Os jogos e a cólera dos corpos docilizados em ‘Jogador N° 1’

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Concorre com 1 indicação ao OSCAR:

Melhores Efeitos Visuais

Os corpos se tornaram um alvo de poder, uma vez que na era moderna houve a possibilidade de torná-los úteis no que tange a economia e submissos, no que tange a política.

Na distopia de ‘Jogador N° 1’, no ano de 2045, a plataforma de jogos OASIS mantêm a sociedade imersa na realidade virtual. Exceto pelas necessidades fisiológicas básicas, nada mais liga as pessoas à realidade. Afastadas de qualquer poder político, os corpos agora estão fundidos ao sistema econômico, no que Foucault denomina de docilização dos corpos. “O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe” (FOUCAULT, 1999, p. 163).

Adaptação do livro de mesmo nome, escrito por Ernest Cline, Jogador N°1 acompanha a jornada de Wade Watts, um jovem órfão de 17 anos, que passa a maior parte do seu tempo como a maioria da população mundial: no OASIS, uma plataforma integrada de jogos que formam um verdadeiro universo virtual onde quase tudo é possível. Nas palavras de Wade: “Atualmente, a realidade é uma droga. Todos procuram um tipo de fuga. […] Esse é o OASIS, um lugar onde os limites da realidade são sua própria imaginação. Você pode fazer qualquer coisa. Ir a qualquer lugar. […] Surfar uma onda de 15 metros no Havaí. Você pode esquiar nas pirâmides. Escalar o monte Everest com o Batman. […] Você pode perder seu dinheiro, pode ser casar, se divorciar, ir a um motel […]”.

Fonte: https://bit.ly/2Stmw8p

Mas tudo muda quando o criador do OASIS, James Halliday, morre. Halliday, que não tem herdeiros, oferece o próprio OASIS para o jogador que encontrar três Easter Eggs sobre a vida do próprio Halliday, representados por chaves. Wade vê então uma oportunidade de mudar sua realidade, e durante anos tenta vencer os desafios. Mas pra isso, tem que competir com os Seis, trabalhadores de uma super companhia chamada IOI, que investe para ganhar os desafios de Halliday e se tornar a maior empresa do mundo.

Fonte: https://bit.ly/2GGMlLd

Um novo mecanismo disciplinar

Durante toda a película o espectador pode acompanhar os fragmentos da história de Halliday, e como sua paixão por jogos desde a infância o tornou o homem mais poderoso do mundo, apesar desse poder ter trazido consigo frustração e solidão.

Mesmo sem a intenção de Hallyday, o OASIS se tornou o maior mecanismo disciplinar daquela sociedade. Isto é, com a diminuição do poder governamental e com as crises sociais, políticas e ambientais do mundo real, as instituições disciplinares convencionais como escola, trabalho e religião, que mantinham as pessoas dentro das regras foram abandonadas. Para Foucault (1999, p. 163) “é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”.

Os corpos se tornaram um alvo de poder, uma vez que na era moderna houve a possibilidade de torná-los úteis no que tange a economia e submissos, no que tange a política. Essa união faz do corpo humano uma parte na máquina de produção econômica. Para Foucault (1999), forma-se então uma política que oprime os corpos e os molda de acordo com os gestos e comportamentos esperados.

Fonte: https://bit.ly/2GGO439

Porém, ainda que os mecanismos disciplinares se tornem mais humanizados, não significam liberdade e sim um subproduto da emergência de um novo modelo de sociedade, que representa por consequência um novo tipo de aprisionamento (OLIVEIRA, 2016). Desse modo, o OASIS se tornou um neo-disciplinador que aumenta a sensação de liberdade de seus usuários enquanto os explora e direciona. Nesse cenário, Will encontra um sentido pra sua jornada através da filosofia original de Halliday, e não deverá cometer os mesmos erros que seu ídolo.

A marca de Spielberg

Mesmo que não tão impactante quanto outras produções dirigidas por Steven Spielberg, ‘Jogador N° 1’ ainda carrega fortemente o estilo do diretor.  Seja pelo trabalho coletivo dos personagens em busca de um objetivo, ou pela verdadeira ode ao espírito dos anos 70 e 80 (do qual Spielberg é grande influência). ‘Jogador N° 1’ acerta nas referências mesmo em meio a tsunami atual de homenagens à cultura pop e Easter Eggs, por fazer isso de forma natural resgatando o espírito jovial da época através dos protagonistas.

Fonte: https://bit.ly/2RXJKhW

É esse estilo de aventura de Spielberg que o fez uma boa escolha para a adaptação do livro de Cline, mesmo que de maneira menos profunda em relação à crítica social. Ainda que o título tenha sido adaptado no Brasil, primeiro para o livro e depois para o filme, o título original “Ready Player One” já descreve bem o que a trama faz o espectador sentir: um misto entre a participação em uma nova aventura e algo mais nostálgico já familiar a muitos, que é a sensação estimulante causada pelos jogos.

Seja pelos efeitos visuais bem feitos, pela nostalgia ou pela curiosidade por uma nova aventura, ‘Jogador N° 1’ pode ser considerado um bom filme do seu estilo e vale uma tarde de pipoca, como todo bom filme de Steven Spielberg.

FICHA TÉCNICA:

JOGADOR N° 1

Título original: Ready Player One
Direção: Steven Spielberg
Elenco: Tye Sheridan, Olivia Cooke, Mark Rylance, Hannah John-Kamen;
País: Estados Unidos
Ano: 2018
Gênero: 
Aventura

REFERÊNCIAS:

OLIVEIRA, Luciano. Relendo vigiar e punir. Olhares Plurais, v. 1, n. 14, p. 5-30, 2016. Disponível em: <http://revista.seune.edu.br/index.php/op/article/download/204/157>. Acesso em: 10 fev. 2019.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Editora Vozes. 20 ed. Petrópolis, 2014. Disponível em: < http://escolanomade.org/wp-content/downloads/foucault_vigiar_punir.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2019.

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Steven Spielberg: o rei dos clássicos

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Você tem alguma lembrança na qual todo mundo se reuniu em casa para assistir filme? Já passou alguma tarde em frente à TV assistindo aquele filme que todo mundo conhece? Se você respondeu sim para alguma dessas perguntas, provavelmente um desses filmes foi dirigido por Steven Spielberg.

O aclamado diretor tem vitórias variadas em seu cartel, desde blockbusters com efeitos visuais avançados como Jurassic Park: o parque dos dinossauros (1993), Tubarão (1975), Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977), Guerra dos Mundos (2005) e a franquia Indiana Jones; a filmes que captam a essência das fantasias da infância como E.T. – o extraterrestre (1982), A. I. – inteligência artificial, Super 8 (2011), As Aventuras de Tintin (2011) e O Bom Gigante Amigo (2016); além dos tocantes dramas com tensões penetrantes como A Cor Púrpura (1985), A Lista de Schindler (1993), O Resgate do Soldado Ryan (1998), O Terminal (2004),  e Cavalo de Guerra (2011).

E agora, lembrou de algum?

Fonte: https://gph.is/2nRBm75

Um talento precoce

Steven Allan Spielberg nasceu no dia 18 de dezembro de 1946 em Cincinnati, no estado de Ohio nos Estados Unidos, filho dos pais judeus Leah Posner Spielberg Adler e Arnold Spielberg. Após a separação de seus pais, Steven ainda criança foi morar na Califórnia com um casal de amigos da família, enquanto suas irmãs Anne e Nancy ficaram no Arizona com sua mãe. Por ser de família judaica, Steven sofria preconceito, apesar de ser um aluno aplicado.

Ganhou sua primeira câmera com 12 anos de idade, e fez seu primeiro longa aos 16. Aos 19 iniciou o curso de Cinema na Universidade da Califórnia, sendo que aos 22 anos teve sua estréia profissional com o curta Amblin, que foi exibido no Festival de Filmes de Atlanta e premiado no renomado Festival de Veneza. O curta abriu as portas da Universal Studios para Spielberg, que passou a dirigir vários filmes para a TV, entre eles o thriller Encurralado (1971), onde um motorista em uma rodovia é perseguido por um caminhão fantasmagórico. O filme foi tão aclamado pela crítica que foi lançado também para cinema.

Fonte: https://bit.ly/2PqdGn2

Grandes monstros, grandes fortunas

Em 1975, Steven dirigiu o filme que pode ser considerado o pai dos blockbusters: Tubarão. Além de ter sido o pioneiro em uma temática que virou um subgênero do cinema, que são as franquias de monstros marinhos (Sharknado, Piranha, Orca – a baleia assassina, Círculo de Fogo), Tubarão faturou mais de 100 milhões de dólares e virou uma febre mundial, atraindo os grandes estúdios para as superproduções de verão, com grandes investimentos em marketing e efeitos especiais. Essa tendência do cinema americano só cresceu se tornando a tônica dos maiores lançamentos até os dias atuais. Um belo exemplo é o filme de 2015 “Jurassic World: O Mundo dos Dinossauros”. Continuação de uma franquia iniciada pelo próprio Steven em 1993 e atualmente dirigida por Colin Trevorrow, a película arrecadou cerca de 1,7 bilhão de dólares, e ocupa atualmente a 4° posição entre as maiores arrecadações mundiais.

Fonte: https://bit.ly/2BuD1Jm

Após o lançamento de Tubarão, vieram os bem sucedidos Contatos Imediatos de Terceiro Grau, Os Caçadores da Arca Perdida e os três primeiros Indiana Jones. Porém, sua consagração como um dos maiores diretores da história veio com o lançamento do filme que é considerado por muitos sua obra prima: E.T. – O Extraterrestre, que ano de 1982 arrecadou cerca de 793 milhões de dólares somente na bilheteria.

Mas nem só de monstros vive o diretor. Em 1993, apesar do primeiro Jurassic Park ter a maior bilheteria da década, o filme “A Lista de Schindler” foi aclamado pela crítica por sua sensibilidade ao retratar o sofrimento dos judeus na Segunda Guerra Mundial. Em partes, “A Lista de Schindler” foi um projeto pessoal do diretor, retratando o cruel passado do povo do qual descendeu, projeto esse que lhe rendeu sua primeira estatueta do Oscar como Melhor Diretor.

Criatividade sem limites

Como humanos, tendemos a simplificar ideias. Um exemplo: é fácil pensar que um filme com o tubarão gigante, um dinossauro gigante ou um alienígena gigante tem o potencial de causar medo ou desconforto, ainda que atualmente seja mais curiosidade pela megalomania. Mas na década de 70, quando as pessoas tinham contato com esses conteúdos pela primeira vez, ocorria uma overdose de sentimentos novos, uma verdadeira ressignificação no contato com o cinema. Isso é comprovado pelos valores cataclísmicos de bilheteria. Mas, pense. Esses temas levam pessoas ao cinema até hoje. Muitas pessoas.

Fonte: https://bit.ly/2nUjF6I

Para cada franquia inacabável que lança filmes cada vez piores (parem de lançar Star War’s e Jurassic Word’s, por favor), existiu um filme inovador que causou um sentimento inédito, e atrás desse filme existiu um diretor que transmitiu através da sua criatividade, algo novo. Para Ostrower (1977), criar é dar formar algo novo, sendo esse “novo” as coerências para a mente humana. O criador possui desse modo, a capacidade de compreender as relações, configurações e significados. Ele é capaz de conectar múltiplos eventos dentro e fora de si, configurando sua experiência de viver em um significado para suas perguntas e respostas (OSTROWER, 1977).

Apesar de a criatividade ser algo inerente à condição humana, em vários momentos de sua história, Spielberg compreendeu as coerências da mente humana e as usou em seus filmes, mas também criando algo totalmente novo, que naquele zeitgeist era inusitado. Portanto, a nomeação de clássico não deve ser confundido com velho, uma vez que os filmes de Spielberg lançaram modelos para os gêneros dos quais fazem parte. Os demais diretores e roteiristas o usaram muitas vezes como referência. O seguiram e o tornaram ainda mais influente, como os vassalos fariam a um rei.

Uma criação, contudo, não se origina de um Big Bang, não vem do nada. Como pontua Ostrower (1977), nós somos o ponto focal de referência da nossa própria criatividade, pois ao relacionar fenômenos nos os vinculamos a nós mesmos, nos orientando de acordo com expectativas, desejos, medo e atitudes de ordem interior. E é nessa busca de ordenação se encontra a motivação de criar.

Steven não teve uma infância tranquila, foi separado de sua família original, de suas irmãs, as quais eram as primeiras atrizes de seus filmes amadores. Sofreu preconceito dos próprios vizinhos por ser judeu. Para Fromm (2000), um dos meios para a superação parcial da ansiedade de separação é a atividade criativa, nela o trabalhador e o objeto tornam-se um, o criador une-se a sua criação que representa o mundo fora dele.

“Mamãe.”
Fonte: https://plbz.it/2vYiYxZ

“A percepção de si mesmo dentro do agir é um aspecto relevante que distingue a criatividade humana” (OSTROWER, 1977, p.2). O agir para Spielberg foi transformar seus filmes em partes, em uma representação de si. A missão de seus protagonistas é quase sempre vencer um desafio, um grande desafio.

Talvez, o expectador sente-se repetidamente na sala de cinema para ver mais um de seus filmes, porque ele próprio tem de se sentir capaz de enfrentar monstros, desvendar mistérios, ajudar alguém que precisa, ainda que você seja apenas uma criança.

Fonte: https://bit.ly/2NSZ3XD

REFERÊNCIAS:

FROMM, Erich; ROSENBLATT, Noemi. El arte de amar. São Paulo – SP: Martins Fontes, 2000.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 1978.

 

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Filmes que mesclam o universo dos Jogos de Videogame

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Com o novo longa de Steven Spielberg para estrear, Jogador Nº1,  perguntas sobre porquê jogos de videogame não são geralmente bem-sucedidos como em adaptações do cinema voltam a aparecer. Mais do que isso, a expectativa de quem assiste mostra que pode ser tão ou até mais importante do que a qualidade da produção. Adaptações cinematográficas de videogames vem com a mesma bagagem, geralmente trazidas por jogadores que conhecem a história de ponta-cabeça.

No caso de Jogador Nº1, a nova produção do diretor de sucessos como Jurassic Park, E.T. e Tubarão, o enredo é completamente baseado nas regras muito bem conhecidas em diversos jogos de videogame. Tudo na imersão da realidade virtual. Porém, o filme é baseado no livro de mesmo nome do escritor Ernest Cline. Assim, a expectativa fica toda na obra. E, por isso, já é o suficiente para deixar os fãs ansiosos e preocupados com a sua reinterpretação para o cinema – porém, a expectativa não é tão grande quanto a reinterpretação de um verdadeiro jogo de videogame.

Jogador Nº 1. Fonte: https://goo.gl/5WEfqj

Se em livros conhecemos personagens e imaginamos sua aparência, assim como o universo em que vivem, nos videogames nos é apresentado os mesmos nos mais pequenos detalhes. Não somente entendemos suas personalidades, mas também já sabemos até mesmo como andam – algo que na literatura fica somente na imaginação.  Porém, o videogame vai além de tudo isso. Como nós controlamos os personagens, os jogadores se tornam estes. Como, então, o cinema pode competir com isso?

Um dos jogos mais famosos da história é o universo Warcraft, criado pela Blizzard Entertainment. O RTS (sigla para game de estratégia) é tão famoso que conta com mais de 12 milhões de jogadores no mundo e fãs em outras mídias, como livros. Assim, quando o filme Warcraft – O Primeiro Encontro de Dois Mundosestreou em 2016, a expectativa era imensa e rendeu mais de 400 milhões de dólares de bilheteria.

Cena de Warcraft. Fonte: https://goo.gl/gJPxFg

Porém, para um título que é tão conhecido, tal número é pequeno. O longa, como a maioria das produções baseadas em games, não é uma obra completamente cinemática e nem interativa, ficando no meio termo entre cinema e videogame. Assim, quem não conhece o título, sente que falta drama e um enredo mais complexo na produção. Por outro lado, quem conhece o jogo, acredita que o filme não foi fiel ao estilo e aos personagens queridos. Há também aqueles que acreditem que a própria estrutura de Warcraft não é compatível com enredos de cinema.

Isto pode ser verdade. Um dos jogos que foi, no ponto de vista de alguns jogadores, mais bem-sucedidos, foi Silent Hill, e a maior razão para isto foi que o jogo não somente tem esta estrutura dramática mais compatível com o cinema, mas também o fato de que o longa se manteve fiel à narrativa do game. Porém, isto não foi o suficiente para que o filme fosse muito além do puúlico que já conhecia o título, não agradando a maioria dos espectadores, especialmente a crítica. Como Silent Hill não é tão famoso como Warcraft, também não conseguiu um grande feito na bilheteria.

Cena de Silent Hill. Fonte: https://goo.gl/SvuPJ7

Porém, isto nos dá uma ideia do que é preciso para que um jogo de videogame seja potencialmente bem-sucedido – o título precisa ser compatível com a estrutura dramática do cinema de maneira natural, o jogo precisa ter um grande numero de fãs e, finalmente, a produção precisa ser fiel à obra. Se não, é mais seguro produzir longas como Detona Ralph ou Jogador Nº1, que têm o viés de um videogame sem ser um.

Nota: Artigo escrito pelo cineasta Daniel Bydlowski para a Zoom Magazine

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