A Bela e a Fera: a iniciação do Feminino

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Melhor Figurino, Melhor Direção de Arte

A Bela e a Fera é um dos contos mais famosos da humanidade e que ainda causa extrema comoção nas pessoas. A versão do filme de 2017 é uma adaptação do conto que originalmente foi escrito pela escritora francesa Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve (La Rochelle, 1695 – Paris, 9/12/1755). Mas a versão mais conhecida foi escrita por Jeanne-Marie Leprince de Beaumont (Rouen, 26/4/1711 – Chavanod, 8/9/1780), escritora, também francesa, que resumiu e modificou a obra de Villeneuve. Com o tempo, e sucesso do conto, surgiram outras versões, incluindo a do também francês Charles Perrault.

Diversas adaptações desse conto para a televisão e cinema foram feitas, apontando um interesse emocional coletivo sobre o tema. A atual adaptação vem causando uma comoção bastante intensa, principalmente em adultos, que estão cada vez mais retomando o interesse pelos contos de fadas. Com isso gostaria de explorar nesse texto o simbolismo do filme derivado do conto A Bela e a Fera, de forma a buscar uma compreensão sobre essa comoção coletiva e com isso tentar trazer um pouco de consciência a respeito do que as necessidades emergentes que dinâmica psíquica coletiva tem ansiado.

Não pretendo esgotar o assunto, uma vez que um conto de fadas pode ser interpretado de diversas formas e visto de inúmeras maneiras. Essa é apenas a minha visão sobre o tema e como compreendo de forma subjetiva e pessoal o tema. Para iniciar a discussão é importante pontuar o que os contos de fadas representam na visão analítica. Conforme Von Franz (2005):

Contos de fada são a expressão mais pura e mais simples dos processos psíquicos do inconsciente coletivo. Consequentemente, o valor deles para a investigação científica do inconsciente é sobejamente superior a qualquer outro material. Eles representam os arquétipos na sua forma mais simples, plena e concisa. Nesta forma pura, as imagens arquetípicas fornecem-nos as melhores pistas para compreensão dos processos que se passam na psique coletiva.

Com essa premissa pode-se observar que os contos de fadas fornecem um rico material para a compreensão da dinâmica da psique coletiva. Por esse motivo quando um conto de fadas desperta tanta atenção e comoção como foi o caso de A Bela e a Fera, podemos retirar desse material alguma compreensão para uma tentativa inicial de entender a problemática que a psique coletiva apresenta e o possível desenvolvimento disso. O filme traz algumas alterações em relação ao original, contudo, a mensagem original permanece a mesma.

A estrutura do conto não se modifica. A história se inicia então com um príncipe sendo amaldiçoado por uma feiticeira. Disfarçada de mendiga, a feiticeira entra em uma festa dada pelo mimado príncipe e lhe oferece uma rosa feia. Ao desprezar a rosa, ele é amaldiçoado e transformado em Fera. Se ele não amar nenhuma jovem e não for correspondido antes da última pétala cair, ele será uma fera eternamente. No conto original há um problema de maldição com o príncipe também.

Na versão original de Villeneuve, a Fera foi um príncipe que ainda jovem perdeu o pai e sua mãe partiu para uma guerra em defesa do reino. A rainha deixou-o aos cuidados de uma fada malvada, que tentou seduzi-lo enquanto ele crescia. Quando ele recusou, a fada o transforma em fera. O original revela também que Bela não é realmente uma filha do mercador, mas descendente de um rei. A mesma fada que tentou seduzir o príncipe tenta matar Bela para casar com seu pai, e Bela toma o lugar da filha morta do mercador para se proteger. O príncipe então nas duas versões sofre a maldição por rejeitar uma feiticeira.

No original há uma alusão a um incesto simbólico, visto que a rainha e a fada malvada são polos opostos da imagem arquetípica da mãe. No filme o príncipe perdeu a mãe, foi criado por um pai cruel e por isso se tornou um homem narcisista e infantil e que precisa ser redimido. Ambas versões mostram um conflito materno do masculino. No original há a relutância em relação ao incesto. A mãe boa (rainha) é substituída pela mãe terrível que quer devorar a masculinidade do príncipe e assim ele precisa lutar contra esse incesto para sobreviver.

Neumann (1995) afirma que o desenvolvimento da consciência tanto individual quanto coletiva passam pelas fases urobórica, matriarcal e patriarcal. E que a sociedade contemporânea se encontra na fase patriarcal de desenvolvimento. Além disso, afirma que a consciência do ego tem um caráter masculino em ambos os sexos e o inconsciente tem caráter feminino. Com isso a relação consciência – dia – luz, e inconsciente – escuridão – noite se mantêm da mesma forma independente do sexo, sendo a consciência masculina mesmo nas mulheres e o inconsciente feminino.

A consciência patriarcal, então, luta para se separar do inconsciente e assim ficar livre de suas influências. Contudo, colocar o patriarcado e a separação do ego em relação à consciência em primazia e em um estado mais elevado de consciência traz problemas também, como mostra o conto A Bela e a Fera. Ao desprezar o feminino e matriarcal, nos deixaram amaldiçoados. Se por um lado o patriarcado foi muito importante para o desenvolvimento da intelectualidade, tecnologia e cultura, por outro o aspecto patriarcal da consciência é separatista, pautado na perfeição e não na completude, tem medo da morte e do inconsciente e não aceita o seu destino.

Ao buscar a perfeição a consciência patriarcal exclui os defeitos e o mal, e com isso exclui a totalidade. E todo aspecto reprimido da consciência se volta novamente se vingando dessa repressão. Vemos isso nas neuroses e doenças psicossomáticas. Uma pessoa neurótica pode ser comparada a uma pessoa amaldiçoada. Pois alguém neurótico pode ser impelida a agir de forma destrutiva consigo próprio ou com os outros. Von Franz (2010) aponta para o tema da vingança feminina no conto A Bela Adormecida.

Nesse conto a fada esquecida e desprezada se vinga na princesa fazendo com que ela durma 100 anos. Isso simboliza que o feminino dormiu em nossa sociedade e com isso nenhuma vida acontece, só há a esterilidade. A fada malvada, ou feiticeira no conto e no mito transforma, nesse caso, o príncipe em animal. Isso significa que a consciência desceu ao nível animal e primitivo. O masculino (tendo os homens como representantes), sucumbe aos aspectos animalescos e instintivos apenas em relação ao feminino.

A mãe marca os aspectos “femininos” do filho, bem como a imagem que ele cria da mulher, suas aspirações, exigências e temores face às mulheres (Von Franz, 2010). Com a ausência da mãe e dos aspectos maternos, ele se torna inseguro e temeroso em relação ao feminino e a anima. No filme, o fato da rainha ter morrido mostra que não há o feminino no sistema regente da consciência. Os valores femininos foram reprimidos e negados, uma vez que a rainha seria o elemento feminino correspondente ao rei na consciência coletiva.

A ausência da rainha significa que o aspecto coletivo do feminino foi renegado e reprimido e, consequentemente, o rei se torna estéril e despreza o feminino. Algo que ele passa para o filho no filme. Pode-se pressupor, então, que a história trata da problemática de uma atitude coletiva dominante na qual o princípio de Eros — o relacionamento com o irracional, o feminino — foi perdido.

O filme então traz um tema muito atual, que é a desvalorização dos aspectos femininos na consciência coletiva. Hoje testemunhamos o anseio pelo resgate da essência do feminino perdida, pois essa unilateralidade fez mal tanto as mulheres – que se sentem perdidas em relação ao que é ser feminina – quanto ao homem que desconhece o feminino em si, desvalorizando esse aspecto interno na depreciação da mulher. O homem quando não desenvolve sua anima (o aspecto feminino da sua psique) se torna um narcisista, assim como o príncipe no filme.

O interessante em A Bela e a Fera é que quem redime o príncipe é a mulher, algo oposto ao que estamos acostumados. Temos imprimido que o heroísmo é manifestado pelo herói solar. Ou seja, aquele que luta contra o mal para salvar a princesa. Portanto, Bela é a heroína do conto e do filme. Ela é quem redime a situação deficiente da consciência, sem, contudo, desembainhar nenhuma espada. Por isso é importante analisarmos a figura de Bela, tanto o filme quanto o conto original descrevem a heroína como humilde e com gosto pela leitura.

Já o filme acrescenta o conflito vivido por uma mulher inteligente e que quer seguir seu coração ao invés dos ditames da sociedade, que lhe diz que ler é inapropriado a ela. Para os aldeões a mulher serve apenas para cuidar do marido e ter filhos. Esse conflito foi relatado a primeira vez na animação de 1991. De fato, as mulheres durante séculos não puderam expressar seus dons criativos advindos do contato com o animus criativo reprimidos, sendo relegadas ao papel de mãe e esposa.

Qualquer manifestação intelectual ou criativa era reprimida e combatida. Contudo hoje a mulher conseguiu cada vez mais alcançar o sucesso no mundo externo e patriarcal. Tornamo-nos “filhas do pai”, ou seja, estamos cada vez mais bem adaptadas a uma sociedade com orientação masculina, porém à custa da repressão de nossos instintos femininos. Essa “filha do pai” aparece na figura de Bela. A filha única e amada de seu pai. O que aponta, de forma individual, para uma mulher com complexo paterno positivo, com a idealização do pai. Como no caso da menina, o pai é o diferente, por isso a tendência à idealização.

No conto e no livro o pai de Bela acaba no castelo da Fera, que o mantém em cativeiro por ter roubado uma rosa de seu jardim. Bela então se torna prisioneira no lugar do pai. A rosa é um aspecto que representa o arquétipo materno, no sentido de flor como recipiente (Jung, 2008). Símbolo associado à deusa do amor e sexualidade Afrodite, e indica uma busca de amor erótico e transcendental, bem como a união com seu oposto. Ela deseja inconscientemente quebrar esse pacto de união amorosa e incestuosa com o pai e experimentar o amor por outro homem diferente. Além disso, a rosa é em geral disposta em quatro raios, o que indica a quadratura do círculo, isto é, a união dos opostos. Isso significa que o amor é um grande aliado no processo de individuação, pois é esse desejo de união que leva a coniunctio, que na alquimia representa a meta da individuação.

Ao pedir a rosa ao pai observa-se um pedido de ajuda inconsciente. Sua bondade e seu desejo de se livrar de conceitos que já não lhe trazem significado, está simbolizada na encomenda dessa rosa. O que ela não sabe é que, ao pedir a rosa, está a ponto de pôr em perigo a vida do pai e o relacionamento ideal existente entre os dois. É como se ela desejasse ser salva de um amor que a mantém virtuosa, porém em uma atitude irreal.

Ela idealiza o amor e assim não enxerga o homem real nem o relacionamento. Isso significa que Bela deseja sair da experiência do apego à lei masculina – representada no pai -, que transforma um homem em Fera, para o amor carnal através do seu lado feminino, do seu desejo e sexualidade. Para deixar o pai precisou aceitar o desejo erótico – que estava encoberto em uma fantasia incestuosa simbólica – para conhecer o homem animal e descobrir suas verdadeiras reações como mulher. Para isso ela deve abrir mão dos aspectos paternais, como seu apego a intelectualidade.

Uma mulher presa a um complexo paterno tende a ficar bastante racionalizar e voltada ao mundo exterior com suas exigências. Ela se afasta de seus desejos, de sua essência feminina e sua adaptação ao mundo interno, mágico e recheado de emoções e intuições. Nos contos de fadas há um tema comum onde o pai que entrega ou vende a filha a um monstro ou demônio, como por exemplo, no mito de Eros e Psique, ou no conto A Donzela sem mãos. Isso mostra que o animus da mulher se desenvolve a partir da relação com o pai pessoal.

O demônio, monstro ou fera nos contos de fadas simboliza o animus negativo que ainda está contaminado pela imagem do pai. Além disso, o fato da heroína ter mãe mostra uma fraqueza e incerteza sobre a feminilidade dela, o que a deixa suscetível a dominação pelo animus. Bela então vai sacrificar justamente esse “monstro” da intelectualidade unilateral, senão ela pode se torna igual ao seu pai: alguém muito inteligente, mas que não consegue progredir e se tornou pobre, sou seja, alguém com uma visão empobrecida e unilateral da vida.

A bruxa (ou feiticeira) que amaldiçoou o príncipe simboliza o feminino rejeitado na consciência coletiva. E nos mitos e contos de fadas vemos que o feminino não aceita bem a rejeição. O feminino quer ser aceito, incluso e adorado e quando isso não ocorre seu aspecto sombrio vem à tona sob a forma de vingança. Exemplos disso: Hera em sua cólera devido as “escapadas” de Zeus se vingava das amantes e filhos bastardos; Demeter quando teve sua filha raptada por Hades se vingou trazendo a esterilidade a terra.

Então, do ponto de vista coletivo, o desenvolvimento dos aspectos patriarcais da psique coletiva como, por exemplo, o desenvolvimento tecnológico e da racionalidade (representado aqui pelo pai de Bela) que tanto nos auxiliou agora necessita diminuir, pois com ele também veio a exploração indevida da natureza o que faz um grande estrago na psique coletiva. E é isso que a bruxa no conto vem reclamar, que a consciência olhe para novamente para o feminino e a natureza que clama por atenção.

É comum nos contos de fadas que a heroína se submeta a uma situação, suportando o sofrimento com paciência e aguardando o tempo certo para agir. Isso ocorre, pois ela não deve agir da mesma forma que seu animus e os aspectos femininos da sua psique que foram reprimidos, como o seu desejo e sua irracionalidade, devem ser agora resgatados. Em nossa sociedade que privilegia a ação, a extroversão e o sempre fazer algo, ter paciência e aprender a suportar e esperar algo é um feito realmente heroico.

Bela mesmo a contragosto passa a cuidar da Fera e da casa e ao conviver com a Fera, ela percebe que ele é sensível e realiza todas as suas vontades a despeito de sua aparência. A redenção da Fera então é feita por meio do amor. De príncipe mimado, que não suportava ver a realidade da vida com seus aspectos mais feios (a feiura da mendiga simboliza a morte e a destruição presentes na natureza), ele se descobre um ser sensível e capaz de amar. Bela então sente saudades do pai e a Fera, por amor, permite que ela regresse para salva-lo.

E ao voltar, diferentemente do conto, ela enfrenta não as irmãs invejosas, mas um pretendente, Gaston, que não aceita ser trocado. O que é bastante interessante. O voltar para a casa original significa uma regressão da libido ao inconsciente original. E no filme não há um feminino sombrio, mas um masculino. Gaston representa as opiniões de um animus não diferenciado. É dele a frase na animação: “Não é certo uma mulher ler. Logo ela começa a ter ideias… a pensar”.

Individualmente então, ele representa um caráter regressivo da mulher, uma opinião infundada e obsessiva. Ele não olha para os desejos dela, ele não a apoia em seus sonhos. Ela é apenas um objeto. Em termos coletivos, Gaston representa a opinião coletiva da época. Até hoje vemos que mulheres muito inteligentes são tachadas com algum estereótipo e ainda hoje beleza e inteligência não são atributos que podem andar juntos em uma mulher.

E nesse confronto ela descobre que ama a Fera de verdade, pois com ele Bela se sente incluída, vista e respeitada em seus desejos. Tudo o que o feminino busca. A Fera e Gaston se enfrentam e ambos morrem. Dois polos opostos se enfrentam. Ambos se odeiam, pois até então eram semelhantes. Ambos desprezaram o elemento feminino. Mas quem morre é o aspecto animal, hostil e assustador da Fera e ele volta a ser um príncipe. Agora não mais mimado, mas um homem amadurecido que aceitou e integrou a morte e a feiura em sua vida.

Agora é possível a união com um animus positivo e o encontro com a plenitude. Esse masculino se liberta da maldição e o equilíbrio masculino e feminino é estabelecido na consciência. E Bela pode exercer sua função intelectual e o uso da sua imaginação sem cair na armadilha de se tornar fria e calculista. Agora ela se torna apta a atender as demandas externas e internas sem perder o contato com sua essência mais profunda. Com o animus positivo integrado, ela pode ser firme sem perder a feminilidade e a doçura.

FICHA TÉCNICA:

A BELA E A FERA

Diretor: Bill Condon
Elenco: Emma Watson, Dan Stevens, Audra McDonald, Emma Thompson
País: EUA
Ano: 2017
Classificação: 10

Referências:

EDINGER, E.F. Anatomia da psique: O simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo, Cultrix: 2006.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

KAWAI, H. A Psique Japonesa – Grandes temas dos contos de fadas japoneses. São Paulo: Paulus, 2007.

NEUMANN, E. História da Origem da Consciência. 10 ed. Cultrix. São Paulo: 1995.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo: 2005.

O feminino nos contos de fada. Vozes. São Paulo: 2010.

Animus e Anima nos contos de fada. Verus. Campinas: 2010.

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Robin Hood e o mito do anti-herói

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Robin Hood é um mítico herói inglês. Resumidamente ele era um ladrão que roubava dos ricos para entregar aos pobres. Segundo sua lenda ele teria vivido no século XIII, na época das Cruzadas, juntamente com o Rei Ricardo Coração de Leão, sendo a ele leal.

É comumente dito que Robin existiu de verdade, mas o fato é que se realmente existiu, isso não importa, pois a sua lenda permanece viva e encanta o mundo a séculos, sendo retratada diversas vezes ao cinema, quadrinhos, e televisão.

Em Nottingham, cidade no centro de Inglaterra onde se passam as aventuras de Robin, além das estátuas, há as ruas batizadas com o seu nome e um festival anual que lhe é dedicado. E há também o que resta da Floresta de Sherwood, onde é possível encontrar a árvore em redor da qual o bando de Robin se reunia em conselho.

Robin Hood ficou retratado no imaginário coletivo como alguém exímio no arco e flecha. Ele vivia na Floresta de Sherwood e tinha como grandes amigos e auxiliares João Pequeno, Will Scarlet e Frei Tuck. Seu grande amor era Lady Marian, com quem se casa em todas as versões.

O Príncipe dos Ladrões – como ficou conhecido – prezava a liberdade, a aventura e a vida ao ar livre. Uma das primeiras referências escritas ao personagem é o poema épico Piers Plowman, escrito por William Langand por volta de 1377. A compilação Gesta de Robin Hood, datada de 1400, sugere que as histórias que compõem a lenda já circulavam bastante e eram de conhecimento público anos antes, pelo menos desde 1310.

Existem diversas versões e origens do herói. A mais conhecida é a de que Robin se chamava Robert Locksley. Robert serviu em uma Cruzada ao lado do rei Ricardo, mas ao retornar ao lar, Nottingham, o encontra sob a tirania do irmão do Rei, o Príncipe John. O povo estava debaixo de leis abusivas e a caça – forma de sustento na época – havia sido proibida. Indignado, ele se recusa a aceitar a situação e se torna um fora da lei. Aproveitando – se de seu conhecimento em cavalaria, arquearia e combate adquirido na guerra, ele une um grupo e inicia um combate à tirania da nobreza, roubando nobres arrogantes e clérigos abastados, como forma de compensar o abuso.

Ao final da historia ele vence o príncipe John e casa-se com Laid Marian, sobrinha de Ricardo. No fim da história, Ricardo Coração de Leão reaparece após sua derrota em terras estrangeiras e nomeia Robin Hood cavaleiro, tornando o nobre novamente. A verdade é que Robin Hood sempre foi fonte de versões para o cinema e televisão. A ideia do anti-herói que usa um artifício antiético para promover a justiça agrada a consciência coletiva.

Em todas as teorias que sustem que Robin realmente existiu, o herói escolheu a vida clandestina e de fato era um fora da lei, transgressor da ordem, por ter sido injustiçado e assim convocando para sua missão um grupo enorme de aliados. Ele se torna então o símbolo do heroi para o povo de generosidade e o temor dos governantes. Robin costuma ser retratado com uma roupa verde, que maneja o arco como ninguém, não teme nada e vive livre e feliz, rodeado de amigos que se ajudam a cada nova ameaça.

Antes de começar a analise então é importante salientar que é de pouca importância o que se sabe sobre o homem real que teria servido de inspiração para o surgimento dessa figura mitológica. Pretendo analisar o símbolo e o suposto contexto histórico. A grande questão e cerne central da epopéia de Robin Hood são as Cruzadas.

O Rei Ricardo parte em combate em nome da Igreja. Ele vai para Jerusalém na Terceira Cruzada e seu trono é então usurpado por seu irmão tirânico o Príncipe John. Temos aqui o inicio do problema: o rei é fraco e sucumbe ao poder.

Conforme Von Franz (2005), os contos e as lendas sempre se iniciam com um problema ligado ao rei:

Agora, nós continuamos com a exposição, ou seja, com o início do problema. Você o encontrará na forma do velho rei que está doente, por exemplo, ou o rei que descobre que toda noite são roubadas maçãs douradas de sua árvore, ou que seu cavalo é estéril, ou que sua mulher está doente e que precisa da água da vida. Algum problema sempre aparece no início da história obviamente, porque se assim não fosse, não haveria história. Então se define o problema psicologicamente e procura-se também entender sua natureza.

Com essa explanação faz-se necessário compreender a natureza desse problema inicial. Primeiramente o simbolismo do Rei é de muita importância. Um estudo mais aprofundado sobre o rei encontra-se em um capítulo intitulado “Rex et Regina”, do livro de Jung, Mysterium Coniunctionis. O Rei nas tribos mais antigas possuía qualidades mágicas para o povo. Certos chefes, por exemplo, eram tão sagrados que não podiam mesmo tocar a terra e por isso são carregados pelo seu povo (VON FRANZ, 2005).

Em diversas sociedades primitivas, a prosperidade de todo o país dependia da sanidade física e psíquica do rei: se ele se tornasse impotente ou doente, tinha que ser morto e outro rei deveria tomar seu lugar, cuja saúde e potência garantissem a fertilidade das mulheres e do gado, bem como prosperidade de toda a tribo. Com isso existe a ideia de que o Rei deve ser renovado periodicamente.

Conforme Von Franz (2005)

Pode-se dizer, em resumo, que o rei ou chefe incorpora um princípio divino, do qual depende o bem-estar físico e psíquico de toda a nação. O rei representa o princípio divino na sua forma mais visível, é sua encarnação e sua moradia. Consequentemente, ele tem muitas características que nos levariam a considerá-lo o símbolo do SELF, porque o SELF, de acordo com a nossa definição, é o centro do sistema autorregulado da psique, do qual depende o bem-estar do indivíduo.

O Rei Ricardo então, como símbolo do Self, e ligado a uma civilização ocidental, representava, sobretudo a religião vigente: o Cristianismo, que deveria ser a fonte de saúde psíquica do povo. No entanto, a sua época havia um grande descontentamento com o Cristianismo, devido as Cruzadas. Esse descontentamento aparece diversas vezes nas adaptações do herói no cinema, principalmente em suas falas.

E a religião, assim como qualquer sistema regente, se desgasta. Seus símbolos perdem as qualidades numinosas. A história comparada das religiões mostra a tendência dos rituais ou dogmas religiosos a tornarem-se superados depois de um tempo, a perderem seu impacto emotivo original, tornando-se fórmulas mortas. Embora adquiram qualidades positivas da consciência, como a continuidade, eles perdem o contato com a corrente irracional da vida e tendem a tornar-se mecânicos (VON FRANZ, 2005). O mesmo acontece como os sistemas políticos, que se torna com o tempo desgastado.

Em Robin Hood, vemos os sistemas político e religioso vigente em processo de desgaste. Ricardo como Rei sucumbe as Cruzadas e abandona o que era essencial: o povo. As Cruzadas eram movimentos militares de inspiração supostamente cristã que partiram da Europa Ocidental em direção à cidade de Jerusalém com o intuito de conquistá-la, ocupá-la e mantê-la sob domínio cristão. Foram cerca de nove Cruzadas.

A Terceira Cruzada, pregada pelo papa Gregório VIII após a tomada de Jerusalém pelo sultão Saladino em 1187, foi denominada Cruzada dos Reis. É assim denominada pela participação dos três principais soberanos europeus da época: Filipe Augusto (França), Frederico Barba-Ruiva (Sacro Império Romano-Germânico) e Ricardo Coração de Leão (Inglaterra). Com isso, vê-se que o Cristianismo havia sucumbido ao principio do Poder. Não havia mais Eros na religião vigente. Cobiça e brutalidade marcaram esse movimentos.

O irmão do Rei, então usurpa o trono. John é a sombra do Rei, o principio do poder. Onde quer que uma estrutura cultural, religiosa ou civilizatória perca seu caráter religioso, ocorrem lutas políticas entre ditadores e grupos exclusivos que determinam o destino inteiro de uma civilização. Caso não haja um símbolo mais poderoso ainda capaz e unificar o povo, então a influencia disruptiva, aliada a lutas por prestígio e vaidade aparece (VON FRANZ, 2002).

A igreja nessa época não possuía mais vida espiritual capaz de manter o povo unificado, e assim estava destinada a perecer na luta contínua por poder. Nessa época, onde o Rei precisa ser renovado o principio do poder, representado por John, impera. Na figura de John temos a ira destrutiva. Na animação da Disney de 1973, John é representado por um leão, animal que para Jung, além de ser símbolo da realeza, representa os impulsos animais, fortes e apaixonados desejos, afetos. O leão representa um impulso poderosíssimo.

Conforme Von Franz (2002):

“Se um ser humano perde o seu ponto de apoio religioso, ela se desintegra se tornando alvo fácil de afetos, tais como sexo, poder, além de outros impulsos e desejos. (…) É o momento em que a personalidade é avassalada pela cobiça.”

É nesse cenário que surge Robin Hood, em defesa dos oprimidos e se torna uma figura mítica. Apesar de fora da lei, Hood é um herói. Entre as figuras de herói existe uma grande variedade: o tipo “tolo”, o tipo trapaceiro, o homem-forte, o inocente, o jovem belo, o feiticeiro, aquele que resolve os problemas e obstáculos através da mágica e aquele que os suplanta e resolve através de poder e coragem. O herói é o salvador, ele renova situação de vida.

Conforme Von Franz (2005):

O herói é, consequentemente, o restaurador da situação sadia, consciente. Ele é um ego que restabelece o funcionamento normal e sadio de uma situação, onde todos os egos da tribo ou nação estão desviando-se do padrão básico e instintivo da totalidade. Pode-se dizer, então, que o herói é uma figura arquetípica que representa um modelo de ego funcionando de acordo com o SELF. Sendo um produto da psique inconsciente, ele é um modelo que deve ser observado, pois demonstra o ego funcionando corretamente, ou seja, um ego que funciona de acordo com as solicitações do SELF.

Robin cumpre os desígnios do arquétipo do herói, pois ele realmente compensa e restaura a situação sadia. O fato de ser um fora da lei mostra que os elementos que provem do Self não se adequam a moral vigente. O inconsciente é amoral diante da consciência. Mas na verdade, Robin é então um transgressor. O ato de roubar o aproxima do mítico Prometeu, que rouba o fogo dos deuses para dar a humanidade. Robin rouba os valores dos poderosos, e do principio regente da consciência, que se desviou do padrão instintivo de funcionamento.

Como Prometeu trouxe o progresso a humanidade, Robin traz uma nova visão ao homem Ocidental, um acréscimo de consciência. Esse acréscimo de consciência vem por meio do questionamento das ações humanas. A destruição de um povo em nome do poder e o abandono de outro povo à custa do que se denomina Deus. Assim como Jó bíblico e Prometeu, ele questiona essa divindade. Ele questiona seus atos, sua agressividade, seu instinto. A dúvida é o início da consciência.

Mas tanto o mito, quanto a lenda mostram que a cada ganho em conhecimento e consciência, é acompanhado, inexoravelmente, por sofrimento, culpa e castigo. O ônus a ser debitado àquele que sai das trevas. Robin paga seu débito com a exclusão e a solidão. Além disso, Robin vive na floresta, em meio à natureza. A floresta é um símbolo do feminino e de uma parte intocada da psique. Tanto que a deusa associada as florestas é a deusa virgem Ártemis, um dos aspectos da Grande Mãe.

Na lenda e nas adaptações cinematográficas não há uma figura feminina juntamente com o rei. Ou seja, falta o elemento feminino no principio regente da consciência. A lenda de Robin mostra um fato bastante atual na humanidade, que é a exploração dos recursos naturais provinda do homem moderno. Essa exploração já vem chegando ao limite do absurdo. E a vida na floresta escolhida por Robin, mostra um caminho completamente oposto do homem ocidental, que prefere a vida agitada das grandes cidades. Essa característica o aproxima dos deuses pagãos da natureza, consortes da Grande Mãe.

O elemento feminino também é trazido à tona com o herói que passa a auxiliá-lo e sua aventura, que é sua amada Marian, retratada as vezes como sobrinha do rei Ricardo. Outro aspecto interessante em Robin é o fato de utilizar seu arco e flecha com maestria. Sobre isso podemos fazer algumas associações. O arco e flecha pode ser considerado como uma das mais inteligentes invenções da história da humanidade. Com essa arma, o homem passou a evitar a luta corpo a corpo, à qual estava submetido na antiguidade.

Nessa época, o homem precisava lutar corpo a corpo com os animais para caçá-los ou atirar dardos ou lanças, o que era extremamente perigoso e tornava praticamente impossível a caça às aves. O arco e flecha, então, passa a proteger o homem que podia atirar a uma distância segura e em silêncio. Levando a humanidade a um salto para frente em termos de melhoria quanto à sobrevivência. Arco e flecha então é um fruto da função intuição, uma vez que veio a se opor a força bruta. Além disso, para se utilizar o arco e flecha em uma caçada, era necessário não apenas ter uma boa pontaria, mas um estado psicológico adequado. Se antes disso o caçador houvesse tido uma briga, certamente erraria o alvo.

Portanto é necessário para se atingir um alvo buscar o equilíbrio interior. Acertar o alvo requer concentração, inteligência e intuição. Uma vez que o Self é representado como o centro da psique em sua totalidade, Robin além de ser extremamente inteligente, é hábil em acertar o alvo, mostrando que está em consonância com os desígnios do Self. E sendo por isso capaz de conduzir as pessoas à totalidade. Robin integrou a sombra, pois nele também vemos o aspecto negativo do herói, na figura do fora da lei.

Hood é conclamado o Príncipe dos Ladrões. O ladrão é uma figura mítica, sendo que a mais famosa é a do deus Hermes, considerado pelos gregos o padroeiro da inteligência, astúcia e dos ladrões. Todas essas características de deuses pagãos vistas em Robin são muito interessantes. Em uma época em que o paganismo foi reprimido em função de um Deus único, muito do conhecimento perdido dessa época foi para o inconsciente. Juntamente com esse conhecimento pagão, está o feminino que possui uma expressão mais magnífica no paganismo.

Robin então é responsável por trazer esse conhecimento reprimido à consciência e trazer a tona para que ocorra uma renovação. Também é importante salientar que nos contos de fadas vemos que a renovação se inicia nas camadas mais baixas da sociedade, Toda renovação não atinge de imediato as classes mais altas da sociedade. A renovação vinda de baixo seria a expressão da necessidade do povo de se livrar da opressão e ter liberdade. Aprofundando mais na imagem arquetípica de Robin Hood.

Conforme Hillman (1998), a figura do Puer Aeternus, como arquétipo único tende a unificar em um só as seguintes imagens: o Herói, a Criança Divina, O Filho do Rei, O Filho da Grande Mãe, Eros, o Psicopompo, Mercúrio – Hermes, Trickster e o Messias (o Salvador). Robin Hood possui várias dessas qualidades citadas: ele é um Herói; um sedutor assim como Eros; um Trickster, pois prega peças nos poderosos da cidade; um Mercúrio – Hermes por sua inteligência, criatividade e astucia; um ilho da natureza, ou seja, da Grande Mãe; e também um Salvador.

Ainda conforme Hillman (1998) o arquétipo do Puer Aeternus personifica ou está em relação especial com os poderes espirituais transcendentes do inconsciente coletivo. Representa com isso, o impulso do Espírito. A problemática do Puer foi muito bem detalhada por Marie Louise Von Franz em sua obra Puer Aeternus – A luta do adulto contra o paraíso da infância. Nessa obra ela aborda com clareza e detalhes o plano principal neurótico.

Contudo, agora quero enfatizar, com a figura de Robin Hood, o plano de fundo arquetípico, que traz a luz e a sombra e uma grande possibilidade de crescimento e desenvolvimento. O Puer é nossa própria natureza, algo de primordial em nós que transcende as normas coletivas. É a nossa essência que nos liga ao Self.

Através do Puer nos é dado nosso sentido de destino e missão, de que temos uma mensagem, de que somos portadores da chama divina. Ele é nosso sentido de vitalidade, de abundância, de entusiasmo. Assim como Robin ele está a serviço dos deuses (no caso o Rei Ricardo), ou seja do Self. Não quero com isso fechar o assunto, pois muito há o que se falar de Robin Hood e sua imagem de Herói, Trickster, Sedutor e Transgressor. Mas já é de muita valia compreender que ele representa o frescor da alma, a faísca do espírito e nossa mais profunda originalidade.

 

REFERÊNCIAS:

HILLMAN, J. O Livro do Puer – ensaios sobre o Arquétipo do Puer Aeternus. São Paulo: Paulus, 1998.

KAWAI, H. A Psique Japonesa – Grandes temas dos contos de fadas japoneses. São Paulo: Paulus, 2007.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo: 2005.

VON FRANZ, M. L. A sombra e o mal nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo: 2002.

VON FRANZ, M. L. A individuação nos contos de fadas. 3 ed. Paulus: São Paulo: 1984.

VON FRANZ, M. L. Puer Aeternus – A luta do adulto contra o paraíso da infancia. 5 ed. Paulus. São Paulo: 2005.

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O Pequeno Príncipe: uma adaptação que transcende

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O Pequeno Príncipe (original Le Petit Prince), uma adaptação do romance de mesmo nome do autor Saint-Exupéry publicado em 1943, é uma produção do diretor Mark Osborne (Kung Fu Panda – 2008; Monstros vs Aliens – 2009). O filme francês que tem sua duração contada em 1h50min, pertence ao gênero de animação, porém mesmo que pareça destinado ao público infantil, a obra de Osborne surpreende desde o primeiro minuto com conceitos psicológicos que valem a pena serem analisados com atenção. Distribuído no Brasil pela Paris Filmes, teve sua estreia mundial no Festival de Cannes em 22 de maio, e por aqui estreou no dia 20 de agosto.

Misturando o estilo de animação feita com computação gráfica e o lindo trabalho com a tecnologia stop motion (sendo que ao primeiro está reservado retratar o mundo “real”, e ao segundo o que se passa durante a história do Pequeno Príncipe enquanto é contada), o filme faz quem assiste embarcar em uma jornada mágica acompanhada não só pelos personagens icônicos do livro, mas com uma nova protagonista, a Garotinha.

Ela que não nos apresenta um nome (porém Osborne declarou que a personagem é inspirada em sua filha), está a ponto de entrar em uma escola cujas vagas são disputadíssimas; sua mãe, solteira e trabalhadora, controla cada hora e cada minuto da vida da menina, e as divide em tarefas cuidadosamente cronometradas, na tentativa de ajudá-la a ser aceita na escola. Apesar das boas intenções, porém, ela não percebe que, com tantas obrigações, está fazendo sua filha se esquecer do que significa ser criança. E é aí que a jornada começa.

Elas se mudam e a Garotinha conhece seu vizinho, que para um senhor de idade aparentemente avançada se mostra com um ânimo atípico para aventuras, e logo, através dele, ela vem a conhecer a história do Pequeno Príncipe. O Aviador apresenta um mundo novo de possibilidades a sua pequena vizinha; arranca-a de sua rotina de números e estudo infindável, para lhe mostrar um universo de cores, brincadeiras e histórias que ela jamais poderia imaginar ou mesmo vivenciar antes.

A trama principal começa se desenvolver a partir desse ponto. Mostra para o espectador a estória da Garotinha dividida entre o mundo simétrico, regrado e monocromático em que vive e a companhia alegre e multicolor de seu novo amigo. Também é nesse ponto onde Osborne nos reconta o livro; aos poucos e pacientemente nos faz reviver a jornada do Pequeno Príncipe desde seu famoso asteroide B 612 até seus encontros icônicos com seres fantásticos por todo o cosmo e na Terra. Tudo sem pressa, intercalando a linha do tempo original para assim instigar quem assiste.

 

O filme aborda vários âmbitos da sociedade, inúmeros assuntos peculiares e relevantes, mas neste artigo serão destacados dois. O primeiro é com relação à mãe da garotinha, e o fato de ser autoritária. Procurando um pouco a fundo na psicologia do desenvolvimento, um pai autoritário é aquele que tende a se impor sobre o filho, com medo ou outro sentimento forte, usando seu poder de forma absoluta sem se preocupar com os problemas que possam vir a ocasionar a seus filhos. Isto pode ser visto ainda hoje em dia, num panorama em que pais se impõem sobre os filhos, sendo que não dão o mínimo de liberdade aos pequenos. Um pai ou mãe autoritário(a) pode ser agressivo (aquele cuja a palavra é lei e não há pé para discussão) e também pode aparentar ser um pai  que exerce o poder com firmeza, como é o caso da mãe da garotinha no filme, mas que no fundo os filhos não o respeitam e sim o temem, com medo de um possível castigo.

A garotinha teve sua vida inteira planejada e cronometrada pela mãe, coisa que se percebe na primeira meia hora de filme, e sempre baixava a cabeça para aceitar o que lhe era imposto. Sem querer ignorar a preocupação da mãe com o futuro da filha, ou mesmo com seu bem-estar no presente, vê-se que todo esse controle faz mal para a criança. A mãe acaba por fazer a coisa certa da maneira errada. Triste não? Mas toda história tem suas reviravoltas e no fim a garotinha consegue reencontrar sua infância de um modo único.

O segundo assunto, ou temática se preferirem, que chamou a atenção no filme foi a relação entre o Aviador e a Garotinha, mostrando da parte dele, a presença forte da chamada Síndrome de Peter Pan. Essa Síndrome foi aceita pela psicologia no ano de 1983, através dos escritos do Dr. Dan Kiley (The Peter Pan Syndrome: Men Who Have Never Grown Up). Antes disso, na Psicologia Analítica de Jung, já se falava da síndrome do Puer Aeternos e justamente o termo “Peter Pan” surgiu nos anos 80 para dar nome a patologia contida no puer; e mesmo não sendo considerada propriamente uma doença, é identificada em indivíduos cujas atitudes são de uma criança em corpo de adulto, sendo que podem vir acompanhadas de ações equivalentes a rebeldia, raiva explosiva, altos níveis de amor próprio (Narcisismo) e o mais evidente e claro de todos, a negação do envelhecimento – como o personagem das histórias infantis, o indivíduo não quer envelhecer: há uma relutância do adulto em “amadurecer” e abandonar o “paraíso da infância”. Como já dito, o Aviador parece sofrer dessa peculiaridade, sendo que se isolou do mundo em sua casa e vive sempre relembrando seu passado, se negando a reconhecer que está realmente envelhecendo. Ele ainda vê a jiboia que engoliu um elefante, não um chapéu.

 

O Pequeno Príncipe é uma linda produção cinematográfica, por isso não se deixe iludir com o rótulo de filme infantil. É uma aventura completamente mágica. Faz o espectador olhar para dentro de si mesmo e querer redescobrir o que quer que tenha como convicção em sua vida; seja no modo de ver o mundo à sua volta ou em como se relaciona com as pessoas. Osborne traduziu a obra literária em um ritmo perfeito e só deixou o final misterioso o suficiente para que o espectador ganhe mais horas e horas meditando sobre o seu significado. Por isso, é recomendado pegar a pipoca e talvez alguns lenços, pois há grande expectativa que a emoção se expresse das formas mais variadas com essa linda animação.

FICHA TÉCNICA

O PEQUENO PRÍNCIPE

Título Original: The Little Prince (Original)
Ano produção: 2015
Dirigido por: Mark Osborne
Estreia: 20 de Agosto de 2015 ( Brasil )
Duração: 110 minutos
Classificação: L – Livre para todos os públicos
Gênero: Animação Fantasia
Países de Origem: Canadá e França

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“O Pequeno Príncipe” e o arquétipo Puer Aeternus

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Le Petit Prince, ou O pequeno príncipe é uma animação de 2015, baseada na obra homônima de Antoine de Saint-Exupéry,de 1943. O filme traz uma narrativa original, onde uma menina está lidando com uma mãe ausente emocionalmente e que quer que ela cresça rápido demais.

Portanto, o cerne da historia do filme é a relação mãe e filha e a cura dessa relação e do amor entre elas. Falta o elemento Eros na relação, o que afeta a função sentimento tanto da mãe quanto da filha. A mãe cobra que a filha seja eficiente e que entre em uma escola renomada. Cria regras e esquemas de horários para a menina.

Conforme Von Franz (1984), os contos de fadas parecem exercer no âmbito de um povo, uma função semelhante a dos sonhos, para o individuo; eles confirmam curam, compensam, contrabalançam e criticam a atitude coletiva predominante, assim como os sonhos curam, compensam, confirmam, criticam ou completam a atitude consciente de um individuo.

Essa adaptação à obra O Pequeno Príncipe critica e traz uma compensação para a atitude do homem ocidental, cuja consciência é pautada pelo patriarcado.

Em uma sociedade patriarcal, é valorizada a eficiência, a ação e o fazer. Isso não é ruim desde que não seja uma atitude unilateral. No entanto, a consciência tanto individual quanto coletiva tende a permanecer em um curso de ação que antes foi favorável, mas que já se desgastou com o tempo. E a persistência em uma atitude ultrapassada, desgastada e que precisa de renovação leva a atitudes impossíveis.

É impossível exigir de uma criança uma eficiência extrema daquelas. A criança precisa da brincadeira e do lado lúdico da vida. Além disso, não é nada estranho o fato de o herói da história ser uma menina.

A criança representa a juventude e também pode ser considerado, por um lado, como símbolo do Self. Conforme Von Franz (2005b), a criança simboliza tanto a infantilidade quanto a vida futura, e é também o cerne da genialidade e criatividade.
Para Carl Jung (2008) o motivo da criança representa o aspecto pré-consciente da infância da alma coletiva. Além disso, Jung (2008) diz:

O motivo da criança não representa apenas algo que existiu no passado longínquo, mas também algo presente; não é somente um vestígio,mas um sistema que funciona ainda, destinado a compensar ou corrigiras unilateralidades ou extravagâncias inevitáveis da consciência. A natureza da consciência é de concentrar-se em poucos conteúdos, seletivamente,elevando-os a um máximo grau de clareza. A consciência temcomo conseqüência necessária e condição prévia a exclusão de outros conteúdos igualmente passíveis de conscientização. Esta exclusão causa inevitavelmente uma certa unilateralidade dos conteúdos conscientes.

Sobre o herói dos contos de fadas Von Franz (2005a) diz:

O herói é, consequentemente, o restaurador da situação sadia, consciente. Ele é um ego quer estabelece o funcionamento normal e sadio de uma situação, onde todos os egos da tribo ou nação estão desviando-se do padrão básico e instintivo da totalidade. Pode-se dizer, então, que o herói é uma figura arquetípica que representa um modelo de ego funcionando de acordo com o SELF. Sendo um produto da psique inconsciente, ele é um modelo que deve ser observado, pois demonstra o ego funcionando corretamente, ou seja, um ego que funciona de acordo com as solicitações do SELF.

Portanto, nossa pequena heroína é a responsável por mostrar um caminho para a renovação da atitude unilateral da consciência ocidental. Enquanto criança ela traz para a consciência elementos ignorados e esquecidos e assim compensar a atitude exagerada que vivemos hoje. Ela anuncia um futuro para o qual a consciência ocidental pode se encaminhar.

Mas ela é uma menina e enquanto mulher ela se difere do herói masculino. Conforme Von Franz (2010), a heroína tende a suportar o sofrimento e não a sair matando. Sua força consiste nesse suportar o sofrimento e em aceitar o seu destino, para então, depois mudá-lo. Ela sabe esperar; sabe a hora de ser passiva e a hora de ser ativa.

Além disso, Newmann (1995), diz que mesmo na mulher a consciência do ego tem um caráter masculino e que a relação consciência – dia – luz e inconsciente – escuridão – noite se mantêm independente do sexo. Ele diz também, que a consciência é masculina mesmo nas mulheres, assim como o inconsciente é feminino nos homens. Ele então define a consciência patriarcal, que se separa do inconsciente e fica livre de suas influências.

Portanto, para Newmann, a mulher moderna possui uma consciência patriarcal e um ego denotado pelo herói masculino. Ele também coloca a consciência patriarcal em um patamar de superioridade em relação à matriarcal (mesmo reconhecendo que no matriarcado se encontra a criatividade).

De fato, hoje, o ocidental – tanto homem quanto mulher – vive sob o jugo do patriarcado. No entanto, essa classificação apresentadapor Newmann lesou intensamente a mulher e alguns homens mais criativos. A mulher hoje paga um preço altíssimo por igualar seu ego a esse herói masculino. Apesar de hoje a mulher estar no mercado de trabalho e de poder estudar, ela não tem confiança em si mesma e não sabe mais como se relacionar, tendendo hoje a uma solidão profunda. Sua essência feminina foi perdida, e isso se passa de mãe para filha: se uma mulher não reconhece seu valor enquanto ser feminino, ela não reconhece em sua filha.

Para as mulheres atuais a maternidade pode ser um fardo e ela acha insuportável cuidar dos filhos, passando até a odiá-los, pois seu instinto materno está mau funcionamento; ela também pode tentar se tornar uma mãe “perfeita” para compensar a culpa, se desviando de uma reação instintiva elas passam a agir como uma boa mãe deve e segue normas ditadas pelo coletivo; uma reação muito mais provinda de seu animus negativo do que um instinto materno profundo.

São mães rígidas e “perfeitas” como a do filme, que não se permitem o prazer e exercem a maternagem como se estivesse no exército. Até os momentos de lazer com os filhos são um fardo, pois ela não está produzindo, nem sendo eficiente. Existe um senso de dever até no brincar.

Tanto o homem quanto a mulher podem apresentar uma consciência patriarcal ou matriarcal. Nos mitos gregos vemos tanto deuses matriarcais, ou seja, próximos à Grande Mãe, tanto deusas patriarcais, próximas ao Pai.

No entanto, a consciência feminina se assemelha à consciência matriarcal e por isso é representada nos contos e mitos por uma imagem feminina. Essa consciência não está separada do inconsciente, mas está em harmonia e consonância com ele. Ela sabe esperar sem luta e impaciência e não é absoluta, aceitando a relatividade. Ela também não aceita a separação e a oposição.

No contexto atual temos a divisão masculino – ativo e feminino – passivo, pois bem, a consciência matriarcal não aceita essa divisão. Ela procura englobar ambos os lados englobando inclusive a consciência masculina. Como a consciência feminina não deve aderir demais ao inconsciente, pois é consciência, no entanto, por estar mais próxima do inconsciente, ela pode trazer a tona elementos sombrios e esquecidos pela consciência.

Voltando a animação, a mãe da menina quer que sua filha entre em uma escola de renome, e para garantir que sua filha passe na prova de inscrição, lhe impõe um plano de estudo rigoroso para o verão que deixa quase nenhum tempo para o lazer. A menina, no entanto, distrai-se com seu vizinho, um aviador aposentado que, ao longo do verão, compartilha com ela a história de um menino chamado “Pequeno Príncipe”, a quem ele supostamente haveria encontrado em um deserto quando seu avião caíra. E assim ela estabelece um relacionamento com o velho, esquecendo das tarefas impostas pela mãe.

Von Franz em sua obra Puer Aeternus analisa O Pequeno Príncipe, e aponta que o aviador da obra é o próprio autor que sofreu um acidente de aviação na segunda guerra mundial e morreu. Ela diz que Exupéry apresentava uma personalidade de PuerAeternus. Ele era casado, mas não suportava ficar com sua esposa, sendo que entrava em depressão quando não voava. Ele morreu cedo, assim como todo Puer.

Portanto, o aviador é uma fantasia de que Exupéry tenha superado o seu complexo de criança eterna e sobrevivido.

O aviador, então já velho e sozinho, conta a historia do Pequeno Príncipe para a menina, pois ninguém acreditava nele e por essa razão não podia divulgar a história.

Ou aviador é um personagem que pode ser associado ao Senex, ou seja, ao velho, que sempre aparece acompanhando o Puer. Kawai (2007) diz que a aparição de personagens velhos é muito freqüente nos contos de fadas japoneses e é extremamente raro um velho ser o protagonista de um conto de fadas europeu. Portanto, nessa adaptação do conto de Exupéry temos um novo olhar e uma possível renovação provinda do inconsciente coletivo ocidental.

A figura do Puer sempre esteve associada ao seu laço com a mãe, no entanto Hillmann (1973) traz um novo olhar para essa imagem, que julgo ser mais adequado para o estudo em questão. Hillmann (1973) salienta que o Puer deve ser pensado não na sua relação com a mãe, mas com o Senex.  Para ele Senex e Puer devem ser compreendidos como duas faces de um mesmo arquétipo e não dois arquétipos separados.O objetivo do Pueré  redimir o pai, sobrepujando-se a ele, e não vencer e matar a mãe. Nos mitos a Deusa Mãe inclusive encoraja a ambição do Puer.

Os orientais, como os chineses e os japoneses estão mais familiarizados com essa imagem dupla e ambígua. Para nós ocidentais ela ainda gera uma confusão. A consciência Senex apresenta um aspecto duplo: por um lado representa o velho sábio tentando manter as leis antigas e por outro destrói com rapidez e força essas leis (aqui surge a imagem do Puer). Portanto, por baixo de uma imagem dura e fria, queima o fogo da destruição.

Conforme Kawai (2007) a consciência Senex se encontra nas profundezas do subterrâneo, enquanto que a consciência do herói é adequadamente identificada com o sol que brilha no céu.A consciência do herói, como conhecemos em nossa sociedade ocidental, contribui para o desenvolvimento e progresso da civilização, mas está sempre ameaçada pela morte. Já a consciência Senex não se preocupa tanto com a morte, pois ela existe dentro dela própria e ela não tem nada a ver com desenvolvimento e sim com imutabilidade, que quando chega ao seu máximo leva a autodestruição que termina em anarquia devido ao aparecimento repentino do Puer.

Na animação o velho possui características de Puer. Ele é anárquico e também criativo. Não se preocupa com a morte, mas com a falta de flexibilidade e criatividade do mundo atual. A rendição aqui é ao contrário: não é o pai que precisa ser redimido, mas o próprio Puer, o seja o aspecto anárquico, o estimulo e a criatividade que foram perdidos.

Para a consciência ocidental é muito difícil não pensar em termos de progresso e eficiência. A imutabilidade, a anarquia criativa e a espera com aceitação do destino são desprezadas pela consciência do herói valorizada pelo homem moderno. No novo conto apresentado vemos então, a rendição de três formas perdidas de consciência: a feminina, a senex e a puer.

De fato, hoje por mais que se queira aparentar que não, existe ainda um menosprezo pelo velho, pela criança e pela mulher. Ambos são considerados fracos e inferiores diante da força masculina heroica. Perto do fim do verão, o Aviador fica doente e é internado. Naquela noite, a menina tem um sonho em que ela voa no avião do Aviador até um asteroide habitado exclusivamente por adultos, onde todos trabalham sem alegria para o Empresário da história do aviador. Lá, ela encontra o Príncipe, agora um homem crescido que trabalha como zelador. Ele é agora um homem dócil e nervoso, tendo esquecido seu passado, e agora preocupado em agradar o Empresário.

O Empresário e o seu asteroide simbolizam a eficiência unilateral do patriarcado e dessa consciência coletiva pautada pelo herói masculino. Não há crianças no mundo e assim se perdeu a renovação e a criatividade. Não existe mais tempo para as relações e a natureza foi completamente dizimada, ou seja, o elemento feminino, juntamente com Eros, foi também reprimido. A menina então, resgata o Pequeno Príncipe e o planeta da tirania do empresário. E leva o Pequeno de volta a sua rosa e ao seu asteroide, e assim ele volta a ser criança.

Em seu sonho a menina age de forma ativa e heroica, mostrando que a consciência feminina engloba também a ação e não aceita divisões. Ela pode agir de forma tanto passiva quanto ativa. Por englobar e aceitar o diferente e o mal, ela é a única capaz de levar o Puer ao seu devido lugar, pois ela aceita a sua natureza. Como citei algumas vezes, a China e o Japão possuem muitos contos de fadas com essa estrutura Senex – Puer. Cada vez mais o homem ocidental tem se voltado para a sabedoria oriental, com suas práticas meditativas e contemplativas.

A consciência oriental é mais voltada para o feminino, dessa forma os contos orientais podem nos indicar caminhos de redenção. Não podemos mais ficar restritos a uma única forma de consciência. A multiplicidade hoje se faz Necessária e acredito que a sociedade caminhe para uma maior diversidade. Incluir a consciência puer, senex e feminina pode nos colocar no caminho da totalidade, pois como disse o aviador para a menina:

                  “O problema não é crescer, mas esquecer! ”

FICHA TÉCNICA

O PEQUENO PRÍNCIPE

Título em Original: Le Petit Prince
Direção: Mark Osborne
Adaptação de: O Pequeno Príncipe
Música composta por: Hans Zimmer, Richard Harvey
Duração: 1h 50m
Ano: 2015

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O Príncipe das Marés: um enfoque psicanalítico às relações familiares

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O Príncipe das Marés (1991) é um drama americano, inspirado no romance The Prince of Tides de Pat Coroy, dirigido por Barbra Streisand. O longa-metragem conta a história da família Wingo que enfrenta sérios problemas com as recorrentes tentativas de suicídio de Savannah Wingo. Na última tentativa, sua psiquiatra Susan Lowenstein (interpretada por Barbra Streisand) solicita a presença de um dos membros da família para auxiliá-la no tratamento.

A pessoa escolhida é Tom (Nick Nolte), irmão gêmeo de Savannah que tem enfrentado problemas no seu casamento. Mesmo relutante Tom viaja para New York com o propósito de ajudar sua irmã. O filme é atravessado por flashbacks que contam a história da família e nos ajudam a entender o motivo de ela hoje estar tão fragmentada.

O encontro de Tom com Susan é, no início, conflitante. Ele tem uma personalidade sarcástica, com o hábito de ironizar todos os problemas. No passado a família era formada por cinco membros: Henry (pai), Lila (mãe), Luke (o filho mais velho), Tom e Savannah (gêmeos). Atualmente os pais estão divorciados e Lila vive com outro homem. Tom têm sérios problemas com a mãe, o que é confuso, já que na infância ele demonstrava ser o mais apegado a ela.

A psiquiatra de Savannah pede a Tom que se encontre com ela regularmente para contar-lhe detalhes da infância de ambos. Susan parte do viés psicanalítico, o determinismo psíquico, onde se acredita que a análise de eventos ocorridos na infância (passado) tem relevância no modo como o sujeito atua no presente (FREUD, 1910. p. 19).

No inicio Tom resiste a essa ideia e se nega a participar dessas sessões, mas logo entende a importância de falar abertamente do seu passado no tratamento de sua irmã e, por amor à família, ele consente em cooperar com Susan, acontece nessa fase a aliança terapêutica. A aliança terapêutica pode ser definida como “o relacionamento não neurótico, racional, sensato que o paciente tem com o seu analista e que lhe possibilita trabalhar com afinco na situação analítica” (SANDLER, 1986 p. 24 apud GREENSON E WEXLER, 1969).

As sessões são conflitantes e a psiquiatra logo percebe que a família esconde muitos segredos em seu passado. As brigas constantes do casal, a violência doméstica e o alcoolismo de Henry parecem ter marcado profundamente as crianças durante sua infância, que procuravam, uns nos outros, apoio para lidar com esse sofrimento. Eles tinham um ritual de correr para o mais longe possível da casa dos pais sempre que estes estavam brigando. As crianças mergulhavam no rio, e permaneciam lá até não poderem mais escutar os gritos. Um fato marcante é que, depois de crescidos, com a morte trágica de Luke (irmão mais velho), Savannah e Tom saíram de casa e foram morar bem longe da ilha onde haviam crescido, era uma tentativa inconsciente de abandonar aquele lugar que trazia consigo tantas lembranças ruins.

Tom até hoje não aceita esses eventos de sua infância, estando em constante negação da gravidade dessa violência doméstica e de como isso marca sua vida até hoje. A negação é descrita por Fadiman & Frager (1986, p. 20) como um mecanismo que aparece pelo fato de o ego não aceitar na realidade um fato que o perturba. Ele demonstra ter um sentimento ambivalente e inconsciente de lealdade com sua mãe, ao mesmo passo que parece não suportar mais essa hipocrisia dos segredos familiares.

Savannah tornou-se escritora infantil, sobre o pseudônimo Renata Halpern, ela havia escrito fatos de sua infância. Eram histórias felizes sobre crianças que viviam muito felizes em uma ilha no Sul da Califórnia. Um meio de sublimação dos eventos traumáticos da sua infância. A sublimação é definida como a “defesa bem sucedida” (FADIMAN & FRAGER, 1986, p. 20 apud FENICHEL, 1945). Para esses autores, na sublimação a libido dirigida a propósitos sexuais é catexizada para novas finalidades, em geral, atividades artísticas intelectuais e/ou culturais.

Contudo, Tom ficou furioso ao descobrir que a irmã, incentivada por sua psiquiatra Susan, havia revelado fatos que pactualmente todos haviam concordado em manter segredo. Os membros da família carregavam consigo marcas desse passado que estava gravado no pré-consciente de cada um, tentando emergir a consciência a todo o momento. Sandler (1986, p.14) fala do Pré-consciente como um tipo de inconsciente que “encerra em si os conhecimentos e as ideias que se encontravam fora da consciência”, porém esse conteúdo, não está reprimido no inconsciente, tornando-se uma memória acessível, ou não.

Nas sessões com Tom, o setting terapêutico é tenso, ele não aceita as investidas da psiquiatra que insiste para que ele fale abertamente sobre a família. Tom em vários momentos transfere para a terapeuta a raiva que sente de sua mãe e seu sofrimento inconsciente por não ser o preferido dela. Lila, em sua infância, havia chamado Tom em particular e dito que ele era seu preferido, anos depois ele descobriu que ela havia feito isso com todos, e não conseguiu perdoá-la por mentir para ele.

A transferência é um fenômeno clínico no qual o terapeuta se torna, para o cliente, um recipiente para as investidas, impressões ou reedições de modelos de comportamento inspirados em experiências anteriores (Sandler, 1986, p. 34).Em contratransferência, Susan é impactada pelos relatos de Tom, mas não se diminui diante da raiva dele, a psiquiatra continua investindo contra a resistência de Tom em se abrir. O termo contratransferência é geralmente utilizado para “caracterizar a totalidade de sentimentos e de atitudes do terapeuta para com seu paciente e mesmo para descrever aspectos de relacionamento comuns não-terapêuticos” (Sandler, 1986,  p. 56,  apud KEMPER, 1966).

O tratamento é gradual. Em cada sessão são trabalhadas as situações traumáticas, do mais leve até chegar à fonte principal do problema. Nesse ponto da trama, o casamento de Tom já estava falido, e mesmo assim ele não conseguia com a carga afetiva dessa separação.

Umas das principais queixas da esposa era o jeito de Tom de negar-se em conversar abertamente sobre a relação, sempre fazendo piadas e ironizando tudo. Tom transfere para sua esposa, assim como para Susan nas sessões de terapia, toda a frustração e descontentamento por ter sido enganado por sua mãe.

Com o passar do tempo Susan consegue chegar ao trauma principal que havia marcado a vida da família para sempre: Em uma noite de chuva, enquanto Henri estava pescando, a casa foi invadida por três fugitivos de um presídio de segurança máxima das redondezas. Eles estupraram Lila, Savannah e Tom, que foram salvos pelo irmão mais velho. Luke apareceu com a espingarda do pai e atirou, matando os fugitivos. Com vergonha do que a sociedade poderia pensar do ocorrido, a mãe dos meninos fez com que todos enterrassem os corpos, limpassem a casa e concordassem em nunca mais falar sobre o ocorrido, nem para seu pai.

A forte resistência de Tom em falar abertamente sobre esse assunto e, principalmente, em não conseguir assumir que também havia sido estuprado demonstram ser esse o trauma original que deu origem as conflitivas da família. O próprio Tom assume para Susan que nunca poder falar sobre o ocorrido era pior que o estupro em si. O seu principal dilema era que ele tinha em Luke uma identificação paternal. Por ser o irmão mais velho, e o mais próximo, inconscientemente Luke era uma figura paterna para Tom. Ser estuprado na presença do irmão foi uma situação traumática, como se ele tivesse perdido sua masculinidade e o respeito do irmão mais velho.

Por não poder lidar com a dor do estupro, o ego de Tom dissociou a carga afetiva (dor) do trauma da realidade, para que ele pudesse continuar a viver. Desse modo, ele fixou algumas características da idade de 13 anos, que se repetiram ao longo da sua vida adulta, em especial, o humor ácido (sarcasmo) como mecanismo para não lidar diretamente com situações de estresse ou desgaste afetivo. É importante frisar que essa regressão de Tom se dava exclusivamente na relação com a figura feminina, na qual havia uma identificação e transferência da imagem materna (Esposa e Psiquiatra). No trabalho, por exemplo, ao treinar o filho de Susan, Tom não demostra características dessa regressão.

A memória do episódio do estupro, por sua vez, não foi suprimida pelo ego de Tom, pelo contrário, ela continua no subconsciente atormentando todos os membros da família, que se sentiam culpados pela necessidade mútua de guardar tal segredo. Com as sessões de análise Tom demonstra uma atuação positiva para dentro, trazendo à consciência fatos traumáticos de sua infância a cada sessão.

No caso de Savannah, a necessidade constante de negação do ocorrido foi mais do que seu ego podia aguentar, por não conseguir lidar com aquela realidade, ela tentou fugir, indo morar em outro estado. Mas isso não era o suficiente. Ela então buscou no suicídio o fim para todo aquele sofrimento. Desse modo, Savannah criou um perfil neurótico compulsivo suicida. Com o passar do tempo, no decorrer de sua análise, ela entende que esse perfil se dava pelo modo como o estupro marcou sua vida. Após a elaboração, ela integra as análises da psiquiatra com sua própria história, partindo para a cura e superação do trauma.

Lila (a mãe) parece ser a menos afetada pelo episódio. Por ser uma adulta, e ter um aparelho psíquico melhor preparado para lidar com situações conflitivas, seu ego utilizou-se do mecanismo de negação para suprimir o trauma no subconsciente, sem maior sofrimento. Contudo, ao contrário de Tom, ela nunca aceitou falar abertamente sobre o assunto, era uma estratégia pessoal para evitar que a carga afetiva retornasse a consciência.

Susan ajudou Tom a finalmente entrar em contato com essa dor e, gradativamente, ele começa assumir a responsabilidade pela direção de sua vida. Ao verbalizar para um completo desconhecido o “grande segredo” ele torna consciente o problema. Entrando em contato com a dor, ele obriga seu ego a aceitar essa realidade.

A partir da aceitação, Tom começa a trabalhar na reconstrução da sua vida e família. Ele assume a responsabilidade pelo seu casamento e se implica na função de resgatá-lo. Ao resolver seu medo de confiar intimamente em outras pessoas, Tom deixou vir à tona seu verdadeiro ego e se empenhou em resolver os problemas do seu passado reprimido. Ele deixa de transferir toda a insegurança que sentia com sua mãe para as outras pessoas, e se torna capaz de perdoá-la. Mas, principalmente, por meio da análise, ele entra em contato com a intensidade afetiva produzida do estupro e se torna capaz de perdoar a si mesmo, integrando que não havia nada que ele pudesse fazer naquela situação, que ele não era o responsável pelo mal que aconteceu naquela noite com sua família.

Referências:

FADIMAN & FRAGER. Sigmund Freud e a psicanálise. In: Teorias de Personalidade. São Paulo – SP: Harbra LTDA. p.03-40. Ed. Brasileira. 1986.

FREUD, 1910. Cinco lições de psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v.11).

PRINCIPE das Marés.The Prince of Tides.Direção: Barba Streisand. Columbia Pictures Corporation. EUA: 1991. 2h12min. Inglês, Color, Formato: 35 mm.

SANDLER, Joseph. O paciente e o analista: fundamentos do processo analítico. Rio de Janeiro – RJ: Imago Editora LTDA. 2 ed. 1986.


FICHA TÉCNICA DO FILME

O PRÍNCIPE DAS MARÉS

Gênero: Drama
Direção: Barbra Streisand
Roteiro: Jay Presson Allen, Pat Conroy
Elenco: Barbra Streisand, Blythe Danner, Brad Sullivan, George Carlin, Jason Gould, JeroenKrabbé, Kate Nelligan, Melinda Dillon, Nick Nolte
Produção: Andrew S. Karsch, Barbra Streisand, CisCorman
Fotografia: Stephen Goldblatt
Trilha Sonora: James Newton Howard
Ano: 1991

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