Saúde física e psicológica do Policial Penal

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As vivências e enfrentamentos de um Policial Penal. Marcondes Marques Marciano, policial penal (segundo à direita da foto)

Marcondes Marques Marciano é bacharel em direito, pós-graduado em direito administrativo, atualmente é Policial Penal desde 2017, hoje é lotado no núcleo de operações com cães – NOC da Polícia Penal do estado do Tocantins (@noc.oficial). O Portal (En)Cena o convidou para responder algumas perguntas sobre o impacto do trabalho dos policiais penais de forma geral.

 (En)Cena – Tendo em vista que a realidade do Sistema Prisional brasileiro é de superlotação e dentro disso uma sobrecarga além da exposição à violência, quais são os principais desafios que os profissionais do sistema penitenciário enfrentam em relação à saúde mental no ambiente de trabalho?

Marcondes Marques: Os profissionais do sistema penitenciário enfrentam desafios significativos em relação à saúde mental, incluindo altos níveis de estresse devido à natureza do trabalho, exposição a situações traumáticas, falta de recursos e apoio psicológico adequado, além do risco de burnout devido à sobrecarga de responsabilidades. A violência no ambiente de trabalho e principalmente a falta de reconhecimento também contribuem para a deterioração da saúde mental desses profissionais, que deixam suas casas para se expor à realidade por vezes difícil de compartilhar com as pessoas próximas, assim causando também isolamento.

(En)Cena: Quais medidas estão sendo implementadas para garantir o bem-estar psicológico dos funcionários do sistema penitenciário?

As medidas para garantir o bem-estar psicológico dos funcionários do sistema penitenciário incluem programas de apoio psicológico, como a oferta de aconselhamento e serviços de saúde mental. Além disso, treinamentos regulares para lidar com situações estressantes, a implementação de políticas de prevenção ao estresse ocupacional e o fornecimento de recursos para gestão do estresse são estratégias comuns. Algumas instituições também promovem uma cultura de apoio entre colegas e incentivam a comunicação aberta sobre questões relacionadas à saúde mental. No entanto, é um desafio contínuo melhorar e expandir essas iniciativas para abordar as complexidades do ambiente penitenciário.

                                                            Fonte: Acervo Pessoal 

Núcleo de operações com cães da Polícia Penal

(En)cena: No estudo da psicologia, o estresse está relacionado à exposição prolongada a fatores que geram estado de alerta, desafios e ameaças, sabendo da sobrecarga física e contínua que enfrentam e da exposição ao perigo, como o estresse ocupacional afeta a saúde física dos Policiais Penais? Quais são os impactos mais comuns?

O estresse que enfrentamos no sistema penitenciário pode afetar nossa saúde física de várias maneiras. Alguns efeitos comuns incluem problemas para dormir, pressão alta, questões no coração, dores musculares, dores de cabeça frequentes e um sistema imunológico comprometido. Lidar constantemente com situações de pressão e tensão pode ser a causa desses problemas de saúde, aumentando o risco de desenvolver condições crônicas. Além disso, o estresse prolongado pode prejudicar os hábitos alimentares e a atividade física, o que piora ainda mais os impactos da saúde física dos Policiais Penais.

(En)cena: Quais recursos estão disponíveis para promover a saúde mental dos profissionais do sistema penitenciário e como eles são acessados?

Existem recursos como: Programas de Aconselhamento e Psicoterapia, treinamentos de resiliência e gestão de estresse que equipam os profissionais com habilidades para lidar com pressões do trabalho, grupos de apoio entre os próprios colegas, aqui se tem um ambiente solidário para compartilhar experiências. Políticas de licença e descanso adequadas, que fomentam períodos de descanso necessários para recuperação, além do próprio trabalho com os animais do NOC promover certo alívio, o vínculo com os animais propicia certa descontração que por vezes não acontece devido ao tipo de função exercida.

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Psicologia das Emergências e Desastres: (En)Cena entrevista Bernardo Dolabella

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O (En)Cena convida o profissional Bernardo Dolabella para uma entrevista acerca da área da Psicologia das Emergências e Desastres, por vezes, pouco difundida no decorrer da graduação e até mesmo moderadamente conhecida por profissionais já formados. 

Bernardo possui um vasto currículo profissional que comprova sua expertise neste contexto de atuação. Sua história e vivências transbordam por cada resposta, de maneira que amplia nossa visão sobre a temática e desperta um  genuíno interesse para conhecer mais sobre este campo. É uma leitura que nos convida a ir além, nos impulsionando a desbravar um novo ramo extremamente valioso.

Bernardo Dolabella é doutorando em Saúde Coletiva pela Fiocruz-MG. Possui graduação e mestrado em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais e especialização em Saúde Mental pela PUC-MG. Psicólogo clínico, pesquisador de Saúde Mental e Atenção Psicossocial em Desastres e Emergências em Saúde Pública e membro do Observatório Mineração, Desastres & Saúde, da Fiocruz. Conselheiro estadual e coordenador do setor Psicossocial da Cruz Vermelha Brasileira – Filial Minas Gerais, membro da Comissão de Psicologia Orientativa de Emergências e Desastres do CRP-MG e do Instituto CAVAS. Possui experiência em saúde mental, abuso de substâncias e emergências e desastres.

  

(En)Cena: Como se deu o seu percurso acadêmico até a Psicologia?

Bernardo Dolabella: Meu percurso na graduação em psicologia teve um foco específico, mas sem muita ideia de como chegar até lá. Eu entro na psicologia com a vontade de atuar com psicologia jurídica e forense. Desde minha adolescência eu tinha curiosidade sobre o funcionamento psíquico de pessoas que cometem crimes, queria entender o que era diferente. Durante a graduação me interessei pelo trabalho com populações que apresentavam grande vulnerabilidade. Meus colegas frequentemente me consideram um profissional com aptidão para atuar com públicos sobre os quais outros psicólogos geralmente estão apreensivos. Trabalhei com extrema pobreza, em instituições de saúde mental e com pacientes judiciários. Sempre busquei atuar com casos mais complicados, para que pudesse aprender de outras maneiras ou que não era visto no curso. As matérias que estavam disponíveis durante a minha graduação em sua maioria não me interessavam, por focarem em outras áreas da atuação da psicologia, então tentava conseguir o conhecimento de outra maneira. Somente no final do curso encontrei uma professora que possuía um interesse similar ao meu, o que me auxiliou a direcionar melhor minhas buscas. Acabei realizando meu mestrado com essa professora, estudando assassinas seriais. Esse meu interesse seguiu firme até 2019, quando mudei de área.

(En)Cena: Como foi o seu primeiro contato com a Psicologia das Emergências e dos Desastres?

No final de 2018 e início de 2019 eu estava esperando o resultado de algumas seleções que tinha feito, e por causa disso estava atuando somente no consultório, com um número limitado de pacientes. Era dessa maneira que me encontrava quando, em 25 de janeiro, ocorreu o rompimento da barragem B1, em Córrego do Feijão, na cidade de Brumadinho. Nesse momento fui tomado por um senso de urgência para auxiliar de alguma maneira.  Em contato com uma psicóloga do município, ela pediu para que os psicólogos esperassem para ir, já que o cenário ainda era caótico e eles precisavam entender o ocorrido. Entrei em contato com várias instituições, me inscrevendo como voluntário, e no dia 28 eu fui para Brumadinho, para uma reunião pública com os moradores. Lá eu tive contato com uma representante do CRP, que me informou do trabalho que eles iriam realizar na cidade, e me voluntariei para auxiliar nesse trabalho. O CRP iria reunir voluntários para atuar em Parque da Cachoeira e Córrego do Feijão, dois bairros afetados pelo rompimento, a pedido da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social de Minas Gerais (SEDESE-MG). O trabalho consistia em fazer o acolhimento psicossocial e o levantamento das demandas urgentes da população. Montamos então equipes para irmos para Brumadinho diariamente, até que toda a população dos dois bairros fosse escutada. Esse trabalho durou até o dia 22 de fevereiro, mas continuei indo em Brumadinho semanalmente até o meio do ano, para reuniões do coletivo “Eu Luto, Brumadinho Vive”. A partir da experiência em Brumadinho eu me vinculei à Cruz Vermelha, e a Comissão Orientativa de Psicologia das Emergências e Desastres do CRP/MG, e no início da pandemia me vinculei também à Fiocruz. Mantenho os 3 vínculos até hoje, atuando nas mais diversas situações. 

Esse foi o meu primeiro contato, mas me recordo que já tentei atuar nessa área outras vezes. Tentei ser voluntário para atuar no terremoto do Haiti, mas não tinha os requisitos necessários, e quando ocorreu o rompimento da barragem de Fundão, eu estava realizando a escrita da minha dissertação, e meus prazos não permitiam que eu parasse tudo para me voluntariar. Então o desejo já existia, faltava a oportunidade para atuar.  

(En)Cena: Você acha que as matrizes curriculares dos cursos de Psicologia possuem uma lacuna referente à essa área?

Falar em lacunas é na verdade ter uma visão até muito otimista dos cursos. A realidade é que o assunto, quando abordado no curso, se resume, na melhor das hipóteses, em uma única disciplina optativa. E ao não tratarmos do tema na graduação, geramos um grande problema, que é de profissionais despreparados tendo que lidar com o desastre. Entendo perfeitamente que não são muitas as pessoas que querem atuar com desastres, mas às vezes não temos opção. Dou muitos treinamentos para profissionais de municípios que de uma hora pra outra tem que lidar com um desastre em sua porta. Então um psicólogo que atua em uma UBS de uma região que foi atingida por uma inundação, um psicólogo que trabalha no CRAS em um território onde ocorreu deslizamentos de terra e soterramentos de casa, ou mais recentemente, um psicólogo que trabalha em uma escola que sofreu um ataque, essas pessoas não têm o luxo de falar que não trabalham com desastres. Além disso, ao não abordar o tema, temos pessoas que, por não entender a complexidade de um desastre, acham que são capazes de atuar. Em Brumadinho eu me deparei com dezenas de psicólogos recém formados, que estavam lá como voluntários ou contratados por alguma empresa ou ONG. E não só encontrei esses psicólogos, como fiz o acolhimento deles, da mesma maneira que estava acolhendo os moradores. O trabalho em desastres já é muito difícil, ainda mais quando não se tem nem conhecimento nem experiência prática. Esses psicólogos foram para atender e acabaram sendo atendidos.

Felizmente existe uma percepção crescente de que o cuidado em saúde mental e atenção psicossocial em situações de emergências e desastres é fundamental não só para os atingidos de um desastre, como também para as equipes que atuam na linha de frente. Os desastres da última década, e principalmente a pandemia, escancararam essa necessidade. Tentamos conscientizar alunos, professores e coordenadores para a importância do conteúdo ser oferecido na graduação, mas para ser efetivo, teria que entrar na grade obrigatória dos cursos. Ainda temos muito o que fazer, mas é possível perceber os avanços

(En)Cena: Levando em consideração que essa área da Psicologia envolve lidar com o momento mais difícil e inesperado na vida de uma pessoa, de que maneira é possível acolher a dor do outro de forma respeitosa, sem absorvê-la?

A lógica do distanciamento emocional, que escutamos durante a graduação, também existe ao lidar em uma situação de desastres, mas os desafios são muito maiores para colocar isso em prática. Precisamos nos conectar com o sofrimento do outro, mas não podemos nos misturar com esse sofrimento. O primeiro passo para conseguir fazer isso é entender qual o seu papel dentro do fluxo de atendimentos, e do cuidado com aquela população. Para acolher a dor do outro de maneira respeitosa e eficiente, primeiro eu preciso encontrar esse lugar. Falo isso porque em todo desastre aparecem psicólogos avulsos, que querem ajudar, mas por desconhecimento acabam causando mais danos. Então se eu quero atuar em um desastre, primeiro eu preciso saber o que eu vou fazer, para quem eu vou fazer, porque eu vou fazer, como eu vou fazer e o que isso vai gerar. E essas perguntas não podem ter respostas genéricas, como “estou ali para atender as pessoas porque elas sofrem”, tem que ser algo mais estruturado. Se o profissional não está dentro do fluxo de atendimentos, ou da rede de resposta, as informações recebidas se perdem, e em vez de ajudar o risco é de retraumatização. Quando estava em Brumadinho via várias pessoas que estavam lá querendo atender a população, mas sem respostas reais para as perguntas que falei. E sem estarem em um fluxo, em vez da pessoa receber um atendimento, com sequência e encaminhamento quando for o caso, várias pessoas vão abordar aquela mesma pessoa, e cada vez vão fazer ela falar sobre o desastre, o que ela viveu e o que ela sentiu. Obrigar a pessoa a reviver a situação sem que exista um planejamento e um fluxo já definido é cruel. Em Brumadinho tiveram relatos de no mesmo dia 10 pessoas se apresentando em uma mesma casa falando que eram psicólogos e que estavam ali para escutar a pessoa. Então a primeira parte da questão, de como acolher a dor de uma forma respeitosa depende muito disso. Outro ponto que é importante, é entender que a pessoa tem o direito de recusar o atendimento, e ela tem o direito de tomar suas próprias decisões. 

Quando ao segundo ponto, de não absorver a dor, confesso que não é uma tarefa fácil. Nos primeiros dias que estava em Brumadinho, eu era tomado por uma sensação de que o desastre era grande demais, e que eu, como indivíduo, não fazia diferença no cenário. Essa foi uma sensação muito pesada, que me acompanhou até aproximadamente o meio da segunda semana. Nesse dia específico, eu fiz o atendimento de uma senhora, que tinha perdido 6 pessoas próximas com o rompimento da barragem. Foi um atendimento longo e pesado, mas ao final do atendimento, que durou cerca de 3h ou 3h30, essa senhora ao se preparar para levantar, olha para mim, faz uma piada e ri, o que me pegou completamente de surpresa. Com um acolhimento essa senhora saiu de um momento de sofrimento intenso para a leveza de uma brincadeira. Esse foi um momento mágico pra mim. Naquele momento entendi que o nosso papel, como psicólogos, em um cenário de desastre, não é consolar as pessoas, ou fazer com que elas parem de sofrer. Nosso papel é de fornecer um espaço onde esse sofrimento possa ser acolhido e trabalhado. Em um cenário macro, isso pode até não parecer muita coisa, mas para a pessoa que é atendida e acolhida, faz muita diferença. Essa percepção mudou a forma como eu estava atuando, e foi o que permitiu que eu continuasse nesse campo até os dias de hoje. Outro ponto que é importante é fazer parte de uma equipe que cuida de seus membros. Durante a ação, eu e mais outras duas psicólogas assumimos a função de coordenar o grupo, tanto na organização da ação como no campo. Todos os dias fazíamos briefing com os voluntários no trajeto até Córrego do Feijão (era uma viagem que demorava cerca de 40 minutos), faziamos o acolhimento dos próprios voluntários caso algum atendimento tivesse sido pesado demais, e no final do dia fazíamos o debriefing, para que cada um pudesse falar sobre o dia, sobre momentos bons e momentos ruins, caso desejasse. Também tínhamos uma preocupação com o descanso dos voluntários. Então a equipe do dia era organizada tentando evitar ao máximo que uma pessoa fosse pra campo 2 ou 3 dias seguidos. E por último é fundamental entender nossos próprios limites. Não somos heróis, não somos invencíveis, somos humanos, e é a nossa humanidade que nos permite ajudar o outro. 

   

(En)Cena: Considerando que, após certo período, pode-se surgir um trauma, como ocorre o acompanhamento de cada sujeito envolvido em uma situação de emergência?

Esse é o grande motivo para que qualquer atendimento realizado durante uma situação de desastre esteja dentro de um fluxo, de uma rede de cuidado. É comum em uma situação de desastre que equipes externas sejam necessárias para auxiliar na absorção da enorme demanda de atendimentos, assim como para auxiliar na organização de redes de cuidado. Uma equipe externa pode assumir três trabalhos distintos, sendo eles a absorção da demanda gerada pelo evento, com atendimento à população, atendimento dos profissionais que estão atuando na linha de frente, e capacitação e reorganização das equipes locais. O terceiro ponto é fundamental, porque os acompanhamentos a médio e longo prazo serão justamente absorvidos pela rede local. As equipes externas estão presentes na fase da resposta, que ocorre durante ou imediatamente após o desastre. Após a estabilização do cenário, geralmente essas equipes externas vão embora, e o cuidado volta a ser responsabilidade integral das equipes locais. Em um desastre, as equipes externas, quando atendem a população, têm a responsabilidade de avaliar os quadros apresentados pelas pessoas atendidas, e qualquer quadro que apresenta um sofrimento persistente deve ser encaminhado para o cuidado pela rede local.

(En)Cena: Primeiros Socorros Psicológicos se constituem como uma ferramenta que está associada às emergências e desastres… Qual a importância que você dá para os PSP e quais as principais diferenças entre a mesma e uma prática clínica padrão?

Para a atuação em desastres, os Primeiros Cuidados Psicológicos (outro nome para os Primeiros Socorros Psicológicos, que eu particularmente prefiro) é uma das grandes ferramentas que temos para tratarmos de saúde mental e atenção psicossocial. Utilizamos os PCP em todos os contatos que fazemos, entendendo que é somente a partir da escuta que vamos conseguir traçar uma estratégia eficiente. Se eu não escuto as pessoas atingidas, eu não consigo construir um cuidado eficiente. Nem todas as pessoas vão precisar de uma escuta longa, mas todas as pessoas precisam ser escutadas. Utilizamos os PCP dentro de uma estratégia maior, desenvolvida pelo IASC, onde vamos traçar estratégias para cuidar das necessidades básicas das pessoas, incluindo acesso aos serviços básicos e segurança, fortalecimento de vínculos comunitários e familiares, acolhimento dirigido e não especializado e acesso aos serviços especializados. Cabe ressaltar que existem técnicas diferentes de PCP, em geral elas são semelhantes. Eu particularmente gosto de usar a técnica da OMS junto com a da Johns Hopkins. Acho que elas se complementam.

Quanto a diferença dos PCP para uma prática clínica padrão, a única coisa que elas têm em comum é a escuta. Enquanto na prática clínica nós vamos escutando queixas e construindo vínculos com calma, seguindo o ritmo do paciente para que eles possam gradativamente nos apresentar seus sofrimentos e vivências traumáticas, em uma situação de desastre essa técnica não só não traz benefícios, como pode dificultar o processo de elaboração das pessoas atingidas. A técnica de PCP surge exatamente para ser utilizada nesses momentos. Nós já sabemos qual é a vivência que causa sofrimento, ela não precisa ser descoberta gradativamente, e a nossa função ali é de estabilização do estresse agudo que está presente. Com os PCP nós temos uma abordagem muito mais prática e com objetivo definido, que inclui questões práticas. A primeira coisa que tentamos descobrir é se a pessoa possui alguma necessidade naquele momento, incluindo necessidades básicas, como água, alimento, abrigo, informações sobre parentes e mesmo necessidade de um atendimento médico. Esse tipo de demanda praticamente não aparece em um consultório. O atendimento de PCP só termina quando percebemos uma estabilização, então não temos tempo definido para o atendimento, nem ele ocorre em um consultório, ou algum lugar com setting terapêutico. Já fiz atendimentos com PCP em garagens, em praças, no meio da rua. O atendimento é onde a crise se manifestou.  Outra diferença é que um acolhimento utilizando os PCP precisa ser fechado. Em um processo terapêutico, muitas vezes deixamos assuntos para serem discutidos em outro atendimento, nos PCP isso não é possível. Como não sabemos se teremos oportunidade de encontrar novamente a pessoa, todo tópico abordado precisa ter um encaminhamento, um fechamento. Pode ocorrer mais de um atendimento, mas cada atendimento tem seu fechamento independente da possibilidade de novos atendimentos. 

De maneira geral, essas são as diferenças mais marcantes entre os dois processos. 

(En)Cena: Referente à ferramenta de Primeiros Socorros Psicológicos, você acredita que existe um despreparo generalizado entre os Psicólogos? 

Assim como a pergunta das lacunas, falar em despreparo é até ter uma visão otimista. Uma parcela bastante significativa dos psicólogos não sabe nem que existem ferramentas diferentes para o trabalho com desastres, e acreditam que o conhecimento que tem sobre a psicologia clínica basta para realizar o cuidado. Então temos um despreparo, um desconhecimento completo da atuação e não raro um sentimento arrogante de imunidade frente ao sofrimento. Vi isso em outros cenários, mas nenhum foi tão forte como Brumadinho. Essa atitude me chocou tanto que se tornou até parte das minhas palestras. 

Listei as seguintes características quando montei minha primeira apresentação sobre o tema, em março de 2019: 

  • Equipes completamente despreparadas
  • Inexistência de diretrizes ou protocolos
  • Invasão das comunidades
  • Atuações solitárias
  • Atendimentos fora do fluxo
  • Ações feitas no improviso
  • Vaidade e autopromoção

(En)Cena: Para os PCP serem aplicados, é preciso que haja uma situação emergente de grande magnitude ou abrange de fato a intensidade da dor vivenciada por um indivíduo em específico?

Os PCP podem ser aplicados em qualquer situação que exista um sofrimento disfuncional para a pessoa. Não importa o tamanho do evento específico, o que importa é o tamanho que ele tem pra pessoa. Já usei PCP no consultório para lidar com crise de ansiedade, por exemplo. Ele não substitui a terapia tradicional, mas elas podem se complementar, justamente por atuarem em momentos diferentes. 

(En)Cena: O que você diria para os estudantes que não conhecem muito sobre o contexto da Psicologia das Emergências e dos Desastres ou os PSP? De que forma é possível se aprofundar no assunto?

São duas as mensagens que sempre deixo para os estudantes. A primeira é que é necessário algum conhecimento sobre a PED, justamente porque em determinadas situações, nós não escolhemos atuar, o desastre chega até nós. A segunda é que tão importante quanto o conhecimento teórico é o conhecimento de seus próprios limites, e de práticas de autocuidado. O profissional de psicologia é tão humano quanto qualquer um. Nós temos limites e eles variam diariamente, então temos que ter essa consciência, de saber quando atuar e quando se recolher. Mesmo tendo experiência e conhecimento, em determinadas situações eu não estou apto a atuar, seja porque estou doente, porque tenho alguma questão pessoal me afetando significativamente ou aquele público ou situação me gera sofrimento ao ponto que não consigo atuar. Esses limites precisam ser conhecidos.

Quanto à forma de se aprofundar no assunto, existem milhares de palestras, vídeos e materiais que auxiliam, assim como existem milhares que confundem, então vou deixar aqui alguns materiais. 

O CRP possui uma Referência Técnica para atuação de psicólogas (os) na Gestão Integral de Riscos, Emergências e Desastres que é o primeiro passo para se conhecer o assunto https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2021/10/Crepop-RT-Emerge%CC%82ncias-e-Desastres-web_v2.pdf 

O IASC possui um material rico, que inclusive é referência para a construção de estratégias de cuidado no mundo todo https://interagencystandingcommittee.org/system/files/iasc_mhpss_guidelines_portuguese.pdf

A OMS possui um ótimo material sobre PCP https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/7676/9788579670947_por.pdf?sequence=1&isAllowed=y

A Fiocruz possui uma quantidade considerável de materiais sobre Saúde Mental e Atenção Psicossocial, que foi produzido na pandemia. Vou enviar a página do NUSMAPS que lá tem muita coisa, inclusive um drive com vários artigos, manuais e protocolos de atendimento https://www.fiocruzbrasilia.fiocruz.br/programas-projetos/nusmaps/

Temos também uma infinidade de vídeos, que estão na página do youtube da Fiocruz Brasília. Alguns deles estão listados na página do NUSMAPS, mas tem todas as aulas dos dois cursos que produzimos que estão disponíveis, assim como os vídeos curtos que produzimos para as chuvas da Bahia e Petrópolis, em 2022.

https://www.youtube.com/watch?v=NTO0Jgc68dQ&list=PLPyO8qVoPmBRLyv_GOq4GEiK3iCWyWW5W

https://www.youtube.com/watch?v=zwsLK_lW-8k&list=PLPyO8qVoPmBSV9Tmxyj615z2JxVL_5kRZ

https://www.youtube.com/watch?v=AmISB7zTBrs&list=PLPyO8qVoPmBQsz3EQk8OasOFzNfgNqb89

https://www.youtube.com/watch?v=nDvWjdZbgWA&list=PLPyO8qVoPmBSpnPQFXjSaXbr_CrFh3oq_

Também temos uma série de palestras e lives da Débora Noal e Ionara Rabelo, duas grandes referências na área.

E por último temos as plataformas de cursos da Cruz Vermelha e OMS 

https://ifrc.csod.com/client/ifrc/default.aspx?ReturnUrl=https%3a%2f%2fifrc.csod.com%2fphnx%2fdriver.aspx%3froutename%3dSocial%2fUniversalProfile%2fTranscript%26TargetUser%3d438759

https://openwho.org/

Também é possível procurar as instituições que atuam com crises humanitárias e começar um trabalho voluntário, ou mesmo se candidatar para uma vaga de emprego, ou pelo menos seguir nas redes sociais para saber mais sobre o trabalho e ser informado de cursos e eventos. Acho que com esse conteúdo já dá pra começar a entender melhor a área. 

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Etarismo: discussões sobre a vivência acerca do preconceito etário

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Etarismo, o preconceito contra a idade, é um assunto que está sendo destacado nos tempos atuais, mas infelizmente é uma realidade que se faz presente há muito tempo em nossa sociedade. 

O (En)cena tem o prazer de entrevistar a mestre Erna Augusta Denzin, para falar um pouco da sua perspectiva em relação ao etarismo e se o mesmo já afetou sua vida de alguma forma. 

Quem é Erna Augusta Denzin?

Erna tem um vasto currículo, possui Mestrado em Desenvolvimento Regional e Agronegócio pela Universidade Federal do Tocantins (2010), Especialização em Formação de Professores para Ensino Superior pelo CEULP/ULBRA (2006) e Graduação em Administração também pelo Centro Universitário Luterano de Palmas – CEULP/ULBRA (2004). É professora em cursos de graduação e especializações lato sensu ministrando disciplinas da área de formação. Exerceu o cargo de coordenadora do Curso de Administração da Faculdade Serra do Carmo no período de 2007/2008 e coordenou a Comissão Própria de Avaliação por dois anos na Faculdade Católica do Tocantins (2009/2010). Atualmente, é professora efetiva no Instituto Federal de educação Ciência e Tecnologia do Tocantins (IFTO), onde exerceu a função de Coordenadora de Cursos Superiores (2011 a 2013), de Diretora de Pós Graduação junto à Pró Reitoria de Pesquisa e Inovação (2014 a 2016) e Assessora de Empreendedorismo junto ao Núcleo de Inovação Tecnológica (NIT) (2012 a 2016). Atualmente exerce a função de Diretora do Núcleo de Inovação Tecnológica – NIT, além de ter desenvolvido projetos de pesquisa e extensão junto a setores produtivos da região. No ano de 2016 participou do Programa Vocational Education Training III – Professores para o Futuro – Finlândia, sendo bolsista SETEC/MEC e CNPq. Tem experiência na área de Administração, com ênfase em Gestão Empresarial e Ciência, Tecnologia e Inovação, atuando principalmente nos seguintes temas: inovação tecnológica, educação, administração, assessorias em implantação de sistemas de gestão da qualidade e gestão empresarial.

Em relação ao que iremos falar, é importante conceitualizar o que é o etarismo. Palmore (1999) diz que, o etarismo caracteriza-se como o preconceito ou estereotipização de grupos ou indivíduos em relação a idade. A negação de oportunidades de trabalho e emprego é algo comum dentro do etarismo, assim como a marginalização e exclusão social de pessoas mais velhas dentro de vários contextos, bem como a educação, ciclos sociais e outros. 

(En)Cena: Então, para começarmos, poderia nos dizer quem é Erna?

Erna: A Erna é uma jovem senhora de 57 anos, alegre, de bem com a vida, feliz com a vida que tem e com a profissão que escolheu. Procura viver intensamente cada momento de sua vida. Mas também é doce, é calmaria, é paz, é porto seguro para quem faz parte de seu círculo íntimo…. Creio que essa é a Erna (risos)

(En)Cena: Atualmente você é uma mulher com uma vida bastante agitada, como é isso para você? Sempre foi assim?

Erna: Sim….minha vida com a graça de Deus é bastante agitada. Pra mim é como me sinto viva! Tenho prazer em fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Me sinto orgulhosa de mim por poder ser assim, às vezes tento dar uma reduzida nas atividades, mas não consigo…(risos). Gosto de ser assim. Sobre ser sempre assim, desde que me conheço por gente sempre fui assim. Sempre envolvida em muitas coisas de trabalho, da igreja, na família…..não me lembro de um dia ter tido uma vida tranquila – (risos)

(En)Cena: E como as pessoas ao seu redor vêem essa movimentação? 

Erna: Meus irmãos não se assustam. A vida deles é meio como a minha… Creio que para meus filhos era problema quando eles eram mais jovens, mas nunca chegaram a expressar verbalmente. Atualmente minha filha principalmente, diz que eu poderia reduzir minhas atividades que eu já estou merecendo ter uma vida mais tranquila. Meus amigos dizem que eu faço muita coisa, mas como eles são assim também acabam perdendo a força para argumentar (risos). Então, como você pode perceber, sou rodeada de pessoas que são como eu. Por isso nos damos bem (risos).

(En)Cena: As pessoas com quem você convive te apoiam? 

Erna: Com certeza me apoiam. Até me incentivam. Porque todas elas sabem que isso me faz bem. Quem convive comigo sabe que se eu parar vou ter problemas sérios tanto de saúde emocional quanto física.

(En)Cena: Erna, você tem conhecimento do termo “etarismo”? 

Erna: Sim. sim….conheço o termo. Discriminação pela idade.

(En)Cena: E você já vivenciou isso de alguma forma?

Erna: Profissionalmente não. Muito pelo contrário. Nunca alguém fez qualquer tipo de insinuação pela minha idade. Sempre fui e ainda sou respeitada como profissional e até elogiada por ser como sou na idade que tenho. Nas relações de amizade também nunca tive problemas por causa da minha idade. Aliás, a maioria dos meus amigos são bem mais jovens que eu e isso não afeta em nada nosso relacionamento. 

Talvez isso tenha apresentado algum problema em relacionamentos amorosos depois da separação. Uma mulher com a minha vida e com a minha idade, em minha opinião (friso isso porque muitos não concordam – risos) já não tem mais as mesmas chances (por assim dizer) que as mulheres mais jovens. Em minha opinião, homens da minha idade preferem mulheres mais jovens e homens mais jovens também porque sentem necessidade de coisas que já não são mais prioridade para mim. Isso pode trazer alguns conflitos.

(En)Cena: Para você, como o mercado de trabalho enxerga pessoas da sua idade? 

Erna: Em minha opinião o mercado vê as pessoas  da minha idade com ressalvas. Eu sou da geração Baby Boomer (nasci em 1965). O mundo do trabalho mudou radicalmente nos últimos 50 anos. Minha geração teve que se adaptar a muitas mudanças e teve que aprender a ser resiliente. Entretanto, é nítido e claro que os profissionais mais jovens estão muito mais antenados com a tecnologia que os da minha idade. Por outro lado os da minha idade tem muito mais responsabilidade e compromisso que os jovens. Vejo que o mercado prefere os recém formados os mais jovens, deixando os mais velhos como mentores ou consultores. Além do que um profissional recém formado é muito mais barato para as empresas que alguém que já tem anos de mercado. Dessa forma, se alguém perder o emprego com a minha idade terá muito mais dificuldade em encontrar uma nova vaga.

(En)Cena: Essa visão preconceituosa e reducionista que uma parte da sociedade tem, em relação a idade, você sente que é como se as pessoas tivessem um prazo de validade?

Erna: Na verdade não sinto como prazo de validade, mas como algo que pode ser descartado mesmo sem estar vencido (risos). Porque o mercado não leva muito em conta a experiência, a maturidade. Aliás, o imaginário das pessoas vê idosos como velhinhos, com bengala, cabelos brancos, brincando com netinhos….o fato é que a realidade é bem diferente. E cada vez mais os jovens terão que aprender a conviver com idosos produtivos concorrendo com eles com muito mais experiência e bagagem de vida. E ninguém gosta de concorrência….(é  isso que eu penso).

(En)Cena: Para você, o etarismo é um assunto atual? Ou a pauta sobre o preconceito contra a idade sempre esteve presente na sociedade?

Erna: Em minha opinião sempre esteve presente. Nos tempos modernos temos a internet e tudo se torna mais visível basicamente em tempo real. Isso facilita a disseminação das ideias. Mas ela sempre existiu. Pessoas mais velhas sempre foram tidas como “estorvo”, seja na família, seja no mercado de trabalho. Antes era mais difícil se tornar visível. Hoje, com a tecnologia esse assunto, assim como muitos outros, são tornados públicos com muito mais facilidade.

(En)Cena: Você como professora, acha importante esse assunto ser integrado no mundo acadêmico?

Erna: Com certeza. É importante ressaltar que a idade não tem deixado as pessoas menos produtivas. As muitas tecnologias disponíveis permitem que pessoas mais velhas ainda tenham vigor físico para trabalhar. Isso aliado à experiência da maturidade torna as pessoas com competências para atuar em todos os setores. Dessa forma, isso precisa ser tratado com naturalidade, para quebrarmos esse preconceito. E isso só se faz com discussões na sociedade e educação.

(En)Cena: A idade é algo que te intimida? 

Erna: Jamais!!!!!!! (risos) A idade me fez mais forte, mais atraente, mais segura de mim e com um conhecimento acumulado que me permite fazer conexões cerebrais que os jovens ainda gastarão muito tempo para ter (risos). Tenho muito mais vontade de viver pois sei que tenho menos tempo de vida do que já vivi. Mas essa consciência serve para me fazer útil e me dar ânimo e não o contrário.

(En)Cena: E existe alguma idade para parar?

Erna: Na minha opinião não existe idade para parar. Até porque “parar” mesmo só quando a gente morre. A gente muda de atividade. Deixa uma para fazer outra……nada de para.

REFERÊNCIA:

PALMORE, Erdman Ageism. Negativo e Positivo. 2ed. Springer Publishing Company. New York. 1999.

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Uma manhã de aprendizado no CAPS II

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Fonte: arquivo pessoal

No dia 13 de maio de 2022, vivenciei uma experiência incrível, ao lado de alguns colegas da turma de Estágio Básico em Psicopatologia, matéria ministrada pela professora Ariana Campana Rodrigues, no curso de graduação em Psicologia do CEULP/ULBRA. Conhecemos a equipe de profissionais residentes em Saúde Mental do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS II) e os profissionais responsáveis e atuantes no local. Foi uma manhã de bastante aprendizado: entendendo sobre o funcionamento da unidade e seus desafios diários.

De acordo com a PORTARIA Nº 336, DE 19 DE FEVEREIRO DE 2002 um CAPS II deve conter: 1 médico psiquiatra, 1 enfermeiro com formação em Saúde Mental, 4 profissionais de nível superior de outras categorias profissionais: psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional, pedagogo, professor de educação física ou outro profissional necessário ao projeto terapêutico, 6 profissionais de nível médio: técnico e/ou auxiliar de enfermagem, técnico administrativo, técnico educacional e artesão. 

Mas, de acordo com os relatos, essa realidade ideal de profissionais é um pouco reduzida no município de Palmas-TO, sendo possível contar nos dedos quantos funcionários de fato são atuantes. Junto a isso, muitos dos residentes também atuam em outras unidades além do CAPS. Tivemos a oportunidade de estar com residentes formados em farmácia, enfermagem, educação física, psicologia e terapia ocupacional. 

De acordo com o Ministério da Saúde (2015), os CAPS são pontos de atenção estratégicos da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS): serviços de saúde de caráter aberto e comunitário constituídos por equipes multiprofissionais, atuantes sob a ótica interdisciplinar, que realizam prioritariamente atendimento às pessoas com sofrimento ou transtorno mental, incluindo aquelas com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, seja em situações de crise ou nos processos de reabilitação psicossocial. Cada um em sua área territorial e diferentes modalidades (BRASIL, 2011). Esse modelo veio para combater a forma asilar antiga.

Falar de CAPS, também é ressaltar a importância da Reforma Psiquiátrica e a suas conquistas. Em 2001 foi sancionada a lei Paulo Delgado, a Lei Federal 10.216, que redireciona a assistência em Saúde Mental e privilegia o oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária, ao mesmo tempo que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais. Mas infelizmente não institui mecanismos claros para a progressiva extinção dos manicômios. Logo a luta contra um modelo antimanicomial ainda é bastante atual. A data que marca as comemorações da luta é 18 de maio. Nessa luta está o combate à ideia de que se deve isolar a pessoa com sofrimento mental em nome de supostos tratamentos.

O CAPS II, propositalmente, é um local que tem a aparência de casa, para que a pessoa que frequenta o serviço se sinta confortável, criando vínculos mais fortes e melhor adesão ao tratamento. Fiquei maravilhada com a estrutura e a sensação de acolhimento presente ali. O espaço externo amplo e arborizado foi o maior responsável por essa sensação.

Os estagiários nos contaram também como é feita a adesão de uma pessoa ao serviço. Qualquer pessoa que tenha interesse pode ir por vontade própria, sendo encaminhada para um momento de acolhimento com os residentes ou outros membros da equipe. São então identificadas as demandas, feito o direcionamento das pessoas, que podem permanecer ou ser indicadas para  outros lugares. Os residentes destacaram que esse processo de escolha é feito de forma multidisciplinar, e que nada ali é pensado de forma individual. Se a pessoa tem o ‘’perfil’’ para o serviço, é então pensado para ela um Projeto Terapêutico Singular, em que práticas multidisciplinares são acionadas, pensados de acordo com a subjetividade de cada indivíduo e suas demandas.

De acordo com a Portaria/ SAS/MS n.º 341 de 22 de agosto de 2001, dentro de sua área assistencial, um CAPS II deve funcionar no período de 08 às 18 horas, em 02 (dois) turnos, durante os cinco dias úteis da semana. A assistência prestada ao paciente no CAPS inclui as seguintes atividades:

a — atendimento individual (medicamentoso, psicoterápico, de orientação, entre outros);

b — atendimento em grupos (psicoterapia, grupo operativo, atividades de suporte social, entre outras);

c — atendimento em oficinas terapêuticas executadas por profissional de nível superior ou nível médio;

d — visitas domiciliares;

e — atendimento à família;

f — atividades comunitárias enfocando a integração do paciente na comunidade e sua inserção familiar e social;

g — os pacientes assistidos em um turno (04 horas) receberão uma refeição diária, os assistidos em dois turnos (08 horas) receberão duas refeições diárias.

Quanto ao funcionamento dos grupos, os residentes manifestaram a imensa vontade de retorno pois, durante a pandemia, os grupos foram suspensos. Eles nos contaram com entusiasmo que existem projetos em andamento, mas que o período pandêmico trouxe dificuldades, resultando em algumas mudanças no funcionamento das atividades. Apontam que aos poucos estão se reestruturando. A necessidade de servir refeições é uma dessas dificuldades, pois no momento elas não estão sendo servidas Logo, até o presente momento deste relato, os grupos não estão funcionando. Os profissionais tentam suprir algumas demandas de forma individual,  ficando impossibilitados de exercer outras.

Os grupos, nas modalidades de “psicoterapia, grupo operativo, atividade de suporte social, entre outras” (Brasil, 2004, p. 32), são preconizados como atividades terapêuticas nos CAPS, constituindo mais um mecanismo de “cuidado que visa à autonomia e corresponsabilização do sujeito em seu tratamento, atribuindo-lhe poder de contratualidade em seu processo de reabilitação psicossocial” (Firmo & Jorge, 2015, p. 219). Por isso seria muito importante que a realização dos grupos fosse retomada. 

Outro ponto relatado nas nossas conversas foi sobre a saúde mental dos residentes e como eles conseguem conciliar a rotina intensa da residência com sua vida pessoal e os momentos de lazer e prazer. Muitos relataram a dificuldade dessa separação no começo, mas que hoje conseguem “desligar’’ dos assuntos e dos acontecimentos quando chegam em casa. Outros relataram sobre a importância dos momentos de lazer com a família e a psicoterapia. Juntos também fazem reuniões, que antes eram mais frequentes, para que possam relaxar e ter momentos de lazer.

Sobre a saúde mental de residentes em áreas profissionais da saúde, as publicações de estudo são escassas. Carvalho, Melo-Filho, Carvalho e Amorim (2013) investigaram 178 estudantes e observaram a elevada prevalência de transtornos mentais comuns (TMC) na população estudada (51,1;.j%), com maior incidência entre médicos do que entre não médicos, indicando necessidade de estratégias para melhorar a qualidade de vida dos residentes.

Apesar de todos os desafios, as rotinas intensas de estudos, a carga horária de 60h semanais, aulas que acontecem a cada 15 dias, os residentes evidenciaram sua paixão por trabalhar com a Saúde Mental, nos incentivando bastante a investir nos estudos para a residência e a viver essa experiência, dita como única. Falaram um pouco como é o funcionamento do edital de seleção, que a residência tem a duração de 2 anos e sobre como o conhecimento adquirido é de extrema importância para o currículo profissional.

Conversamos um pouco sobre as mudanças que vêm ocorrendo por conta da situação da extinção e posterior retomada da FESP (Fundação Escola de Saúde Pública) no município de Palmas . A Fundação, criada por meio de lei municipal em 2013, tem por missão promover atividades de pesquisa, extensão e inovação para os trabalhadores do SUS e para a comunidade, atuando na formação e educação permanentes (Conselho Regional de Biologia, 2022). Infelizmente, com sua extinção temporária, houve um enorme retrocesso, pois ela se incorporou temporariamente com a Secretaria Municipal de Saúde,  o que trouxe a preocupação de que certas ações  deixassem de ser priorizadas ou até mesmo descontinuadas.

Como percebido ao longo desse relato, os aprendizados em apenas uma manhã foram muitos, trazendo o nosso olhar a outros campos de atuação, além do âmbito clínico tradicional, nos permitindo compreender a importância de tal serviço para a população. Minha percepção é que, mesmo sendo um serviço de imensurável valor, o CAPS ainda é desvalorizado e por vezes negligenciado, o que nos faz  refletir, como futuros profissionais, o quanto precisamos, sim, exercer nosso dever ético de propagar os ideais da Reforma Psiquiátrica. 

Referências:

BRASIL. Ministério da Saúde. Lei n° 10.216. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm. Acessado em 21/05/2022. 

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n° 336. Brasília, 2002. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2002/prt0336_19_02_2002.html. Acessado em 21/05/2022.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada e Temática. Centros de Atenção Psicossocial e Unidades de Acolhimento como lugares da atenção psicossocial nos territórios: orientações para elaboração de projetos de construção, reforma e ampliação de CAPS e de UA / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Especializada e Temática. Brasília: Ministério da Saúde, 2015.

Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Reforma Psiquiátrica e política de Saúde Mental no Brasil. Documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. OPAS. Brasília, novembro de 2005. Disponível em:  https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Relatorio15_anos_Caracas.pdf. Acessado em 21/05/2022.

CAHU, R. A. G. et al. Estresse e qualidade de vida em residência multiprofissional em saúde. Rev. bras. ter. cogn., Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, p. 76-83, dez. 2014.   Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-56872014000200003&lng=pt&nrm=iso. Acessado em 21/05/2022.   

CRbio-04. Posicionamento do CRBio-04 sobre a extinção da FESP de Palmas. 7 de abril de 2022. Disponível em https://crbio04.gov.br/noticias/posicionamento-do-crbio-04-sobre-a-extincao-da-fesp-de-palmas/#. Acessado em 21/05/2022. 

DELGADO, Pedro Gabriel. “Reforma psiquiátrica: conquistas e desafios”. Rev. Epos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, dez. 2013.   Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2178-700X2013000200009&lng=pt&nrm=iso. Acessado em 21/05/2022. 

NASCIMENTO, T. M.; GALINDO, W.C.M. Grupo Operativo em Centros de Atenção Psicossocial na opinião de psicólogas. Pesqui. prát. psicossociais, São João del-Rei, v. 12, n. 2, p. 422-438, ago. 2017.   Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-89082017000200013&lng=pt&nrm=iso. Acessado em 21/05/2022. 

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Uma experiência marcante numa comunidade Xerente

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No dia 11 de maio ocorreu uma visita a tribo indígena Xerente, localizada na cidade de Tocantínia na região central do Tocantins, pelos alunos do Estágio Básico I, e o grupo do programa de extensão do site (EN)cena Saúde Mental em Movimento. Os respectivos alunos da instituição de ensino CEULP/ULBRA tiveram anteriormente uma aula para entenderem teoricamente a forma de organização desse povo, e suas visões de mundo como seres culturais.

As ideias apresentadas foram ministradas pelo psicólogo Dr. Rogério Marquezan, baseando-se na sua pesquisa de campo que abarca profundamente a estrutura Xerente, que se agrupa por ter o mesmo tronco linguístico Macro-jê, subdividindo-se em diferentes clãs em uma mesma tribo, sendo este, um mapeamento extenso e bastante complexo, entretanto, visto de forma simplista para nossa compreensão prévia, com objetivo primordial de quebrar estigmas relacionados à visão eurocêntrica sobre os indígenas, conjuntamente ao entendimento de que nossa profissão ainda não se encontra sendo valorizada, pois ainda se restringe a ideia biológica dentro da equipe multidisciplinar com foco em promover saúde dentro das tribos.

Entretanto, o “auxílio” da psicologia nesse âmbito multiprofissional é garantir que os costumes da aldeia não sejam alterados pela tentativa falha de promoção da saúde física, pois por vezes o profissional não se inteira ou não tem molejo para lidar com culturas que irão interferir diretamente no modo de atuação, afinal a forma de entendimento de gravidade, necessidade, e saúde são diferenciadas, e são influenciados pela sua religiosidade e costumes.

Fonte: Arquivo Pessoal

 

No ambiente indígena o psicólogo acaba se “infiltrando”, tornando-se necessário nesse espaço, uma ferramenta cujo papel é ajudar a promover o que necessita ser feito para promover saúde, com a sensibilidade de se misturar, compreendendo de forma ampla o contexto da tribo. Só assim é possível encontrar maneiras de ter acesso a essas pessoas, em busca de adesão, diálogo e acordos. O grande ponto é que, enquanto os profissionais estiverem com o posicionamento de detentores do saber, e impondo a esses o que aprenderam na academia, não estarão preparados para atuar com pessoas, muito menos com pessoas com culturas divergentes.

As relações de poder interferem todos os contextos, como psicólogos em formação fomos esclarecidos sobre a necessidade de saber nosso local de fala, compreendendo os fatores históricos dos motivos dessa população se encontrarem hoje, em maior parte, nas regiões do norte, sendo essencialmente pela peregrinação que ocorreu com o passar do tempo, por suas sobrevivências, pelas suas vidas; grande parte já havia sido dizimada ou pelas doenças que o branco trouxe, ou em decorrência da ideia eurocêntrica, sobre a necessidade civilizatória e impositiva do “ideal”.

O descaso que essa população vive não vem de agora, foram empurrados aos cantos do Brasil no entendimento que seriam extintos assim como os animais, enquanto a exploração de recursos reinava, e ainda reina. O psicólogo tem um papel extremamente importante de manter a integridade dessas pessoas, se comprometendo para que todos tenham acesso a saúde, mas que para isso, sua cultura não seja corrompida mais uma vez por  nós, brancos, a mercê do que é o “certo”; temos que ocupar espaços a fim de garantir que o respeito seja antemão das atuações.

Fonte: Arquivo Pessoal

A visita

Às 07 horas da manhã, os alunos da Ulbra saíram de Palmas e pegaram estrada em direção Tocantínia. Eu nunca tive contato com tribos anteriormente, foi minha primeira experiência nesse espaço, mas que me despertou muita curiosidade e admiração. Estavam todos reunidos quando chegamos, pois sabiam sobre nossa visita, o Cacique da tribo se apresentou e nos falou que também era professor, nos deixou claro que estavam abertos para encontros como aquele, que era focado aos estudos e pesquisas.

Os traços marcantes da tribo, a cor, os cabelos, suas características tão próximas eram evidentes. Após as breves apresentações do Dr. Rogério que já era conhecido e batizado pela tribo, tivemos de sair, nos dispersamos para outros ambientes pois eles estavam em reunião, conversando sobre alguma divergência entre os clãs. Durante esse espaço de tempo olhamos o ambiente, algumas casas eram feitas de madeira, outras de barro, outras de tijolo, havia um espaço livre com um campo de futebol, pois é costume que aconteça jogos ali.

As crianças estavam correndo e sempre brincando, ou nos observando; é cultural que elas saibam primeiramente a língua Macro-jê, e depois, aprendam o português. Não conversavam diretamente conosco por conta disso, mas muitos brincaram e interagiram com os alunos.

Fonte: Arquivo Pessoal

Conversamos diretamente com Maria Helena que cantou para nós música para o dia das mães na língua vigente da tribo (acompanhada do instrumento maracá de coité), falou um pouco de suas vivências, nos mostrou sua visão sobre nossa presença, que vê como importante os estudos de seu povo, para que sua cultura seja preservada, conhecida e respeitada pelos outros. Ela é uma mulher indígena que teve de passar por diversas dificuldades para conseguir se graduar, barreiras essas que foram superadas, também com ajuda da Funai, que segundo ela possibilitou que tivesse realizado seus desejos.

Pudemos nos banhar no mesmo rio em que eles tomam banho, foi um dia de aproximação, que me trouxe também muitas inquietações e medos, pois conhecendo a dívida histórica que temos, era delicado ter no braço a marca de um clã de uma tribo, assim como registrar esse momento, ou pagar pelos artesanatos, pois essa troca é algo extremamente arraigado que ultrapassou os tempos na época da colonização.

Além disso, ter de ver a realidade, de que eles precisam vender artesanatos, abrir suas portas, porque suas vozes por si só não são respeitadas, e o solo apenas não os sustentam é algo que me traz muito incômodo, eles estão presos na sociedade capitalista mesmo não tendo optado por isso. A troca é uma forma de sobreviver ao contexto, assim como fizeram por toda a história. A terra que eles têm por direito, é a forma mais concreta de ter autonomia, de ter poder sobre suas escolhas; quanto mais se afastam de seu terreno, mais estariam fadados a ter que ceder a uma cultura que não os compete. Não ter respeito em todos os âmbitos é uma das marcas sociais da visão branca, etnocêntrica.

Fonte: Arquivo Pessoal

A vivência me despertou sobre qual seria o papel do psicólogo, como seria a inserção assídua e com visibilidade e respeito ao nosso trabalho de mediação na atuação multi. E o mais importante, como chegaríamos a ir além das relações biológicas e medicamentosas e trabalhar com a ideias do âmbito psicológico nesse contexto? São questões que evidentemente não há respostas breves, pois cada tribo é um mundo, é um contexto único, e nos traz à tona a necessidade de sempre estarmos completamente ligados na desconstrução muito mais que na construção, pois poderíamos cair sobre a errônea ideia do “branco salvador”, ou conhecedor. Para conseguir evoluir e obter resoluções, teríamos de nos desprender de nossos óculos, e assumir que nossa ciência é útil, entretanto não é a única resposta para soluções.

Pude me visualizar nessa atuação, com certeza poder experimentar das fontes me traz a oportunidade e ampliação do meu futuro profissional, além de viabilizar esse ser humano em construção com menos achismos e preconceitos, afinal, estou inserida em um mundo assim, e é importante que eu tome consciência destes fatos, vislumbrando realidades divergentes, e percebendo minha pequenez diante de tantas formas de se viver.

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Saúde (En)Cena’s

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As mídias digitais aproximam cada vez mais seus usuários numa relação de troca, de cumplicidade. No campo da saúde não é diferente, experiências são compartilhadas num ir e vir de subjetividades que encantam por meio de imagens, gestos, sons e palavras.

Neste contexto, os videoblogs ganharam espaço de destaque nas redes, com conteúdos de curta duração que visam informar seus espectadores por meio de uma linguagem leve e acessível que alcança grandes públicos.

O Portal (En)Cena não ficou de fora desse movimento, e logo seguiu este modelo de disseminação da informação. Durante a IV Mostra de Experiências em Atenção Básica – Saúde da Família, a equipe produziu diversos vídeos com relatos de práticas e expectativas dos participantes do evento, narrando sobre suas vivencias explicitadas na amostra. O ensaio contempla o resultado dessa ação.

 

 

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