O Homem Não é uma Máquina!

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Comumente ouvimos frases como “Homem que é homem é forte’’, “Faça isso igual um homem”, “Faltou um homem para colocar ordem aqui” e por último uma das frases mais famosas “Homem não chora”, conceitos como este externalizados através da fala se tornaram regras extensamente difundidas na sociedade, indicando que o homem deve seguir um padrão de comportamento estando sua conduta pré-definida em conceitos culturais que a sociedade criou.

Apesar de essas referências terem evoluído ao longo do tempo, diversas culturas ainda seguem estritamente a regra que diferencia o comportamento de homens e mulheres pelo conceito da racionalidade e emoção. Dessa forma, infelizmente, homens e mulheres ainda são educados de forma diferente. Como resultado, muitos homens têm dificuldade em expressar sentimentos e emoções.

Santos (2015) acrescenta que a sociedade confere maior emoção às mulheres e maior racionalidade aos homens. Ao analisar a dicotomia entre racionalidade e emoção relacionada à identidade de gênero, enfatizou que expressões de determinadas emoções, como medo e vulnerabilidade, estão mais fortemente associadas às mulheres. Em vez disso, emoções como raiva ou agressão estão associadas aos homens. De uma perspectiva de tipologia emocional potencialmente relacionada ao gênero, espera-se que as mulheres experimentem uma variedade de emoções consideradas mais positivas, enquanto os homens as emoções negativas.

Fonte: encr.pw/NMDWu

Ao mesmo tempo, essa lógica binária tem efeitos colaterais para todos, com algumas pessoas ou grupos sociais defendendo a lógica da sensibilidade feminina e da racionalidade masculina. Portanto, é importante enfatizar que os homens têm sentimentos e que também são racionais. No entanto, ambos os sexos são ensinados a processar sentimentos por meio de regras sociais. Ou seja, os métodos de lidar com tais sentimentos geralmente são aprendidos por homens e mulheres com base nas consequências de tais atitudes para aqueles que ousam tentar.

Garcia et.al (2019) aponta que a masculinidade ainda é atrelada à cultura machista patriarcal.  Assim, as condutas desta cultura, impõe as regras da forma que um homem deve agir, dando a entender que ele é capaz de realizar todas as coisas sem passar por nenhum tipo de sofrimento. E aquele que requer um acolhimento de uma escuta, a sociedade não o deixa ter, transformando-o e exigindo que este seja uma máquina indestrutível, que não admite que entre em contato com suas emoções, com suas dores e com seus limites.

Pode não ser novidade pensar que porque sempre (embora menos hoje), muitos meninos são punidos e envergonhados socialmente por demonstrarem aquilo que sentem. Penalizar a demonstração de sentimentos de um homem pode ocasionar comportamentos evitativos relacionados à expressão de suas emoções, o que pode ocasionar sofrimento psíquico entre outras consequências.

É indiscutível que a polarização de gênero é ruim para todos. É fato que as mulheres são prejudicadas e estigmatizadas. Ao mesmo tempo, porém, a rigidez que a sociedade impõe aos papéis masculinos não abre espaço para que os homens expressem plenamente seus sentimentos e emoções.

Como resultado, eles se sentem culpados e punidos socialmente quando expressam seus sentimentos. Por esse motivo, é mais comum que os homens apresentem níveis mais elevados de estresse e sofram de transtornos relacionados à ansiedade, dificuldades nos relacionamentos sociais e românticos.

Em conformidade com Silva (2021), ao analisar índices relacionados à saúde mental, é identificado que há uma prevalência de transtornos mentais em mulheres, no entanto é observado que homens têm mais tendências suicidas que as mulheres, estando outros tipos de transtornos ligados. Uma causa associada a este fenómeno pode estar ligada a tendência que o homem possui em atrelar doença a fraqueza, além de possuírem maior dificuldade em expor suas ansiedades e sentimentos de tristeza.

Fonte: l1nq.com/V5sVT

Somos todos seres humanos independentemente do gênero e, em muitos casos, somos castrados e limitados por dogmas socialmente construídos. Portanto, não faz sentido distinguir entre comportamento masculino e feminino, especialmente quando se trata da expressão de sentimentos e emoções.

Assim, é importante estar ciente de que muitas vezes um amigo, colega de trabalho, namorado ou marido pode estar em grande desespero emocional. Muitos deles sofrem e escondem seus sentimentos por causa de habilidades comportamentais subdesenvolvidas. Além disso, pode até explicar o comportamento suicida de muitos homens que vivenciaram algum fracasso ou foram estigmatizados socialmente ao falar sobre suas emoções e não podem arcar com tal punição pública. Desse modo, é compreensível que os homens tenham mais dificuldade em se expressar. Talvez isso mostre a necessidade de mais troca e desconstrução de regras socialmente impostas.

REFERÊNCIAS

SANTOS, Luís Homens e expressão emocional e afetiva: vozes de desconforto associadas a uma herança instituída, Revista Ciências Sociais, São Paulo, v 40, n.1,p 1-14, Setembro de 2015, acessado em 11 março de 2022. URL: http://journals.openedition.org/configuracoes/2593.

GARCIA, L. H. C.; CARDOSO, N. DE O. BERNARDI, C. M. C. DO N. Autocuidado e Adoecimento dos Homens: Uma Revisão Integrativa Nacional. Revista Psicologia e Saúde, v. 11, n. 3, p. 19-33, 9 out. 2019.

Silva, Rafael Pereira e Melo, Eduardo Alves Masculinidades e sofrimento mental: do cuidado singular ao enfrentamento do machismo. Ciência & Saúde Coletiva [online]. v. 26, n. 10 [Acessado 11 Março 2022], pp. 4613-4622. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1413-812320212610.10612021>. ISSN 1678-4561. https://doi.org/10.1590/1413-812320212610.10612021.

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O estranho senso de justiça no filme “O Sacrifício do Cervo Sagrado”

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Os deuses exigem de nós sacrifícios para que provemos nossa devoção. Mas, e se for exigido um sacrifício pessoal a eles? Um cirurgião bem sucedido e respeitado parece pairar como um Deus sobre a vida e a morte, até que encontra com um garoto que o faz se confrontar com algum tipo de justiça cósmica, que exigirá dele o sacrifício de um membro da sua família. “O Sacrifício do Cervo Sagrado” (“The Killing of a Sacred Deer”, 2017), do diretor grego Yorgos Lanthimos (“The Lobster” e “Dente Canino”), segue a tendência atual de filmes estranhos dirigido por gregos que misturam horror, violência, amor e culpa em thrillers com situações bizarras. Aqui, Lanthimos lança seu olhar para os mundos assépticos dos hospitais e condomínios suburbanos que vendem para as massas as ilusões de controle patrocinado pela Ciência e racionalidade tecnológica. E, como em todos os filmes de Lanthimos, consegue extrair desses universos o estranho e o incontrolável.

Condomínios suburbanos norte-americanos já rendaram diversas estórias em filmes que se tornaram clássicos: Poltergeist, ET, Goonies, Veludo Azul, Edward Mãos de Tesoura, Beleza Americana, Donie Darko entre outros. Filmes cujas narrativas sempre confrontam o estilo conformista e asséptico da classe média com algum evento perturbador que vai quebrar uma suposta ordem: espíritos, aliens, submundo do crime, infidelidade etc.

E quando um diretor grego como Yorgos Lanthimos volta seu olhar para um subúrbio norte-americano, certamente teremos um filme estranho. Assim como os seus anteriores The Lobster (2015) e Dente Canino (2009). Principalmente porque os atuais diretores gregos como, por exemplo, Nikias Cryssos (Der Bunker, 2016) têm se especializado em narrativas com situações bizarras, com personagens totalmente incongruentes entre si no qual violência, amor, culpa, erotismo, misticismo e horror se misturam – espaços claustrofóbicos, famílias que se transformam em prisões ou antigas fábulas e mitologias atualizadas em contos atuais.

O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017) de Yorgos Lanthimo é mais um registro metafórico do diretor criando situações impossíveis para lançar luz sobre o bizarro e até sobrenatural que possa existir por baixo de ambientes controlados pela ordem familiar e científica.

Um cardiologista e cirurgião bem sucedido, casado com uma linda esposa (também médica, oftalmologista) morando em uma grande casa de subúrbio com um casal de filhos em um cotidiano ordenado, asséptico, no qual cada membro familiar tem funções cotidianas bem ordenadas – regar as plantas e a grama, fazer as refeições etc. Uma ordem familiar na qual a ordem e assepsia hospitalar se confundem com os ambientes suaves em tons pastéis da confortável casa de subúrbio.

Fonte: https://goo.gl/UB7XCw

Como em um cotidiano ordenado como esse, por tamanha racionalidade, pode deixar emergir o Estranho, o Cármico e o Mal? Como  a Ciência pode gerar a própria presença do Mal, isto é, aquilo que irá desconstruir essa bolha de racionalidade que se materializa em casas de luxo de subúrbios? E como o Mal vive latente, no submundo dessa ordem, como uma espécie de inconsciente de culpa e vergonha.

O Filme

Collin Farrell mais uma vez se reúne com Lanthimos, dessa vez com uma interpretação mais densa e sombria. Ele interpreta o Dr. Steven Murphy, um cirurgião e cardiologista respeitado e bem sucedido. Ele parece ter conquistado tudo que uma vida bem sucedida poderia dar. Possui uma linda e cobiçada esposa, Anna (Nicole Kidman), uma médica oftalmologista.

Eles têm dois filhos: a jovem de 15 anos Kim (Raffey Cassidy) e o menino Bob (Sunny Suljic), às voltas com um intenso cronogramas de atividades da espaçosa casa sob as ordens dos pais Steve e Anna.

Steven faz amizade com um jovem de 16 anos chamado Martin (Barry Keoghan). Uma estranha amizade cuja história e motivações são vagas e os encontros são sempre furtivos nos quais Steven sempre dá pequenos presentes para o rapaz. Na medida em que o filme avança os espaços em branco daquela amizade serão preenchidos.

A certa altura Steve apresenta Martin para os seus colegas médicos do hospital como um amigo da sua filha interessado em conhecer a profissão da medicina.

Aos poucos o jovem vai sendo introduzido na vida da família de Steve: torna-se amigos dos filhos e passa a ter um interesse romântico por Kim após um jantar para o qual foi convidado.

Fonte: https://goo.gl/kVT6cC

Mas em toda essa aparente normalidade em tons pastéis há algo de sombrio que muito lentamente vai emergindo na narrativa: o bom médico gosta de fazer sexo com sua esposa enquanto ela finge estar sob anestesia geral. Na verdade parece que todos estão sob algum tipo de anestesia enquanto executam mecanicamente seus papéis.

Repentinamente as pernas do filho Bob param de funcionar e não consegue mais sair da cama e nem se alimentar. Em pouco tempo, a irmã apresenta os mesmos sintomas.

Martin revela a Steven o que está acontecendo: ele é o filho de um homem que morreu na mesa de operação há alguns anos, cujo culpado foi Steven. Por algum tipo de negligência médica que não está clara no início do filme. Talvez por culpa, o bom doutor quer manter-se perto do garoto. Porém, Martin será o agente de uma espécie de carma cósmico – se Steven levou seu pai, agora algum membro da sua família deve morrer. As escalas devem ser equilibradas.

O médico tem duas opções: sacrificar um membro da família para acabar o pesadelo ou assistir o definhamento de todos pela paralisia, recusa de comer e, eventualmente, sangramentos pelos olhos. É justiça!

Como um homem de ciência que vê a vida em preto e branco, ele recusa a acreditar nessa justiça cármica. Steve se apega à racionalidade da ciência médica para encontrar um diagnóstico para o que ocorre com seus filhos. Forma-se uma junta médica, baterias de exames neurológicos são realizadas mas nada é descoberto. Minimamente aceitar que tudo o que ocorre é de natureza psicossomática, seria uma derrota para os médicos neurologistas.

Claramente os acontecimentos rompem a sua visão de mundo perfeitamente controlada, assim como os condomínios suburbanos e os ascéticos hospitais. Como cardiologista bem sucedido e reconhecido, Steven é como um Deus: salva vidas e, eventualmente, comete erros que levam vidas. Mas agora, a situação pede algo raramente exigido aos deuses: um sacrifício pessoal.

Fonte: https://goo.gl/jEg6K5

O Agamenon moderno

Lanthimos está no campo da mitologia, principalmente quando descobrimos que um dos personagens do filme ganhou um A+ na escola por um trabalho sobre Ifigênia, mito grego centrado em um sacrifício exigido ao líder grego Agamenon. Artêmis, a deusa da caça, puniu Agamenon e a única maneira de remover a punição que paralisa seus exércitos no porto pela falta de vento é o sacrifício da sua filha Ifigênia.

O cardiologista Steven é o Agamenon moderno? Sim. Da mesma forma como os expoentes da Escola de Frankfurt Theodor Adorno e Max Horkheimer viam no mito de Ulisses a “dialética do esclarecimento” moderna: líderes da racionalidade militar das batalhas entre as cidades-Estado da antiga Grécia e os atuais líderes da racionalidade científica trilham a mesma “dialética” – a Ciência retornando ao Mito, incapaz de superar um senso de justiça cósmica trágica governada por deuses que parecem não nos amar.

Racionalidade e Ciência, vendida pelo varejo para as massas com ilusões de mundos controlados como condomínios suburbanos fechados e gadgets tecnológicos que parecem eliminar quaisquer surpresas ou “ruídos” no nossos cotidiano, nos fazem esquecer disso quando passamos a brincar de deuses. Emulando os próprios “deuses” (o Demiurgo) que também brincam de divindade conosco, nos prendendo nesse cosmos sob o arbítrio dos seus propósitos.

Fonte: https://goo.gl/aPU2ph

Por isso, o maior pecado do poderoso médico Steven é a recusa em admitir que é apenas humano. É um filme desafiador para os espectadores por alternar o estranho, o doloroso, histeria e o terror. Muitas vezes em uma única cena. Por isso, O Sacrifício do Cervo Sagrado de Lanthimos é um filme tão atemporal como o mito grego no qual se inspirou.

Ficha Técnica 

Fonte: https://goo.gl/FQPVPg

O SACRIFÍCIO DO CERVO SAGRADO

Diretor: Yorgos Lanthimos
Elenco:  Collin Farrell, Raffey Cassidy, Barry Keoghan, Nicole Kidman;
País: Reino Unido, Irlanda
Ano: 2017
Classificação: 16

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Caiu na Net: a intimidade (des)velada

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Já vai longe o tempo em que o namorado pedia à namorada que se entregasse a ele como prova de amor e, consumado o ato, em que muitas vezes uma virgindade era perdida, a despachava acusando-a como uma mulher sem vergonha.

Hoje, os namorados, as paqueras, ou as simples aventuras passageiras, pedem uma mostra (não necessariamente de amor) em formato digital: que se mostre os peitos na webcam, que se grave uma cena de sexo na câmera do celular, que se masturbe em frente à tela em uma troca de estímulos sexuais. E que se f… o mundo depois, ao que parece.

Sim, porque quando se trata de troca de informações comprometedoras na rede, e especialmente quando estas estão na forma de vídeos ou fotos, não é o céu que é o limite. É o inferno. O inferno em que se transforma a vida das pessoas vítimas deste processo. Inferno este que às vezes se torna insuportável.

“’Não tenho mais vida’, diz Fran sobre vídeo íntimo”.

“Vídeo íntimo vaza no WhatsApp e menina se mata no Piauí”.

“Mais uma jovem se mata após divulgação de imagens íntimas”.

Já vai longe o tempo em que os pais tinham que ensinar os filhos a não aceitar carona de estranhos, a não receber doces de pessoas desconhecidas, a desconfiar de quem chegasse perto com “conversas bobas”.

Hoje é tarefa dos pais alertar sobre os perigos que existem do outro lado da tela do computador, do notebook, do celular. Se antes não havia criança, adolescente ou jovem que não saísse de casa sem antes receber um sem número de recomendações, hoje se deve encher de alertas as mesmas crianças, adolescentes e jovens antes de saírem navegando pelo mundo da internet.

Não é uma questão somente de discutir os benefícios e malefícios da grande rede e sim de lembrar que: independente do quanto se concordasse ou não com a ida de um adolescente às antigas matinês, este só saia de casa muito bem recomendado (e põe recomendado nisso); independente do quanto se julgasse válida ou não a participação das crianças nas brincadeiras de rua, não havia um adulto que deixasse de passar inúmeras lições para a criança sobre as maldades do mundo antes delas saírem para a pracinha; independente do quanto se aceitasse ou não a necessidade dos jovens de se aventurar em acampamentos  com sua turma, estes só tinham a permissão concedida após severas instruções.

Se as crianças, os adolescentes ou os jovens aceitavam e seguiam as recomendações, aí são outros quinhentos, mas que iam sendo preparados para os perigos que se avizinhavam, ah, isso iam.

E por que agora os pais não fazem o mesmo em relação aos perigos advindos do mundo virtual? Simples. Porque, se antes os pais estavam tarimbados por experiências próprias, ou vividas por seus pais, seus avós, seus tios, em um mundo que evoluía constantemente, porém de forma paulatina, hoje eles se deparam com um novo enredo do qual parece que eles não fazem parte. Se os pais quase nada ensinam aos seus filhos sobre os perigos da rede é porque, simplesmente, eles quase nada sabem.

Até podemos, nós que estamos aqui defronte a este texto na internet, afirmar que essa é uma situação que já está mais do que batida e que todos já deviam ser “espertos” quanto a isso. Entretanto, vale lembrar que grande parte das pessoas que estão ao nosso redor não chega a ter o mesmo acesso que temos aos avanços tecnológicos e podem até ser consideradas analfabetas no que tange a sua relação com o meio virtual.

Poderíamos, então, responsabilizar os próprios jovens pela irresponsabilidade dos atos que acabam levando a estas situações. Afinal, quem, dos próprios jovens, nunca ouviu falar de um ou outro caso que “caiu na net”? E aí tem a questão: se mesmo sendo os jovens fartamente informados em casa, na mídia, nas escolas, sobre os perigos da falta de prevenção nas relações sexuais, ainda vemos uma quantidade enorme de gravidezes indesejadas e o avanço de algumas doenças sexualmente transmissíveis, o que se pode dizer sobre uma situação da qual ainda pouco se discute?

Chega-se,então, ao que parece ser o cerne da questão: o que há é uma grande desinformação, que também pode ser entendida como uma grande ausência de discussão sobre o pouco de informação que existe.

E o pouco de informação que existe já daria pano pra manga em termos de discussões.

Em um primeiro momento, deve-se considerar que o que existe no mundo virtual é muito real. Se está lá, ainda que virtualmente, é porque existe. E, se existe, pode ser guardado, transmitido, publicado, compartilhado, curtido em um tão grande número de vezes que se torna praticamente impossível ter domínio sobre o alcance de sua existência. Se algo vai parar na rede dificilmente sairá de lá, por mais que se deseje e se tente, inclusive por meios legais. Um juiz pode até determinar que se retire uma determinada informação da internet e ela pode até parecer ter sumido, mas com certeza ela existirá, adormecida, como um arquivo em algum HD, pronta para, a qualquer instante, acordar e voltar a se mostrar ao mundo.

Outro ponto a ser apresentado é a inexistência de lugar seguro para se deixar alguma informação confidencial. Aquele vídeo existe somente em seu celular, mas seu celular pode ser perdido, roubado, ou até mesmo simplesmente emprestado a um amigo por alguns segundinhos. Aquelas fotos estão em um arquivo secreto guardado em uma pasta secreta em um ponto secreto do HD de seu computador que, veja só, foi parar no conserto e justamente nas mãos de alguém um tanto quanto inescrupuloso. Aquelas outras imagens ficaram guardadas em seu mail, do qual só você tem a senha, que por acaso é a data de seu aniversário. E assim, fácil, fácil o que era confidencial vira de domínio público.

Também se pode discutir a confiança no outro. Ah, mas pode-se dizer que é apenas um vídeo que você vai mandar somente pro teu namorado e ele te ama. Bom, pode até existir namorado que, ao terminar o relacionamento, devolve os presentes recebidos, mas vídeos enviados… ah, estes não são apagados (e têm uma grande tendência a se disseminarem facilmente). E aquele sua apresentação ao vivo para a pessoa amada? Ela pode estar sendo gravada e, o que era ao vivo, vira um arquivo que correrá por muitos computadores muito tempo após a sua primeira exibição, aquela mesma que você julgava que era só para quem você amava.

Mas a lei me protege, podem julgar os mais ingênuos. E até protege, é claro, mas somente até um certo ponto. Quando o vídeo é distribuído por alguém que teve relacionamento com a vítima, este pode, segundo alguns juristas, ser processado por difamação com base na Lei Maria da Penha porque existiu uma relação de afeto entre vítima e autor. No caso em que as imagens divulgadas foram roubadas de alguma forma pode-se aplicar a Lei 12.737/12, também conhecida como “Lei Carolina Dieckmann”, referência à atriz que teve fotos nuas divulgada na internet. Mas aí as imagens já se espalharam por toda a rede e, como já dito, dali não tem mais como sair; o estrago já foi feito.

E ainda há o grande grau de hipocrisia da nossa sociedade que prefere julgar e condenar as vítimas destas divulgações a procurar entender o conjunto de situações envolvidas.

Enfim, há um sem número de questões ainda a serem consideradas e, especialmente, disseminadas, discutidas e debatidas. E é somente este processo que possibilitará que se amplie o conhecimento sobre os riscos envolvidos em tudo o que tange a questão da privacidade na grande rede. Conhecimento este que deve ser alvo da atenção e do debate em casa, nas escolas e, especialmente, nas próprias redes sociais, para que nos tornemos não os disseminadores destas imagens e sim das informações que poderão tornar estas situações casos cada vez mais isolados. E não tenhamos que ler mais manchetes como estas:

“’Não tenho mais vida’, diz Fran sobre vídeo íntimo”.

“Vídeo íntimo vaza no WhatsApp e menina se mata no Piauí”.

“Mais uma jovem se mata após divulgação de imagens íntimas”.

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O Medo, a Inveja e a Vergonha em uma reflexão sobre as Paixões

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Uma boa razão para estudarmos as paixões seja, talvez, a possibilidade de melhor entendermos a alma humana em toda sua complexidade. Desde Aristóteles até Greimas as paixões suscitam discussões e teorias que sugerem ainda um tema inesgotável. Para os antigos, a paixão era associada à doença, à loucura; uma vez que a opunham à lógica, à razão; modernamente é concebida como uma força motriz que leva o homem à ação (FIORIN, 2007, p. 10).

As paixões estão presentes nos diferentes tipos de discursos: publicitário, político, acadêmico, religioso etc. Entretanto, segundo Fontanille (2008, p. 93) o tipo de discurso no qual a dimensão passional mais se manifesta é o literário, narrativo ou poético mais explicitamente.  Há fartos exemplos disso: em Otelo, de Shakespeare, o ciúme e a manipulação são os elementos fundamentais; em Memorial de Aires, de Machado de Assis, é o apego que se estende até após a morte do ser amado; Um amor de Swann, de Marcel Proust, trata da paixão do ciúme; em Os desastres de Sofia, de Clarice Lispector, é a vergonha a paixão retratada. Outro bom exemplo, é o surpreendente conto La forma de la espada, de Jorge Luis Borges, em que a história de Vincent Moon nos leva a refletir sobre a condição humana, sua instabilidade, suas fraquezas e motivações.

Ainda crianças somos orientados a temer desde coisas concretas, como o fogo, a água, objetos cortantes, até aquilo que não conhecemos. Disso se depreende que o medo é fruto da consciência da finitude humana, isto é, tememos basicamente aquilo que ameaça nossa vida e das pessoas que amamos.

Para Fontanille (citado por NASCIMENTO; LEONEL, 2006, p. 628) o medo, o temor e o terror são paixões que nos igualam aos animais e se distanciam de paixões mais nobres, que dão sentido à existência, como o amor, o ciúme, a ambição entre outras; isso porque nestas, o sujeito busca o objeto; naquelas, o sujeito atemorizado foge, rejeita o objeto, o que significaria a decomposição do sentido.

Fontanille criou uma tipologia para o medo baseada no desenvolvimento das formas observáveis e na intensidade da expressão dinâmica. Quando esses dois elementos são fortes surgem os “atores do medo”. Nessa construção, o medo se revela por motivos estereotipados, imediatamente reconhecidos, como a fera, a tempestade, o bandido. Quando o desenvolvimento das formas é fraco e a intensidade forte, surgem as “forças do medo”, nas quais o medo se revela por formas indefinidas, impalpáveis, em que o sujeito somente vê formas e cores, por exemplo. Quando a intensidade é fraca e o desenvolvimento forte, ocorrem as “formas do medo”, nas que o medo se dá por coisas monstruosas, fantásticas, cujo tipo de ação o sujeito desconhece. O último tipo de medo acontece quando os dois elementos são fracos, é a “aura do medo”, que se caracteriza por um mal-estar indefinido. A partir dessa tipologia o percurso do medo é descrito, permitindo observar as transformações textuais, que podem passar da “aura” ao “ator”, à “forma” e à “força”, por exemplo.

Ainda segundo Fontanille, no sujeito amedrontado pode haver, inicialmente, o enfraquecimento da competência modal ou perda do querer, do saber e/ou poder; em seguida pode haver a declinação de componentes corporais, isto é, o corpo manifesta reações de defesa que podem variar muito: frêmito, arrepios, palpitações, paralisia etc.  No entanto, por mais humano que seja, muitas vezes o medo é um sentimento associado à fraqueza, à covardia. Existem situações em que não se pode demonstrá-lo. Um revolucionário não deveria ser um covarde.

Segundo Chauí (1996, p. 56), a origem e os efeitos do medo fazem com que não seja uma paixão isolada, mas articulada a outras, determinando o modo de sentir, viver e pensar do sujeito amedrontado. Para Harkot-de-La-Taille (1999, p. 18) a paixão da vergonha é intersubjetiva, surge do cruzamento de outras configurações em que o destinatário assume a perspectiva de um destinador julgador. O sujeito se divide em dois simulacros existenciais: num ele pensa ter certa competência modal positiva, constrói para si uma imagem que acredita representá-lo verdadeiramente; noutro, vê que não possui tal competência, isto é, não é o que pensava ser. Trata-se de uma paixão definida pela combinação do querer ser, não poder não ser e saber não ser. Isso tudo diante do olhar real ou virtual de um espectador cuja opinião importa muito ao sujeito envergonhado.

Vale lembrar as palavras de Chauí (1986, p. 56), para quem “O medo nasce de outras paixões e pode ser minorado (nunca suprimido) por outros afetos contrários e mais fortes do que ele, como também pode ser aumentado por paixões mais tristes do que ele.”

Costumamos confessar a inveja acompanhada de adjetivos atenuantes, como “boa” ou “saudável”, sentimento facilmente confundido com admiração ou mesmo cobiça. Para Ventura (1998, p. 11), ainda que se refira à inveja como um dos sete pecados capitais, “a inveja é um vírus que se caracteriza pela ausência de sintomas aparentes. O ódio espuma. A preguiça se derrama. A gula engorda. A avareza acumula. A luxúria se oferece. O orgulha brilha. Só a inveja se esconde.” Ainda segundo o autor, a inveja se distingue do ciúme, que se caracteriza por querer preservar o que se tem; e da cobiça, desejar o que não se possui. A marca da inveja é não querer que o outro tenha.

Para Mezan (1986, p. 119), a inveja está associada aos olhos, afirmação que se justifica na própria etimologia da palavra, do latim invídia, formada a partir do radical ved-, de vedére. Ainda segundo o autor, outra associação entre a inveja e os olhos está presente no Canto XIII do Purgatório, na Divina Comédia, de Dante Alighieri, em que os invejosos têm as pálpebras costuradas por um fio de arame como castigo, impedindo-os de ver, inutilizando o órgão através do qual pecaram quando vivos.

Para se analisar mais detidamente o comportamento de algumas pessoas é necessário retomar a paixão da vergonha. Harkot-de-La-Taille (1999) lembra que se pode superar a vergonha assumida de três maneiras: pelo esquecimento ou negação, pelo humor ou pela confissão. Por exemplo, o personagem Moon, do livro La forma de la espada, de Jorge Luis Borges, faz uso da confissão para vencer sua vergonha. Ora, o confessando se auto-rebaixa objetivando limpar-se da mácula. Assume e condena o próprio erro e espera ser perdoado, quer que o confessor sinta pena dele, que o aceite, por mais vil que se revele.

Daí o caráter polêmico da confissão, que pode não simbolizar necessariamente arrependimento sincero, culpa ou pesar pela falta cometida. Ela também pode funcionar como estratégia visando a autovalorização do sujeito envergonhado. Através dela o confessando se coloca em situação superior ao do confessor. É como se Moon dissesse a Borges: “Sou covarde e traidor sim, mas sou capaz de reconhecer isso, o que me dignifica”.

Harkot-de-La-Taille (1999) lembra, ainda, que é sincero o fazer-parecer do humor e da confissão resultantes da vergonha, pois, o sujeito envergonhado acredita na imagem que constrói de si mesmo, e o fato de insistir em parecer, representa a luta para que seu valor seja reconhecido.

Enfim, cinco situações básicas de vergonha nos são apresentadas pela autora, que lembra que tal categorização é limitadora, tendo em vista a complexidade dessa paixão. De qualquer forma, a quinta situação básica é a “de expor uma falta moral: crime, maldade, omissão de socorro, omissão ou mentira por silêncio, etc.” (HARKOT-DE-LA-TAILLE, 1999, p. 135). Desse tipo de vergonha, uma característica fundamental é a autorresponsabilização do sujeito. Mas, inicialmente, o ofensor arrependido age como se as projeções que faz de si mesmo e os efeitos de seus atos não se comunicassem, como se a imagem positiva que tem si mesmo não pudesse ser afetada por seus atos.

Embora quando perceba que sua imagem foi atingida por sua atuação, poderá sentir vergonha, mas para que isso aconteça, o sujeito envergonhado deve estar em sincretismo com o destinador julgador. Não obstante, a vergonha por falta moral não é garantia de comportamento moral. Serve, sem dúvida, como freio e controle para possíveis transgressões, assim mesmo pode levar o sujeito a cometer outras transgressões.

Referências:

BORGES, J. L. Artificios. Madrid: Alianza, 1993.

CHAUÍ, M. Sobre o medo. In: CARDOSO, S. (et al). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

FIORIN, J. L. Semiótica das paixões: o ressentimento. In Alfa: revista de linguística. Vol. 51, no. 1. São Paulo, 2007.

FONTANILLE, J. A conversão mítico-passional. In LARA, G. M. P.; MACHADO, I. L, EMEDIATO, W. (org.). Análises do discurso hoje. Vol 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

HARKOT-DE-LA-TAILLE, E. Ensaio semiótico sobre a vergonha. São Paulo: Humanitas FFLCH/USP, 1999.

MEZAN, R. A inveja.  In: CARDOSO, S. (et al). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das letras, 1986.

NASCIMENTO, E. M. F. S., LEONEL, M. C. O medo como paixão. In Estudos Linguísticos XXXV, pp. 627-636, 2006.

VENTURA, Z. Mal secreto. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.

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