Anne Frank e a força das palavras: como a escrita pode ser terapêutica

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Maria Laura Maximo Martins – mlauramaximo@rede.ulbra.br

O ano era 1942 quando o n4z!smo estava no auge, em plena Segunda Guerra Mundial. Dentre os diversos grupos perseguidos e recriminados pelo sistema extremista, estavam os judeus. Nesse contexto histórico, várias famílias, em uma luta pela sobrevivência, buscaram formas de fugir do aprisionamento e dos temíveis campos de concentração. Um desses grupos de familiares era o de Anne Frank: juntamente com os pais e a irmã mais velha – e também outros quatro amigos -, se esconderam no fundo de um prédio localizado na cidade de Amsterdã, onde ali funcionava um armazém. Atualmente, o prédio recebe milhares de visitantes anualmente e é um dos museus famosos do país.

Foram dois anos em que a rotina destes indivíduos se resumiu a um lugar totalmente restrito, sem nenhum contato com o mundo externo. Recebiam apenas algumas visitas de colegas-auxiliadores que com certa frequência iam até o esconderijo renovar os seus mantimentos. Foi nesse período de absoluta reclusão que a pequena Anne Frank, de 13 anos, começou a escrever. Em seu último aniversário havia sido presenteada com um diário – apenas dois meses antes de fugirem às pressas para o anexo secreto. Agora, mundialmente conhecido, a obra “O diário de Anne Frank” retrata acontecimentos do abrigo, seus sonhos, seus sentimentos e pensamentos, bem como os pesares por vivenciar uma situação tão hedionda e desumana.

Foto: acervo pessoal de livros.

Pelo fato de a Alemanha ter invadido a Holanda desde o ano 1940 e o antissemitismo ter se propagado fortemente, os judeus já viviam com muitas restrições sociais e sentiam na pela a dor da liberdade reduzida. Sendo assim, o momento de comemorar seu aniversário em casa e receber presentes, fez com que a jovem se sentisse feliz e esquecesse um pouco das dificuldades que já estava vivenciando. 

O objeto que mais a alegrou ao receber, foi seu diário de capa quadriculada em vermelho e branco. Prontamente Anne apelidou o diário sob o nome de Kitty, afirmando que a mesma seria sua amiga e começou a escrever à mão, de maneira pura, sincera e emocionante. Por conter suas verdades mais profundas, tornou-se uma obra amplamente conhecida e estimada mundialmente que marcou a era do Holocausto e serve como fonte primária acerca de um período tão obscuro.

Ao adentrar-se pelos pormenores do ato de escrever, encontram-se dados empiricamente sustentados e embasados cientificamente através de pesquisas e estudos que confirmam o fato de que a prática da escrita pode trazer benefícios para o indivíduo que utiliza o método de escrever para externar o mundo interno que existe dentro de si. Seguindo essa lógica, é possível realizar uma hipótese palpável à respeito de Anne e o registro seu pessoal feito em um diário durante o tempo aprisionada: pode-se concluir que o hábito de se expressar usando apenas um papel e uma caneta serviu para distraí-la e atuou como um conforto em muitos momentos.

Fonte: acervo pessoal de livros.

Dentre os diversos relatos contidos no decorrer das páginas, percebe-se uma menina adolescente que, apesar das suas limitações e da sua idade, transmite bastante lucidez em suas colocações e se sente livre para expressar-se. Suas ideias são ordenadas e bem detalhadas; perpassamos por histórias dolorosas, engraçadas, raivosas, emotivas, ansiosas, sonhadoras, às vezes recheadas de medo… E no decorrer de todo o livro autobiográfico, somos embalados por suas diversas narrativas sobre as distintas situações de sua vida.

Sendo assim, constitui-se como um livro fácil de ser lido por sua fluidez e linguagem, porém ao mesmo tempo denso por conter afirmações profundas do seu eu-interior divinamente cristalizadas tornando-as mais reais para o leitor. Por ter esse perfil de escrita, pode-se afirmar que, ao organizar aquilo que se passava em sua mente, tenha conseguido ter mais clareza e controle do seu mundo interno e externo, o que proporcionaria automaticamente certo alívio e um esvaziamento de emoções e sensações que muitas vezes podiam ser sufocantes se ficassem guardadas, silenciadas. Ou seja, mesmo em risco constante de serem descobertos no esconderijo, a adolescente Anne conseguiu alimentar seu lado humano e a compreensão relativa no que concerne a ameaça, criando um contexto propício para olhar para o seu lado emocional e psíquico, atribuindo valor e significado às dificuldades radicais.

Fonte: acervo pessoal de livros.

Referências

BENETTI, I. C.; Oliveira, W. F. O poder terapêutico da escrita: quando o silêncio fala alto. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental. Florianópolis, v.8, n.19, p.67-77, 2016. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/download/69050/41531/241251>. Acesso em 15 de mar. 2023.

FRANK, A. 1929-1945. Obra reunida: Anne Frank. Tradução de Cristiano Zwiesele do Amaral. 1ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2019.

SANTOS, M. M. Um olhar sobre o “Diário de Anne Frank”. Orientador: Prof. Doutora Maria Antónia Trigueiros de Castro Carreiras. Dissertação (Mestrado) – Mestre em Psicologia Clínica. Instituto Universitário Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida. 2012. Disponível em: <https://core.ac.uk/download/pdf/70652147.pdf>. Acesso em 15 de mar. 2023.

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Vasalisa: como o arquétipo da mãe-boa-demais e da sabedoria influencia a sociedade?

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A história de Vasalisa envolve arquétipos de uma forma profunda e cheia de ensinamentos. Ao ler esse conto é possível perceber traços dentro da nossa psique manifestos através do inconsciente coletivo. Os arquétipos são ativados quando o indivíduo vivencia algo que tenha uma relação com as imagens herdadas dos antepassados, através de folclore, mitos, lendas e contos de fada emitindo representações de um  padrão universal.

O conto Vasalisa traz a história de uma menina que morava com a família em uma casa muito bonita, próximo da floresta, onde viviam muito felizes. Vasalisa sempre contava com a companhia de sua mãe-boa-demais. Certo dia sem nenhum aviso prévio, sua mãe foi acometida de uma doença mortal. Então a mãe pediu para chamar sua filha, e gostaria de entregar um presente muito valioso que fez com suas próprias mãos.

Ao chegar, Vasalisa ganhou de sua mãe uma boneca pequena, exatamente como ela se vestia, e isso foi primordial para um amor à primeira vista. Muito feliz agradeceu a mãe e expressou que gostaria que a mãe permanecesse viva para orientá-la quando fosse necessário. A mãe explicou a ela que dali em diante a boneca seria seu norte, ajudaria no que fosse preciso, mas teria que escondê-la de todos, e não se esquecesse de alimentá-la.

A mãe de Vasalisa morreu, o tempo foi passando a vida seguindo e seu pai casou-se novamente com uma mulher que possuía duas filhas e vinham morar junto com eles para se tornar uma nova família. O pai não observava o quanto a madrasta e suas filhas exploravam Vasalisa e desejavam o seu fim. 

O tempo passou, todas as coisas eram diferentes, mas Vasalisa permanecia com sua meiguice, doçura, e atenta a tudo que lhe pediam. Então, certo dia as três malvadas decidiram colocar um ponto final na vida de Vasalisa. Após um dia muito exaustivo, ao retornar para casa, haviam apagado todo o fogo da casa, e só permitiam o seu retorno se ela fosse ao meio da floresta na casa da Baba Yaga em busca de um fogo que não se apagasse. 

Vasalisa, mesmo com muito medo, pegou sua boneca, um pedaço de pão, e foi em busca de encontrar a casa da Baba Yaga. Quando imaginou estar totalmente perdida a boneca moveu-se em seu bolso dando a entender que estava no caminho certo. Mas adiante enxergou uma casa sobre umas pernas de galinha, movimentando de um lado para o outro.

Ao chegar acordando Baba Yaga a encontrou de muito mau humor, mas ao avistar uma doce menina em sua porta pedindo por um fogo que nunca se apaga, deixou-a entrar. Mas só poderia levá-lo após executar algumas tarefas. Então a velha assustadora deixou uma enorme lista para que ao retornar estivesse tudo organizado. 

Vasalisa dava o seu melhor, mas já estava muito cansada, então a boneca a mandava ir descansar e quando acordava estava tudo pronto. Quando Baba Yaga chegou ficou impressionada com a agilidade da menina. Passou nova lista e da mesma maneira foi feito, fazia arduamente até as suas últimas forças e ao ponto de desistir a boneca assumia as tarefas e falava para ela ir dormir. 

Ao perceber que estava tudo como foi pedido, Baba Yaga ficou impressionada, em meio às suas conversas Vasalisa fez algumas perguntas, após calando-se. Ao ser questionada, ela fala da bênção que possui da sua mãe-boa-demais, e a Baba Yaga mudou no mesmo instante seu humor, entregando o fogo em uma caveira e mandando de volta para sua casa. 

Vasalisa, a boneca e o fogo que nunca se apaga caminham durante a noite pela floresta. Ela se pergunta: será que devo mesmo levar esse fogo que jamais se apagará para dentro da minha casa? A boneca movimentou-se mais uma vez no bolso e uma voz saiu da caveira dizendo para não ficar preocupada e seguir a caminho de casa. 

Ao chegar em casa encontra sua madrasta e suas irmãs malvadas, apreensivas quando avistaram a chegada da Vasalisa com o fogo em suas mãos. Acendeu o fogo e se retirou, e na medida em que o fogo aquecia a lareira, queimava as três por dentro tornando-as carvão. Então os dias de Vasalisa foram leves, passeando pela floresta todos os dias, sem ter ninguém para importuná-la e desejar a sua destruição. 

Fonte: Vecteezy.com

Reflexão

Através do conto de Vasalisa, é possível destacar diversos arquétipos, que são vividos ao longo da trajetória humana, percebendo as dificuldades e lições que as metáforas ensinam. 

A autora Clarissa Pinkola Estés do livro “Mulheres que correm com os lobos”, trás de uma forma simples e bastante útil reflexões de arquétipos vivenciados pela sociedade no dia a dia. No conto de Vasalisa, podem-se notar dois arquétipos bastante comuns. 

Arquétipo mãe-boa-demais

A imagem arquetípica da grande Mãe traz uma representatividade de cuidado, amor, alimento e produtividade, apresentando um símbolo de prosperidade, onde tem a responsabilidade de trazer ao mundo os frutos. Mãe significa proteção, sinônimo de defesa dos seus filhos. 

O arquétipo da grande mãe traz uma representação saudável, pois mãe é aconchegante, acolhedora e o bebê precisa disso para sobreviver à fase inicial. A criança vai se desenvolvendo, e ao chegar à fase adulta precisa aprender a buscar a sua luz, ou seu caminho. Mas a partir da imagem da grande mãe, surgem novas facetas desse arquétipo que contribuem de forma negativa, surgindo a mãe devoradora, mãe extremamente boa, mãe super nutridora, mãe-boa-demais, que então começa desenvolver uma sociedade muitas vezes com a prevalência do arquétipo puer aeternus. De acordo Monteiro, (2010) o arquétipo puer aeternus representa a criança eterna, que não busca entrar na vida adulta, independente da idade que o indivíduo possa ter, deseja viver no aconchego materno. Portanto existem mães que  não permitem que o filho cresça sem o seu comando, longe dos seus olhos, vai formando filhos sufocados, sem grandes responsabilidades, cheio de privilégios e medrosos.

No conto de Vasalisa, quando a mãe-boa-demais morre, a autora Clarissa Pinkola Estés mostra a necessidade que essa mãe do bebê finalize seu ciclo e comece a nascer uma nova realidade. A criança não pode viver todas as fases no aconchego, no leite materno, sem responsabilidade, sem buscar uma direção para sua vida. Ao passar de fase, não tem muito sentido estar viva essa mãe-boa-demais. 

No desenvolvimento de uma pessoa, é necessário que essa mãe seja menos protetora, cuidadosa, provedora. Se o indivíduo nasce, cresce, alguns se reproduzem e não deixa essa mãe-boa-demais, não consegue se desenvolver, algumas vezes até possuem uma estabilidade financeira, mas não possui um desenvolvimento emocional. No conto onde a mãe deixa a boneca, significa que a mãe deixa uma herança, um legado, uma intuição a ser seguida, mas com livre arbítrio, onde a pessoa busca viver uma vida responsável pelas suas escolhas, lembrando sempre dos ensinamentos de sua mãe. 

O Arquétipo da Sabedoria 

A psicologia analítica, conhecida também como psicologia junguiana, apresenta o Velho Sábio, Senex ou apenas sábio, o arquétipo que está inserido no inconsciente coletivo desde os antepassados, representando a sabedoria. 

De acordo com Jung, (2018) a imagem arquetípica do velho sábio é representada por pessoas que exercem algum poder ou autoridade, como o professor, avô, mago apresentado em sonhos. Quando uma pessoa expressa uma sabedoria a imagem arquetípica que representa é a sabedoria. 

No conto da Vasalisa, quando se depara com Baba Yaga, ela retrata uma simbologia de uma mãe não tão boa, mas que ensina o filho a exercer suas atividades, e fazendo o máximo que consegue em busca dos seus objetivos. Apesar da moradora da casa em cima das pernas de galinha possuir uma idade avançada, ela é uma senhora inteligente, e tem muito a ensinar.

Quando Baba Yaga faz uma lista de afazeres para Vasalisa, ela não está sendo uma malvada, mas sim, trazendo um ensinamento, representando essa mãe quando a criança cresce. Mostrando ali coisas que podem ser feitas por ela. Lavar a roupa, cuidar da casa, varrer o quintal e separar o milho, tudo isso pode trazer uma representação, mostrando a importância do cuidado com a psique, saúde mental e a organização interior.

E quando Vasalisa estava no limite a boneca mandava deitar-se para descansar. Com isso a autora mostra a importância do repouso, de que não é necessário fazer tudo de uma só vez, mas buscar compreender algumas situações vivenciadas naquele dia que não deu ainda para digerir, não tem a resposta desejada, acalma, espere, dê tempo ao tempo, e busque descansar e ao retornar tenha um olhar diferente sobre aquela situação. 

Fonte: Vecteezy.com

Referências

ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo Vol. 9/1. Editora Vozes Limitada, 2018.

MONTEIRO, Dulcinéia Da Mata Ribeiro (Org.). Puer-Senex: dinâmicas relacionais. 2ª edição, Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

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Quando o cuidado se torna dependência

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Análise da relação entre os irmãos Kate e Kevin da série “This is us”

“This is us” é uma série de drama, criada por Dan Fogelman, que conta a história cotidiana da família Pearson, em diferentes linhas de tempo, apresentando passado, presente e futuro. Rebeca (Mandy Moore) e Jack (Milo Ventimiglia) se encontram grávidos de trigêmeos, mas durante o parto um dos filhos morre; coincidentemente, naquela mesma noite um bebé recém-nascido que foi abandonado é levado por um bombeiro para o hospital, então Jack decide adotá-lo, sendo então seus filhos: Randal (Sterling K. Brown), e os gêmeos Kate (Chrissy Metz) e Kevin (Justin Hartley). 

Para fins de objetividade e clareza, esse texto irá focar na relação dos irmãos gêmeos Kate e Kevin.  Desde o início a série apresenta a relação deles com bastante ligação, se percebendo e se ajudando em diversas situações, e isso apesar de feito com muito carinho e cuidado, acaba apresentando certo grau de dependência, gerando falta de autonomia. 

Personagens Kevin e Kate da série “This is us”.
Fonte https://bityli.com/5PkFp

No episódio piloto Kate vai à um encontro com Toby (Chris Sullivan), o cara que ela conhece no grupo de apoio, ao final do encontro ela o convida para entrar na sua casa, e quando está prestes a beijá-lo, Kevin aparece, perguntando porque ela não atendeu suas ligações e começa a expor seus problemas no meio de seu encontro com Toby, e essa é apenas uma das diversas cenas que exemplifica a relação de difusão estabelecida entre eles. 

Essas situações podem ser explicadas a partir da perspectiva de Nichols (2007), onde afirma que as famílias possuem estruturas, sendo elas determinadas por padrões organizados e são esses padrões que vão determinar como as famílias interagem, além de repercutir sobre seus subsistemas. 

No decorrer da série, por exemplo, podemos ver que o modelo de interação entre Kevin e Kate se encontra na relação de Rebeca com sua mãe e posteriormente na relação de Rebeca com seus filhos, ou seja, Rebeca teve uma relação de emaranhamento com sua mãe sendo apresentado na série no momento em que Rebeca deseja namorar Jack mas acaba não recebendo aprovação da mãe, ou quando Rebeca recebe sua mãe como visita em sua casa e ela fica tentando controlar a maneira que Rebeca administra sua casa. A partir desse padrão aprendido, Rebeca acabou reproduzindo com seus filhos, em especial com Randall que pôde ser percebido quando Rebeca acaba tomando decisões sobre a vida de Randal que deveriam ser dele, como por exemplo o envolvimento com o pai biológico, logo Kate e Kevin também perpetuaram esse padrão dentro de sua relação. 

Esse padrão caracteriza-se pela presença de fronteiras difusas, onde existe bastante apoio mútuo entre os integrantes do sistema/subsistemas, mas à custa da independência e da autonomia. Isso nos leva a refletir sobre quando o cuidado que temos e/ou recebemos das pessoas que amamos, se torna dependência, e nossa identidade passa a existir a partir de outro alguém.

Para que isso não aconteça precisamos estar muito esclarecidos sobre nossos limites e nossos diferentes papéis sociais (filho/a, irmão/ã, esposo/a amigo/a, etc) para que não venhamos a nos perder em meio a atuação dos mesmos. 

Foto ilustrativa para representar laços familiares
Fonte Pixabay

Referências

ADORO CINEMA: This is Us. Disponível em <  https://www.adorocinema.com/series/serie-19992/ > Acesso em 23 fev. 2023. 

NICHOLS, Michael. Terapia Familiar: Conceitos e Métodos. Porto Alegre: Artmed, 2007.

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A arte imita a vida?!

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Existem diversos relatos de atrizes e atores que nunca mais foram os mesmos após desempenhar determinados personagens, mostrando que a ficção afeta de várias formas a realidade de quem está ligado ao personagem

Seja no teatro ou no cinema, o desempenho do papel de um personagem é algo que não se encaixa com qualquer pessoa que o queira interpretar, nos levando assim a questionar o que torna uma atriz/ator boa/bom em determinado papel. Com os filmes de herói em alta, as críticas sobre papéis já desempenhados e que poderiam ter tido melhor performance, são um assunto presente no cotidiano de quem acompanha esse universo.

Em muitos casos os papeis desempenhados por essas atrizes e atores – em paralelo aos seus próprios estilos de vida pessoal – são motivos para as pessoas considerarem eles aptos ou não para vivenciarem certos papeis no cinema. Então, a experiência prévia, real ou fictícia pode ser algo que colabore para que um papel seja bem desempenhado.

Freud (1977 a) em sua obra “Personagens psicopáticos no palco” fornece análises de danças, poesia lírica, poesia épica, drama psicológico, comédia, tragédia em suas variações, e colocando que essas produções advém de conflitos dos seres humanos. Dessa forma, pode-se afirmar que os papéis desempenhados contém parte da vida pessoal de quem interpreta, ou seja, a atriz/ator revive uma experiencia anterior quando atua em algo novo.

Fonte: encurtador.com.br/BLNZ3

Existem diversos relatos de atrizes e atores que nunca mais foram os mesmos após desempenhar determinados personagens, mostrando que a ficção afeta de várias formas a realidade de quem está ligado ao personagem ou a obra completa. Winnicott (1975) defende que a fantasia ajuda no desenvolvimento e na construção da própria identidade, e nesse sentido quem atua levará consigo parte do que interpretou ou viveu na obra.

Desta maneira se analisar um personagem, encontrará traços da personalidade de quem o interpretou. Pondé (2015) afirma que a produção artística carrega a marca do subjetivo e é fonte de informação sobre o âmago do autor, e logo apresenta de quem interpreta a mesma. Por mais que se siga um roteiro, quem executa o papel tem certa autonomia para encaixar o que se pede com a personalidade que o papel exige, e é aqui que entra a subjetividade.

Por outro lado podemos nos perguntar o porque gostamos de tal pessoa em determinado papel ou como ficamos impactados com determinada cena. Ao mesmo tempo em que assistimos um filme, memórias que nem imaginávamos ter, cruzam com essas novas informações que Kaufmann (1996) afirma estar no psiquismo dos espectadores.

Fonte: encurtador.com.br/aly19

Parte do sucesso de filmes pode vir de uma ligação que ocorre entre o personagem e o espectador e que Freud (1974) chama de projeção, que é uma atribuição de conteúdo da pessoa para o objeto externo. Isso proporciona uma expansão do imaginário facilitando um encontro entre o drama representado no papel com a vida real. Freud (1977) diz que a arte é uma realidade onde os símbolos são capazes de provocar sentimentos reais. Dessa forma, quando assistimos a um filme, é como se estivéssemos conhecendo uma parte nova de nós mesmos que nos é apresentada.

 

REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. Personagens psicopáticos no palco. Vol. VII, Rio de Janeiro: Editora Imago, (Escrito em [1905 ou 1906]) (Trabalho original publicado em 1945), 1977 a.

FREUD, Sigmund. Interesse científico da psicanálise. Vol. XIII Rio de Janeiro: Editora Imago. (Trabalho original publicado em 1913), 1977 b.

FREUD, Sigmund. Totem e tabu. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1913), 1974.

KAUFMANN, P. Dicionário enciclopédico de psicanálise – o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

PONDÉ, Danit Falbel. Cinema no divã. São Paulo: LeYa, 2015.

WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade. Trad. José Octavio de Aguiar Abreu e Vanede Nobre. Rio de Janeiro: Imago 1975.

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Personagens da Psicologia

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Os desenhos de Beatriz nos mostram de forma irreverente os criadores de algumas das principais abordagens da psicologia.

As caricaturas abordam aspectos pessoas da bibliografia desses grandes personagens que à sua maneira contribuíram para a construção da ciência psicologia tal como é conhecida hoje.

Hudson Eygo.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][cq_vc_gallery images=”7700,7701,7702,7703,7704,7705,7706,7707,7708,7709,7710″][/vc_column][/vc_row]

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Franz Anton Mesmer – a Hipnose e a Psicologia

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As histórias e estórias sobre a hipnose e sua relação com a “terapêutica pela fala”, e portanto com a Psicologia, são controversas. Giram em torno do incômodo da Psicologia, no uso da hipnose, de ficar a meio caminho das ciências duras, aquelas que supostamente possuem confiabilidade. (NEUBERN, 2006)

A hipnose surgiu no mesmo contexto do surgimento da ciência positivista e foi já de início considerada como um método menos científico uma vez que se constituía pela influência, que dependia (em seu início) das características do hipnotizador, o que se contrapunha e que se contrapõe ao pilar da neutralidade que sustenta a ciência dura e pressupõe (por vezes prega) aassepsia na relação entre quem aplica a ciência e quem a recebe, na posição de paciente e-ou sujeito experimental. (NEUBERN, 2006)

Raymond E. Fancher (1996) faz um apurado estudo histórico acerca da história da hipnose sobre o qual faço um pequeno resumo, apontando os fatos mais importantes com a tentativa de reconstruir, mesmo que en passant, a trajetória temporal entre os primórdios da hipnose e o seu uso na psicanálise por Freud e na Psicologia, por variados atores. Apenas como nota de esclarecimento, reconhece-se a importância da psicanálise como movimento instituinte da Psicologia Moderna, não legando-a, contudo, papel central em tal instituição.

Para Fancher, a hipnose, no mundo moderno, inicia-se juntamente à figura de Franz  Anton Mesmer. No ano de 1775, o príncipe da Bavaria constitui uma comissão para investigar as ações de exorcismo do padre Johann Joseph Grassner (1727 – 1779). Grassner fazia rituais de exorcismo para curar pessoas e, quando suas ações não surtiam efeitos, ele encaminhava o moribundo a um médico. Em seu tempo, o padre gerou polêmicas, tanto dentro quanto fora da Igreja. Franz Anton Mesmer fez parte da referida comissão e tentou convencê-la de que as ações de Grassner tinham validade, explicando-as com base em sua teoria acerca do magnetismo animal. Sua tentativa não salvou o padre da condenação.

 

Johann Joseph Gassner. Fonte: https://goo.gl/YmCEYz

Franz Anton Mesmer. Fonte: https://goo.gl/yFJo9R

Mesmer havia defendido o seu doutorado em 1766, na Universidade de Viena, com 32 anos, sob o título “Da influência dos planetas sobre o corpo humano”. Em sua tese, nomeava de “magnetismo animal” à força existente no relacionar-se da matéria com o cosmos sendo, tal força, sujeita à manipulação humana por meio, dentre outros, de imãs.

Em 1773, Mesmer começou a tratar Francisca Oesterlin a qual sofria convulsões, espasmos de vômitos, inflamações intestinais, dificuldades para beber água, dores de dente e ouvido, alucinações, cegueira temporária, sensações de sufocamento e paralisias, conjunto de sintomas que foi chamado por Mesmer de “febre histérica”. Ele iniciou um tratamento à base do uso de imãs no corpo de Francisca a qual entrava em um estado de crise convulsiva para, depois, aliviar-se de seus sintomas, temporariamente. A repetição do tratamento por diversas vezes parece ter curado a mulher.

Mesmer fez o mesmo com a garota Maria-Theresia Paradis, pianista cega desde os três anos. A verdade sobre esse caso parece não existir, mas pesquisadores indicam que, pelo menos temporariamente, Mesmer conseguiu curar a cegueira da menina e que, certamente, foi o caso que o estimulou a sair de Viena para Paris, pois, em seu desenvolvimento, foi acusado de charlatão.

Na França, Mesmer fez diversos tratamentos. Aprimorou sua técnica, fazendo tratamento coletivos em torno de um tubo onde supostamente havia fluido magnético com capacidade de curar. Mesmer tocava sua “glass harmônica” (instrumento inventado por Benjamin Franklin) numa outra sala, enquanto seus pacientes ficavam de mãos dadas em torno do tubo. Após criar uma mística, ele entrava com seu roupão lilás e tocava no corpo dos pacientes com o dedo. Alguns entravam em estados convulsivos e um deles, normalmente o que apresentava a “maior” crise, era levado a um quarto reservado, o “quarto da crise”, recebendo tratamento especial de Mesmer. Pelo menos é assim como nos conta Fancher (1996).

O tubo e as sessões de Mesmer. Fonte: https://goo.gl/PYSz4R

 

Desenho da Glass Harmônica. Fonte: https://goo.gl/pbo35K

 

O relato acima parece mais uma caricatura. Se caricaturizado ou não, de qualquer maneira, o rei da França, em 1784, criou uma comissão para investigar os trabalhos de Mesmer. A comissão foi composta por, dentre outros, Benjamin Franklin (o criador da harmônica que Mesmer tocava com maestria), Joseph Guillotin (que sugeriu, no período da Revolução Francesa, o uso da guilhotina como forma de execução para as penas de morte) e Antoine Lavoisier (que perdeu a cabeça na guilhotina). (Notem como os destinos desses personagens selaram-se de maneira curiosa! – magnetismo?)

Benjamin Franklin
http://www.explicatorium.com/Benjamin-Franklin.php

 

Antoine Laurent Lavoisier. Fonte: https://goo.gl/T9U8QW

 

Joseph-Ignace Guillotin. Fonte: https://goo.gl/scZ4QM

Os membros da comissão participaram das sessões de Mesmer e concluíram que, de fato, os pacientes sofriam efeitos (de cura inclusive), mas que tais efeitos eram decorrentes do poder de sugestionabilidade criado pelo contexto e por Mesmer, ao invés do suposto magnetismo animal, como apregoado pelo médico vienense. A comissão desacreditou, portanto, Franz Anton, mas seus discípulos continuaram a exercer a “curas pelo magnetismo”.

Um de seus discípulos, Amand Marie Jacques de Chastenet, conseguiu levar um de seus pacientes a um estado de “crise” que, diferente das convulsões precipitadas nas sessões mesmerianas, caracterizava-se por uma paz, um transe em que a pessoa dormia, mas continuava a responder aos comandos do magnetizador. Chastenet chamou o estado de “sonambulismo artificial”.

John Elliotsen (1791-1868), médico no Hospital da Universidade de Londres, tentou trabalhar com o mesmerismo como meio anestésico (não como discípulo, mas resgatando o quase esquecido legado de Mesmer). John não recebeu apoio da Universidade e demitiu-se como maneira de protestar. Em 1843, fundou o jornal Zoist sobre o tema “fisiologia cerebral, mesmerismo e suas aplicações ao bem-estar humano”. Foi chamado de profissional “pária” pelos conselhos médicos da época.

Em 1842, W. S. Ward, médico inglês, afirmou ter feito uma cirurgia de amputação de perna usando o mesmerismo. A Sociedade Real de Medicina posicionou-se incrédula diante da afirmação de Ward.

O escocês James Esdaile foi o primeiro a usar o mesmerismo em larga escala e de maneira experimental, tabulando os dados. Operou mais de 300 pacientes no final da década de 1840. A maior parte dessas cirurgias foi de retirada de tumores no escroto, cirurgia considerada de risco para época, com um índice de mortalidade de 50%. De acordo com os dados de Esdaile, ele conseguiu diminuir o índice para 5% com o uso do mesmerismo. Também foi desacreditado.

Somente após os estudos do escocês James Braid foi que o mesmerismo conseguiu, novamente, um lugar dentro do meio científico. Braid estudou a insensibilidade à dor induzidas pelo mesmerismo e deu créditos à técnica após perceber que a pupila dos pacientes, em estado de transe, continuavam dilatadas, mesmo após forçar a abertura dos olhos do paciente. Braid, em seus estudos, associou os estados de transe à sugestionabilidade do paciente e não a um suposto fluido manipulado pelo magnetizador. Isso permitiu dar mais créditos à técnica uma vez que resolvia o problema da influência do magnetizador, fator importante numa ciência que se construía sobre o pilar da imparcialidade. Além disso, o que antes chamavam de mesmerismo, Braid chamou de neurohipnologia: hypnos, palavra grega que significa “dormir” e neûron, palavra grega que significa nervos. Hoje, a técnica é conhecida por “hipnose”.

 

 

De Braid a Freud, a hipnose desenvolveu-se em meio às divergências entre o que foi chamado de a “Escola de Nancy” (referente ao conjunto dos trabalhos e escritos de Auguste Ambroise Lièbeault [1823 – 1904] em torno da hipnose e de seus sucessores, como Hyppolite Bernheim) e a “Escola de Sapetrière”.

Hyppolite de Bernheim, de acordo com os estudos de Neubern (2006), buscou a junção da comunicação humana com os mecanismos cerebrais que fossem capazes de transformar a sugestão em processo de cura, de melhora, de soluções e etc. Dessa forma, colocava como ponto central da terapêutica psicológica a relação estabelecida entre o “cuidador” e seu paciente e o papel ativo do paciente em seu processo de cura. Sobre o projeto de Bernhein, Neubern afirma: “Natureza e espírito estavam novamente sendo conciliados dentro de um projeto científico” (NEUBERN, 2006, p.349).

Por outro lado, na Escola de Salpetrière, destacou-se os trabalhos de Jean Baptiste Charcot que, contrariando a concepção da escola de Nancy, encarava a hipnose como um sintoma da histeria e não como uma característica humana a ser usada no processo terapêutico.

Foi com Charcot que Freud, nos anos de 1885 e 1886, desenvolveu estudos e concepçoes acerca do que no meio acadêmico chamava-se de histeria e sobre o uso do método hipnótico em seu tratamento. Fulgêncio (2002) apresenta um relato sobre a passagem de Freud em Paris. Ressalta-se que Freud recebeu influência tanto de Charcot quanto de autores da Escola de Nancy, como Hippolyte Bernheim (foi professor de Freud) e, assim, pôde, pelo menos de início, usar e desenvolver o método hipnótico, mesmo considerando que sua eficácia estava aquém de uma clínica resolutiva.

Neubern (2006) mostra que a hipnose foi abandonada por Freud e que sobre ela pairou uma espécie de maldição, de silenciamento. Aliás, a história da hipnose, como se vê, é polêmica desde seu início, desde os trabalhos do padre Grassner e da comissão da qual Mesmer participou. O distanciamento da psicanálise com relação à hipnose, deveu-se ao fato de Freud e demais criadores da psicanálise buscarem maior credibilidade uma vez que a hipnose possuía e ainda possui relações com o mesmerismo, descreditada cientificamente. Contudo, Neubern conclui que a hipnose, no desenvolvimento da psicanálise, e portanto da Psicologia (mesmo que diferentes, modificantes uma à outra), não foi apenas abandonada, mas foi também censurada. O que nos leva a questões que vão além da validação ou não do conhecimento, pois abrangem uma Ética do pensar.

Levando em consideração o percurso histórico da hipnose e sua estreita relação com o nascimento e o desenvolvimento da Psicologia chamada Moderna, torna-se importante aprofundar os estudos acerca da história dessa relação, recontá-la nas muitas maneiras possíveis. O questionamento acerca da história é um dos motores do desenvolvimento da Psicologia. Neubern (2006) nos deixa uma questão que considero fundante e, por isso, a deixo aqui como encerramento desse texto: como uma ciência, como a Psicologia pode se desenvolver sem poder voltar às suas origens?

Referências:

FANCHER, Raymond E. Early hipnotists and the Psuchology of social influence. In: Pioneers of Psychology, Third Edition, W.W.Norton & Company, Inc. NY – London. 1996.

FULGÊNCIO, Leopoldo. A compreensão freudiana da histeria como um reformulação especulativa das psicopatologias. In: Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, ano V, n. 4, dez/2002.

NEUBERN, Maurício da Silva. Hipnose e Psicologia Clínica – retomando a história não contada. In:Psicologia: Reflexão e Crítica 19(3) – p.346-354, 2006.

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Théodule-Armand Ribot

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O texto que segue é o terceiro da série “Personagens da Psicologia Moderna”. O primeiro retratou um pouco da vida e das contribuições à Psicologia de Edwin Boring (1886 – 1968), considerado um dos primeiros historiadores de e da Psicologia, com a sua importante contribuição chamada “História da Psicologia Experimental”, de 1929. O segundo retratou sobre o multifuncional (médico, físico, psicólogo e alpinista) Hermann Helmholtz (1821 – 1894), estudioso dos impulsos nervosos.

Esse texto expõe fatos e peculiaridade do psicólogo francês chamado Théodule-Armand Ribot, nascido em 8 de dezembro de 1839 e falecido em 9 de dezembro de 1916. O interesse por Ribot nasceu da leitura do texto “Psicopatologia, exotismo e diversidade: ensaio de antropologia da Psicopatologia”, do psicólogo Adriano Holanda, atualmente professor na Universidade Federal do Paraná e estudioso da “Fenomenologia, Fenomenologia Husserliana, Psicoterapia, Abordagens Fenomenológicas e Existenciais, Psicologia da Religião, História da Psicologia e Pesquisa Fenomenológica” (texto fornecido pelo autor na página do currículo lattes).

disponível em : http://carlossalvarado.edublogs.org/2012/07/11/studying-the-life-and-work-of-frederic-w-h-myers/

 

Em seu artigo, Adriano afirma que, em meio às divergências quanto ao nascimento dos estudos de Psicopatologia, há autores que designam Théodule Ribot como fundador da Psicopatologia. Juntamente com Ribot, dividem a medalha de fundadores da Psicopatologia, dentre outros, os médicos:

– Jean-Étienne Esquirol = com a publicação do Traité des Maladies Mentales, de 1838;

http://en.wikipedia.org/wiki/Jean-%C3%89tienne_Dominique_Esquirol

 

 

– Wilhelm Griesinger = com a publicação do livro Patologia e Terapêutica das Enfermidades Psíquicas, em 1845.

http://neurologie.med-network.de/geschichte/griesinger.html

 

Parece que quase todas as tentativas de se datar e especificar os iniciadores dos saberes geram polêmicas e confusões. De qualquer maneira, Ribot teve um papel importante para o desenvolvimento da Psicopatologia. Influenciou o psicólogo Georges Dumas a inaugurar a primeira cátedra de Psicopatologia em 1905. (Holanda, 2001).

O sociólogo francês Laurent Mucchielli relata que a abertura do curso de Psicologia por Ribot, em 1885, na Univesidade de Sorbonne, juntamente com o de Ciência Social, criado por Émile Durkheim, em 1887, foi de grande importância para o desenvolvimento das ciências humanas, na França e na Europa. Contreras (2010) afirma que Ribot é considerado por diversos autores franceses como a figura mais importante da Psicologia daquele país, concentrando em suas ações a independência da psicologia com relação à metafísica, desenvolvendo não só o curso criado em 1885 como também um laboratório de psicologia experimental e a Revue philosophique.

Wilson Frezzatti Junior (2012), professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, discorre com detalhes sobre a importância da Revue Philosophique fundada e desenvolvida por Ribot. Ele afirma que a revista foi fundada em 1876 e que congregava adeptos e críticos da psicologia experimental, antimetafísica. Semestralmente, publicava artigos acerca de experimentos em psicologia e revisões de outros periódicos. Frezzatti Junior afirma ainda que esse periódico promoveu um aprofundamento sobre a obra do filósofo Friedrich Nietzsche. Nas palavras dele:

Os textos que tratam diretamente do pensamento de Nietzsche aparecem entre os volumes 34 (1892) e 123 (1937), sendo um total de cinqüenta e um, incluindo o necrológio (1900) e um pequeno texto de 1863 do próprio filósofo alemão, traduzido por Geneviève Bianquis (1937). Há apenas seis artigos, e o restante é composto por resenhas ou notas bibliográficas. Entretanto, é justamente nesses últimos que ocorre o debate propriamente francês sobre a filosofia nietzschiana. (Frezzatti Junior, 2012).

A contribuição de Ribot à psicologia, em especial pela revista que fundou e coordenou, talvez tenha repercussão até hoje, não somente na França como também no Brasil. A filosofia francesa influencia, cada vez mais, a prática da psicologia brasileira (especialmente aos atuantes na Reforma Psiquiátrica e os humanistas em suas várias escolas). Tal influência se dá em especial por autores como Foucault, Deleuze e Guattari, todos eles professores no Collège de France, local no qual Ribot, em 1888, iniciou a cátedra de Psicologia experimental e comparada, evento considerado por Frezzatti Junior como indicativo de sucesso do periódico do próprio Ribot. Se pensarmos que Foucault, Deleuze e Guatarri fundamentam suas discussões na filosofia de Nietsche e que a filosofia de Nietzsche foi degustada e ruminada pelos esforços de Ribot, podemos afirmar que, mesmo que indiretamente, os esforços de Ribot reverberam atualmente na psicologia brasileira.

Contreras (2010), buscando referências na década de 20, que analisavam o periódico de Ribot, mostra críticas a favor da revista, situando-a como a mais prestigiada da Europa. Ribot organizou, juntamente com Charcot, em 1889, o Primeiro Congresso Internacional de Psicologia e, em 1900, o IV Congresso Internacional de Psicologia. Os congressos internacionais de psicologia passaram a ser organizados pela União Internacional de Psicologia Científica, em 1951 que completou a versão XXX do Congresso, em 2012, em Cape Town, na África do Sul. O próximo Congresso Internacional será em 2016, em Yokohama, no Japão. (informações disponíveis no sítio da própria União –http://www.iupsys.net/index.php/about/history).

Contreras, estudando a produção textual de Ribot, diz que o psicólogo francês estudava as enfermidades da personalidade, da vontade, da memória e da atenção. Encarava o reflexo como o princípio da tendência que a consciência tem de se expressar em movimento, em ato. Buscava na fisiologia, como muitos de sua época, a crítica à metafísica que, para Ribot, desvirtuava a psicologia do rumo que deveria tomar para desenvolver-se. Analisa com detalhes a relação do francês com Nietzsche, revelando a carta que o alemão enviou a Paul Rée (o outro filósofo alemão do triângulo amoroso com Lou Salomé e Nietzsche). Na carta, Nietzsche elogia Ribot e sua revista.

 


Lou Andreas-Salomé, Paul Rée e Friedrich Nietzsche (1882) – disponível emhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Paul_R%C3%A9e

 

Gisele Toassa, em sua tese chamada “Emoções e vivências em Vigotski: investigação para uma perspectiva histórico-cultural” reconhece a influência de Ribot na construção teórica de Vigotski (http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-19032009-100357/pt-br.php).

Ana Maria Jacó Vilela, juntamente com Arthur Arruda Leal Ferreira e Francisco Teixeira Portugal, no livro que organizaram chamado “História da Psicologia: rumos e percursos” referem-se a Ribot, no capítulo 8, como o psicólogo francês que questionou a metafísica e desenvolveu uma nova psicologia baseada na escola associacionista  de John Stuart Mill e Francis Galton e na escola alemã. Mostram que Ribot foi professor de Pierre Janet e de Alfred Binet, o criador do primeiro teste de inteligência na Psicologia.

As obras de Ribot são acessíveis através da Associação Americana de Psicologia e da União Internacional de Psicologia Científica. Os trabalhos de Gisele Toassa, Frezzatti Júnior e Welyton Paraíba da Silva Sousa e Maria Aurelina Machado de Oliveira são os que encontrei nas páginas brasileiras além do ótimo trabalho do espanhol Contreras. Creio que seja um autor importante para traduzirmos e estudarmos mais. Quiçá um projeto de pesquisa na Ulbra pode se aproximar de Theódule Ribot.

 

Referências:

CONTRERAS, Gonzalo Salas. Ribot, Janet y Binet: Pioneros de la Psicología Francesa Contemporánea, In: Eureke – revista de Investigação científica em Psicologia, Asunción (Paraguay) 7(2): pp.1-114, 2010.

FREZZATTI JUNIOR, Wilson Antonio. A recepção de Nietzsche na França: da Revue philosophique de la France et de l´ Étranger ao período entreguerras. In: Cadernos Nietsche, disponível em http://www.cadernosnietzsche.unifesp.br/pt/home/item/187-a-recep%C3%A7%C3%A3o-de-nietzsche-na-fran%C3%A7a-da-revue-philosophique-de-la-france-et-de-l%C2%B4-%C3%A9tranger-ao-per%C3%ADodo-entreguerras.

JACO-VILELA, Ana Maria. LEAL FERREIRA, Arthur Arruda. PORTUGAL, Francisco Teixeira (orgs). História da Psicologia: Rumos e Percursos. Segunda Edição, Rio de Janeiro, RJ, 2010.

MUCCHIELI, Laurent. O nascimento da sociologia na universidade francesa (1880-1914), CNRS – Revue d’Histoire des sciences humaines – Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 21, nº 41, p. 35-54. 2001.

TOASSA, Gisele. Emoções e vivências em Vigotski: investigação para uma perspectiva histórica-cultural. 2009. Tese (Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-19032009-100357/>. Acesso em: 2013-03-02.

Welyton Paraíba da silva Sousa e Maria Aurelina Machado de Oliveira. Teoria da personalidade: um breve resgate epistêmico desse campo do saber psicológico [www.dEsEnrEdoS.com.br – ISSN 2175-3903 – ano I – número 03 -teresina – piauí – novembro dezembro 2009].

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Edwin G. Boring

Edwin G. Boring: pesquisador e cobaia

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A história da Psicologia é um assunto vasto, rico e peculiar.

Sua vastidão é vista já a partir da tentativa de situar um nascimento científico da Psicologia. Tal tentativa se trata da organização textual que resuma (numa infeliz tentativa de representar) o processamento dos discursos e das técnicas que compõem uma determinada evolução social, cultural, econômica, política, biológica, temporal, espacial e tecnológica.

Sua riqueza deve-se ao fato de que a história da Psicologia é feita por pessoas e suas relações: ou seja, compõem-se por orientações diversas, afetos singulares, ideias divergentes e convergentes, comunicáveis e comunicantes; domínios e submissões, crises e trevas, revoluções e gozos, compreensões e censuras; enfim, compõem-se por vetores relacionais das pessoas para as coisas, das coisas para as pessoas, das pessoas para as pessoas e das coisas para as coisas, coisas todos nós; pessoas, nós apenas. Por isso, mistura-se com a história de muitas outras coisas como, por exemplo: a história dos jesuítas, a história de filósofos, de fisiólogos, de alemães, ingleses, irlandeses, franceses, norte-americanos, asiáticos, brasileiros e pessoas do mundo todo. As descobertas e criações no campo da Psicologia, como em qualquer outro, maturam-se socialmente; a elas são necessárias condições de possibilidade. Se pensarmos, por exemplo, nas descobertas e criações dos tempos dos séculos XVIII e XIX, cuja capacidade de comunicação entre países era precária (se compararmos com os dias de hoje), mas não ineficaz, entendemos que ao mesmo tempo em que surgiam descobertas e criações de tempos em tempos, isoladamente e personificadas em intelectuais, elas também surgiam ao mesmo tempo, em dois contextos diferentes, como no caso da relação estabelecida entre a sensação e as raízes posteriores da medula, elaborada tanto pelo francês Francois Magendie quanto pelo inglês Sir Charles Bell: de acordo com Goodwin (2010), Bell escrevera sobre as suas descobertas em 1811, submetendo-a, contudo, a poucos amigos. Em 1822, Magendie publicou as suas, sem ter tido acesso às de Bell. A publicação de Magendie reverberou no outro lado do Canal da Mancha e fez com que Sir Bell praguejasse aos céus ultramarinos e reivindicasse a paternidade da lei. A contenda foi resolvida com a oficialização da lei Bell-Magendie (mais detalhes do caso, ver o capítulo 3 do livro “História da Psicologia Moderna”, Goodwin, 2010).

A peculiaridade da história da Psicologia define-se do mesmo modo como sua riqueza que é a forma como o homem conta sua história. O conhecimento por si só é já peculiar, a escrita também.

Tendo em vista a vastidão, a riqueza e a peculiaridade da história da Psicologia, pretendo, nesse texto, apresentar iniciar uma série sobre personagens da Psicologia e inicio com:

1- Edwin G. Boring (1886 – 1968):

Edwin Boring é um dos mais citados historiadores da Psicologia. Tem lugar consagrado como um dos primeiros a escarafunchar a história da Psicologia e um dos poucos a realmente propor uma história. Lançou o livro “História da Psicologia Experimental”, em 1929 e o relançou, revisado, em 1950. (Massimi, 1998). Boring viveu numa época de efervescência conceitual e paradigmática da Psicologia como foi a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX, contribuído para tal efervescência.

Cursou engenharia na Cornell University. Foi estudar os fundamentos da Psicologia somente em 1905 com Edward Bradford Titchener (outro personagem consagrado na história da psicologia). De acordo com o próprio Boring, de acordo com Goodwin (2010), Boring achavam as aulas de Titchener mágicas. Até os anos de 1910 desenvolveu-se como engenheiro siderúrgico, voltando à Cornell onde, em 1914, recebeu o título de Phd em Psicologia.

Em sua permanência na Cornell, Boring estudou:

A-  A aprendizagem humana de labirintos, pesquisa em que conheceu Lucy May, colega de doutoramento, sujeito de suas pesquisas e com quem se casou;

B- A regeneração nervosa, pesquisa na qual cortou o nervo do próprio braço e rastreou a regeneração;

C- Os processos de aprendizagem de esquizofrênicos;

• A sensibilidade visceral como tema de sua tese. Para tanto, ele aprendeu a engolir um tubo que lhe permitia experimentar diferentes substâncias diretamente pelo estômago e anotar seus efeitos sensoriais (muitos textos e trabalhos de Edwin Boring estão digitalizados e disponibilizados pela monopolizadora e inlogável Associação Americana de Psicologia).

Boring trabalhou durante a I Guerra Mundial com testagem de inteligência. Juntamente com Stanley Hall, Mckeen Cattel, Edward Thorndike, Jonh Watson, dentre outros, criou os testes “Army Alpha” e “Army Beta” aplicados em mais ou menos um milhão e meio de recrutas americanos (Baumgartl e Primi, 2006), talvez o empreendimento mais controverso empreendido pela Psicologia que teve como ação o marcar do soldado-gado que foi abatido nos campos de guerra. A papelada que isso consumiu deve ter sido imensa, além da inerente destruição de biomas e espécies de seres vivos a eventos como guerras de tamanho das mundiais. Com isso não quero cair no erro do presentismo, pensando com a minha cabeça no tempo de outras pessoas, e lhes simplificando a capacidade crítica, intelectual e criativa. Como disse, trata-se de um assunto controverso.

Em 1917, o Tio Sam fazia seus 105 anos de vida e precisava de gente para realmente ir à guerra ao invés de a ela se contrariar ou se tornar neutra. O recrutamento ficou sob a responsabilidade dos psicólogos que desenvolviam a psicologia de maneira experimental. Uso o experimental no sentido usado pelo próprio Boring que resumo em duas características: 1- não era considerada a única forma de se desenvolver a Psicologia, mais uma apenas; 2- era uma ciência “pura”, ou seja, aquela em que as condições externas são controladas como variáveis com o intuito de provar alguma hipótese, ou seja, não fazia sentido aplicar a psicologia em esforços de guerra, nem em qualquer outro lugar que não fosse o laboratório a não ser que tal ciência produzisse um produto que pudesse, por regulações éticas, ser disponibilizado para o bem da sociedade, como são as descobertas sobre a memória, inteligência e desenvolvimento humano, feitas, também, pela Psicologia Experimental. Goodwin (2010) afirma que o programa de testagem para o recrutamento na Primeira Guerra Mundial testou mais de um milhão e meio de soldados, mas que, o alto escalão do exército não deu muito crédito ao programa. Além disso, as condições de aplicação dos testes não eram adequadas, condição essencial para gerar dúvida quanto à fidedignidade da aplicação de qualquer teste. Mesmo assim, a Psicologia ganhou terreno fértil para se desenvolver no exército: não tinha feita algo realmente ético e revolucionário para a humanidade, mas conseguiu escolher milhares de soldados para a IGM. Isso foi o suficiente para, na década de 20, ocorrer uma explosão do uso dos testes nas escolas, no comércio e na indústria americana.

Em 1922 foi trabalhar na Universidade de Harvard onde, em 1934, conseguiu separar o Departamento de Psicologia do Departamento de Filosofia.

No ano de 1939, fez parte, juntamente com Carl Rogers, do subcomitê de Pesquisa e Planejamento do Comitê Emergencial em Psicologia coordenado pelo Conselho Nacional de Recursos que havia se organizado com o intuito de apoiar os esforços de guerra com a criação da Comissão de Seleção e treinamento de pessoal militar, sob a coordenação de John Yerkes (Rosa, 2006). Tal movimentação foi acompanhada por diversas associações de Psicologia americanas e acabou por promover a unificação de todas na APA. Atualmente, a APA é composta por Divisões, reconhecidas por números, sendo que a Divisão da Psicologia Militar é a 19.

Curiosidades:

1- A Divisão da APA que trabalha com a história da Psicologia é a de número 26 e foi fundada em 1965, tendo como primeiro presidente Robert Watson. De acordo com as pesquisas de Goodwin (2010), o presidente dessa divisão seria Boring se o mesmo não tivesse recusado a sua candidatura por problemas de saúde.

2- Boring defendia a semana de 84 horas e o ano de 50 semanas e criticava “os acadêmicos de quarenta horas, que tiram longas férias do trabalho no verão” (Boring citado por Goodwin, 2010).

3- Robert Yerkes (diferente de John Yerkes), reconhecido psicólogo coordenador dos projetos militares que, em 1917, criaram os testes Alfa e Beta de recrutamento, chamava ao colega Boring, de acordo com a New World Encyclopedia (2008), de Mr Psychology.

4- Boring apresentava, em programa de televisão, lições de psicologia experimental. Criou 38 programas de 30 minutos cada, no canal educativo da cidade de Boston.

5- O teste Alfa era direcionado para recrutas que sabiam ler; o Beta, aos analfabetos. De acordo com Goodwin (2010), 30% dos recrutas não sabiam ler. Portanto pouco sabiam sobre a guerra além do que o próprio governo americano contava. Os soldados que faziam a versão Alfa eram orientados a “ver o quanto você é capaz de lembrar, pensar e executar o que lhe mandaram fazer. Não estamos procurando loucos. O objetivo é ajudar a descobrir aquilo que você pode fazer melhor no exército” (Yoakum e Yerkes citados por Goodwin, 2010, p. 281). Os que recebiam o teste beta recebiam ordens para seguir as instruções e “não fazer perguntas” (idem).

Referências:

BAUMGARTI, V. O., & Primi, R. Evidências de Validade da Bateria de Provas de Raciocínio (BPR-5) para Seleção de Pessoal. In: Psicologia: Reflexão e Crítica, 19 (2), 246-251, 2006.

BROZEK, Josef e Massimi, Marina. Historiografia da Psicologia Moderna – A versão brasileira. Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 1998.

GOODWIN, C. James. História da Psicologia Moderna; tradução Marta Ross; – 4° ed. – São Paulo: Cultrix, 2010.

New World Encyclopedia (2008) – acessível no endereço eletrônico: http://www.newworldencyclopedia.org/entry/Edwin_G._Boring; 2008 foi o ano de atualização das informações referentes a Edwin Boring.

ROSA, Francisco Heitor. Satisfação de vida, estilos parentais em militares e universitários.Tese, 2006.

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