A compreensão do tempo nas formações identitárias: uma síntese

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Esta síntese procura evidenciar o conteúdo exposto em apresentação do Psicologia em Debate, pelo acadêmico Vitor Alexandre Lopes Lehnen, no dia 19.10.2016 nas dependências do CEULP/ULBRA, com o Tema: O Impacto da Compreensão do Tempo nas Formações Identitárias, conteúdo este extraído de capítulos do livro “O Tempo e o Cão”, de Maria Rita Khel (2009).

A autora Khel (2009) expõe que o tempo é uma construção social, conforme enfatizado pelo acadêmico Vitor no início de sua exposição, sendo uma espécie de ordem social marcada pelo controle do tempo; neste sentido, o sujeito está submetido às leis do “grande outro” (grifo nosso), regras essas que afetam o contexto da vida concreta e subjetiva do sujeito desejante. O acadêmico, inclusive, explicitou muito bem, que a amplitude do termo ‘o grande outro’ na teoria de Lacan, deve ser ilustrado como um lugar simbólico.

A espacialidade não define o psiquismo, mas o tempo sim, daí a dificuldade dos neurocientistas em localizar, no tecido cerebral, o inconsciente freudiano, conforme exposto por Vitor. Complementando, Khel (2009) enfatiza que a origem do sujeito psíquico, entra na condição temporal, pela subjetivação da espera da satisfação deste a tenra infância, conforme a visão psicanalítica. O psiquismo se institui a partir da espera do objeto de satisfação da amamentação, numa tentativa fracassada de eliminar a angústia do tempo vazio do intervalo desse cuidado. Essa representação “adquire, em primeiro lugar, a forma de uma substituição alucinatória do seio que tarda a se apresentar para saciar e tranquilizar o infans”, conforme Khel (2009 p 112).

A autora conclui o raciocínio teórico freudiano dizendo que esse fracasso irredutível da satisfação pulsional, vai transformando o trabalho psíquico, que aos poucos cria uma espécie de transmutação de identidade de percepção à uma identidade mental. No contexto da teoria lacaniana do “O Tempo Lógico”, aqui enunciado pela autora, como “O tempo e o sujeito”, foi relatado o sofisma contido nos Escritos de Lacan, onde esclarece a natureza da relação necessária entre o saber possível do sujeito do inconsciente e a experiência subjetiva do tempo.

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Fonte: http://migre.me/vs1TA

Para tanto, Khel (2009) cita Lacan apresentando um problema lógico, onde em um presídio é apresentado para três prisioneiros, um desafio cuja solução será permitida a liberdade de apenas um deles. Apresenta-se cinco discos, dois pretos e três brancos, cada prisioneiro terá um colocado em suas costas, onde não conseguirá vê-lo – mas os dos outros dois, sim. A liberdade ocorrerá para aquele que em primeiro lugar deduzir, a partir da observação dos outros, a cor de seu próprio disco.

O autor afirma que, salvo no caso em que um dos participantes do jogo enxergasse nas costas de seus companheiros dois discos pretos, é impossível deduzir a resposta correta sem levar em conta, além das cores dos discos que cada um enxerga, as reações e as hesitações dos outros dois. O problema lógico exposto resumidamente neste parágrafo é, portanto, construído em três tempos: o instante de ver, o tempo para compreender e o momento de concluir.

Desses três intervalos, o primeiro e o terceiro ocorrem instantaneamente segundo Lacan; somente o segundo supõe a duração de um tempo de meditação. Essa passagem precede a certeza do sujeito sobre si mesmo, isto é, sobre a cor de seu disco, que ele só pode deduzir ao se relacionar subjetivamente com as reações dos outros e refletir sobre elas. Com uma certeza jamais inteiramente garantida para a liberdade proposta, o tempo de concluir, é uma objetivação rápida que precipita o sujeito em direção à liberdade.

Khel (2009) explicita que não lhe parece de graça o fato de que a liberdade, na historinha de Lacan, seja o prêmio prometido àquele que primeiro conseguir apostar na cor do disco pregado às suas costas. O momento de concluir é o tempo em que o sujeito é convocado, onde tem que se desprender do registro da identificação com seus companheiros de cela para afirmar, por sua conta e risco, quem ele é; sendo que isso não garante ao sujeito nada sobre o dilema de quem ele realmente é.

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Fonte: http://migre.me/vs294

Para Lacan o ser é um efeito simbólico da certeza antecipada do sujeito desejante, sendo assim, a psicanálise lacaniana valoriza o tempo lógico, necessário à historização do sujeito inconsciente, onde a autora diz ser o tempo que faz existir a possibilidade da análise, ou seja, o tempo de compreender é o tempo apoiado em um “saber inconsciente” (grifo nosso). Há de se reconhecer que o acadêmico Vitor expôs, de alguma forma, o impulso ao consumo. A autora elucida a precipitação passagem ao “ato” (grifo nosso), como produtor pela urgência da demanda do outro, ou seja, a relação do sujeito com o objeto causa do desejo, ou de outra forma. O tempo de compreender sem um saber, como segue abaixo:

A temporalidade contemporânea, frequentemente vivida como pura pressa, atropela a duração necessária que caracteriza o momento de compreender, a qual não se define pela marcação abstrata dos relógios. Daí a sustentação periclitante do saber do sujeito, que o predispõe à queda na depressão, seja qual for sua estrutura neurótica. Por sua vez, o momento de concluir implica a conquista, durante o tempo de compreender, de alguma independência em relação ao tempo apressado da demanda do Outro. (KHEL, 2009, p. 117).

Neste sentido, trazendo a luz das relações da pós-modernidade, a temporalidade vivenciada no contexto da pressa, atropela a duração necessária que caracteriza o momento de compreender, a qual, não se define pelo tempo lógico enunciado por Lacan. Daí a sustentação vacilante desse sujeito consumidor, enunciado por Victor, fica comprometida como pré-disposição à depressão, seja qual for sua estrutura neurótica.

REFERÊNCIA:

KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão. São Paulo: Boitempo, 2009.

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O que a “treta” Boechat x Malafaia diz de nossos tempos sob a égide da moral politicamente correta ou sobre porque todos nós poderíamos “procurar uma rola”

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Freud funda a psicanálise a partir do mal-estar. Sua grande questão é: o que fazemos com nossos mal-estares? Lacan vai retomar o tema freudiano para dizer que nosso mal-estar é sempre o da linguagem, já que ela sempre fracassa na sua tentativa de dar conta do real. Em outras palavras, a linguagem é sempre falha, equivocada imperfeita e sempre desliza por caminhos dos quais não temos o controle. Nossos atos falhos – aquilo que dizemos sem querer dizer ou dizemos sem pensar – demonstram o quanto a linguagem escapa a qualquer controle racional. A linguagem denuncia o tempo todo nossa falha, nossa divisão e faz emergir o inconsciente. Quer dizer, por mais que relutemos em admitir, o inconsciente nos atravessa o tempo todo, ele fala por nós e a revelia de nós, jogando por terra nossa pretensão de ser um in-divíduo (um ser sem divisão). Para usar as palavras de Freud: o eu não é o senhor da nossa casa.

Feito este preambulo gostaria de falar sobre o que vou chamar de moda do politicamente correto, um dos modos de tentar dar conta desse mal-estar presente na linguagem. Quando o inconsciente fala, evidenciando nosso equívoco e nossa divisão, a onda politicamente correta vai tentar fazer UM reparando a falha. A tentativa é criar um modo correto, verdadeiro ou universal de melhor dizer alguma coisa, com o objetivo de evitar que o inconsciente apareça e denuncie aquilo que não queremos admitir: o fracasso da linguagem em dar conta do real.

O filme Minority Report dirigido por Spielberg, que já se tornou um clássico, é magnífico para retratar esta forma contemporânea que inventamos para lidar com nossos mal-estares. Obviamente que de uma forma mais radical e drástica, a proposta contida no filme é a mesma perseguida pela polícia politicamente correta, a de que seja possível lidar com o erro inventando um modo de evitar que ele aconteça. O filme se passa num futuro próximo no qual seria possível prever e evitar um assassinato antes que ele se consume. O paradoxo é que o sujeito pode ser condenado por um crime que jamais cometeu, porque foi impedido de fazê-lo pela divisão policial chamada pré-crime. Entretanto, a suposta infalibilidade do sistema autorizaria a condenação do sujeito pela certeza de que ele irá cometê-lo adiante. Resumindo, o sujeito não é condenado pelo seu ato, mas pelo seu desejo. E o filme é brilhante nesse ponto porque está corretíssimo: o que nos põe em perigo, o que nos desconcerta, que nos tira da razão é mesmo o desejo. É o desejo que nos divide e que emerge a revelia do nosso controle. O desejo é o diabo.

Não por acaso o lema do pré-crime é: o que nos mantém seguros também nos mantém livres. Tal como no filme nossa sociedade também acredita em tal promessa, de que encontraremos a liberdade quando pudermos nos manter seguros do fracasso, do equívoco e, sobretudo, do desejo. O mundo ideal que buscamos prevê o apagamento ou o controle total do desejo, o que é o mesmo que apagar toda a singularidade e, consequentemente, por fim às diferenças. Visualizamos num mundo de iguais o fim de todo o conflito e a resposta para todas as nossas mazelas.

Lacan vai dizer que o homem tenta com a linguagem produzir laço social, e a isso ele chama discurso. O discurso seria, portanto, toda a tentativa que fazemos para recobrir com a linguagem nossa falha fundamental e constitutiva. Em outras palavras, é na medida em que não somos UM (inteiro e perfeito) que precisamos nos relacionar com o OUTRO, fazendo laço, produzindo discurso.

Dentre as formas discursivas trabalhadas por Lacan destacaremos a que ele chama de Discurso Universitário para explicar a moda do politicamente correto. Toda vez que, na tentativa de fazer laço, criamos normas, regras, métodos, receitas e protocolos, estamos fazendo uso do Discurso Universitário. Muito presente no discurso religioso fundamentalista, nos livros de autoajuda, na burocracia, nos preceitos morais, na educação capturada pelos métodos e na ciência dogmática, o Discurso Universitário privilegia os enunciados universais que são criados para que todos sejam tratados de maneira unificada e universalizada, não havendo lugar para as diferenças e as singularidades. O objetivo seria encontrar uma única verdade que se aplique a todos a fim de evitar o mal-estar.

Esta perseguição desenfreada por um ideal de linguagem politicamente correta, livre de qualquer equívoco, é um bom exemplo do uso do Discurso Universitário, que domina muitos grupos que militam em favor das chamadas minorias. A justificativa desses grupos é que determinadas formas de uso da língua são efeito do machismo, do racismo, da homofobia ou de outro tipo de preconceito e por isso devem ser evitadas ou banidas. É obvio que se estamos numa sociedade machista, racista, homofóbica ou preconceituosa nossa linguagem vai denunciar isso. Mas é exatamente aí que está a beleza do inconsciente. Na medida em que o desejo ali se faz presente, por mais que tentemos poli-lo com a razão, ele sempre escapa e nos denuncia. É o inconsciente que não nos impede de sermos machistas mesmo quando tentamos fazer um discurso contra o machismo, é o inconsciente que não nos impede de sermos homofóbicos mesmo quando estamos fazendo um discurso para condenar a homofobia. É isso meus caros! Não somos unívocos!

Esta semana o jornalista Ricardo Boechat virou notícia ao fazer uma intervenção inflamadacontra o Pastor Silas Malafaia e seu já tradicional discurso de ódio. Em programa ao vivo na rádioBandNewsFM, Boechat notadamente perde a paciência com uma provocação de Malafaia no tuíter e o aconselha a “procurar uma rola”.

As manifestações na internet foram imediatas e junto com aqueles que “lavaram a alma” com o desabafo do jornalista, tivemos também os que denunciaram a própria fala do jornalista como machista e homofóbica. “Procurar uma rola” foi considerado um comentário tão equivocado quanto a postura tradicional de Malafaia para com os homossexuais. Em seguida vieram as sugestões para banirmos da linguagem comentários e xingamentos deste tipo, que seriam machistas e que provocariam e ofenderiam minorias sexuais.

Fonte: https://www.soumaispernambuco.com.br

É neste ponto que, a meu ver, a moral politicamente correta se perde na panaceia do Discurso Universitário. Quando ela tenta, tal como no filme Minority Report, criar um modo de pre-ver e pre-venir o fracasso da linguagem. O equívoco da linguagem é efeito do inconsciente. (Lembrando que o inconsciente não é aquilo que está dentro, mas aquilo que já estava lá antes de nós, o caldo cultural onde fomos mergulhados quando nascemos). Então é ótimo quando podemos escancarar e denunciar um ato falho para dizer da nossa disjunção, dos nossos equívocos. Foi isso exatamente que Freud propôs com a invenção da psicanálise: acessar o inconsciente por meio do equívoco manifesto da nossa linguagem, que aparece nos atos falhos, nos chistes e sonhos, por exemplo. Mas ao contrário do Discurso Universitário – presente nas propostas de terapia comportamental – a psicanálise trabalha pela via do Discurso do Analista. Nesse sentido ela não se dispõe a silenciar ou adestrar o equívoco, mas fazer o sujeito trabalhar no seu processo de subjetivação a partir de seus equívocos. A proposta de Freud seria, então, escutar o equívoco e lhe atribuir valor ao invés de eliminá-lo.

Já proposta do discurso politicamente correto é silenciar e adestrar os equívocos. Na tentativa de evitar o conflito que emerge nessas falhas discursivas, a proposta é apagar as diferenças fazendo com que todos se submetam a um ideal de linguagem único e universal. Diante do insuportável de conviver com o desejo na sua diversidade e singularidade, a saída proposta seria um modelo único de linguagem que nos proteja das nossas diferenças e que evite os conflitos.

Sendo assim, ao invés da tão sonhada liberdade, o que o Discurso Universitário consegue é tão somente inventar regras e modelos que nos aprisionam e endurecem. E como não consegue sucesso em sua proposta que é a de adestrar o desejo, pois que isso é impossível, este tipo de discurso consegue apenas semear o medo do conflito. Sob o jugo do Discurso Universitáriotemos medo de que tudo o que dissermos se volte contra nós. Resta-nos afastarmos uns dos outros ou criarmos uma tendência muito comum nas redes sociais que é a nos relacionar apenas com nossos iguais, com nossos guetos, com nossos partidos, com aqueles que pensam como nós. Vamos progressivamente desaprendendo a lidar com nossos atos falhos e os dos outros, desaprendemos a debater, a discutir e a experienciar o conflito, tão saudável e necessário para o nosso processo de subjetivação. E se não podemos falar a partir de nossas diferenças, nos resta atacar o outro na sua diferença, com ofensas, ameaças ou em ato. Só para exemplificar um ato extremo nesta direção, temos o famoso ataque à sede de Charlie Herbdo por adeptos do fundamentalismo islâmico e cujos atos foram justificados pela insatisfação destes com as charges de humor publicadas no jornal, que teciam críticas às religiões islâmicas. Neste caso, não faltou quem defendesse que o massacre poderia ter sido evitado se os jornalistas tivessem se esquivado do tema espinhoso da crítica ao Islã. O humor é constante alvo da polícia politicamente correta, que sempre cobra dele um limite prévio, como se fosse possível fazer humor sem provocar algum tipo de mal-estar ou mal-entendido.

Fonte: https://www.Fultimosegundo.ig.com.b

Por outro lado, podemos sim nos manifestar contra os mal-estares da linguagem. É obvio que podemos destacar o equívoco na fala de alguém e fazer uma crítica, mas também precisamos estar abertos a escutar quando o outro denuncia nosso equívoco. É claro que podemos achar uma piada de mau gosto, mas também podemos acha-la engraçada e nos interrogar por que ela nos provoca o riso. É claro que podemos optar por excluir um palavrão do nosso vocabulário na medida em que tomamos consciência do seu sentido implícito. É claro que podemos travar um debate cara a cara ou virtual, sempre que nossas diferenças emergirem em nossos discursos, marcados pela singularidade dos nossos desejos. Perante os equívocos da linguagem, entendo que podemos até mesmo acionar a justiça, caso os limites legais compartilhados sejam ultrapassados, por um ou por ambas as partes. O importante é que em todas essas situações partimos do equívoco, para experimentar e elaborar o conflito, para lidar com a diferença, escutá-la, se incomodar com ela e sair de nossa zona de conforto.

Mas o que a polícia politicamente correta pretende é tentar evitar o equivoco e o conflito antes que ele aconteça e faz isso às custas da burocratização da linguagem, do empobrecimento dos nossos laços e da chatice generalizada. E aprisionado no Discurso Universitário o inconsciente escapa pela única via que lhe resta, a violência. Esquadrinhada pelo excesso de modelos e regras de como fazer e como dizer, nos tornamos uma sociedade extremamente careta, quadrada, chata ou violenta.

Existe antídoto pra isso? Acredito que sim. É a lição freudiana, que é a seguinte: Não há cura para nosso mal-estar, mas por outro lado podemos atenuá-lo por meio das nossas relações com os outros. A lição lacaniana é a mesma, mas dita de outro modo: É importante que não nos aprisionemos em um determinado discurso, a saída é sempre fazê-lo girar. No caso do Discurso Universitário a saída seria dar um passo atrás em direção ao Discurso do Analista. Assim sairíamos do campo do Universal para o campo do singular, do cada um. Dito de outro modo é fundamental considerar que possa existir uma resposta para uma única situação e que não seja uma resposta Universal para todas as situações semelhantes.

O caso da “treta” Boechat x Malafaia, vou propor que façamos tal giro discursivo para escapar das concepções universais do que significaria “procurar uma rola” e enxerga-la no seu componente singular. Em se tratando do Malafaia e do discurso de ódio que ele representa e reproduz “procurar uma rola” poderia lhe fazer um bem enorme. “Procurar uma rola” neste caso em particular, significaria fazer com que o referido pastor se enverede para além de si mesmo, a fim de fazer laço e se permitir ser afetado pelo outro. Afinal, para “procurar rola” para além de si mesmo é necessário admitir que não se tenha, e ninguém melhor para fazer laço do que aquele que encara sua própria castração, sua limitação. Porque quem aceita sua própria castração aceita a do outro também.

Por fim, oxalá todos nós nos abríssemos para “procurar uma rola” nas nossas relações com os outros ao invés de achar que a possuímos ou que podemos compra-la e fazer uma prótese! Nesses termos, só me resta repetir o conselho de Boechat: – Malafaia, meu caro, vá “procurar uma rola”! Isso faria muito bem a você assim como pode fazer muito bem a qualquer um de nós.

Texto originalmente publicado em: http://ritadecassiadeaalmeida.blogspot.com.br/2015/06/o-que-treta-boechat-x-malafaia-diz-de.html

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Histeria – A ausência de afeto como causa patológica

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Um dos filmes mais interessantes lançados recentemente é “Histeria” (Vários países – 2012), que trata do surgimento do popular (e ainda alvo de preconceito) vibrador, ou consolo. A comédia dramática se passa no intenso final do século XIX, época base da constituição psicanalítica, marcada por uma verdadeira “epidemia” de histeria, patologia até então atribuída exclusivamente ao sexo feminino, já que a medicina vigente utilizava-se do sentido estritamente etimológico para o termo, onde hysterikos se referia a uma suposta condição médica causada por perturbações no útero, hystera, em grego. Mais tarde, obviamente, se percebe que o problema não é peculiar à mulher, e que também acomete homens, embora em menor grau.

O filme usa uma linguagem leve para demonstrar que, na tentativa de encontrar um alívio para aquelas senhoras e senhoritas de diferentes idades, um jovem médico acaba por inventar um equipamento que substitui as mãos nas massagens/estímulos vaginais, já que ele desenvolveu um trauma em suas mãos, pela quantidade de intervenções que fazia diariamente; até então a massagem era única alternativa para aplacar as crises que acometiam as nobres pacientes. Lembremos que não se tinha claro que a histeria poderia ser decorrente de conflitos internos (pulsões reprimidas) que se manifestavam em sintomas físicos. Dentre outras coisas, pensava-se que era uma doença decorrente da ausência de “ventilação sanguínea” adequada na região uterina. O filme não se preocupa em mostrar esta faceta da doença, e sim exclusivamente o surgimento do vibrador.

No entanto, a invenção em si do apetrecho já descamba, numa análise mais ampla, para a questão do afeto (sua ausência, neste caso) como desencadeador de processos patológicos, outro viés que se pode abordar a partir do filme. E neste contexto é interessante observar como a medicina (bem retratada no filme pelos personagens dos doutores Mortimer Granville e Robert Dalrymple), a psicanálise, a filosofia da mente, a filosofia da psicanálise, e bem mais recentemente a psicologia, avançaram neste aspecto.

Para além da ficção, nos últimos 80 anos – e com mais vigor de 20 anos para cá – são inúmeros os trabalhos de pesquisa e as abordagens clínicas que seguem o rastro da dupla médica de “Histeria” e procuram demonstrar a relação entre produção (ou ausência) de afetos e as patologias relacionadas à psique. O mais famoso caso, provavelmente deve ser do médico americano Dean Ornish.

Se à época em que se passa o filme em questão a histeria era atribuída a distúrbios químico-orgânicos, com o passar do tempo esta e outras patologias foram estudadas sob novas perspectivas e, deste esforço, um dos mais incríveis resultados é a pesquisa de Dr. Dean, publicada no livro “Amor & Sobrevivência”, e que de alguma maneira, pelas “mãos” de um médico, é mais uma forma de tentar dirimir o sofrimento das pessoas que não conseguem lidar com suas questões internas.

Impossível ver o longa “Histeria” e não associá-lo ao trabalho do americano, que aborda a base científica para “o poder curativo da intimidade”. E por intimidade, neste caso, não se restringe as relações sexuais propriamente ditas mas, antes, toda relação em que o afeto dá o tom da interação.

Embora o simples, porém impactante pressuposto de Dr. Dean Ornish de que “nossa sobrevivência depende do poder curador do amor, da intimidade e de nossos relacionamentos como indivíduos, comunidades” não tenha sido abordado claramente no filme (apesar da relação amorosa do Dr. Mortimer Granville e da filha de seu sócio, Charlotte Dalrymple), as duas obras mantém pontos de contato, pontos estreitos e que tem como foco a “construção interna” como mecanismo que desencadeia tanto equilíbrios quanto desequilíbrios no corpo. Dr. Dean Ornish demonstra que “mudanças significativas no estilo de vida de cada um podem reverter doenças”.

Apesar de um enfoque maior nos pacientes com problemas no coração, o livro do Dr. Dean também dedica parte do espaço para aquelas pessoas, a exemplo das retratadas no filme “Histeria”, que têm dificuldade de tocar o próprio corpo (algo que é estimulado em algumas práticas orientais, como o Yoga e o Tai Chi Chuan, só para citar algumas) e o corpo das outras pessoas (como a aversão em abraçar ou beijar alguém). Estas pessoas estariam mais propensas a desenvolverem doenças. No filme, era notória a melhora das mulheres quando submetidas “ao toque” do médico. Apesar de aqui não haver o afeto em seu sentido estrito, no entanto o simples fato de se tocar o corpo da paciente já suscitava melhoras surpreendentes.

Em súmula, o que tanto o filme “Histeria” quanto o livro “Amor & Sobrevivência” abordam, em linhas gerais (porque há muitas outras “chaves” para se aprofundar, mas este artigo ficaria muito extenso) é que a observância do próprio corpo (e de suas necessidades mais básicas, como o ato de se tocar e/ou tocar outras pessoas), as relações afetivas e as construções sociais sadias são alguns (mas não exclusivamente, para que não se caia num dogmatismo) dos fatores predominantes para se evitar patologias de toda ordem, que variam desde alterações de humor e sentimentos reprimidos que resultam em problemas mais agudos, como em alguns casos a histeria, até patologias mais graves, como doenças cardíacas.

A dica do Dr. Ornish para que se evite no futuro novas ondas de patologias mentais (como ocorre em “Histeria”), dica esta que também foi defendida pelo filósofo e psiquiatra húgaro/americano Dr. Thomas Szasz, é que a noção de doença, em especial a mental, tem que ser conduzida como uma questão de relacionamento, seja interno, externo ou ambos.

O vibrador foi e continua sendo uma alternativa adequada para (a mulher em particular) “lidar” com o próprio corpo. No entanto, assim como para enfrentar um problema maior, mais sutil, não basta prescrever doses diárias de Prozac (que podem maquiar as causas de tal problema), as questões que se escondem nos recônditos do ser devem ser enfrentadas com (boa) vontade e tempo, tanto do paciente quanto do terapeuta. Dois ingredientes aparentemente em extinção na contemporaneidade, mas que devem ser perseguidos para que haja sucesso nos fins.

 

FICHA TÉCNICA

HISTERIA

Título Original: Hysteria
Países: Reino Unido/França/Alemanha/Luxemburgo
Gênero: Comédia / Drama
Direção: Tanya Wexler
Roteiro: Stephen Dyer, Jonah Lisa Dyer, Howard Gensler
Elenco: Hugh Dancy, Maggie Gyllenhaal, Felicity Jones, Jonathan Pryce, Rupert Everett, Ashley Jensen, Sheridan Smith
Ano: 2012
Duração: 100 minutos

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