“Saber de Mim: autoconhecimento em escrevivências negras – Pra preto ler -”: um olhar para a saúde mental

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  “Saber de Mim” é um livro de autoconhecimento em escrevivências negras, elaborado por um time de psicólogas, escritoras e pesquisadoras do campo de saúde mental de pessoas negras, Bárbara Borges e Francinai Gomes. Este foi publicado em 2023. O livro traz o desenho de como o racismo estrutural atravessa a subjetividade de pessoas negras e também a reflexão acerca de práticas de bem-viver para a comunidade negra, visando descolonizar corpos, territórios e afetos. Para tanto, é necessário um mergulho profundo nas estruturas que formam a identidade de pessoas negras.

  A obra questiona o lugar da alienação racial, pois alienar o sujeito é um projeto de desconexão do mesmo. Um sujeito que não vê cor não se vê no passado, presente e futuro. Assim, é um sujeito desapropriado de si mesmo em todos os aspectos, ao qual o ideal de ego é negado — função essa que tem o papel de fortalecer a identidade do indivíduo. O ideal de ego operante é o da branquitude, que normatiza, padroniza e afirma categoricamente que todos somos iguais, sem levar em conta as determinantes que singularizam os indivíduos em sujeitos únicos, seja em seus fenótipos, territórios ou cognições. Portanto, esse ideal de ego operante é impossível de ser concretizado por pessoas negras. Assim, faz-se necessário compreender que se vive em territórios que minam qualquer possibilidade de construir uma identidade compatível com corpos negros. Nesse espaço, é essencial ressignificar experiências, refazer signos e simbolizar afetos. Esse não é um processo que é sempre belo, podendo descortinar dores, constrangimentos, medos e findar relações e comportamentos que eram sustentáculos no cotidiano.

O livro desperta a atenção para crenças que temos, de que é necessário reivindicar a dor como tradução do desejo de acolhimento. Indica a visão de que é importante desfazer o engano de que a dor é o único meio para que tenhamos acesso a afetos, pois nos tornamos sujeitos a partir das narrativas que construímos sobre nós e não do sofrimento que vivemos. Sentimos dor porque somos humanos, e não o contrário, assim visualizando a totalidade da vida e retirando a dor da centralidade da nossa existência. Pois a violência racista desloca o prazer do centro do pensamento e institui o sofrimento como premissa da identidade negra. Esse mecanismo produz desesperança e desconexão com o futuro.

Temos sido norteados por violência racista e angústias que têm nos condicionado a viver o ódio, o desprazer e a morte nas relações subjetivas e coletivas. Por sermos um povo marcado pela angústia não cuidada e tragédia não elaborada, somadas à ausência de senso de comunidade, temos dificuldade de seguir em frente. Os binômios que associam a identidade negra a sofrimento, violência e morte precisam ser identificados, questionados e revogados em nossas subjetividades e coletividades. Assim, construímos um futuro fincado no compromisso, confiança, respeito, união, acolhimento e fraternidade entre nós, nos conectando com a nossa própria história e visualizando novas possibilidades a partir das nossas potências. Nesse futuro, tanto individual quanto coletivamente, poderemos construir novas conexões entre nós, a partir de crenças e emoções que permitam experimentar a esperança, coragem e união para visualizarmos o que nos conecta além da dor.

  “Saber de Mim” é um mergulho na complexidade de muitos processos de desenvolvimento, que foram permeados por violências, abandonos e precarização. Uma subjetividade que foi atravessada por todos esses fenômenos, que impossibilitam a complexificação do ser e nos confinam a uma história de dor. É preciso considerar que o movimento de observar e atribuir significado, por meio de símbolos, é aprendido na estrutura relacional e afeta diretamente a produção da nossa subjetividade. Portanto, é preciso um processo de autoconhecimento, para que se identifiquem múltiplos fatores que contribuem para essa construção. Pensar como fomos moldados por eventos e relações, sem negar ou desrespeitar a nossa dor, mas lançar um olhar minucioso sobre nossas práticas, para conectar eventos e reivindicar a existência de um ser humano complexo que é atravessado e atravessa. O processo de tornar-se negro é cheio de si e de particularidades, tudo pode ser observado, desde a forma como nos comunicamos até a expressão do nosso silêncio, fugindo assim de uma ideia simplista e utópica de linearidade.

É uma leitura que nos alerta também sobre a construção de um falso eu, com a necessidade de aceitação, do qual nega-se o contato com quem somos de fato e que produz distorções na busca por alcançarmos um lugar de desejados, que nos é negado. Através desse movimento, passamos a nos enxergar somente através destas distorções. A fragmentação do eu funciona como um conjunto de expressões, associações, desejos, comportamentos e afetos, acionados para forjar o nosso verdadeiro eu, que são convertidos em comportamentos e discursos que supostamente satisfazem o outro e garantem o resultado esperado, esquecendo assim o nosso próprio desejo, focando no desejo do outro, mas nunca no nosso potencial de conquistarmos o outro por quem verdadeiramente somos. Ou seja, um estado de negação que nos impede de construir uma noção verdadeira de um eu fortalecido. 

Quando deixamos de comunicar a verdade sobre nós, criamos, ainda que indiretamente, uma barreira entre nós, o outro e a possibilidade de amar e viver o amor plenamente. A dificuldade de nos reconhecermos enquanto seres que podem acessar sua própria verdade nos coloca em conflitos, nos quais o medo ocupa a centralidade e que nos insere em um processo de assujeitamento, construído por meio da insegurança, que determina a manifestação do verdadeiro eu como falsa. Assim, ainda que o sujeito tente comunicar a verdade sobre seus desejos e sobre si, é atingido por um bombardeio de suposições e crenças, que inviabilizam e silenciam qualquer manifestação desse verdadeiro eu. E, apesar de compartilharmos dores, é no campo do individual que elas se desdobram e provocam novas pulsões. E, para tanto, a comunicação desse sujeito seria uma reivindicação de si, uma expressão de si e da sua própria existência, partindo do lugar de sujeito ativo, um lugar que exige coragem e autoconhecimento. E como fomos marcados por eventos em que a comunicação foi apontada como um elemento causador de conflitos, que provocava e justificava violência, assumimos que o silêncio ao qual nos impomos seria um recurso para evitar estes episódios. O autoconhecimento é a ponte capaz de conectar o espaço entre a marca de suprimir emoções e a comunicação saudável. Saber visualizar o que são os processos sociais e individuais para compreender como eles nos montam e desmontam no tecido social.

Somos convidados a olhar e confrontar nosso despreparo histórico-colonial ao olhar o campo do amor e da comunicação, levando à consciência falsas ideias que caracterizam essa marca, como se ela nos pertencesse naturalmente. Pois amor é ação, e comunicação é aprendizagem. Por isso, devemos demarcar o tempo, resgatando o passado e fazendo novas conexões. Navegar o trauma colonial e as práticas românticas em movimentos literários que não possibilitam uma imagem do corpo negro como existente, que expressam afetos nestes formatos ditados pelo ideal da branquitude. E pensar que os espaços de socialização, como escolas e ruas, são hostis, negam cuidado e acolhimento e ainda direcionam ódio e desprezo aos nossos corpos. Assim, é um corpo privado, desde a infância, de trocar afetos de forma “convencional”, ou seja, as formas socialmente reconhecidas pelo território colonial, que nos fazem sentir como incapazes de amar ou sentir amor.

E, para conseguirmos realizar conexões, precisamos compreender que o autoconhecimento é a ferramenta apropriada para agir de forma a identificar, ressignificar e transformar o que é essencial, descortinando a nossa história e trazendo à tona descobertas e desconhecimentos sobre nós, considerando a nossa pertença racial como elemento modulador da subjetividade. É produzir estratégias de autodeterminação e dignidade para refazer as noções de nós e investir em observações de como se constroem as representações de como somos vistos, é mudar as nossas referências para enxergarmos os potenciais individuais e coletivos, é desalienar nossos corpos para sentirmos e vivê-los, como mediador e produtor de movimento, sensações, ritmos, emoções e interações, em uma apropriação de si, no movimento de conhecer as nossas histórias, vulnerabilidades, forças e desejos, assim rompendo com o medo para construir uma identidade de valorização. Pois o processo de alienação de si é mantido presente por meio da ausência de consciência; engana-se quem pensa que o racismo está apenas no campo social; ele é também uma estrutura de cognição, afetos e comportamentos, a partir de linguagem, signos e significados que orientam os nossos processos psicológicos.

 

Referências

BORGES, Bárbara; GOMES, Francinai. Saber de mim:Autoconhecimento em escrevivências negras. São Paulo: Almedina Brasil, 2023.

 

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Série ‘On My Block’: rumo à vida adulta

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Na série produzida pela Netflix no ano de 2021 e bastante popular, conhecida como On My Block, apresenta a rotina do ensino médio de cinco amigos inseparáveis e expõe dilemas, conflitos, e experiências comuns da fase da adolescência. Quem ganha grande destaque na primeira temporada é a personagem Monse, na qual se manifesta como “ponte” entre todos os integrantes do grupo. Sem o seu esforço de manter a comunhão entre todos, o grupo de amigos já estaria dissolvido. 

Ao decorrer dos episódios, eles embarcam e enfrentam várias experiências, como o primeiro porre e a perda inesperada e abrupta do personagem Ruby de uma parente sua muito querida, assim como a procura incansável de Monse por sua mãe. Além disso, ocorre o dilema do personagem César em entrar ou não na gangue de seu irmão mais velho. O mesmo ocorre com o personagem Jamal, que se encontra em um embate por confessar ou não aos seus pais que não cogita o basquete como carreira, pois seus pais o estimulam muito para isso. 

Fonte: Google Imagens

 

É perceptível que ao decorrer das experiências, o grupo se mantém unido, consolando uns aos outros, assim como os apoiando e servindo de refúgio dos problemas e como rede de apoio. Muitas vezes os cinco adolescentes eram incompreendidos pelos pais e neles mesmos encontravam compreensão e ao mesmo tempo, certos aconselhamentos para seguir com ações e decisões maduras, com princípios norteados pela honestidade e bem estar. 

Ficou nítido que além da união entre eles, cada um manifestava seus traços de personalidade de forma autêntica e diferenciada em cada situação problema que se encontravam. Com a visão de mundo de cada um assim como os aspectos culturais e sociais nos quais desenvolveram no seu crescimento, é nítido como os personagens agem diferente em cada ocorrência nos episódios. 

Fonte: Google Imagens

 

Um adendo muito importante a ser feito neste aspecto é exatamente os aspectos culturais desenvolvidos e atribuídos a cada personagem. As referências latinas são muito lembradas e levantadas em dois personagens recorrentemente, que é o Cézar e o Ruby. Ambas as famílias organizam festas temáticas comuns no México, assim como apresentam aspectos religiosos muito fortes, pois a mãe do Ruby é uma devota fervorosa na igreja Católica do seu bairro. Tais aspectos confirmam que os traços culturais são muito bem evidenciados ao decorrer dos episódios. 

Por fim, além da questão cultural, outro aspecto abordado na série é o recorte racial. Percebe-se que alguns aspectos comuns a cultura negra são destacados na série, como por exemplo o caso do Jamal, no qual não tem afinidade com o basquete, mas que é tradição de sua família afrodescendente aderir a esse esporte, principalmente da parte paterna. A série em si é uma ótima sugestão para descontrair, pois quando se passa os episódios, percebe-se que o humor é uma ferramenta muito bem explorada pelos personagens, assim como a capacidade de cada um em protagonizar. Os personagens são bem explorados e em cada papel desenvolvido, percebe-se muita afinidade com eles, ou seja, muita concordância.

 

Fonte: Google Imagens

O final é inesperado e abrupto, o que deixa espaço e margem para a segunda temporada, que já está disponível na plataforma de streaming. On My Block mostra, por meio de uma visão de comédia trágica, como os adolescentes mais propícios a serem marginalizados nos Estados Unidos, que são os afrodescendentes e latinos, perpassam pelas dificuldades e dilemas para a vida adulta. Os aspectos étnicos e raciais são bem levantados e destacados na série e muitas vezes trazem reflexões ao expor as situações problemas.

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Desafios de uma estudante negra no curso de psicologia: (En)Cena entrevista Gabriela Fernandes

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Pensando na importância de discutir as pautas antirracistas e seus impactos no contexto acadêmico, em adesão à campanha #SaudeMentaldaPopulaçaoNegraImporta!, da Associação Nacional de Psicólogos Negros e Pesquisadores (ANPSINEP), o curso de Psicologia, do período de 15 de agosto a 15 de setembro, tem se dedicado à divulgação e produção de conteúdos voltados às questões raciais.

Dessa forma, entre os materiais produzidos, três entrevistas foram organizadas com mulheres negras que, de alguma forma, são vinculadas à psicologia. Levando em consideração a implicação do curso no tema, e pensando na importância de voltar a atenção para a situação da própria instituição no que tange às práticas antirracistas, a presente entrevista convidou a acadêmica Gabriela Fernandes Pereira Filha, de 23 anos, do oitavo período do curso de Psicologia do CEULP/ULBRA, para expor suas percepções e vivências como estudante negra:

(En)Cena: Qual a sua percepção, como acadêmica de psicologia, a respeito da pauta racial no corpo teórico e científico da profissão? Acredita que essa problemática é contemplada nos estudos, pesquisas e artigos desenvolvidos pela ciência psicológica?

Gabriela: É fato que a pauta racial não é contemplada na academia. As teorias são brancas, ou seja, construídas para contemplar as pessoas brancas. As pessoas que estudam, publicam artigos e projetos voltados pras questões raciais são de fato estudantes e profissionais de psicologia negros. A academia não vê como relevante abordar esse assunto nas disciplinas. Geralmente pegam todos esses conteúdos voltados para questões sociais e jogam em uma ou duas matérias. Uma ou outra ação é feita e em épocas bem específicas, mas não com o intuito de promover algo que saia do discurso, mas para acalmar os animos de quem reivindica, método esse que na verdade é bem antigo, métodos de controle.

(En)Cena: Como você avalia, no atual contexto, a presença das pessoas negras na academia? Acredita que essas pessoas compõem uma parcela significativa na docência e corpo discente?

Gabriela: A presença das pessoas negras na academia não é nem de longe uma parcela significativa. Extremamente desproporcional em relação a presença de pessoas brancas. No nosso curso, por exemplo, a quantidade de docentes negros já diz muita coisa, são 2 professores negros para 11 brancos. Nossa presença na academia é muito importante, é uma marcação politica, mas o acesso a esse lugar é marcado por obstáculos estruturais muito fortes.

Fonte: encurtador.com.br/qyIRZ

(En)Cena: Quais dificuldades e impasses você, como mulher negra, vivenciou e ainda vivencia no percurso como estudante de psicologia? Quais são seus sentimentos a respeito disso?

Gabriela: Desde o começo, tenho um sentimento de não pertencimento. É um incômodo muito grande estar em um ambiente onde há poucos negros. Uma das minhas maiores dificuldades dentro disso é perceber que há uma neutralidade muito grande nesse ambiente acadêmico de psicologia e que é pensado de forma muito consciente com o intuito de uma manutenção dessas estratégias de poder para que nós de fato não nos sintamos bem nesse lugar.

(En)Cena: Na sua opinião, o debate racial recebe a devida atenção no espaço de ensino universitário, como um todo?

Gabriela: Não. Como eu havia citado antes, eventos muito pontuais sobre temáticas raciais e cartazes na semana da consciência negra pelos corredores da universidade, não constroem academicamente profissionais com compromisso social.

(En)Cena: No que tange à representatividade negra nos diversos espaços da profissão, como você avalia a situação da Psicologia, atualmente? As pessoas negras estão recebendo as posições de destaque que merecem como pesquisadoras e autoras da prática psicológica?

Gabriela: Nós temos já há algum tempo uma articulação desses profissionais e estudantes de psicologia para ocupar mais espaços dentro dessa profissão. Apesar disso, pessoas negras brilhantes não recebem o destaque que de fato merecem, apenas são chamadas quando o assunto é relacionado à temática racial. Há uma tendência em reduzir os conhecimentos desses profissionais apenas a esse ponto.

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