anos após Lost in Tranlation.

Essa latelaridade entre as obras se explica pelo contexto maior no qual as duas se encontram, especificamente o relacionamento, e o fim deste, entre os realizadores dos dois filmes à época do lançamento da história contada a partir do ponto de vista de Sofia Coppola. Por outro lado, o roteiro de Her, segundo Jonze, se iniciou há pelo menos uma década, ou seja, no mesmo período de lançamento do longa de Sofia. E uma análise mais detida da versão da história contada pelo prisma do diretor pode ser visto na resenha Her: A incompletude palatável, aqui no portal do (En)Cena.

Por coincidência ou não ambos os filmes, separados por uma década de lançamento, conseguiram alcançar o clamor da crítica e a apreciação do público, com rotulagem cult em meio às superproduções vigentes em nossa época. Coppola ganhou com esta obra o Oscar de melhor roteiro original, o BAFTA de melhor ator e atriz, para Murray e Johansson, César de melhor filme estrangeiro, Globos de Ouro, Urso de Ouro, dentre muitos outros prêmios em festivais pelo mundo.

A opção por desenvolver as histórias em comédias dramáticas se relaciona com o tema abordado, sobre pessoas que estão em encruzilhadas de questionamento sobre suas vidas, amores passados, decisões do presente, e um labirinto de inquietudes sobre as escolhas do seu cotidiano, no momento em que se passam os filmes. O foco e objetivo do presente texto será reler o filme de 2003, de modo a visualizar suas mensagens e representações, encontrando tanto neste como em seu sucessor as faces de uma totalidade mais complexa, profunda e rica em interpretações por parte dos que experienciam as obras.

Quem é Charlote (Bob Harris)?

A personagem de Charlote, interpretada por Scarlett Johansson é dual, do ponto de vista de uma transposição feita por Coppola sobre si mesma, pois as angústias e sofrimentos da jovem se complementam e completam em dialogia com Bob (Bill Murray), ao ponto de emergir entre ambos uma afinidade imediata. Lost in Translation pode ser classificado como um daqueles filmes em que não necessariamente há um protagonista e outro coadjuvante. A jovem recém-casada e indecisa sobre as recentes decisões que tomou, e o homem de meia idade, cansado do mundo e pessoas que o cercam, forma uma dupla com igual peso na trama do filme.

De pontos de vista diversos, tanto a jovem formada em filosofia como o velho ator hollywoodiano, não conseguem traduzir-se para o mundo, daí estarem perdidos em meio a este processo. Esta condição e situação, provavelmente vivenciadas por Coppola nos meses de desenvolvimento da obra, foram, em grande medida, transferidos em porções de personalidade, falas e atos para Charlote e Bob.

As capas de distribuição do filme corroboraram para atestar, que, o protagonismo do longa é compartilhado por ambos personagens principais. Charlote e Bob aparecem cada qual a seu modo, em representações do eremita urbano, rodeado de pessoas, concreto e máquinas, mas sem estabelecer um ponto de contato e diálogo com outros ao seu redor.

Capas do filme Lost in Translation
Fonte: Lost in Translation (2003)

O ambiente estrangeiro japonês se destaca na linguagem cenográfica do filme, pois ajuda a dar a tonalidade de solidão e de desencontro dos personagens centrais. Aliado a isso, há as passagens instrumentais ou com músicas ambiente, provocando imersões imagéticas profundas, assim como os diálogos (ou silêncios) em diversos momentos da projeção, tentando, talvez, de algum modo traduzir os personagens para os que assistem suas jornadas.

A sequência introspectiva e melancólica ao som de Alone in Kyoto da banda Air, contrasta com a noite cyberpunk nipônica, com suas luzes, neons e multidões. Neste caso o ponto de sublevação vai para a banda sonora escolhido por Coppola, que sabe incrementar a cena com este recurso, a depender do seu desenvolvimento para os personagens envolvidos e o olhar do espectador. No tocante a Bob, este prefere mais o ato de apreciar aqueles breves momentos de solidão em seu quarto de hotel, que, aparentemente propiciam uma fuga efêmera de sua vida do outro lado do mundo. Em vários pontos a câmera faz justamente este movimento de close mostrando os dividindo a tela juntos, reforçando sua ligação.

Nestas passagens em que, de algum modo, o personagem é forçado a relembrar da brevidade de sua passagem por aqueles dias de paz, seu olhar perdido, trejeitos cansados e inabilidade social parecem emanar com força ainda maior.

Bob em cena de Lost in Translation
Fonte: Lost in Translation (2003)

Charlote em cena de Lost in Translation
Fonte: Lost in Translation (2003)

Esta escolha narrativa, do eremita urbano, é vista em outras obras fílmicas como O Homem das multidões (2012), Taxi Driver (1976), A outra Terra (2011), Solaris (1972), Asas do Desejo (1987), A Liberdade é Azul (1993), Na natureza selvagem (2007) e Mary e Max (2009). A temática da solidão coletiva, da multidão inócua, ou das opressões das selvas de cimento contemporâneas é recorrente nestes filmes, e quanto mais se chega à nossa época, maior é a quantidade de representações desta alegoria.


Cena de Lost in Translation
Fonte: Lost in Translation (2003)

Cena de Lost in Translation
Fonte: Lost in Translation (2003)

Apesar da proximidade entre Charlote e Bob, a relação entre eles em nenhum momento é sexualizada, apesar de ambos revelarem seus dilemas nos relacionamentos que se encontram, um recente e distante, e outro de longa data, mas inócuo e protocolar. Esta escolha ajuda a dar a cada um deles apresentações diferentes do estado de espírito que emana da dialogia encontrada entre nas suas representações, ambas na formação do alter ego da diretora do filme.

A Lateralidade Inefável

Há ao menos duas dialogias possíveis entre Her de 2013 e Lost in Translation de 2003. A primeira delas é a extensão das imagens e mensagens dos filmes com o mundo real, neste caso o relacionamento, e seu fim, entre Sofia Coppola e Spike Jonze. A outra, de maneira menos sutil com aspecto mais subterrâneo, está nas sobreposições das rimas imagéticas e narrativas entre as obras dos diretores, de modo a reforçar a ideia de que ambos, mesmo que não intencionalmente, transportaram para suas obras as dores e angústias deste fim pelos olhares de Charlote (Bob) e Theodore.

O ambiente, a direção de arte, os sons urbanos, os laços de amizade, a reclusão social dos protagonistas, a melancolia narrativa das estórias, e, logicamente, o laço que um dia uniu ambos elaboradores das duas obras apenas justificam, mesmo que indiretamente, a ligação que uma possui com a outra. A originalidade de cada filme se mantém perante si próprio e as demais produções de seu tempo, mas, por mais que se individualizem como longas-metragens terão sempre que conviver com a lateralidade dos contos que nos apresentam em suas imagens.


Cena do filme Her
Fonte: Her (2013)


Cena de Lost in Translation
Fonte: Lost in Translation (2003)

A inefabilidade do outro se encontra presente nas (in)quietudes dos protagonistas, em seu estado de espírito, parcas palavras, olhares distantes, melancolia cotidiana e desencontro consigo mesmo. Não há vislumbre catártico para ambos, apenas o lamento de algo que se perdeu em meio a um caminho não mais trilhado, e, por isso mesmo, a fragilidade sentimental contribui para o distanciamento social, o ostracismo e a falta de conectividade com outros indivíduos.


Cena filme Her
Fonte: Her (2013)

 Cena de Lost in Translation
Fonte: Lost in Translation (2003)

Mas a solidão não deve ser tomada apenas como aporte do sofrimento. Muitas vezes estar solitário é diferente de estar sozinho. No segundo caso é falta total de relacionamento, fraterno ou amoroso com outrem, enquanto que no primeiro pode ser um intermezzo de elucubração, auto-aprendizado e crescimento interior, necessário para o prosseguimento da caminhada vital neste mundo.

Este parece ser o ponto de passagem no qual as duas obras voltam a comunicar-se uma com a outra. Não é outro relacionamento que seus protagonistas estão à procura, muito menos a constituição de uma recordação dos momentos vividos anteriormente. As figuras que os acompanham na jornada, seja Samantha ou Bob Harris, exalam os outros lados do interior da personalidade de Theodore e Charlote, e por esta razão no escape de uma possibilidade de algo maior entre estes e os protagonistas serem rapidamente anulado pela degringolar da narrativa, focada no estudo de personagem em primeiro lugar.


Cena filme Her
Fonte: Her (2013)


Cena de Lost in Translation
Fonte: Lost in Translation (2003)

Ressonâncias da incompletude palatável


Theodore e Charlote
Fonte: Her (2013); Lost in Translation (2003)

É difícil afirmar se foi intencional a inserção Scarlett Johansson como o IOS Samantha em Her por Spike Jonze, de modo a conectar ainda mais o filme de Coppola ao seu olhar do final do relacionamento, dez anos depois. De qualquer maneira, poucas vezes se viu um dueto fílmico trocar tantas semioses como é o caso das estórias de Charlote/Bob e Theodore/Samantha. A cada novo olhar para um ou outro ponto de vista do que um dia pode ter sido uma linha história a dois entre os criadores destes personagens, aumenta a complexidade umbilical entre suas propostas de interpretação e representação por meio de seus longas-metragens.

No tocante à obra de Coppola, o encontro com o outro (na mágoa ou falhas deixadas por Jonze) não se realizou da maneira projetada na expectativa, de ambos talvez, mas, abre uma importante reflexão de (re) encontro com seu eu, para um novo recomeço noutros tempos e espaços, agora não mais perdidos e sim traduzidos e compreendidos. A cena final entre Bob e Charlote – semelhante à cena final entre Theodore e Amy, em Her –, no seu encontro, desta vez não sem desencontros, para a despedida é a melhor marca para esta reflexão. No fundo, sua complementação acaba por sugerir que, ao menos naqueles poucos dias, encontraram cada qual a seu modo, algumas das respostas que inquietavam suas angústias existenciais.

Bob e Charlote
Fonte: Lost in Translation (2003)

“More Than This, I could feel at the time
There was no way of knowing, Fallen leaves in the night
Who can say where they’re blowing, As free as the wind
Hopefully learning, Why the sea on the tide
Has no way of turning, More than this you know there’s nothing
More than this tell me one thing, More than this ooh there is nothing”

More Than This, Roxy Music

REFERÊNCIAS:

LOST IN TRANSLATION. Direção e Roteiro de Sofia Coppola. 2003. American Zoetrope Tohokushinsha Film. 101min.

HER. Direção e Roteiro: Spike Jonze. 2013. Warner Bros Pictures. 126min.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

ENCONTROS E DESENCONTROS

Diretor: Sofia Coppola
Elenco: Scarlett Johansson, Bill Murray, Anna Faris, Giovanni Ribisi
Ano: 2003
País: EUA
Classificação: 14

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Gran Torino: quando o individualismo gera isolamento

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Para os estudantes de Psicologia e afins, GRAN TORINO é mais uma obra de Clint Eastwood rica para o diálogo com a psicologia, aliás, rica para o diálogo com o homem, a humanidade, a cultura, as nossas próprias, as norte-americanas. Assistindo-o podemos ver as diferenças e as semelhanças entre o subúrbio americano e as vidas palmense, tocantinense, brasileira, sul-americana.

O filme inicia apontando o choque entre gerações, tema oportuníssimo tratado com especialidade pelo Professor Wayne Francis. A relação entre pai e filhos e entre avó e netos deixa clara a mudança da instituição chamada Educação da geração do avó, Walt Kowalski (representado por Clint Eastwood) para a geração de sua neta Ashley Kowalski, representada por Dreama Walker. A Educação americana, ao passo que mantém uma prática de intolerância étnica, perde a cultura do respeito aos mais velhos, do respeito solidário. Tal Educação compõe-se, dentre outras coisas, da própria educação da geração de Walt Kowalski, do militar que defende a honra de sua família, longe dela, como herói. Contudo, os veteranos de guerra não somente não são heróis para os adolescentes como Ashley Kowalski, como também não foram tratados como heróis pelo governo norte-americano. Em resumo, muitos arruinaram com a própria vida, enricando grandes donos de hospitais psiquiátricos. E a relação entre pessoas das duas referidas gerações é conflituosa e decadente – traço que cada vez mais se constitui nas nossas próprias relações.

Fica claro que o clima dos anos 70, 80 e 90, consolida-se como um drama, bem distante da tragédia feita para heróis. O filme é um drama, de 116 minutos. A relação mútua de indiferença entre Walt e sua neta é contingente ao processo de livre iniciativa individualista (e armada) norte-americana. Até meados do filme, quase todos os diálogos e relações são à base de violência, mais velada do que explícita, a violência do amargor da vida, a violência entre as diferenças étnicas e culturais, a violência usurpativa das gangs. É necessária uma grande quantidade de armas (como o é a sociedade norte-americana – ver o documentário “Tiros em Columbine”, de Michael Moore) para sustentar e, ao mesmo tempo, produzir tal violência.

O individualismo gera isolamento, o isolamento ocorre junto à saudade que Walt sente da esposa, ao consumo ininterrupto de álcool e etc. Tal contexto é condição de possibilidade para a produção de uma sociedade (medicalizada) que faz uso em grande quantidade de sertralina e diazepan, que depende de resultados instantâneos e vive dentro da pressão, do constrangimento implacável quando não se consegue alcançá-los. Tudo na mais simples fórmula simbolicamente explicativa: “sociedade com menos conflito é igual à sociedade com mais depressão”, como bem defende Elizabeth Roudinesco, em seu livro, “Por quê a Psicanálise?”. Logicamente que o simplismo é apenas didático, até mesmo por que o filme se desenrola de outra maneira, bem mais denso, intenso e complexo, fruto da genialidade do diretor.

Clint conta a história de um cara que, à beira da tragédia (a morte da esposa e a própria) vive em guerra e em busca de paz. Num processo contado de forma bastante precisa, Clint mostra a transformação de pessoas que vivem em meio ao choque de suas culturas. Ele nos leva a refletir acerca da diversidade cultural, dos pré-conceitos, da discriminação e da superação ética. Reparem bem no vínculo que Walt faz com seu vizinho Thao Vang Lor, (interpretado por Bee Vang) – ele transita entre a vivência puramente pré-conceituosa (entre pessoas que poucamente se toleram) e a vivência de laços de confiança e solidariedade. Por esse lado, podemos discutir a prática de Acompanhamento Terapêutico que a Reforma Psiquiátrica discute (ver o livro chamado “Clínica Peripatética” de Antônio Lancetti). O que seria tal prática senão uma vivência que busca quebrar pré-conceitos e criar vínculos de confiança?

Além da temática atual e intrigante do filme, Clint constrói o elenco do filme com atores amadores da etnia hmong. São pessoas vindas e descendentes do Laos, Vietnã, Tailândia e China e que apoiaram o governo americano durante a guerra no Sudeste Asiático, nas décadas de 50, 60 e 70, na tentativa norte-americana de extermínio do regime comunista. Os hmong, após a derrota dos EUA na Guerra do Vietnã (1978), foram cassados e exilados, indo para, dentre outros países, o EUA. Contudo, mesmo com o apoio ao governo americano na guerra do Sudeste Asiático, foram francamente discriminados, como o filme nos mostra.

Enfim, numa mistura de drama e, em partes, tragédia, Clint discorre sobre o seu humano como maestria. Segue a ficha técnica.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

GRAN TORINO

Título original: Gran Torino
Direção: Clint Eastwood
Roteiro: Nick Schenk, baseado em história de Dave Johanson e Nick Schenk
Elenco: Clint Eastwood, Christopher Carley, Bee Vang,  Ahney Her;
Ano: 2008
País: EUA
Gênero: Drama

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