Instagram e saúde mental: uma questão de likes?

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O uso de mídias sociais como Twitter, Facebook e Instagram é generalizado. As redes sociais permitem aos indivíduos construir perfis nos quais podem manter e criar redes de relacionamento, bem como circular detalhes sobre suas vidas diárias e responder às postagens de outros usuários (BERRY et al. 2018). Trata-se de fenômeno relativamente recente, sobre o qual várias áreas do conhecimento se debruçam tendo em vista diversas populações (LIRA et al. 2017). Para Firestone (2019), é experiência relativamente nova para a psiquê humana. Conforme Shirley Cramer, chefe executiva da Royal Society for Public Health, as redes sociais tornaram-se espaço de construção de relações, moldagem da autoidentidade, espaço de expressão e conhecimento do mundo à volta, logo,  intrinsecamente ligadas à saúde mental.

As mídias digitais, móveis e sociais tornaram-se parte indispensável da vida diária de pessoas no mundo todo. O relatório Digital 2020 mostra que, a nível mundial,  4,5 bilhões de pessoas usam internet, enquanto os usuários de redes sociais passam da marca de 3,8 bilhões. No contexto brasileiro, existem 140 milhões de usuários de mídias sociais ativos. Entre as redes mais utilizadas o Instagram tem posição especial, com 69 milhões de usuários brasileiros, figurando no quarto lugar a nível nacional, e em sexto a nível mundial (IMME, 2020). Como escreve Trifiro (2018), sendo aplicativo essencialmente criado para aparelhos móveis, seus usuários podem publicar fotos e vídeos. Em resposta, outros usuários curtem (ou gostam da) publicação, comentam-na, assim interagindo uns com outros.

Uma vez que o Instagram é relativamente novo, poucas pesquisas foram feitas, no que diz respeito aos efeitos específicos da rede social sobre a saúde mental dos usuários (TRIFIRO, 2018). Esta mesma autora, citando Vries et al. (2017) escreve que a rede social em questão difere muito de outras, especialmente do Facebook, devido à “centralidade de imagens”, ou seja, à prioridade dada às imagens em dentrimento dos textos. Ainda conforme a mesma autora, que cita Johnson e Knobloch-Westerwick (2016), redes sociais focadas em imagens têm efeitos comprovadamente diferentes sobre o humor dos usuários, em comparação com mídias que priorizam textos. Otero (2018), tratando sobre a rede social em questão, fala em “culto ao audiovisual”.

Fonte: encurtador.com.br/oqOUY

Numa breve perspectiva macrosocial, pode-se dizer que o Instagram alimenta-se de tendência contemporânea, onde a imagem técnica é meta de todo ato e o fotógrafo visa a eternizar-se por meio da fotografia. “Tudo, atualmente, tende para as imagens técnicas, são elas a memória eterna de todo empenho. Todo ato científico, artístico e político visa a eternizar-se em imagem técnica, visa a ser fotografado, filmado, videoteipado (FLUSSER, 2002, pg. 18). Todavia, o fenômeno entre usuários do Instagram e as imagens não é processo meramente motor, onde dedos e olhos trabalham e fica por isso mesmo. Ocorre também processo cognitivo que, por sua vez, é crucial para a relação entre usuários, e entre eles e a rede social como ferramenta. “Fotografias são imagens técnicas que transcodificam conceitos em superfícies. Decifrá-las é descobrir o que os conceitos significam.” (FLUSSER, 2002, p. 43).

Em que pese sua popularidade, o Instagram é a rede social mais nociva à saúde mental e bem-estar de jovens entre 14 e 24 anos, conforme relatório publicado pela Royal Society for Public Health. O impacto negativo atinge a imagem corporal e o sono, alimentando sentimentos de inadequação, ansiedade, depressão e solidão (FIRESTONE, 2019). Enquanto todas as redes sociais parecem ter impacto negativo na imagem corporal, o problema é especialmente prevalente no Instagram, onde há mais mulheres e jovens. Muitas fotografias carregadas têm perfeição irreal, uma vez que as fotos são cuidadosamente selecionadas ou mesmo editadas, a fim de esconder falhas. Trata-se de plataforma onde predominam postagens positivas, onde as pessoas tendem a expor os lados mais positivos delas mesmas e de suas vidas (DE VRIES et al., 2018).

Uma vez publicadas, recebem ou não curtidas (ou likes) bem como comentários acerca do conteúdo explícito na imagem. A experiência de receber um like na rede social  produz dopamina, neurotransmissor associado com o prazer. Quando um usuário vê que outro usuário curtiu sua postagem, é um pouco como tomar uma substância psicoativa. Quando se está prestes a publicar algo, não há garantia da obtenção de likes, tal imprevisibilidade torna o processo viciante. O problema no Instagram é que todos apresentam a melhor versão de suas vidas, cada um tem contato com os melhores aspectos da vida alheia. Logo, a comparação de um com o outro leva a conclusão de que há falta de algo que o outro aparentemente tem (ALTER, 2017).

Conforme De Vries et al. (2018), estudos se contradizem acerca dos efeitos das mídias sociais sobre a saúde mental dos usuários, e, citando Frison e Eggermont (2016), explica que tais efeitos dependem das atividades com as quais os usuários se envolvem na rede social. De todo modo, citando Lin e Utz (2015), parece claro que ver postagens positivas, rotineiras nas redes sociais, pode ter tanto consequências positivas quanto negativas para o humor do usuário. Segundo Chou e Edge (2012); Haferkamp e Krämer (2011); Sagioglou e Greitemeyer (2014); e Tandoc, Ferruci e Duffy (2015), navegar em postagens positivas de outros usuários tem efeitos negativos como inveja e sensação de que outros têm uma vida melhor.

Porém, outros estudos emergentes, a partir de uma perspectiva de contágio emocional, sugerem que postagens positivas de outros usuários evocam respostas emocionais positivas, à medida que os indivíduos adotam emoções agradáveis expressas por outros em suas publicações (FERRARA e YANG, 2015; HANCOCK, GEE, CIACCIO e LIN, 2008; KRAMER, GUILLORY e HANCOCK, 2014). Assim sendo, as perspectivas da comparação social e do contágio emocional predizem formas opostas que afetam os usuários de mídias sociais.

Fonte: encurtador.com.br/eyzCI

O Instagram provê informação sobre vasta quantidade de outras pessoas, sobre o que elas estão fazendo, como estão se sentindo. A partir disso, os usuários usam tais informações para aprenderem sobre sua própria situação, comparando-se a si próprios e suas vidas às dos outros, baseados na informação que recebem sobre estes (FESTINGER, 1954 apud DE VRIES et al. 2018). Desse processamento que mira o alvo de comparação, decidem se estão melhores ou piores que ele (DIJKSTRA et al., 2010; FESTINGER, 1954 apud DE VRIES et al. 2018,) resultando em entusiasmo, excitação (WATSON et al., 1988 apud DE VRIES 2018), sentimentos de alívio e orgulho ou frustração e ressentimento.

 Em ambos os casos, dos afetos positivos ou negativos, percebe-se uma questão de autoestima que motiva as publicações e também atua na forma de reagir dos usuários, seja através da interpretação dos conteúdos ou da comparação social no âmbito virtual. Martin (2003) apud Elena (2017) vê a autoestima como “um conceito, uma atitude, um sentimento, uma imagem”, sendo tais aspectos representados pelo comportamento. Também é tida como sentimento de apreço ou rejeição junta à avaliação global que um faz de si mesmo (ROJAS, 2008 apud ELENA, 2017).

Branden (1995) vê muito mais que o sentido inato do valor pessoal, isso seria a antessala da autoestima que, por sua vez, consumada, é a experiência fundamental da capacidade de levar uma vida significativa e de cumprir seus requisitos. Isso implica a capacidade de pensar, de enfrentar desafios básicos da vida, a confiança no direito de triunfar e ser feliz. Para Rojas (2016), a autoestima é fundamental para a sobrevivência psicológica, sendo o final da travessia de uma personalidade bem estruturada. Trata-se de juízo positivo de uma pessoa sobre ela própria, após conseguir personalidade onde elementos físicos, psicológicos, sociais, profissionais e culturais formam estrutura coerente, a qual o sujeito dá uma nota valiosa. Logo, conclui Elena (2017), a autoestima é fenômeno psicológico e social.

Em meados do ano 2019 o Instagram testou uma função que ocultou o número de curtidas das publicações, de modo que apenas os donos das contas tinham acesso a esses dados e, ao contrário do que ocorria antes, não seus seguidores, os quais poderiam ver a lista dos que curtiram, mas, teriam de contar manualmente se quisessem saber o total. Segundo a plataforma, a expectativa era entender se tal mudança poderia ajudar os usuários a focar menos em curtidas e mais em contar suas histórias. Além disso, a nova função baseou-se na questão de a contagem de likes ser negativamente ligada à saúde mental dos usuários (BARROS, 2019). Resta saber se a ideia deu certo, fica em aberto uma lacuna do conhecimento para profissionais da Psicologia, bem como estagiários, investigarem através da pesquisa.

Fonte: encurtador.com.br/oCGT7

Referências

ALTER, Adam. What happens to your brain when you get a like on Instagram.  Disponível em:<https://www.businessinsider.com/what-happens-to-your-brain-like-instagram-dopamine-2017-3>. Acesso em 05 de agosto de 2020.

BARROS, Larissa. Nada de Likes! Instagram testa função que esconde número de curtidas nos posts. Disponível em: <https://www.purebreak.com.br/noticias/instagram-sem-curtidas-entenda-por-que-os-likes-sumiram/88345 >. Acesso em 06 de agosto de 2020.

BERRY et al. Social media and its relationship with mood, self-steem and paranoia in psychosis. Disponível em: < https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1111/acps.12953 >. Acesso em 04 de agosto de 2020.

BRANDEN, Nathaniel. Los seis pilares de la autoestima. Barcelona: Paidós, 1995. Disponível em: < https://doku.pub/documents/los-seis-pilares-de-la-autoestima-nathaniel-branden-vel9pkmkxkqy>. Acesso em 06 de agosto de 2020.

DE VRIES, Dian et al. Social Comparison as the Thief of Joy: Emotional Consequences of Viewing Strangers’ Instagram Posts. Disponível em: < https://pure.uva.nl/ws/files/32306200/Social_comparison_as_the_thief.pdf >. Acesso em 06 de agosto de 2020.

DIGITAL 2020: BRAZIL. Disponível em: < https://datareportal.com/reports/digital-2020-brazil>. Acesso em 04 de agosto de 2020.

DIGITAL 2020: 3.8 BILLION PEOPLE USE SOCIAL MEDIA. Disponível em: <https://wearesocial.com/blog/2020/01/digital-2020-3-8-billion-people-use-social-media >. Acesso em 04 de agosto de 2020.

ELENA, Zenteno Duran María. La Autoestima y como mejorarla. Revista Ventana Cientifica. v. 8. Tarija, 2017. Disponível em: < http://www.revistasbolivianas.org.bo/scielo.php?pid=S2305-60102017000100007&script=sci_arttext&tlng=es >. Acesso em 06 de agosto de 2020.

FIRESTONE, Lena. Which is Worst for Your Mental Health: Instagram, Facebook or YouTube? Disponível em: <psychalive.org/worst-mental-health-instagram-facebook-youtube/>. Acesso em 05 de agosto de 2020.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

IMME, Amanda. Ranking das redes sociais: as mais usadas no Brasil e no mundo, insights e materiais gratuitos. Resultados Digitais. Disponível em: <https://resultadosdigitais.com.br/blog/redes-sociais-mais-usadas-no-brasil/ >. Acesso em 04 de agosto de 2020.

INSTAGRAM. Wikipedia. Disponível em: < https://en.wikipedia.org/wiki/Instagram >. Acesso em 04 de agosto de 2020.

LIRA et al. Uso de redes sociais, influência da mídia e insatisfação com a imagem corporal de adolescentes brasileiras. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/jbpsiq/v66n3/0047-2085-jbpsiq-66-3-0164.pdf >. Acesso em 04 de agosto de 2020.

OTERO, Ana de Luis. Instagram: la autoestima comprometida. Disponível em: < https://periodistas-es.com/instagram-la-autoestima-comprometida-108340 >. Acesso em 06 de agosto de 2020.

ROJAS, Enrique. SOBRE LA AUTOESTIMA. Disponível em: < https://ieip.es/wp-content/uploads/2016/09/erautoestima.pdf >. Acesso em 06 de agosto de 2020.

#StatusofMind. RSPH. Disponível em: <https://www.rsph.org.uk/our-work/campaigns/status-of-mind.html>. Acesso em 05 de agosto de 2020.

TRIFIRO, Briana. Instagram Use and It’s Effect on Well-Being and Self-Esteem. Disponível em: < https://digitalcommons.bryant.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1003&context=macomm>. Acesso em 04 de agosto de 2020.

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A dependência afetiva nas redes sociais

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Quando se vive em demasia no virtual, as habilidades sociais são perdidas ou não aprendidas e a tolerância e empatia com o diferente acabam não se desenvolvendo.

Pode-se observar claramente uma dependência que fica evidente nas redes sociais, onde usuários buscam que outros façam uma averiguação, avaliação e validação de suas vidas e isso pode demonstrar, em alguns casos, que apenas não estão convencidos do que são virtualmente ou da forma como vivem no real. Essa fragilidade pode ser anterior ao uso da internet e, com esta, apenas eclodiu com o uso das ferramentas de redes sociais que, implicitamente, mostram a insatisfação e a insegurança das pessoas consigo mesmas.

Vê-se todos os dias pessoas fazendo postagens onde exibem algo da sua vida no intuito de buscar uma auto-afirmação: “eu tenho o melhor carro”, “eu tenho amigos importantes”, “eu sou uma pessoa religiosa”, “eu sou uma pessoa linda”. Esse ego exagerado tem a função de compensação que acaba criando uma pessoa com fixação em agradar e ser agradada o tempo todo e que busca nos “likes” uma gratificação e exaltação de que ela aparentemente tenta construir nas postagens.

Dessa forma as redes sociais podem funcionar como um escudo protetor que na verdade nos priva de ter um real contato com a vida, pois podemos ser quem idealizamos ao mesmo tempo que falamos o que queremos, podendo apenas bloquear o perfil daquele que vai contra nosso ego. Bauman (2001) fala que tudo o que era sólido se liquidificou, o que reverberou também nas relações sócio/afetivas, agora regidas a partir de acordos temporários, passageiros, válidos até uma segunda ordem.

Fonte: encurtador.com.br/glnIL

Neste sentido, quando ocorre uma frustração com algo ou alguém, ao invés de ter um diálogo, as pessoas recorrem às redes para despejar palavras na intenção de achar outro que apóie seu discurso que acaba sendo apenas um eco da própria voz – as chamadas bolhas políticas. Então quando se vive em demasia no virtual, as habilidades sociais tendem a ser perdidas ou não aprendidas e a tolerância e empatia com o diferente acaba não se desenvolvendo.

A rede social Instagram retirou a quantidade de “likes” na tentativa de resgatar o que foi proposto no início, que era mostrar momentos da sua vida sem a importância da popularidade. A idéia é que os usuários possam buscar por conteúdos que realmente sejam atrativos e não porque determinado perfil é famoso, se desprendendo desse mundo de números e recompensas.

Na psicanálise existe o conceito de gozo imagético que está relacionado com a imagem que o sujeito constrói de si, e o tipo de prazer que a pessoa sente com isso. Mas quando se fala de gozo, na psicanálise, acaba se remetendo a Lacan que fala que o gozo vai além do prazer, pois a pessoa deseja ser mais especial que todas as outras.

Fonte: encurtador.com.br/stwP3

Portanto, o uso de qualquer rede social deve ser um ponto de reflexão, se estamos usando ou sendo usados a fim de perceber se o prazer que temos ali é real. Se existe espaço para autenticidade e aceitação das diferenças como algo comum e assim preservar a saúde mental. Compreendendo que o virtual não é de todo mal, mas não deve ser substituto das relações fisicamente próximas, pois é com o embate de ideias e com o diferente que se aprende.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

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Ideal de corpo a partir de assimilação/aprendizagem pela mídia

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Cai as fronteiras entre os famosos e seus seguidores. Os próprios jovens e adultos jovens – ou qualquer outro indivíduo comum –, hoje, se veem impelidos a aspirar à fama

A excessiva preocupação com o corpo, sobretudo no que se refere a um ideal de corpo para homens jovens, não é algo que tenha eclodido do século XX para o XXI e, logo, não se trata de uma invenção contemporânea e/ou disciplinar ao estilo foucaltiano, mas, antes, um modo de encarar a masculinidade que remete desde a Grécia Clássica (GOLDIHILL, 2007). Ainda assim, é inegável o papel que as modernas tecnologias de informação (através das mais variadas plataformas e mídias) exercem para que o corpo, na contemporaneidade, ocupe o lugar central na constituição de um modelo de bem-estar subjetivo (LIPOVETSKY, 2007) calcado em discursos tecnocientíficos e mercadológicos que chancelam o autocuidado como uma das instâncias inalienáveis deste período histórico (BAUMAN, 2008).

Neste contexto, os jovens contemporâneos superam o ideal de sucesso e felicidade não com a perspectiva de acréscimo de bens materiais e conquistas de longo e médio prazos, algo que pautava a Modernidade Sólida – numa referência que Bauman (2008) faz a busca por segurança que marcou os séculos XIX e XX – mas, antes, ao encontrarem no corpo a última fronteira para um dos mais disputados territórios pós-modernos, o uso dos prazeres (LOCKE, 1997). E esta dinâmica, em parte pode ocorrer por um processo de assimilação e/ou aprendizagem oriunda da mídia (DEBORD, 1997).

Fonte: encurtador.com.br/cuE04

Ora, se o Renascimento e, mais à frente o Iluminismo, é uma ruptura com aproximadamente mil anos de desprezo pelo corpo, num extremo que Nietzsche (2005) identifica como o niilismo e a moral asceta cristã, por outro lado, num desdobramento sem precedentes, o momento atual é de uma afirmação da imanência onde a dialética da positividade – num cenário onde se é proibido proibir – (HAN, 2015) aponta para o corpo como uma das últimas fronteiras de autorrealização – num cenário de defesa da saúde e educação pelo corpo –, já que a felicidade como algo a ser alcançada pelo corpo coletivo, pela sociedade como um todo, parece ser uma utopia que foi enterrada desde a queda do Muro de Berlin (PONDÉ, 2014).

Vale ressaltar que ainda nas décadas de 70 e 80 do século XX (FOUCAULT, 1999) observou-se que as tentativas de padronização e, depois, realce dos corpos configuraram-se, na verdade, como uma espécie de docilização, que nada mais é que uma tentativa de a sociedade exercer poder sobre os corpos individuais dos sujeitos, seja para docilizá-los, no sentido de discipliná-los a um conjunto de regras, seja para que estes alcancem o máximo de eficácia dentro do sistema liberal de produção.

Fonte: encurtador.com.br/beuwz

A configuração destas relações de forças ocorre de maneira sistêmica, onde ainda não se pode dizer que as diretrizes sobre um ideal de corpo saem exclusivamente desta ou daquela instituição de caráter hegemônico. Antes, é fruto de acordos que envolvem vários dispositivos. Não se pode negar que entre estes dispositivos se destacam os produtos midiáticos de teor pegagógico – aqui apontados como filmes, programas de TV, novelas, jornais, telejornais, webjornais, propagandas, tutoriais em redes sociais eletrônicas, etc –, que apresentam modelos identitários que, de longe, mostram um sujeito para além de um ‘homem de massa’ (EHRENBERG, 2010), agora revestido de uma performance aparentemente individual – só aparentemente, pois a performatividade deixa de ser original quando o que a move, ou seja, o desejo de realização pessoal pela espetacularização da própria vida (DEBORD, 1997) não se restringe mais a uma classe artística distante. Qualquer um, pelo disciplinamento adequado em relação ao corpo e, seguidas as formas de interações nas mídias sociais eletrônicas, estaria apto a alcançar tal patamar. Surge a era do protagonismo. Neste caso em particular, é de se chamar a atenção a quantidade de personais trainers, por exemplo, que têm perfis em redes sociais online de compartilhamento de fotos e vídeos entre seus usuários, e que exercem discursos de autoridade diante de uma plateia virtual que replica tais categorias para suas relações cotidianas, notadamente no que se refere a construção de um ideal de corpo.

Neste ínterim, para Dornelas; França (2014) a ostentação se generaliza entre os jovens de todas as camadas sociais. Um marco foram os chamados “rolezinhos” ocorridos em São Paulo-SP em 2013, quando muitos jovens de periferia – negros, em sua maioria – ocuparam alguns dos maiores shoppings da capital paulista para fazer uma celebração ao consumo. Isso ocorre porque parte da música consumida por estes jovens – o funk, sobretudo – não mais faz referência exclusiva a atos de resistência e denúncias sociais. Os modos de inserção, de aceitação pelo outro agora são atravessados pela esfera do consumo. Mesmo que não ocorra o ato em si do consumo, estar num templo do consumo, entre amigos, já cria a esfera de pertencimento. Desta forma, na esteira das tentativas de se fazerem reconhecidos e levando-se em conta que o consumo substitui simbolicamente a cidadania (KEHL, 2012), os jovens não apenas têm que comprar, eles precisam se adornar e tornar públicos estes adereços (DORNELAS; FRANÇA, 2014), seja através de encontros presenciais, seja através da publicização em redes sociais eletrônicas.

Fonte: encurtador.com.br/pqz79

Por trás deste movimento – o que em alguma medida pode configurar, também, parte da motivação da procura por ideais de corpo – é a busca do sucesso como meta. Desta forma, cai as fronteiras entre os famosos e seus seguidores. Os próprios jovens e adultos jovens – ou qualquer outro indivíduo comum –, hoje, se veem impelidos a aspirar à fama, afinal um dos maiores medos da contemporaneidade é a invisibilidade (BAUMAN, 2007). Neste sentido, a ostentação tem sido traço balizador de socialização, configurando como poder de barganha e indicativo de percursos que almejam o sucesso, mesmo que não se possa saber, ao certo, se tal contenda irá se concretizar.

Sobre este tema Baudrillard (1995) sustenta que o consumo pode se configurar como um desejo de ascendência social, já que se configura como uma oportunidade rápida de inclusão. O consumo material ou cultural como compulsão, por esta ótica, funciona como um compensador das deficiências sociais historicamente estabelecidas, possibilitando a aparente ascensão de classe. Ostentar pelo consumo ou afirmação do corpo como instrumento de poder (BIRMAN, 2012), assim, são tentativas de se criar espaços de afirmação e de reconhecimento (PEREIRA, 2013).

Já a pedagogia do corpo (EHRENBERG, 2010), que passa a ser medido, aumentado ou diminuído (no sentido de obter hipertrofia ou perder peso) e tonificado, antes mesmo de ser amplamente disseminado nas redes sociais foi a tônica de ideais corporificados em filmes e, no campo empresarial, saudado como exemplo a ser seguido no que tange aos protocolos de ascese que levam a mudanças rápidas no mercado de trabalho, pois o cuidado com o corpo é um dos exemplos da materialização da hiper-racionalização das práticas sociais (BIRMAN, 2012).

Fonte: encurtador.com.br/mFWY5

É possível mudar o corpo com relativa facilidade, num sistema de autogestão que realça a individualidade e o sentido de protagonismo pessoal, também é possível impingir tais transformações em outras esferas da vida, como no campo afetivo e profissional, e nas relações de comunicação, agora mediadas pelas mídias sociais eletrônicas (BAUMAN, 2008).

Mas, neste ínterim, indaga-se qual o peso dos produtos midiáticos sobre a base subjetiva dos jovens, e se é possível aferir que tais produtos midiáticos impactam na forma como os sujeitos traçam suas estratégias de vida. Para Ehrenberg (2010) e Chauí (2006), estes produtos – notadamente os que estão de acordo com um ideal de bioascese (excesso de autogerenciamento com o próprio corpo, que gera autorreferencialidade subjetiva) se assemelham aos programas de treinamento dos atletas e, por sua vez, podem se configurar como um convite implícito a uma dinâmica performativa por parte do sujeito. As redes sociais eletrônicas, neste contexto, se apresentam como um cenário perfeito de troca do espaço privado pela dimensão da exposição pública, já que o protagonismo não pode ocorrer às escuras, é necessário publicizá-lo. Ainda não se pode aferir com exatidão, no entanto, qual o real impacto dos produtos midiáticos sobre este ideal de corpo, embora se saiba que a mídia produz simulacros (CHAUÍ, 2006) que acabam servindo de fontes balizadoras de padrões comportamentais, em que pese a pouca quantidade de estudos sobre o tema no país.

De qualquer forma, no cenário sociológico (BAUMAN, 2008) e filosófico (DEBORD, 1997) se percebe, através de métodos dedutivos e estudos de casos, que à medida que as sociedades se desenvolvem tecnologicamente elas tendem a comportar – ou até mesmo a estimular – a espetacularização individual das vidas de seus componentes, que se alternam entre ‘atores’ e ‘espectadores’ numa dinâmica que se retroalimenta e se expande a uma velocidade relativamente constante. Desta forma, o corpo como palco de representação de um modo de ser não mais se restringe aos ambientes puramente esportivos. Ele é perseguido nas corporações, nas relações afetivas e, também, nos modelos identitários interpelados pelos produtos midiáticos (EHRENBERG, 2010).

Fonte: encurtador.com.br/bkGLV

O corpo esculpido então passa a ser a explicitação de um ideal de realização do sujeito, ideação esta implícita na dinâmica de forças políticas e nos discursos que permeiam as narrativas midiáticas, particularmente a partir dos heróis retratados nos cinemas, nos protagonistas de programas de TVs e nos tutoriais diversos de redes sociais eletrônicas, onde o discurso de autossuperação ganha a tônica e norteia o paradigma da autorreferencialidade que, em casos extremos, pode levar ao narcisismo patológico (FREIRE COSTA, 2004).

Assim, um corpo esculpido e tonificado pela ascese resultante de atividades físicas regulares, estimuladas pelos produtos midiáticos com teor pedagógico, configura-se então como uma forma de capital pessoal (GOLDENBERG, 2010) – assim como o processo educativo, em si, já se inscreve em tal cenário – que na contemporaneidade pode ser exaltado de diferentes formas, notadamente a partir de uma comunicação não linear, constituída a partir da exaltação de um sujeito individual, que produz e (re)produz a si próprio, sobretudo na forma como se apresenta esteticamente para o mundo.

Fonte: encurtador.com.br/deiwU

Referências

BAUMAN, Z. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. São Paulo: J. Zahar, 2008.

BIRMAN, J. O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

CHAUÍ, M. Simulacro e poder. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006.

DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

DORNELAS, R.; FRANÇA, V. No Bonde da Ostentação O que os “rolezinhos” estão dizendo sobre os valores e a sociabilidade da juventude brasileira? Revista Eco Pós, v. 17, n. 3, 2014. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/eco_pos/article/view/1384>. Acesso em: 02 dez. 2017.

EHRENBERG, A. O culto da performance: da aventura empreendedora à depressão nervosa. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2010.

FOULCAULT, M. A ordem do discurso. 5. ed. São Paulo: Loyola, 1999.

FREIRE COSTA, J. O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.

GOLDENBERG, M. O corpo como capital. Rio de Janeiro: Estação das Letras, 2010.

GOLDHILL, S. Amor, sexo & tragédia: como os gregos e romanos influenciam nossas vidas até hoje. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

HAN, B. C. Sociedade do Cansaço. São Paulo: Vozes, 2015.

KEHL, M. R. A juventude como sintoma da cultura. 2012. Disponível em: <https://pt.scribd.com/doc/166494178/A-Juventude-Como-Sintoma-Da-Cultura>. Acesso em: 01 dez. 2017.

LIPOVESTKY, G. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

LOCKE, D. Ensaio acerca do entendimento humano. São Paulo: Nova Cultural, 1997. (Coleção Os Pensadores).

PEREIRA, A. B. Rolezinhos: o que esses jovens estão roubando da classe média do Brasil? [25 dez. 2013]. Portal Geledés. Entrevista concedida a Eliane Brum. Disponível em: <www.geledes.org.br/em-debate/colunistas/22538-rolezinhos-o-que-estes-jovens-estao-roubando-da-classe-media-brasileira-poreliane-brum>. Acesso em: 28 jan. 2014.

PONDÉ, L. F. A era do ressentimento. São Paulo: Leya Brasil, 2014.

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Vende-se

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Luzes! Ela subiu no palco. Que espetáculo era mesmo aquele? Não, não era espetáculo. Era um show de novidades! Promoção com preços de ponta de estoque. Quem der mais leva. Mas paga quanto? Leva como?

Leva aquilo que der pra levar: um sorriso, uma pose, um “eu sou boa demais para você”, um beijinho no ombro para o desespero das inimigas, um “olha minha barriga de tanquinho”, um coração selvagem que não se apega a ninguém, mas carrega nas entrelinhas uma placa com os dizeres: Me pega para o teu mundo!
Está valendo tudo e a troco de quase nada. Me segue? Troco likes. Sigo de volta. Curto duas fotos. O que vale na selfie não é a pose, mas sim a frase sublimar da legenda. Tem post novo no blog, vai lá e confere a minha opinião. Compartilha?

Não basta existir, é preciso provar que se existe da melhor maneira possível. E se for pior? Que seja também da melhor forma. Quantos likes esse sorriso triste merece? Se você gosta compartilha, se não gosta, curte. Se acreditar em Deus, comenta.

Vende-se uma opinião. Contra ou a favor, não importa! Desde que esteja na moda. Moda? Não. No top trend! E não esqueça das hashtags #showdoeu #meame #euprecisoaparecer #narcisista? #alienado? #serhumano

Famoso! Um milhão de amigos, duas mil curtidas por postagem, três milhões de seguidores e apenas um único contato no item: em caso de emergência ligar para…

Não fuja do padrão, estamos de olho em você. Mas não nem preciso. Eu faço questão de te mostrar. É só visitar a minha timeline. Curtiu?

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