Congruências e limites entre a teologia e a psicologia no cuidado individual e promoção de saúde mental

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O Portal (En)Cena entrevistou o Teólogo e Pastor Thomás Franco Teixeira Dias. Atualmente ele está a frente da Primeira Igreja Batista de Palmas, é Professor na área de Culto Cristão no Seminário Batista e Vice- Presidente da Convenção Batista do Tocantins. Ele é formado em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo e possui especializações em liderança avançada, gestão de pessoas e comunicação. Nessa entrevista, falamos um pouco sobre as congruências e limites entre a teologia e a psicologia e as possíveis contribuições destas áreas para a saúde da comunidade.

(En)Cena: Como você chegou à sua posição como pastor e quais são suas experiências e formação religiosa?

Thomás F. T. Dias:  Nasci em uma cidade do interior de São Paulo e cresci em um lar cristão. Aos 20 anos de idade me mudei para capital onde fui cursar Bacharelado em Teologia na Faculdade Teológica Batista de São Paulo. Formei-me em 2004, ano em que fui ordenado ao ministério pastoral pela Igreja Batista em Perdizes. Comecei minha atuação como pastor auxiliar nesta mesma igreja onde permaneci até 2007 quando me mudei para Palmas e passei a atuar como pastor auxiliar na Segunda Igreja Batista de Palmas até 2012. Depois disso, fiquei um período longe do ministério para me dedicar a um projeto pessoal, mas não deu certo. O chamado ministerial foi mais forte e retornei ao ministério em 2016 como pastor auxiliar, agora na Primeira Igreja Batista de Palmas, onde hoje sou o pastor presidente. Durante os anos de ministério me especializei em Liderança Avançada, Gestão de Pessoas e Comunicação, pelo Instituto Haggai Brasil.

(En)Cena: Como sua formação religiosa influenciou sua compreensão da psicologia e da saúde mental?

Thomás F. T. Dias: Tive grande influência de um pastor, que foi meu professor na matéria de Aconselhamento Pastoral durante meu curso de Teologia. Professor Silas Molochenco, doutor em psicologia pela PUC-SP, mostrou aos alunos a importância de valorizar e compreender a psicologia como ferramenta fundamental para saúde mental, inclusive mostrando as diferenças entre o aconselhamento pastoral e o profissional da psicologia. Desde então, sempre procurei manter em meu ministério contato com bons profissionais para que eu possa encaminhar pessoas que precisam de uma ajuda profissional.

(En)Cena: Como você vê o papel do aconselhamento religioso na vida das pessoas e nas questões de saúde mental?

Thomás F. T. Dias: Para um pastor batista, a Bíblia é considerada sua única regra de fé e prática, por isso, o papel do aconselhamento religioso é uma forma de ajudar as pessoas que precisam de orientação a aperfeiçoar sua fé e desenvolverem atitudes e pensamentos orientados pelos princípios bíblicos. A maioria das pessoas que procuram um pastor para aconselhamento, geralmente estão sofrendo por algum motivo. Existem outras razões, mas posso dizer que o sofrimento é a grande demanda do aconselhamento pastoral. Minha fé e prática mostram que os ensinamentos bíblicos são muito relevantes para alguém que está sofrendo. Eu poderia usar o luto como um exemplo, ou mesmo uma família que enfrenta dificuldades em seus relacionamentos. Existe inúmeros exemplo de personagens bíblicos que passaram por situações semelhantes e que podem ajudar a exemplificar o que fazer e também, o que não fazer. Para isso, é importante utilizar princípios cuidadosos de interpretação, entendendo o contexto em que uma história bíblica está inserida e fazendo assim um paralelo válido com o presente. Para mim, o aconselhamento religioso não diz respeito a minha opinião sobre um determinado tema e nem à minha capacidade de milagrosamente apresentar uma solução ou cura instantânea, mas sim, respeitando a individualidade de cada um, ajudar as pessoas a enxergar os exemplos bíblicos e por eles guiarem suas atitudes e pensamentos. Quando isso é feito com a seriedade necessária, o resultado positivo é visível.

(En)Cena: Como você percebe a interação entre a psicologia e a religião em questões de saúde mental e bem-estar?

Thomás F. T. Dias: Particularmente, não tenho nenhuma dificuldade com a psicologia, pelo contrário, percebo que quando a psicologia e a religião conseguem caminhar com harmonia, a saúde e o bem-estar das pessoas são amplamente beneficiados; mas não posso ignorar o fato de que em ambos os lados, existem pessoas que não pensam assim, fazendo com que essa interação seja difícil e muitas vezes prejudicial. Nesse mundo globalizado e extremamente polarizado, guerras absolutamente infundadas trazem resultados catastróficos para a saúde mental e bem-estar das pessoas. Historicamente, essa interação sempre apresentou pontos sensíveis, talvez isso seja inevitável, mas para mim, isso nunca foi, e nem deveria ser um problema. Respeito deveria ser o carro chefe, mas infelizmente, o desrespeito tem sido evidenciado e infelizmente valorizado por alguns e de ambos os lados.

(En)Cena: Você já trabalhou com psicólogos ou outros profissionais de saúde mental? Como foi essa colaboração?

Thomás F. T. Dias: Sempre trabalhei. Essa colaboração é muito importante no meu ministério e sempre foi muito tranquila e saudável. Posso dizer apenas que não indico ou trabalho com profissionais que não entendem a religião como uma faceta importante do ser humano. Infelizmente, alguns profissionais de saúde mental, claramente tentam desconstruir e menosprezam o pensamento religioso. Eu, pessoalmente, procurei um profissional há alguns anos, e logo no início da consulta, quando eu disse que era pastor, sua resposta foi: “Vixi, pastor é tudo bipolar”. Na hora, chocado com a sua fala, eu pensei que, ou ele era realmente muito bom para diagnosticar alguém na primeira pergunta, ou era um péssimo profissional. Fiquei com a segunda opção. Infelizmente, reconheço que alguns religiosos também desrespeitam profissionais da saúde mental.

(En)Cena: Quais são os desafios comuns enfrentados pelas pessoas em sua comunidade religiosa em relação à saúde mental e questões psicológicas?

Thomás F. T. Dias: Não sei se os desafios enfrentados pelas pessoas em minha comunidade religiosa são diferentes dos desafios comuns a todos. Hoje, infelizmente o que tem assolado a humanidade é a ansiedade e a depressão. Embora alguns preguem a ideia de que o cristianismo propõe uma vida de facilidades e bênção materiais, não corroboro com essa ideia, aliás, como já disse anteriormente, é preciso interpretar os textos bíblicos com princípios cuidadosos. A bíblia não promete uma vida livre de dificuldades a ninguém. O próprio Jesus disse em suas palavras que “no mundo tereis aflições” e ele continua dizendo em seguida, “mas tende bom ânimo, eu venci o mundo”, esse é o segredo: um olhar realista e esperançoso. O entendimento de que em meio às aflições é possível ressignificar acontecimentos da vida. Muitos cristãos gostam de citar uma passagem bíblica em que o apóstolo Paulo diz, “… em todas essas coisas, somos mais que vencedores” para pregar a ideia de uma vida cheia de vitórias e livre de problemas, mas a questão do texto bíblico é: quais são “todas essas coisas” que o apóstolo Paulo cita? Anteriormente a essa afirmação, ele enumera uma lista de dificuldades e problemas enfrentados diariamente, ou seja, o princípio aprendido com Jesus é o mesmo aplicado por ele, o segredo continua sendo o olhar realista e esperançoso.

(En)Cena: Como você aborda questões delicadas, como depressão, ansiedade e traumas, dentro de um contexto religioso?

Thomás F. T. Dias: Uma coisa importante precisa ser dita, eu não faço diagnóstico de ninguém. A depressão, por exemplo, é um problema que precisa de um diagnóstico clínico. Se eu identifico a possibilidade de um transtorno mental em alguém, o primeiro passo é encaminhar para um profissional. Para as pessoas que procuram o aconselhamento pastoral e que já chegam com um diagnóstico fechado, eu procuro oferecer, como já disse anteriormente, meu conhecimento bíblico para propor atitudes que ajudem as pessoas a superarem suas dificuldades. O princípio é sempre o mesmo, uma correta utilização dos ensinos bíblicos para lidar com todas as questões.

(En)Cena: Que recursos ou redes de apoio estão disponíveis para pessoas da comunidade religiosa que enfrentam desafios de saúde mental?

Thomás F. T. Dias: Oferecer um ombro amigo, um abraço sincero, tempo e atenção para ouvir as pessoas, são recursos abundantes em uma comunidade cristã. Essas atitudes são sempre valorizadas e incentivadas em minha comunidade religiosa. Pode parecer simples, mas talvez seja o que de mais eficiente nós temos em nossa igreja. Esses pequenos gestos são a porta de entrada para se identificar um problema mais sério, que geralmente é encaminhado para o pastor e consequentemente para um profissional na área de saúde mental se for preciso.

(En)Cena: Pode compartilhar histórias de sucesso ou superação que envolve a colaboração entre a religião e a psicologia?

 

Thomás F. T. Dias: Poderia citar inúmeros casos. Na verdade, isso faz parte do meu cotidiano e é algo realmente comum. Já consegui evitar algumas vezes a tentativa de suicídio ao intervir a tempo e encaminhar as pessoas para um tratamento adequado. Recordo-me de outro caso, onde ao atuar com a ajuda de uma profissional, conseguimos identificar um caso de transtorno afetivo bipolar que quase culminou em um desastre familiar. Hoje essa pessoa está muito bem, continua casada, com filhos e desfruta de um ambiente familiar seguro. Esses são exemplos de situações mais graves e que graças a Deus não são tão comuns. Situações mais brandas são corriqueiras e é sempre muito bom poder contar com a ajuda de profissionais capacitados para ajudar as pessoas e principalmente testemunhar o resultado positivo que pode ocorrer quando aliamos a religião à psicologia.

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Livro mostra como lidar com crianças desafiadoras

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Com o objetivo de mostrar como é possível vencer o Transtorno Opositivo-Desafiador, o neurologista infantil Clay Brites e a psicopedagoga Luciana Brites lançam o livro “Crianças desafiadoras”. A proposta é apresentar as melhores estratégias para acabar com a guerra dentro de casa.

O neurologista comenta que o TOD, geralmente, é associado à birra ou confundido como apenas “falta de limites” em crianças e adolescentes. “Isso provoca sofrimento nos pais, pois não conseguem entender o porquê das atitudes do filho e não sabem que o transtorno está além do controle da pessoa”. 

Ele ainda comenta que é possível identificar algumas características observando as atitudes no dia a dia. Por exemplo, a desobediência, as constantes confusões que se envolve, é agressivo, violento e possui um jeito ríspido de lidar com as pessoas, demonstra dificuldade na interação social. “Esses fatores são indícios de que é possível que o filho tenha o Transtorno Opositivo-Desafiador”. 

Fonte: Arquivo Pessoal

A psicopedagoga Luciana Brites reforça ainda que apenas pais e cuidadores sabem da preocupação de não estar criando um filho da maneira correta. “Muitos se sentem frustrados com as dificuldades que enfrentam dentro de casa”.

–  O livro vai servir para esclarecer todas as suas dúvidas e saber diferenciar o que é uma simples birra do TOD. Em caso positivo, os pais também vão saber como lidar com esse transtorno. Queremos ajudar as famílias a cuidar bem dos filhos e terem uma vida mais tranquila e feliz – conclui.

Sobre os autores

Clay Brites é pediatra e Neurologista Infantil, Doutor em Ciências Médicas e Membro da ABENEPI-PR e SBP. Luciana Brites é especialista em Educação Especial na área de Deficiência Mental, Psicopedagogia Clínica e em Psicomotricidade, além de ser coordenadora do Núcleo Abenepi em Londrina.

Luciana e Clay têm três filhos e são confundadores do Instituto NeuroSaber, que tem como objetivo compartilhar conhecimentos sobre aprendizagem, desenvolvimento e comportamento da infância e adolescência.

 

Livro Crianças Desafiadoras

Kindle: R$24,90

Capa Comum: R$33,16

Capa comum: 160 páginas

Editora: Gente

Idioma: Português

ISBN-10: 8545203616

ISBN-13: 978-8545203612

Dimensão: 23 cm x 16 cm

Link para comprar

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Projeto Flórida: o mundo mágico da infância

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Concorre com 1 indicação ao Oscar:

Melhor ator coadjuvante (Willem Dafoe)

Verdadeiro e de partir o coração” foi como o crítico Tim Grierson definiu a mais nova obra do ousado Sean Baker, diretor de Tangerine, este conhecido por ter sido produzido em um aparelho celular. Agora, com mais recursos, Baker volta com Projeto Flórida, simples, mas cheio de detalhes que se complementam e prendem o espectador na trama, que com sua sequência cotidiana, denota um aspecto quase documental ao filme.

Situado na cidade de Orlando, na Flórida, o hotel Magic Castle é o pano de fundo principal do filme. Próximo ao parque Disney World, o hotel (barato) foi praticamente transformado em um conjunto habitacional por pessoas que não têm as melhores condições financeiras. Isso ocorre a contragosto do gerente Bobby (Willem Dafoe), que deseja alavancar seu negócio, mas também se mostra um homem compassivo e generoso com todos no estabelecimento, transmitindo um clima de vida em comunidade.

Fonte: https://goo.gl/RyBJny

Nesse ambiente (que Baker faz questão de atenuar cada detalhe, principalmente as cores vibrantes do hotel) logo nos deparamos com a sapeca Moonee (Brooklynn Prince), uma garotinha de seis anos que, junto de seus amigos Scooty (Christopher Rivera) e Jancey (Valeria Cotto) faz traquinagens deliberadamente pelo hotel, pelas ruas, pela sorveteria e em outro hotel abandonado (que de alguma forma acaba sendo incendiado…).

Ao conhecermos a mãe de Moonee, a jovem Halley (Bria Vinaite) logo percebemos que somente amor e carinho não são suficientes para uma boa educação de uma criança. Sem emprego e sem perspectivas para o futuro, Halley trata Moonee como irmã, sem impor limites em suas travessuras, o que certamente reflete na personalidade e atitudes da garota, que faz coisas como colocar um peixe morto na piscina e desligar o registro de energia do hotel só para ver o que acontece, tal como agir com certa petulância e desrespeito com as pessoas ao seu redor.

Fonte: https://goo.gl/2ky24q

Entretanto, essa liberdade e essa curiosidade de Moonee demonstram um aspecto inocente que encontramos apenas na infância, que fazem das crianças “pequenos cientistas” no intento de descobrir o que o mundo tem a oferecer. Jostein Gaarder, em seu livro “O mundo de Sofia” (1995), diz que para nos tornarmos bons filósofos precisamos unicamente da capacidade de nos surpreender, e atribui essa capacidade às crianças. A pequena Moonee representa muito bem esse trecho, sendo capaz de transformar coisas que geralmente passam despercebidas aos olhos de adultos em grandes acontecimentos por meio da imaginação, inclusive influenciando sua amiga Jancey a buscar o novo e o desconhecido.

Segundo Girardello (2011), a imaginação é para a criança um espaço de liberdade e de decolagem em direção ao possível, quer realizável ou não. A imaginação da criança move-se junto — comove-se — com o novo que ela vê por todo o lado no mundo. Sensível ao novo, a imaginação é também uma dimensão em que a criança vislumbra coisas novas, pressente ou esboça futuros possíveis.

Fonte: https://goo.gl/3MjuFs

Com isso, percebemos a importância em se preservar esse aspecto da infância. No que tange à situação de Moonee, a imaginação, a inocência e a curiosidade de sua tenra idade parecem lhe conferir um arsenal de defesas para as coisas “adultificadas” demais, como os problemas financeiros, a falta de moradia fixa e o desemprego da mãe, que para conseguir o mínimo de dinheiro, finda-se por se prostituir em seu quarto no Magic Castle, o que leva a assistência social a visita-las a fim de levar Moonee para novas e melhores condições.

Em um ímpeto de desespero, Moonee se desvencilha da assistência social e foge para a casa de Jancey, dando início a uma das cenas mais marcantes do filme, na qual Moonee apenas chora na frente de sua amiga (a pequena atriz foi brilhante e muito autêntica) e essa entende que ambas precisam fugir. E fogem para onde? Para Disney World, o mundo da magia.

Fonte: https://goo.gl/nNbpjL

Baker genialmente finaliza o filme dessa forma, com as duas crianças correndo em direção ao parque mais representativo da infância, o que pode levar o espectador a ter vários insights, mas, principalmente, entender ou até mesmo se lembrar da própria infância, período em que coisas simples são incríveis, em que o impossível não existe e em que correr para um mundo de magia e/ou imaginação é a solução para tudo.

FICHA TÉCNICA

PROJETO FLÓRIDA

Diretor: Sean Baker
Elenco: Brooklynn Prince, Willem Dafoe, Bria Vinaite
Gênero: Drama
Ano: 2018

Referências:

GAARDER, Jostein. O Mundo de Sofia. São Paulo; Cia. Das Letras, 1995. GILES, Thomas Ransom.

GIRARDELLO, Gilka. Imaginação: arte e ciência na infância. Pro-Posições, Campinas, v. 22, n. 2 (65), p. 75-92, maio/ago. 2011.

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Capitão Fantástico: entre a paixão e a ilusão

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Com uma indicação ao OSCAR: 

Melhor Ator

Banner Série Oscar 2017

O que seria do mundo sem os revolucionários, capazes de viver e morrer por uma causa?
Que força move uma revolução se não uma grande paixão?
E o que é a paixão senão uma grande ilusão?
Paixão e ilusão, a partir da psicanálise, são fenômenos indissociáveis e radicalmente ligados ao narcisismo primário.[1]

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Em Capitão Fantástico, Ben (Viggo Mortensen) e Leslie (Trin Miller) não apenas se apaixonaram, mas decidiram viver uma realidade alternativa, criando seu próprio mundo ideal. Acreditaram que era possível e o fizeram. A história não revela muito do passado de Ben, mas Leslie deixou uma carreira jurídica bem sucedida e seguiu com marido e os filhos para viver uma experiência única, conforme descreveu em uma carta para a mãe:

“O que eu e Ben criamos aqui pode ser único em toda a existência humana. Criamos o Paraíso fora da República de Platão. Nossos filhos serão reis filósofos. Isso me deixa tão indescritivelmente feliz. Eu vou melhorar aqui, sei que vou, porque somos definidos por nossas ações, não palavras.”

Na floresta, longe do contato com a cultura dominante, eles criam os filhos, estabelecem regras e limites próprios, com rituais de passagem, divisão de tarefas, disciplina rígida, educação de alta qualidade direcionada pelos pais, e muita liberdade de expressão. A família é a busca do sonho utópico relatado por Platão em sua obra A República[2], onde as paixões são controladas, o egoísmo superado e as pessoas agem racionalmente.

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A racionalização, aliás, se mostra como o principal mecanismo de defesa dos membros quando os sofrimentos aparecem. É através dela se explica a vida e a morte e se lida com qualquer dificuldade. Mas esse mecanismo mostra falhas quando a realidade externa começa a se impor e toda a dinâmica de funcionamento, até aquele momento voltada para dentro, para o núcleo familiar, precisa se adaptar às relações exteriores. As crianças foram criadas para serem fortes física e emocionalmente, e preparadas intelectualmente para qualquer situação. Entretanto, fora da proteção do lar, situações triviais começam a expor as fragilidades desse sistema e trazer à tona conflitos internos.

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É através dos traumas, das dores e perdas que, passo a passo, a realidade vai se impondo no seio daquela família utópica. A felicidade vivida até então se mostra muito mais um sonho dos pais projetado nos filhos, ou conforme a história vai revelando, muito mais o sonho de um homem sobre seu mundo ideal que encontrou na bipolaridade de sua parceira a possibilidade desrealização.

O posicionamento de Ben revela uma personalidade narcisista, com filhos que se tornam uma extensão dos seus sonhos e de suas crenças. Através de seus próprios dispositivos, Ben e Leslie acreditam estar criando humanos perfeitos em um mundo especialmente formatado para eles, mas na verdade tudo é voltado apenas para si mesmos, realidade com a qual Ben se depara ao “provocar” o acidente de uma filha.

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Durante toda a sequencia de acontecimentos percebemos como as crises são importantes para nos confrontar com nossos erros, mesmo quando o mundo parece estar perfeito. Esta perfeição aliás só existe na cabeça de Ben, desde o início é possível perceber na personalidade de cada filho, alguns traços que podem se mostrar problemáticos para o futuro daquela estrutura familiar.

Um dos adolescentes é revoltado com o pai e a mãe, questiona seus valores e demonstra muita agressividade, algo que se explica no decorrer da história. O mais velho, que parece ter internalizado mais as influências de Ben, vive um conflito interno entre satisfazer os desejos do pai ou se lançar para o mundo. Zaja, uma das menores, demonstra frieza frente a qualquer situação, não parece demonstrar muitas emoções, gosta de desossar animais e expor seus troféus.

 

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Capitão Fantástico é, enfim, um enredo que questiona da sociedade capitalista às utopias libertárias, num confronto constante entre realidades e ilusões que se entrelaçam permanentemente. O filme expõe a dualidade entre o autoritarismo e a liberdade, o bom e o ruim e tantas outras presentes no mundo interno e externo de cada um.

Uma história que exibe as contradições internas individuais, familiares, sociológicas e filosóficas, mostrando que nada é perfeito, nem totalmente ruim, mas que tudo o que acreditamos precisa ser questionado. Mostrando ainda como todas as dores, perdas, crises ou conflitos são necessários para que as transformações ocorram e nos aproximemos do equilíbrio.

REFERÊNCIAS:

[1] ROCHA, Zeferino. O papel da ilusão na psicanálise Freudiana. Ágora (Rio J.), Rio de Janeiro ,  v. 15, n. 2, p. 259-271,  Dez.  2012.   Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982012000200004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 12  Fev.  2017.

[2] PLATÃO. A república. São Paulo, Martin Claret.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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CAPITÃO FANTÁSTICO

Diretor: Matt Ross
Elenco: Viggo Mortensen, George MacKay, Samantha Isler, Annalise Basso
País: EUA
Ano:2016
Classificação: 14

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Realismo e anti-realismo: os limites do “observável”

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“O absurdo é a razão lúcida que constata     os seus limites” – Albert Camus

Fonte: blog.questionpro.com

 

Ao estudar a historicidade da Ciência, Thomas Khun (1922-1996) aponta para o caráter coletivista da área, sendo que uma de suas peculiaridades é o âmbito cultural em que tal desenvolvimento [científico] se aflora. Neste processo, as gerações contemporâneas, de forma geral, sempre são beneficiadas pelo acúmulo de descobertas/modelos fornecidos por gerações anteriores, e aceitar o contexto cultural é “condição prévia para fazer ciência”.

Com esta abordagem, Kuhn lança um novo olhar para o “fazer científico”, aparentemente destoante da ideia de que tal área poderia sofrer diretamente as influências do contexto histórico-sociológico. Para Kuhn, a ciência é influenciada pelos dois fatores retratados anteriormente, mas também “o progresso da investigação modifica e desenvolve a cultura recebida”. Haveria, portanto, uma influência de “mão dupla”, onde tanto a ciência (e seu corpo científico) quanto a sociedade se nutrem/intervém mutuamente.

Neste contexto, o conceito de “Ciência Normal” apresentado por Kuhn (o oposto, portanto, do cerne da revolução científica) é fortemente influenciado pela perspectiva da “tradição”, onde o chamado “dogmatismo científico”, responsável por manter certas conquistas, acaba por ser o motor gerador da própria investigação. Assim, o cientista é inserido no dogma “transmitido essencialmente por meio dos manuais científicos”. Kuhn vem alertar, no entanto, que estes textos [contidos em livros e “manuais” científicos] “frequentemente parecem implicar que o conteúdo da ciência é exemplificado de maneira ímpar pelas observações, leis e teorias descritas em suas páginas” (KUHN, 1998, pág. 20). No entanto, de acordo com o autor, caberia aos historiadores (da ciência) “determinar quando e por quem cada fato, teoria ou lei científica contemporânea foi descoberta ou inventada”, num primeiro momento e, em seguida, “descrever e explicar os amontoados de erros, mitos e superstições que inibiram a acumulação mais rápida dos elementos constituintes do moderno texto científico”.

 

 

Vale ressaltar, no entanto, que a dimensão “dogmática” é importante na medida em que “quanto mais dogmática é a formação, tanto melhor poder-se-á reconhecer a vinculação dos cientistas à sua comunidade”. Há, no bojo das comunidades, tensões, pontos em comum e paradoxos que, o tempo inteiro, são mediados/negociados para que se mantenha dado paradigma.

Em Kuhn, a predominante “Ciência normal”, portanto, está baseada na “pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações científicas passadas” (KUHN, 1998, pág. 29). Estas realizações não são apenas reconhecidas, mas chanceladas por dada comunidade científica vigente, que as adotam como “fundamentos para sua prática posterior” (Idem, pág. 29). No centro da “Ciência normal” está a noção de paradigma¹, que juntamente com a própria comunidade científica representa os pilares da investigação. Sendo assim, com o paradigma, os pesquisadores, numa espécie de “consenso eficaz”, estão “de acordo não apenas sobre as descobertas já feitas, mas sobre o que resta descobrir e sobre os métodos a empregar para tanto” (COMTE-SPONVILLE, 2011, pág. 438).

Por tudo o que foi exposto, há de se observar que não é o objetivo da “Ciência normal” desvendar novas classes de fenômenos. Altamente cumulativa, tal abordagem tem no paradigma um mecanismo que acaba por “forçar a natureza a encaixar-se dentro de limites preestabelecidos e relativamente inflexíveis”, assim como os cientistas não estariam “constantemente procurando inventar novas teorias”, pelo contrário, às vezes se mostram arredios diante de circunstâncias que abalem os paradigmas que defendem.

 

Há de se destacar que, neste ínterim, o principal “interesse da ciência normal é o aperfeiçoamento do paradigma, que consiste na determinação de fatos significativos, na harmonização dos fatos com a teoria e na articulação da teoria” (Idem, pág. 3). Desta forma, falta espaço para que novos paradigmas sejam testados, e os cientistas passam a ser vistos, frequentemente e pela visão de Kuhn, como “solucionadores de quebra-cabeças” (KUHN, 1998, pág. 57). De quebra, também não se testa o paradigma escolhido. Assim, nestas circunstâncias a principal tarefa de boa parte dos cientistas “consiste em resolver os problemas que impedem o bom funcionamento do próprio paradigma” (UCB – Aula 3, pág. 3).

“Na verdade, com a imagem mental de um quebra-cabeça, Kuhn quer mostrar que na ciência normal a solução dos problemas e as regras que devem ser adotadas para chegar a essa solução já estão definidas, antecipadamente, pelo paradigma no qual o cientista está inserido. Sem paradigma não há observação, não há problemas. Assim, toda a ciência normal é orientada pelo paradigma”. (UCB – Aula 3, pág. 3)

Realismo e Anti-realismo

De acordo com Samir Okasha (Philosophy of Science: A Very Short Introduction), há uma constante tensão acadêmica entre os filósofos realistas e os anti-realistas. Para os primeiros, “o objetivo da ciência é fornecer uma descrição verdadeira do mundo” (OKASHA, 2002, pp. 58-76). Os anti-realistas, por sua vez, dizem que o objetivo da ciência

“é fornecer uma descrição verdadeira de certa parte do mundo — a parte ‘observável’. Quanto à parte ‘inobservável’ do mundo, não faz diferença se o que a ciência diz é verdadeiro ou não”. (Idem, pp. 58-76)

Sobre a “parte observável do mundo”, de que se refere os anti-realistas, trata-se de tudo o que pode ser percebida “diretamente pelos seres humanos”, a exemplo da paleontologia, cujo objeto observável (os fósseis) são facilmente percebidos, desde que o observador esteja com a visão em condições normais. No entanto, “outras ciências fazem afirmações sobre a região inobservável da realidade. A física é o exemplo óbvio” (Idem, pp. 58-76).

 

Fonte: www.breastfeedingbasics.com

 

Em prosseguimento, realistas dizem que os cientistas interpretam “todas as teorias científicas como tentativas de descrições da realidade”. Os anti-realistas, por sua vez, pensam que “essa interpretação é inapropriada para as teorias que falam de entidades e processos inobserváveis” (Idem, pp. 58-76).

Frontalmente oposto ao realismo, o anti-realismo diz que o conhecimento científico não pode se resumir apenas ao que é observável. Numa de suas abordagens, [o anti-realismo] diz que

“a atitude correta perante as afirmações que os cientistas fazem sobre a realidade inobservável é a de total agnosticismo. Estas são verdadeiras ou falsas, mas somos incapazes de descobrir qual é a opção correta” (Idem, pp. 58-76).

É importante destacar que entidades inobserváveis, como a dinâmica dos elétrons, por exemplo, podem ser “empiricamente bem-sucedidas” (como defendem os realistas, no argumento do “milagre”), no entanto, os anti-realistas sustentam que “há muitos casos de teorias que acreditamos agora serem falsas, mas que foram empiricamente bastante bem-sucedidas em seu tempo” (Idem, pp. 58-76). São vários os exemplos listados ano após ano, de acordo com Okasha. Um dos exemplos usados é a teoria predominante no século XVII de que, quando em combustão, um objeto liberava “flogisto”. “A química contemporânea nos ensina que isso é falso: o flogisto é coisa que não existe” (Idem, pp. 58-76). Apesar de ser uma teoria empiricamente “bem-sucedida”, descobriu-se mais tarde que a combustão se dá “quando as coisas reagem com o oxigênio do ar”.

Sendo assim, infere-se que dados paradigmas perfeitamente acolhidos como inquestionáveis em diferentes períodos, pode sim degenerar caso novas teorias sobre o mesmo objeto se tornem plausíveis. Haveria na “Ciência normal”, portanto, assim como ocorre no movimento realista, uma supervalorização de um conjunto de paradigmas (desde que estes, aparentemente, resultem em testes e ações observáveis).

 

Diante de tantas contradições, os realistas acabaram por alterar um pouco a sua explicação a respeito do “argumento do milagre”. Desta forma

o sucesso empírico de uma teoria é indício de que o que uma teoria diz sobre o mundo inobservável é aproximadamente verdadeiro, ao invés de precisamente verdadeiro. Essa afirmação mais fraca é menos vulnerável a contra-exemplos da história da ciência. É também mais modesta: permite ao realista admitir que as teorias de hoje podem não estar corretas em todos os detalhes, e ainda assim sustentar que estão geralmente no caminho correto (Idem, pp. 58-76)

De acordo com Okasha, no entanto, esta posição dos realistas não reduzem a zero a possibilidade de que, com o passar do tempo (sob o crivo da análise histórica), tais teorias sejam colocadas em xeque. Assim, o argumento do “milagre” a favor do realismo encontrar-se-ia em aberto, mesmo que haja “algo no argumento que é intuitivamente muito forte” (Idem, pp. 58-76).

Ao que parece, a abordagem realista está mais de acordo com “Ciência normal”. Os anti-realistas, pelo que se percebe, abrem um leque maior de possibilidades para mudanças. No bojo deste imbróglio está a distinção do que pode e o que não pode ser observado.

Para alguns dos anti-realistas modernos, os exemplos do que pode ser “obvervável” no realismo não passam de conceitos vagos. “Um conceito vago é um conceito que tem casos de fronteira — casos em que não é claro se algo cai ou não cai sob o conceito” (Idem, pp. 58-76). Isso ocorreria por que os fenômenos, para os anti-realistas, ocorrem de forma gradativa. Bas van Fraassen, um dos maiores expoentes do anti-realismo, diz que os conceitos vagos podem ser perfeitamente usados. Mas para que isso ocorra, é necessário utilizar-se de arbitraridade, uma vez se deve impor “limites poderosos à precisão com que se pode formular dada posição” (Idem, pp. 58-76).

Subdeterminação

É importante ressaltar que, para os adeptos do anti-realismo, as teorias que os cientistas desenvolvem tendo por base a observação são subdeterminados pelos “dados observacionais”. Isso quer dizer que “os dados podem em princípio ser explicados por várias teorias mutuamente incompatíveis” (Idem, pp. 58-76). Em seu artigo, para deixar este tema ainda mais claro, Okasha explica que

No caso da teoria cinética, os anti-realistas dirão que uma explicação possível para os dados observacionais é que os gases contêm um número grande de moléculas em movimento, como afirma a teoria cinética. Mas insistirão que há também outras explicações possíveis incompatíveis com a teoria cinética. Assim, de acordo com os anti-realistas, as teorias científicas que postulam entidades inobserváveis estão subdeterminadas pelos dados observacionais — haverá sempre várias teorias rivais que podem dar conta desses dados igualmente bem (Idem, pp. 58-76)

 

Fonte: www.jornalmateriaprima.com.br

 

A perspectiva anti-realista, portanto, se contrapõe aos argumentos realistas que assumem determinadas teorias como inegavelmente verdadeiras, o que também se assemelha à dinâmica da “Ciência normal”, onde determinados problemas são colocados “de lado para ser(em) resolvido(s) por uma futura geração que disponha de instrumentos mais elaborados” (KUHN, 1998, pág. 115), numa espécie de “desinteresse” em testar novos paradigmas.

Aos cientistas da “Ciência normal”, acrescenta Kuhn, há um entrave à possibilidade de troca de paradigmas porque “decidir rejeitar um paradigma é sempre decidir simultaneamente aceitar outro” (KUHN, 1998, pág. 108). E isso, como explicitado acima, está diretamente relacionado ao contexto cultural em que dada comunidade científica (ou o cientista, em particular) está inserido. Vale ressaltar que “rejeitar um paradigma sem simultaneamente substituí-lo por outro é rejeitar a própria ciência” (KUHN, 1998, pág. 109).

Okasha diz que a subdeterminação “conduz naturalmente o anti-realista à conclusão de que o agnosticismo é a atitude correta a adotar face às afirmações sobre a parte inobservável da realidade” (OKASHA, 2002, pp. 58-76). Os realistas, por sua vez, argumentam que

“daí não se segue que todas essas possíveis explicações sejam tão boas umas quanto as outras. Só porque duas teorias podem dar conta dos nossos dados observacionais não significa que não há como escolher entre elas” (Idem, pp. 58-76)

Essa explicação tendo por base a subdeterminação, diz Okasha, tem um viés tipicamente filosófico. Na prática, é raro os cientistas encontrarem “um grande número de explicações alternativas dos seus dados observacionais”. Isso não quer dizer, no entanto, que a perspectiva anti-realista não seja válida, pelo contrário. “Afinal, as preocupações filosóficas são preocupações genuínas, ainda que as suas implicações práticas sejam poucas” (Idem, pp. 58-76).

Em síntese, os anti-realistas defendem que a parte inobservável da realidade está muito além dos limites do conhecimento científico. “Assim, concedem que podemos ter conhecimento de objetos e eventos observáveis, embora inobservados” (Idem, pp. 58-76). No entanto, “as teorias sobre objetos e eventos inobservados são tão subdeterminadas pelos nossos dados quanto as teorias sobre os inobserváveis”. Por outro lado, dizem os realistas, “se aplicarmos o argumento da subdeterminação consistentemente, somos forçados a concluir que podemos adquirir conhecimento apenas das coisas que já foram efetivamente observadas”.

Considerações

Parece crível deduzir que os contrastes emergidos da obra “A Estrutura das Relações Científicas”, de Thomas Kuhn, cujo grande impacto incidiu sobretudo numa mudança de perspectiva, saindo da mera observação para levar-se em conta aspectos histórico-sociológicos, acaba por aproximar tais conclusões às recentes discussões acerca das abordagens realista e anti-realista, de que fala Sami Okasha.

O enfoque historicista de Kuhn, presume-se, por ter uma abordagem em perspectiva, portanto aberto à constantes alterações decorrentes das próprias dinâmicas histórico-culturais, está de acordo com a diretivas apontadas pelas ideias anti-realistas, para quem seus defensores devem ter postura agnóstica, tendo em vista que ao cientista/observador só é permitido conhecer parte da realidade.

O realismo, por sua vez, estaria mais próximo das considerações puramente empíricas, acumulativas e repetitivas de que trata a Ciência normal. Enquanto um – o anti-realismo – dá enfoque à imprevisibilidade decorrente da subjetividade, outro, mais formalista, tem por base paradigmas sedimentados por gerações anteriores que, sem lhe tirar o mérito, colaboram para que, pela tradição, determinado conhecimento possa ser acumulado, mantido e usado, até que pela crise surjam novos paradigmas que irão desafiar a comunidade científica.

Presume-se que tanto o realismo quanto o anti-realismo têm em comum a busca pela aproximação da verdade, sendo que o segundo pode oferecer mais possibilidades à chamada “Revolução Científica” de Kuhn, pelo seu caráter menos dogmático, mais “desconfiado”, cujo foco dividido entre o objetivo e o subjetivo abre margem para o cultivo da investigação fora (ou além) de um dado paradigma em questão.

Nota:

¹ – “(paradigme) – Um exemplo privilegiado ou um modelo, que serve para pensar. A palavra, que encontramos em Platão ou Aristóteles (parádeigma), é utilizada hoje principalmente em epistemologia ou em história das ciências […]. Um paradigma é um conjunto de das teorias, das técnicas, dos valores, dos problemas, das metáforas, etc., que, em determinada época, os cientistas de uma disciplina dada compartilham”. (COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico – São Paulo: Martins Fontes, 2011 – pág. 438)

Referências:

OKASHA, Samir. Realismo e Anti-realismo. Disponível emhttp://criticanarede.com/realismo.html – Acessado em 03/10/2014.

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico – São Paulo: Martins Fontes, 2011 – pág. 438.

O Livro da Filosofia(Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011.

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

UCB Virtual – disciplina de Filosofia da Ciência. Conteúdo disponível emhttp://moodle2.catolicavirtual.br/course/view.php?id=21966 – Acesso com se

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eu compro eu sou

“Eu compro, Portanto eu Sou”: as Consequências Perversas do Consumismo

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Consumo, compreendido em seu sentido mais simples, é condição sine qua non para a manutenção da vida. Pensar em consumo nestes termos leva diretamente a ideia de satisfação das necessidades, principalmente necessidades básicas, como segurança, alimentação e moradia. A partir da mínima garantia destas, surgem as necessidades sociais e de estima, chegando até a realização pessoal. De fato, para diferentes pensadores de diversas épocas e epistemologias, a teleologia humana, o grande motivo pelo qual estamos todos aqui reunidos vivendo nossas vidas, é a autorealização, ou a eudaimonia, conhecida hoje como felicidade.

Agora proponho um exercício mental. Imagine uma sociedade simples, que seria um tipo ideal de um local com a vida pouco sofisticada, uma vila no interior, um local ermo e ainda pouco tocado pela civilização moderna. Nessas condições, enquanto as necessidades básicas poderiam ser adquiridas de maneira privada ou providas pelo Estado (de acordo com o pressuposto ideológico do regime político vigente), as necessidades sociais, amizade, autoestima e autorealização dependeriam quase inteiramente do indivíduo, de sua própria força que vem da capacidade de relacionar-se de maneira satisfatória consigo mesmo e com o meio no qual se encontra inserido. Neste espaço não se espera encontrar uma grande oferta de socialização mercantilizada, pronta para ser consumida na forma de serviços. Vivendo assim, para sermos felizes dependeríamos muito mais de nossa racionalidade substantiva, da busca pelo próprio centro, do “torna-te quem tu és” Nietzschiano, do que da racionalidade instrumental voltada para cálculos meio-fim. Seria uma sociedade que tem na autorealização um caminho de busca interior de sentido para a vida, normalmente atrelado a um ideal de simplicidade.

Até aqui tudo bem. Mas e quanto às sociedades urbanas, racionais, científicas e complexas? Continuando a análise pelo mesmo caminho, rapidamente se torna evidente que muita coisa mudou. O mercado, esta entidade imanente e amoral que tende ao equilíbrio pelas livres trocas, é a mediação para a realização de praticamente qualquer necessidade ou desejo. Em todas as esferas da vontade surgem produtos e serviços correspondentes. De certa forma, a própria ideia de necessidade e desejo tornou-se um produto, obedecendo a lógica da obsolescência e da substituição. A regra é buscar a velocidade ótima do fluxo de mercadorias de maneira que o velho seja abandonado pelo novo o mais rápido possível. As estratégias utilizadas para este fim multiplicam-se como ideologias do consumo e do progresso caminhando de mãos dadas, escondidas como não ideologias e atendendo pelo nome geral de cultura. Vivemos imersos em uma cultura do consumo na qual a lógica da obsolescência é um imperativo. Produtos e pessoas tornam-se obsoletos, sendo manipulados a partir do desejo programado pela propaganda.

Nesta sociedade global do consumo programado, o mercado é do tamanho do planeta. Ninguém consegue impor limites à marcha do desenvolvimento que parece ter assumido vontade própria. Tudo é transformado em mercadorias. Desde relações sociais (facebook, twitter, sites de encontros), passando por estima (livros de autoajuda, roupas), até autorealização (automóveis, imóveis). Toda e qualquer necessidade é codificada na forma de produtos com o apoio do marketing. Consumimos signos acreditando na promessa de que eles podem trazer felicidade, entretanto, a materialidade não nos satisfaz, pois na prática um produto nunca estará à altura de uma simbologia exagerada para vender. Até mesmo estilos de vida são fabricados e comercializados no Shopping Center. Os códigos de vestimenta, o certo e o errado das revistas e das colunas de jornal, a televisão, as multimídias, tentam educar a manada de consumidores, direcionando o fluxo de investimento da próxima moda. “Eu sou aquilo que consumo”. A identidade de consumidor grudou-se a ideia de cidadania (compra consciente) e de família (basta ver a quantidade de propagandas com crianças). Antes de sermos pais, professores, pesquisadores, economistas, alunos, cidadãos e indivíduos, somos consumidores, portadores de signos de diferenciação e aproximação.

As consequências desta transformação histórica, resultado do crescimento populacional e do processo contínuo de ampliação da acumulação do capital, são inúmeras. Focaremos aqui nas que consideramos ser as mais perversas, a exclusão, o endividamento e a falta de sentido para a vida.
A exclusão é uma consequência social, entendida a partir da estrutura de classes. Quanto mais riqueza material produz e circula em uma determinada sociedade, mais marcantes são os traços de pobreza que levam a exclusão. Quanto mais pessoas tornam-se ávidos e peritos consumidores, mais fora e sem possibilidade de circulação ficam os que portam os signos da miséria. A maioria dos espaços da cidade são hoje espaços privados, restritos apenas para consumidores aptos.

O endividamento é outra face maligna do consumismo. Chegamos a um ponto no qual o endividamento das famílias brasileiras corresponde a cerca de 40% da renda anual da população. Segundo os dados de uma pesquisa sobre inadimplência da Confederação Nacional do Comércio, mais de 70% dos respondentes apontam o cartão de crédito como o seu principal tipo de dívida, permitindo inferir que o aumento do endividamento dos brasileiros tem relação com o aumento no consumo de bens supérfluos e não-duráveis. A pergunta é: quem vai pagar essa conta? A resposta: todos (claro, quem tem menos perde mais). Os movimentos tendenciais do capitalismo já ensinaram que uma nação endividada, crescendo financiada pela abundância de crédito propiciada pelo momento internacional que favorece sua posição como receptor do capital global, cedo ou tarde quebrará. A Europa e os EUA, por vias diferentes, chegaram ao mesmo resultado. Quem está pagando a conta? Todos nós, inclusive os países periféricos que financiam o resgate europeu a partir da extração e remessa de juros do sistema bancário, da exploração do trabalho e do extrativismo de matérias-primas, como o cobiçado ouro negro do petróleo. Esta é uma perspectiva que se desdobra distante, é assunto para outro ensaio, por hora basta sabermos que temos uma conta a ser paga e que ela está continuamente crescendo.

Qual o resultado de tudo isso? Para onde estamos indo enquanto civilização? Se realmente existimos para ser felizes e realizados, foi justamente aí que ocorreu o maior de todos os “golpes” da modernidade, um golpe histórico sem autoria determinada. Para uma completa e fluída ascensão da sociedade do consumo programado foi necessário reprogramar a noção de felicidade. Hoje, não é muito difícil perceber que ser feliz está diretamente atrelado á posse de bens materiais e a uma ideia de sucesso profissional. A ideologia do consumismo criou a falsa noção de que a felicidade pode ser atingida a partir da posse de bens. Muitos perseguem esta meta como cachorros de corrida tentando alcançar o coelho elétrico que sempre se distancia. A racionalidade substantiva, capaz de acessar o eu, foi impregnada pelo princípio da eficiência, sendo cada vez mais difícil separá-la da racionalidade instrumental. Assim, nos tornamos seres de essência calculista orientados pela máxima maquiavélica dos fins que justificam os meios. Como é possível ser mentalmente saudável e realizado estando preso a esta racionalidade artificial? É necessário e urgente desvelar e minar estas formas de pensar que nos limitam enquanto seres humanos, seja pela crítica, pela educação ou pela cultura (como manifestação popular). Quando nos tornarmos consumidores equilibrados atingiremos um grau maior de emancipação, dando um grande passo rumo a uma sociedade mais justa e livre.

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