Aladim, os jogos de poder e o processo de iniciação da Alma

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Ao libertar o gênio, Aladim percebe que o Self e o sagrado não mais estão à disposição do ego, mas está disponível para o coletivo, para algo maior que se expande para o mundo.

Aladim é um filme de 2019, adaptado do desenho animado Aladdin, de 1992, e baseado no conto árabe As Mil e Uma Noites, de Antoine Galland. O conto Aladim na verdade só se uniu as Mil e uma noites a partir do século XVIII, anteriormente ele não fazia parte da narrativa do livro.

No conto o jovem Aladim é descrito como um adolescente que se recusa a aprender o ofício do pai, que é alfaiate, sendo descrito por sua mãe como imaturo, “esquecido que não é mais criança”. O nome Aladim pode significar em árabe a “nobreza da fé”. Ou ser advindo da mistura de Alá e Djin (gênio ou daimon).

Djin ou Jinn, significa gênio na religião muçulmana, e era uma entidade sobrenatural do mundo intermediário entre o divino e humano. Estava além do bem e do mal, e rege o destino de alguém ou de um lugar.

Ele é um espírito guardião designado para cada pessoa ao nascer. Portanto, o gênio é concebido como um ente espiritual ou imaterial, muito próximo do ser humano, e que sobre ele exerce uma forte, cotidiana e decisiva influência. Sendo ele o responsável pelo cumprimento do destino de cada ser humano. Ou seja, Aladim é o herói que liberta o espírito divino preso na lamparina. Libertar o gênio não é um processo fácil, é o processo da individuação que exige disciplina e coragem.

Fonte: encurtador.com.br/fgwO7

No filme Aladim é um órfão pobre e ladrão, que vive em Agrabah. Ele é chamado de “rato de rua” e seu amigo é um macaco que o acompanha em suas aventuras. Mas antes de adentrar a história mesmo, é importante comentarmos sobre um simbolismo muito importante: o da lâmpada mágica.

A lâmpada é uma figura presente em contos e lendas. Ela é um instrumento de iluminação associada ao ser humano, que contém em si o fogo do interno. Como lamparina ou lâmpada é transitória e o fogo dessa iluminação pode se extinguir, sendo necessário o tempo todo ser aceso. Ou seja, o ser humano precisa de tempos em tempos reacender o fogo da espiritualidade em si, pois enquanto matéria, somos levados a nos manter inconscientes e em nossa zona de conforto.

O fogo e o gênio são acionados quando nos esforçamos e decidimos adentrar em nosso interior. A lâmpada é na verdade uma lamparina semelhante àquelas utilizadas na iluminação doméstica.

Na Grécia antiga o culto da deusa Héstia, deusa representada pelo fogo, era feito em seu templo e em casa, por meio do fogo que deveria ser mantido aceso sempre. As sacerdotisas dos templos tinham que estar sempre atentas para que esse fogo não se apagasse.

Fonte: encurtador.com.br/aJOS4

Héstia também estava presente em cultos domésticos. A importância de Héstia é encontrada em rituais, simbolizada pelo fogo. Para que uma casa se tornasse um lar, a presença de Héstia era solicitada.

Ou seja, o fogo do espírito deve estar presente em nosso recôndito mais íntimo, no nosso lar interno. O fogo do espírito, ou seja, o conhecimento além da simples matéria, o fogo da essência divina (do Self) deve estar sempre presente no nosso cotidiano.

Aladim no filme é inquieto, está em busca de algo que o tire da rotina e não se preocupa em encontrar uma profissão e ganhar seu dinheiro. É tido como irresponsável e infantil. Porém, estamos falando de um herói. E como herói é necessário que olhemos para ele não como um ser humano comum, mas como uma imagem arquetípica.

O herói não necessariamente é aquele que luta e mata os monstros, dragões e bruxas. Ele muitas vezes pode se apresentar como um bobo, ou como alguém com caráter duvidoso (o anti-herói).

Fonte: encurtador.com.br/cdKL5

Como ladrão, Aladim apresenta características do deus Hermes. Hermes é o deus grego da inteligência, astúcia, magia, divinação, viagens, estradas e dos ladrões. Além de ser um guia de almas. Era o único deus capaz de transitar nos três mundos: deuses, humanos e dos mortos. Se tornando o mensageiro dos deuses. Mas o principal atributo de Hermes é a alquimia. Deus alquímico, transformador e guia da alma humana.

A alquimia representa a mais profunda transformação humana. É o processo de individuação projetado na transformação da matéria sem valor em algo valoroso. Podemos, portanto, observar Aladim como essa matéria bruta que irá se transformar em algo valioso.

Aladim tem como amigo um macaco, um animal que está muito próximo do ser humano. Para os Astecas e Maias o macaco estaria ligado às artes e à sabedoria. No hinduísmo havia um deus macaco chamado Hanuman. Ele era cultuado como uma encarnação do deus Shiva, que encarnou com a missão de ajudar um rei a derrotar um demônio. Hanuman representa a natureza instintiva do ser humano e a sua origem animal, que pode ser transformada e transmutada para o encontro com o divino.

Simboliza também a mente humana, que pula como um macaco para um lado e para o outro, de galho em galho, sem foco. Ao desejarmos tudo o que vemos nossa mente se atrapalha e se distrai nos tirando do que é essencial. Uma clara armadilha do ego humano. Hanuman transcende as paixões do ego e os sentidos e simboliza a disciplina da mente.

Fonte: encurtador.com.br/qtyZ9

No filme, Aladim parece não ter foco. Ele mesmo pula como macaco e vive distraído. Porém, seu macaco mostra a virtude do foco que acaba sendo essencial em diversos momentos cruciais, sendo um deles o encontro com a lâmpada mágica.

Aladim é escolhido então pelo vilão Jafar para ir buscar a lâmpada em uma caverna, pois esse possui as qualidades necessárias para poder entrar e sair vivo. O rapaz vai ao deserto com Jafar, confiante, e ele entra nessa gruta. Mas antes é avisado de que lá ele encontraria muitas jóias e tesouros, mas que não deveria tocar em nada. Ele deveria focar em encontrar uma lâmpada antiga e trazer para Jafar.

A entrada na caverna, ou descida, é um tema comum nos contos e jornadas heroicas. Trata-se de um mergulho do herói em si mesmo para buscar algo de valioso. Psiquê desce ao mundo de Hades para buscar a beleza de Perséfone, Orfeu para buscar sua amada, Héracles desce para pedir o cachorro Cérbero emprestado. Odisseu e Enéias também descem.

Descer exige coragem para enfrentar suas imperfeições, seus pesadelos. Deve-se ter foco para isso, pois é fácil se perder neste processo. Trata-se de um grande teste e de um processo de purificação para que o herói seja apto e digno de encontrar o tesouro e ser realizado.

Fonte: encurtador.com.br/azAIS

Cada vez que um ser desce ao submundo e enfrenta a provação, ele se despoja de um ou vários aspectos impuros de seu interior. Ele se purifica de aspectos egóicos e infantis para que possa retornar, ascendendo sua consciência. Trata-se da verdadeira iniciação, a da alma.

A descida de Aladim é a de se despojar dos desejos egóicos e focar no desejo do espírito (a lâmpada), que irá guiá-lo ao seu destino. Para isso só alguém puro (não necessariamente perfeito), ou seja, alguém que não tem pretensões egóicas, que se entrega a jornada sem imaginar qual será o resultado.

Após Aladim retornar da gruta, Jafar pede a ele que entregue a lamparina. Mas Jafar o engana e ele fica preso na gruta. No entanto, a lamparina também fica com ele. Ao friccionar a lâmpada suja, aparece então o gênio. Aquele que irá satisfazer seus desejos e será seu daimon. O gênio lhe concede três desejos, e ele então pede que seja tirado de lá.

Aladim antes de conhecer o gênio havia conhecido a filha do sultão. Ela diz a ele que é a empregada da princesa e ele se apaixona. Após saírem  da caverna, Aladim usa seu desejo de se tornar um príncipe para impressionar Jasmine (sem saber quem ela de fato é).

Fonte: encurtador.com.br/fozRX

Ele se transforma em um príncipe com muitas riquezas, mas não impressiona a moça. Ela deseja mais do que apenas riquezas e o seu pretendente precisa estar à altura de sua nobreza, não externa, mas interna. Jasmine, do ponto de vista do herói, pode ser a anima que desafia o homem a encontrar o seu valor. A olhar para dentro de si e não apenas para fora.

Mas Jafar descobre a verdadeira identidade do príncipe e o joga no mar. No entanto, o gênio o salva. Temendo que Jasmine descubra sua identidade e a presença do gênio, ele se recusa a libertá-lo, sucumbindo á sua sombra, que é o poder.

Além disso, o sultão, pai de Jasmine, está velho e cansado e sucumbe ao poder de seu aspecto sombrio, simbolizado por Jafar.

O reino também não possui uma rainha, ou seja, o aspecto feminino não está presente na consciência coletiva. Quando esse aspecto está reprimido há um endurecimento dos sentimentos e uma instalação de seu oposto, o poder!

As leis são embrutecidas e não há lugar para o lado humano. Vemos isso em uma cena que Jasmine permite que uma criança roube uma maçã e sendo então condenada a perder a mão.

Lei é lei apenas, não se faz nada pelo simples fato de amar alguém. E é esse o grande ensinamento de Jasmine. Ela simplesmente ama Aladim, e está disposta a quebrar as regras por amor.

“Você confia em mim?”
Fonte: encurtador.com.br/uyBF5

A princesa também tem de lutar com o preconceito contra seu gênero. Ela luta para que seus subordinados aceitem as ordens dela, pois quem dita as ordens é Jafar, o tirano ambicioso colocado pelo próprio rei como comandante. Além disso, ela só terá o poder de “se livrar” de Jafar quando for rainha, o que só acontece com o casamento. Isso mostra que até certo momento, em nossa sociedade, a mulher só tem valor com o casamento. De forma velada, isso perdura até hoje.

Outro aspecto do filme que é muito interessante, é a relação de Aladim com o gênio. Ao logo do filme, o gênio deixa de ser apenas aquele que satisfaz os pedidos do herói para se tornar um protetor e guia. Aladim passa a ouvi-lo e ao final o liberta da prisão.

Libertar o gênio significa libertar o divino para que possa ocupar o mundo. Enquanto está na lâmpada ele se mantém preso à ganância do ego.

Ao libertar o gênio, Aladim percebe que o Self e o sagrado não mais estão à disposição do ego, mas está disponível para o coletivo, para algo maior que se expande para o mundo.

Quando temos um dom, esse dom não é apenas para a nossa satisfação momentânea e do ego, mas para que possamos servir a humanidade através dele, uma vez que o dom veio pelo divino, pelo inconsciente.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

 

Aladdin

Diretor: Guy Ritchie
Elenco:Will Smith, Mena Massoud, Naomi Scott
Gênero: Aventura, Fantasia
País: EUA
Ano: 2019

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O Rei Leão sob a perspectiva da Psicologia Analítica

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O Rei Leão é um remake do desenho animado O Rei Leão, de 1994. E foi inspirado em partes da obra Hamlet, de William ShakespeareO longa retrata a historia do leão Simba, que é o herdeiro do trono da Pedra do Reino em uma floresta africana, e sua jornada enfrentando os perigos inerentes a essa função.

Para iniciar a análise do filme é importante analisarmos a figura do leão. O leão é tido como o rei dos animais. Na alquimia ele desempenha um papel muito importante. Ele é um aspecto do Rei alquímico. O rei, nos tempos mais antigos, era considerado a manifestação de Deus na Terra. Psicologicamente sua figura pode ser associada à imagem do Self, aquele centro regulador da psique que se torna uma representação da atitude coletiva nos contos de fadas.

Von Franz (2005) diz que o rei incorpora um princípio divino, do qual depende o bem-estar físico e psíquico de toda a nação. É o princípio divino na sua forma mais visível, é sua encarnação e sua moradia. Nos contos de fadas e na alquimia, o Rei precisa sempre ser renovado. Ele ora se apresenta velho, ou doente, ou com algum problema, e precisa de um substituto a altura para o cargo. Ele precisa morrer!

Fonte: encurtador.com.br/puACY

Conforme Von Franz (1984), o leão representa a natureza ctônica, o aspecto terreno do símbolo do Rei, pois ao morrer o Rei vai para o interior da terra, onde será renovado. Ele é um símbolo solar, portanto segue a trajetória do Sol, tendo que morrer de tempos em tempos. Por isso, o filme retrata o drama arquetípico, onde os aspectos da consciência precisam de renovação constante. A descida ao mundo dos mortos, o confronto com a sombra e a posterior renovação é algo essencial para todo processo de transformação, tanto coletivo, como individual. A tônica do filme é justamente o ciclo morte e vida. Algo muito bem explicitado na fala do rei Mufasa para seu filho Simba sobre os ciclos da vida e a morte como processo de transformação.

O filme inicia com o nascimento de Simba, filho do Rei Mufasa, o que traz logo a inveja de Scar, irmão do Rei. O filme é baseado em Hamlet de Shakespeare. Na peça Claudio mata seu irmão, o Rei, e casa-se com a rainha, Gertrudes. O filho do Rei, o príncipe Hamlet, é atormentado pelo fantasma do pai para vingar a família e retomar o trono e a honra, matando o criminoso. Após muita hesitação, Hamlet realiza o desejo paterno (vindo do além-túmulo).

O drama do filme e da peça retrata a jornada do herói, onde ele precisa encarar a sombra paterna. Vemos isso em várias sagas, como por exemplo, Star Wars, onde o heroi Luke Skywalker precisa matar o pai. O irmão do rei Scar, com inveja, monta uma armadilha para tomar o poder, matando Mufasa e ainda fazendo o pequeno Simba se sentir culpado pela morte do pai.  Scar simboliza a sombra do rei. Aliás, um tema arquetípico esse dos dois irmãos, o bom e justo, e o ruim e invejoso. 

Fonte: encurtador.com.br/zFZ14

Simba é o herói da trama, ele irá viver a jornada típica de vários heróis, onde precisa se afastar de sua tribo, descobrir seus talentos, conhecer seus aliados, provar o seu valor e retomar o seu lugar de direito. Já adulto, é então convencido da sua missão: tirar do poder o usurpador e restabelecer a ordem no reino.  

Sem o rei legitimo todo o reino passa pela devastação, pois um rei saudável é responsável pela fertilidade da terra e do povo. Com a morte do rei sua sombra faz a aparição da sombra do rei. A ganância, a inveja e a morte se apresentam. Isso significa que de tempos em tempos a consciência é embotada pelo principio do poder (leão). Um obscurecimento da consciência, onde a ganância, o assassínio, o crime, a cobiça fazem sua aparição. 

A união do usurpador com as hienas para subir ao trono é bastante simbólico. Elas representam na historia a escória da sociedade, o que há de mais repulsivo. A fome delas é infinita, ou seja, a ganância é desmedida. O herói então deve provar ser capaz de enfrentar essa sombra de frente. É a partir do enfrentamento dessas forças sombrias que o ser humano atinge um novo patamar de consciência e maturidade.

Fonte: encurtador.com.br/iFGM8

O filme fala dos ciclos da vida. E o conflito e o drama fazem parte desse ciclo. Mufasa deixa isso bem claro em seu diálogo com o filho. Ele simboliza o rei do mundo, onde toda a criação está de acordo com seus princípios, inclusive a vida de Scar (o usurpador).

Em diversos mitos e contos de fadas, o tesouro é guardado por um leão, ou um dragão, ou uma serpente. Ou seja, o conflito é inerente ao ciclo da vida e a condição para se chegar a totalidade e a sabedoria. Os reis anteriores a Mufasa fizeram isso, e nesse momento ele prepara o filho para esse importante rito de iniciação.

Von Franz (1984) diz: “Não se pode chegar perto do Self, e do significado da vida, sem que se passe pelo fio da navalha da cobiça e das trevas, e dos aspetos sombrios da personalidade.” No processo de individuação, um reino precisa ser quebrado e posteriormente reconstruído em um novo patamar. A regência da consciência precisa de cada vez mais conhecimento dos aspectos sombrios. É o momento onde se perde a sabedoria e somos tomados pelo usurpador.

Fonte: encurtador.com.br/HKLW1

A sombra não pode se manter tempo de mais reprimida. É nesse embate com ela que podemos crescer. Conforme Von Franz (1006):

“O caso é que, se reprimirmos a sombra, veremos apenas meia pessoa. É por isso que há na literatura essas histórias em que o diabo rouba a sombra de alguém. A pessoa acaba ficando nas garras do diabo. Precisamos da sombra. Ela nos conserva com os pés no chão, ela nos relembra da nossa incompletude e nos proporciona traços complementares. Seríamos na verdade muito pobres se fôssemos apenas o que imaginamos ser.”

 

Contudo, aquela voz do pai justo e o herói também estão presentes interiormente no ser humano. Por mais que Simba fuja com sentimento de culpa e vá viver de forma despreocupada em um paraíso, a voz do pai está lá. A voz do seu chamado continuará a ecoar. Essa voz se fez presente na figura feminina da leoa Nala.  Nala como uma figura de anima, uma guia como Ariadne, conduz o heroi ao seu destino. Ao que lhe cabe de fato. Ela representa a alma do heroi, sua fonte de inspiração. 

Simba após seu reencontro com Nala entra na selva, e encontra Rafiki, um primata conselheiro de Mufasa. Rafiki diz à Simba que Mufasa está “vivo” e leva-o a uma lagoa. Simba vê o “pai” nele mesmo e percebe que deve tomar o seu lugar de direito como o rei das Terras do Reino. Ele não pode fugir de seu passado e seu destino.

Rafiki representa o velho sábio, o mestre superior e protetor. Ele é um daimon imortal que penetra com a luz do sentido a obscuridade caótica da vida. Ele é o iluminador, o professor e mestre, um psicopompo (guia das almas) (Jung, 2000). Esse é o momento que a sabedoria volta a atuar e nos mostrar o caminho de nossa individuação. Ela pode aparecer personificada em um mestre, ou terapeuta, ou simplesmente em um sonho que nos reconecta novamente conosco. 

Simba se reconecta com o reino e a sabedoria dentro de si mesmo. Com isso ele pode confrontar a sombra e restabelecer a situação saudável do reino. Ou seja, o filme nos mostra que a consciência precisa desses ciclos para atingir um novo patamar. E que a sabedoria está em aceitar esses confrontos necessários para nosso crescimento. Assim como na jornada do heroi, precisamos buscar nossos aliados (os dons que existem dentro de nós) e aceitar a voz interior que nos mostra (mesmo em meio ao caos) qual é o verdadeiro caminho da nossa individuação. 

REFERÊNCIAS: 

BOA, F & VON FRANZ, M. L. O caminho dos sonhos. Cultrix. São Paulo, 1996.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 2 ed. Petrópolis, RJ : Vozes, 2000.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo: 2005.

VON FRANZ, M. L. A Individuação dos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo: 1984.

FICHA TÉCNICA DO FILME

Fonte: encurtador.com.br/aflD1

O REI LEÃO
Diretor: 
Jon Favreau
Elenco: 
Ícaro Silva,Donald Glover,Beyoncé Knowles-Carte
Gênero: 
Aventura,Animação
Ano:
2019

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Viva – A Vida é uma Festa: o resgate do inconsciente na família

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Viva é uma animação estadunidense de 2017, da Pixar. O filme retrata de forma poética a relação com a morte. A história se passa em Santa Cecilia, uma cidade do México, onde uma mulher Amelia Rivera, esposa de um músico, é abandonada, junto com sua filha, pelo esposo que decidiu seguir sua carreira musical.

Amelia se sente magoada pelo abandono e culpa a musica pelo ocorrido, banindo – a de sua vida. Assim, ela abre uma empresa de confecções de calçados e cria sua filha – Ines -, que se casa e tem a sua própria família. O tempo passa e o bisneto de Ines – Miguel – um garoto de 12 anos, sonha em ser musico e se espelha em seu ídolo Ernesto de La Cruz, um ator e cantor extremamente famoso na época em que Amelia foi abandonada pelo marido. Mas ele terá que lutar por esse sonho, pois sua família – onde todos são sapateiros – desaprova o trabalho de músico.

Com essa introdução vemos que o filme retrata uma jornada de resgate familiar, de algo reprimido no seio da família. E isso afeta diretamente a criança em seu desenvolvimento psíquico. Para Jung (1988) “Via de regra, o fator que atua psiquicamente de um modo mais intenso sobre a criança é a vida que os pais ou antepassados não viveram (pois se trata de fenômeno psicológico atávico do pecado original).”

Essa atuação da vida não vivida dos antepassados surge na criança como um destino, e que se situa além do que é possível à capacidade humana consciente. São compensações do destino, uma espécie de função da índole moral (ethos), que cuida de abaixar o que é alto demais e de levantar o que é demasiado baixo. Contra isso de nada adianta nem a educação nem a psicoterapia. (Jung, 1988).

Fonte: http://factoryiptv.link/VKlm7u

Miguel irá resgatar uma parte reprimida no contexto familiar que é a relação com a música. A música possui um simbolismo muito forte. Ela é uma manifestação artística, da beleza, da alma. Ela é presidida na Grécia por Apolo, deus da beleza, da perfeição, do equilíbrio e razão. Considerado um deus solar e da luz da verdade. Um deus da consciência que vence as forças obscuras do inconsciente.

A música como arte tem uma importância imensa como expressão do inconsciente para a consciência. A manifestação artística é uma forma de encontrarmos a sensação de significado, uma vez que em nossa sociedade – com o declínio da religião tradicional – vivemos um momento de alienação, com um sentimento disseminado de falta de sentido e significado para a vida humana (Edinger, 2012).

A musica traz o significado de forma subjetiva e viva. E não de forma objetiva, externa e racional. A família segue o oficio de sapateiro. O sapato tem um simbolismo de nos colocar em contato com o terreno, com o chão firme. Nos ajuda a pisar e a se colocar diante da realidade do mundo. O sapateiro está diante da realidade objetiva, tem os pés plantados no chão, vê a vida pelo prisma da objetividade. Sendo assim, a família de Miguel excluiu o elemento subjetivo, o elemento do sentir de forma viva a existência humana.

E Miguel através da música irá resgatar esses aspectos inconscientes da família. Enfrentando a morte de frente e trazendo luz a consciência. Muitos questionamentos se passam em Miguel, que com 12 anos, enfrenta o dilema de todo jovem com a família: como articular o amor a família e o amor pela arte que pulsa em si? Transgredir um acordo familiar inconsciente e seguir seu caminho/destino ou permanecer aceito no seio familiar?

Fonte: http://factoryiptv.link/xl7dE0

Como todo herói ele recebe o chamado a aventura e reluta a princípio, sabendo que isso custará seu conforto e aceitação familiar. Contudo, o filme mostra que a jornada de Miguel traz uma nova dinâmica e consciência para a família. Ele consegue trazer o que é reprimido e assim transforma a sua realidade e a da família. Bem típico do herói, que representa aquele que restaura a situação saudável da psique.

Além disso, o filme tem como inspiração o feriado mexicano do Dia dos Mortos, onde se festeja os antepassados. Nesse festejo é celebrada a vida dos ancestrais e trata-se de uma festa mexicana bastante animada. Acredita-se que os mortos vêm visitar seus parentes, por isso a festa é recheada de comida, bolos, festa, música e doces preferidos dos mortos. Ou seja, vemos na animação uma forma completamente diferente de encarar a morte. Nossa sociedade encara a morte de forma muito puritana, chegando a despreza-la. A morte é um tabu em nossa sociedade!

Jung (2009) aponta o quanto não sabemos lidar com a morte e o quanto ela ainda nos assombra:

“Temos, naturalmente, um repertório de conceitos apropriados a respeito da vida, que ocasionalmente ministramos aos outros, tais como: “Todo mundo um dia vai morrer”, “ninguém e eterno” etc., mas quando estamos sozinhos e é noite, e a escuridão e o silencio são tão densos, que não escutamos e não vemos senão os pensamentos que somam e subtraem os anos da vida, e a longa serie daqueles fatos desagradáveis que impiedosamente nos mostram até onde os ponteiros do redigiu já chegaram, e a aproximação lenta e irresistível do muro de trevas que finalmente tragarão tudo o que eu amo, desejo, possuo, espero e procuro; então toda a nossa sabedoria de vida se esgueirara para um esconderijo impossível de descobrir, e o medo envolvera o insone como um cobertor sufocante.”

Porém a vida é um processo que segue seu curso para o repouso. A vida humana em seu crescimento, expansão e declínio. Jung (2009) diz que da mesma forma que a trajetória de um projétil termina quando ele atinge o alvo, assim também a vida termina na morte, que é, portanto, o alvo para o qual tende a vida inteira. Mas nos esquecemos dessa trajetória e dessa meta. Estamos fixados nos impulsos da primeira metade da vida e não aceitamos o declínio. Cultuar os mortos e os ancestrais nos lembra do nosso destino e nossa meta.

Fonte: http://factoryiptv.link/Ivc3h

Temos a celebração atual do dia de finados, porém trata-se de uma celebração triste e vivida muitas vezes de forma banal. O dia de los muertos, no México, é uma celebração viva e alegre, que abarca a morte na vida Jung coloca que só́ permanece realmente vivo quem estiver disposto a morrer com vida. Então, psiquicamente quando não aceitamos a morte – tanto a real quanto as simbólicas – não aceitamos a vida. Com isso, não conseguimos deixar que as coisas “morram”, e assim nos mantemos presos em estados infantis, apegos já desnecessários, crenças que não fazem mais sentido.

Miguel acredita que é descendente de seu ídolo Ernesto de La Cruz e ele vai ao museu de La Cruz para pegar emprestado o seu violão. Ao tocar o primeiro acorde, ele se torna invisível para todos os presentes na praça da vila. Porém, ele pode ver e ser visto por Dante, um cão de rua de raça que acolheu às escondidas, e por seus parentes falecidos em forma de esqueleto que saíram do Mundo dos Mortos para visitar seus familiares nesse feriado. Os familiares levam Miguel ao Mundo dos Mortos após descobrirem que Amelia não pode visitar os familiares vivos porque Miguel removeu sua foto da oferenda.

A ida de Miguel ao mundo dos mortos, pode ser comparada a uma regressão de libido. Onde os conteúdos arcaicos do inconsciente para uma adaptação ao mundo da psique (Jung, 2008). A família do menino possuía uma atitude unilateral frente a vida. A adaptação unilateral é falha e por isso é necessária a regressão para resgatar os aspectos excluídos da consciência. Um aspecto está desaparecendo no mundo dos mortos, que é Amélia, que é justamente a entrada do conflito e a saída dele.

Vemos o movimento da regressão no herói. O famoso ventre da baleia, ou seja, o alheamento completo do herói com relação ao mundo exterior (Jung, 2008). Na jornada do herói (Campbell, 1997), é uma passagem para uma esfera de renascimento. O herói, em lugar de conquistar ou aplacar a força do limiar, é jogado no desconhecido, dando a impressão de que morreu. O herói vai para dentro, para nascer de novo.

Fonte: http://factoryiptv.link/H1SBoU

Nosso herói vai nada mais nada menos do que o próprio reino dos mortos. La ele enfrentará a própria morte. Miguel deve retornar antes do nascer do sol, senão ele ficará no Mundo dos Mortos para sempre. Mostrando os perigos da regressão da libido, ou seja, o perigo de dissociar completamente da realidade. Para retornar para o mundo dos vivos, ele precisa receber a benção de um membro de sua família. Amelia oferece sua benção a Miguel, mas sob a condição de que ele abandone seu sonho de ser músico quando retornar. Miguel recusa a condição e tenta procurar a benção de Ernesto. No caminho conhece Héctor, um esqueleto tolo que o acompanha nessa jornada.

Miguel se torna o herói na trama, pois o herói é aquele que vem restabelecer a condição saudável da psique (Von Franz, 2005). Ele empreende uma jornada ruma a transformação dessa maldição em benção. A benção corresponde ao elixir, que o herói recebe em sua jornada (Campbell, 1997). Mas essa benção não pode impedi-lo de ser quem ele é, pois nesse caso se transforma em maldição. O herói busca, por meio do seu intercurso com os deuses, não propriamente a eles, mas a sua graça, isto é, o poder de sua substância sustentadora. Essa miraculosa energia/substância, e só ela, é o Imperecível; os nomes e formas das divindades que, em todos os lugares, a encarnam distribuem e representam, vêm e vão (Campbell, 1997).

Projetamos esse imperecível no pedido de benção para os nossos ancestrais. Projetando assim, a proteção e a benção dos arquétipos divinos de forma simbólica. A aventura se passa toda no mundo dos mortos, ou seja, no mundo do inconsciente. No mundo magico das imagens arquetípicas.

Nesse mundo Miguel e Héctor se dão conta de que são tataraneto e tataravô, respectivamente. Mas a medida que o sol nasce, Héctor corre o risco de ser esquecido e de desaparecer. Amelia enfim abençoa Miguel, permitindo que ele siga em frente com o sonho de ser um músico, e ele retorna ao Mundo dos Vivos. Ele se reconcilia com Abuelita, que por sua vez enfim o aceita de volta na família e encerra o banimento à música na família.

Fonte: http://factoryiptv.link/bWAENJ

Miguel consegue fazer com que o espírito de Hector, seu tataravô seja salvo do esquecimento iminente. A verdadeira morte, onde o espírito da música desapareceria totalmente dessa família. A alma não pode se expressar. Resgatar a memória de Hector é resgatar algo que foi perdido e que deve ser resgatado.

REFERÊNCIAS:

CAMPBELL, J. O herói de mil faces. 10. ed. Cultrix, São Paulo, 1997.

EDINGER, E.F. Ego e arquétipo – Individuação e função religiosa da psique. 4ª Ed. Cultrix, São Paulo, 2012.

JUNG, C. G. A Natureza da Psique. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

__________O desenvolvimento da personalidade. 4 ed.Vozes. Petrópolis: 1988.

__________ Energia Psíquica. 10 ed.Vozes. Petrópolis: 2008.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo: 2005.

________________. A sombra e o mal nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo: 2002.

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Guardiões da Galáxia 2: aspectos da jornada do herói

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Concorre com 1 indicação ao OSCAR:

Melhores Efeitos Visuais

Os Guardiões da Galáxia são: Peter Quill, Gamora, Drax, Rocket e Baby Groot. Peter Quill é o líder dos Guardiões e é conhecido como Senhor das Estrelas e é nele que o texto vai focar. O filme inicia com a líder de uma raça alienígena chamada Soberana, Ayesha que contrata os Guardiões para impedir um monstro inter-dimensional de roubar valiosas baterias. Peter já se estabeleceu como herói e líder e agora parte em uma nova etapa de seu desenvolvimento. Após uma confusão os Guardiões acabam sendo perseguidos pelas naves de Ayesha, e acabam sendo salvos por uma misteriosa nave e logo descobrem que se trata de Ego, o Planeta Vivo. Ego se revela o pai de Peter.

Ayesha. Fonte: https://goo.gl/Y5uE55

Peter traz a marca clássica do herói solar: a dupla filiação. O “duplo nascimento” corresponde àquele tema mitológico do herói, o qual considera que este descende de dois pais divinos e humanos. E o costume de dar ao recém-nascido, além de seus pais carnais, dois padrinhos de batismo, isto é, um godfather e uma godmother, como são chamados em inglês, cuja incumbência principal é cuidar do bem-estar espiritual do batizando. Eles representam o par divino, que aparece no nascimento anunciando o tema do “duplo nascimento” (JUNG, 2008).

O herói solar costuma ser fruto do amor entre uma humana mortal e um alienígena, um ser imortal, vindo do céu. A fecundação de uma mulher humana por um Deus, é um tema mitológico recorrente. A mulher é uma virgem escolhida para dar à luz ao herói, um semideus. A virgem não significa virgindade física, mas sim aquela que não se casa, que é unificada em si mesma e tem papel próprio. Seu filho é um Deus, ou semideus que a precede.

Mãe de Peter Quill e Ego. Fonte: https://goo.gl/F5kRWP

A base da história do herói solar é o duplo nascimento. Primeiro ele nasce da mãe, e a assimila posteriormente, para depois nascer do Pai. Conforme Campbell (2007), o herói tem o duplo nascimento. O segundo nascimento iniciatório seria por meio do pai. Quando o herói é morte e ressuscitado.

Os antigos e sangrentos ritos de passagem masculinos representam esse nascimento iniciatório pelo pai, onde os meninos saiam da casa materna para serem iniciados nos mistérios masculinos. A morte e ressurreição de Tammuz, de Adônis, de Mitra, de Vírbio, de Átis e de Osíris são representantes desse mistério na Mitologia.

Na igreja cristã temos como exemplo a mitologia da Queda e da Redenção, da Crucificação e da Ressurreição, do “segundo nascimento” do batismo, da marca iniciatória no rosto quando da Confirmação [Crisma], da deglutição simbólica da Carne e da ingestão simbólica do Sangue, representando o mistério de forma solene e, por vezes, de modo efetivo, sendo assim unidos às imagens imortais da força iniciatória, através da operação sacramentai na qual o homem, desde o início dos seus dias na Terra, afastou os terrores de sua fenomenalidade e ascendeu à visão transfiguradora do ser imortal (CAMPBELL, 2007). A ideia central, portanto, da jornada do herói é o nascimento para o espírito. A espiritualização, a verticalização da vida cotidiana, da matéria, do corpo.

Fonte: https://goo.gl/QdtECp

Conforme Neumann (1995) as fases de desenvolvimento da consciência passam pelos estágios matriarcal e patriarcal. Esses estágios arquetípicos são um fato transpessoal que domina a história da humanidade e do indivíduo. Peter conhece seu pai Ego que o leva ao seu planeta, que é uma parte dele. Ele explora a sua origem celeste e descobre seus dons latentes.

Ego é um alienígena que assumiu uma aparência humana para viajar pelo universo e interagir com outras espécies, e assim conheceu e se apaixonou pela mãe de Quill, Meredith. Após a morte da mãe, Quill foi criado por Yondu, que foi pago por Ego para sequestrar o menino, mas o mercenário nunca entregou o menino. Aqui se observa o tema mitológico da dupla filiação do herói. O pai celeste (um Deus) e o pai humano. Em termos psicológicos representam o pai pessoal e o pai transpessoal.

Yondu e Peter Quill (jovem). Fonte: https://goo.gl/SF9bHr
Peter Quill e Ego.

Campbell (2007), aponta que uma das fases da jornada do herói é a “sintonia com o pai”. Nesse momento da jornada o herói pode encontrar uma figura que representa a autoridade patriarcal. “Pai” e “filho” frequentemente são rivais pelo domínio do universo. Para entender o pai e, com isso, entender a si mesmo, o herói deve enfrentar e se reconciliar com essa figura de autoridade.

Quill aprende que também é um Celestial (raça alienígena do pai) e a manipular o poder que existe em si. Assim ele descobre em si a autoridade em transformar a sua realidade. Ego revela a Quill que visitou milhares de mundos, onde plantou mudas de si próprio para transformá-los em extensões de si mesmo, contudo, elas só poderiam ser ativadas pelo poder de um segundo Celestial. Ele buscou criar esse ser, engravidando várias fêmeas. Porém, seus filhos não conseguiram acessar o poder Celestial como ele, então Ego os matou. Aqui se apresenta a face sombria do Pai.

Fonte:https://goo.gl/NBzbUB

A estrutura do “pai”, pessoal ou transpessoal, é dúplice como a da mãe: positiva e negativa. Na mitologia, há ao lado do pai positivo e criador, o pai negativo e destruidor. Ambas as imagens acham-se tão vivas na alma do homem moderno quanto estiveram nas projeções da mitologia (Neumann, 1995). Assim como é necessário enfrentar a mãe terrível, o herói também precisa se confrontar com o lado sombrio da autoridade paterna.

Esse lado pode aparecer nos contos de fadas como o ogro devorado. Sobre isso Campbell (2007), diz:

“Pois o aspecto ogro do pai é um reflexo do próprio ego da vítima derivado da maravilhosa lembrança da proteção materna que foi deixada para trás, mas só depois de ter sido projetada, bem como do fato de a idolatria fixadora daquela inexistência pedagógica constituir por si própria a falta, no sentido de pecado, que nos mantém paralisados e que impede a alma potencialmente adulta de alcançar uma visão mais equilibrada e realista do pai e, em consequência, do mundo. A sintonia consiste, essencialmente, em levar a efeito o abandono do problemático monstro autogerado o dragão que se considera Deus (o superego) e o dragão que se considera o Pecado (o id reprimido). Mas essa ação requer o abandono do apego ao próprio ego, e aí reside a dificuldade. Devemos ter fé em que o pai é misericordioso; assim, devemos confiar nessa misericórdia. Com isso, o centro da crença é afastado da tenaz apertada e escamosa do deus atormentador, e os ogros ameaçadores desaparecem.”

Fonte: https://goo.gl/LYKhMv

Quill recebe o reconhecimento por parte do pai criador (quando Ego reconhece nele a mesma força que existe em si), e precisa enfrentar o lado sombrio em si mesmo, que consiste no enfrentamento da inflação do seu próprio ego. Há uma tendência do ego humano em se identificar com os conteúdos do inconsciente coletivo, e assim inflar.

O poder transpessoal do pai pode causar uma separação da consciência com relação a realidade terrena, levando a um processo de dissociação do ego. Os deuses punem aqueles que se identificam com a divindade. Um exemplo clássico dessa inflação desastrosa é o voo de Ícaro. Peter tem sucesso nessa luta, assassinando Ego. Após isso ele se reconcilia com Yondu. Assimilando os dois aspectos positivos e negativos do pai transpessoal, Peter retira a projeção de seu pai humano. Ao confrontar com a instância transpessoal do pai, há uma transformação da personalidade do herói. No filme, Quill se torna maduro e estabelece sua ética interna. Ele se identificou com pai, ou seja, conheceu o pai em si, deixando de ser o eterno filho, podendo agora chegar ao poderio e a realeza.

FICHA TÉCNICA 

GUARDIÕES DA GALÁXIA – VOL. 2

Diretor: James Gunn
Elenco: Chris Pratt, Zoe Saldana, Bradley Cooper, Vin Diesel, Chris Sullivan;
País: EUA
Gênero: HQs/Heróis Aventura Ficção Fantasia
Ano: 2017

Referências:

CAMPBELL, J. O herói de mil faces. São Paulo, Pensamento: 2007.

HARDING, E. M. Os Mistérios da Mulher. 4 ed. São Paulo: Paulus, 2007.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

NEUMANN, E. História da Origem da Consciência. 10 ed. Cultrix. São Paulo: 1995.

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A Chegada: os limites da linguagem moderna

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O filme A Chegada (2016), trata da invasão de alienígenas na Terra e da tentativa de descoberta de uma forma de comunicação com eles. Irei tratar nesse texto a simbólica presente na comunicação e no simbolismo do inconsciente representado pelas naves alienígenas.

O filme inicia com a chegada de 12 naves extraterrestres em 12 pontos do planeta. Não sei dizer se foi a intenção do roteiro, mas faço uma alusão à mandala astrológica, com os 12 signos e as 12 casas. A mandala astrológica é um símbolo da totalidade que une os 4 elementos que constituem a formação do planeta e do ser humano, com 3 modalidades, ou seja, com 3 formas da energia psíquica (ou libido) se orientar.

Sobre as naves alienígenas, Carl Jung (1991) aponta que é um assunto tão problemático que não pôde ser definido em sentido algum com a desejável clareza, embora nesse ínterim se tenha acumulado um vasto arsenal de experiência. Por isso levantou que se trata, devido a sua complexidade, de um acontecimento psíquico também.

Fonte: goo.gl/Za6Fm5

Para Jung (1991), o formato circular das naves alienígenas representa a totalidade. Uma vez que a imagem circular é um símbolo da alma e imagem de Deus:

“Eles são manifestações de impressionante totalidade, cuja simples “circularidade” representa propriamente aquele arquétipo que, conforme a experiência, desempenha o papel principal na unificação de opostos, aparentemente incompatíveis, e que por esse mesmo motivo corresponde, da melhor forma, a uma compensação da dissociação mental da nossa época.”

Ele ordena também situações caóticas e coloca o indivíduo novamente na trilha do seu processo de individuação, proporcionando a personalidade uma totalidade e unidade maiores.

Se analisarmos o filme no sentido coletivo, a simbólica da invasão alienígena representa uma mudança e um despertar para questões da alma e do inconsciente. No nível pessoal, a personagem da linguista, a Dra. Louise Banks, passa por uma transformação profunda e o contato com os extraterrestres a faz compreender o significado do inconsciente.
Ela não somente desvenda os sinais enviados pelos extraterrestres, ela compreende o significado mais profundo de sua vida e o fenômeno da precognição.

Fonte: goo.gl/kSqo28

O inconsciente coletivo, para Jung, é uma camada inata e herdada pela humanidade, portanto é universal. Lá estão os modos de comportamento que são iguais em toda parte e para qualquer indivíduo. É a natureza suprapessoal que existe em todo indivíduo.

Jung (2008) aponta a natureza peculiar do inconsciente coletivo, pois há nele uma qualidade não-espacial e atemporal: “A prova empírica deste fato encontra-se nos chamados fenômenos telepáticos que, no entanto, ainda são negados por um ceticismo exagerado, mas que na realidade ocorrem com muito mais frequência do que em geral se acredita.”

A linguagem simbólica dos extraterrestres também representa a natureza do inconsciente, que se comunica conosco por meio de símbolos. Basta observar os produtos do inconsciente como os sonhos, os mitos, os contos de fadas, a alquimia. Todos eles possuem uma linguagem que não é cartesiana, dirigida e ordenada, mas simbólica e com uma força numinosa tremenda.

O ato e a dificuldade em tentar decifrar a linguagem dos extraterrestres, mostra a dificuldade que o homem moderno, acostumado com a linguagem dirigida da consciência, tem em relação ao que é tido como irracional.
A linguagem simbólica é a base alicerce de nossa civilização e o berço de nova vida. É do símbolo e do ritualístico que surge a nova ciência. A química clássica se originou da alquimia, bem como a astronomia se originou da astrologia.

A personagem principal compreende a mensagem, que transmite o sentido do irracional. Aquilo que Jung denomina Sincronicidade, ou seja, a simultaneidade de dois eventos ocorrendo, tanto no inconsciente quanto na realidade é possível de ser compreendido e aceito, e ocorre no filme.

Fonte: goo.gl/9MCYG1

A mensagem representa a essência do inconsciente. Estamos todos conectados pelo inconsciente coletivo e esse não tem tempo e espaço. Os fenômenos sincronísticos, os sonhos premonitórios, a intuição, também fazem parte da dinâmica psíquica humana.

A representação simbólica do Self e da totalidade pelos OVNIS, trazem para a humanidade a união dos opostos, a coniunctio superior (Edinger, 2006). Que é a meta do processo de individuação, a união daquilo que a principio parece impossível de ser integrado.

Vemos no filme, não somente a união do feminino e masculino, mas também do consciente e do inconsciente, da razão e do irracional. A heroína compreende isso e passa a mensagem a humanidade. Porém, há mais um ponto que quero salientar.
Ela, por meio da interpretação da mensagem simbólica dos extraterrestres – uma analogia ao processo da análise junguiana, que busca a interpretação das mensagens do inconsciente – conhece o seu destino, e sabe que, mesmo com o sofrimento inerente ao processo, deve aceita-lo e o aceita.

Conhecer nosso destino e aceitá-lo, vivê-lo da forma mais plena possível, mesmo sabendo que o sofrimento estará lá nos esperando, não tira a beleza do que a vida pode nos proporcionar. Aceitar a alegria, o amor e a tristeza é o maior ato de heroísmo que podemos ter. A união dos opostos consiste em aceitarmos luz e sombra, alegria e dor. Isso é dizer sim a vida!

REFERÊNCIAS:

EDINGER, E.F. Anatomia da psique: O simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo, Cultrix: 2006.

JUNG, C.G. A Natureza da Psique. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

JUNG, C.G. Um mito moderno sobre as coisas vistas no céu. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991.

FICHA TÉCNICA
A CHEGADA

Fonte: goo.gl/6xFsYQ

Diretor:  Denis Villeneuve
Elenco:  Amy Adams, Jeremy Renner, Forest Whitaker
Gênero:  Ficção científica
Ano: 2016

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Mulher Maravilha: um novo paradigma para a mulher moderna

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O filme Mulher Maravilha se inicia mostrando o mundo das Amazonas, na ilha de Themyscira, e como são criadas para serem guerreiras imbatíveis. Conhecemos a rainha Hipólita e sua pequena filha Diana, que se tornará a heroína da história. A Rainha narra a filha – que deseja se tornar uma guerreira – que as Amazonas foram criadas por Zeus para proteger os humanos contra a ira de Ares (deus da Guerra).

Na Mitologia Grega, as Amazonas eram integrantes de uma sociedade de mulheres guerreiras, que não permitiam a entrada dos homens e nem se casavam. Eram independente e lutavam com os homens que tentavam domina-las. Em algumas versões, elas eram proibidas de ter relações sexuais com os homens e esses eram proibidos de viver na comunidade amazona. Mas em outras versões- para preservar a raça–elas tinham relações sexuais com estrangeiros. Os meninos que nasciam destas relações eram, ou mortos, ou enviados ao pai; as meninas eram criadas pelas mães e treinadas em práticas agrícolas, e nas artes da guerra.

As amazonas aparecem em diversos mitos. Um dos mais famosos é um dos 12 trabalhos de Hércules, onde ele precisa roubar o cinturão da Rainha Hipólita. Nessa jornada, seu amigo Teseu sequestrou a irmã de Hipólita, Antíope, e essa morre em batalha contra suas compatriotas. Em vingança, por tentarem roubar o cinturão de Hipólita e por terem levado Antíope como refém, as Amazonas entram em guerra contra os gregos.

Na Mitologia, Hipólita e Antíope são filhas de Ares com a rainha Amazona Otrera. No filme, as irmãs, estão em guerra contra Ares, ou seja, elas estão em guerra com o Pai, por haverem sido reprimidas e esquecidas em uma ilha (no filme escondida por Zeus). O filme apresenta uma visão diferente da cultura patriarcal em relação ao mal. O mal entrou no mundo pelo masculino, em contraste com a cultura judaico – cristã, onde o mal entrou pela mulher. Essa talvez seja uma reação contrária a unilateralidade do patriarcado.

Contudo, no filme o mal também está presente na humanidade. O ser humano é um mosaico de opostos. Luz e sombra convivem em cada alma, e essa guerra interna é a marca do homem ocidental. A princesa Diana nasceu nessa ilha e foi treinada para ser uma guerreira desde criança. Diana é a grande heroína da história e traz uma imagem de feminino bastante valorizada nos dias atuais: o da mulher guerreira e independente.

As mulheres modernas se identificam com esse papel de guerreira e são treinadas desde novinhas a assumi-lo. Hoje a mulher tem sua carreira, cuida da casa, dos filhos e de si própria e cada vez mais desconfia do amor e do relacionamento. Mas ela também é a heroína, ou seja, ela irá restaurar a situação saudável da Psique (Von Franz, 2005).

O filme apresenta dois mundos bem distintos: o das Amazonas, escondido, matriarcal e com um ódio terrível dos homens e o dos humanos, em guerra e estritamente patriarcal. Diana tem como missão unir esses mundos. As Amazonas eram estritamente matriarcais, adoravam a deusa Ártemis – senhora da natureza e vida selvagem -, cultuavam a terra e eram agrícolas.

Como afirma Neumann (1995), o desenvolvimento da psicologia feminina no patriarcado está em oposição a Grande Mãe. Mas ele não deve levar a violentação da natureza feminina através do masculino, nem o feminino deve perder o contato com o Self feminino. O “aprisionamento no patriarcado” representa uma derrota diante da estabilidade matriarcal feminina, por isso a oposição das forças matriarcais forma uma oposição ao aprisionamento do feminino no patriarcado. Podemos ver a ação dessas forças de oposição nas Amazonas e seu ódio aos homens.

Essa força opositora pode parecer regressiva, mas existe nela um elemento positivo no desenvolvimento feminino. Diana é impulsionada por essa “regressão”. O ódio impulsionado pela sombra feminina leva a heroína a uma ampliação da personalidade. Seu nome vem da deusa romana equivalente a Ártemis. Deusa da Lua e da caça, Diana era uma caçadora vigorosa e indiferente ao amor. Portanto, vemos o desenvolvimento provindo do aspecto feminino do Self em uma ação “regressiva”.

Diana observa um avião das forças armadas caindo na ilha e resgata o capitão Steve Trevor. A ilha logo é invadida pelo grupo de alemães que o perseguia. Conhecendo Steve, Diana coloca em movimento as forças masculinas de sua natureza. Ela sai armada de uma espada com ele e passa a percorrer um caminho que se opõe a Grande Mãe. Com ele, Diana vai colocar em movimento as forças masculinas positivas, para então se apaixonar e abandonar toda a inflação que essas forças provocaram em si.

Diana como um ego ideal, mostra como o ego feminino empresta a força masculina positiva para então sucumbir (do ponto de vista do patriarcado) ao amor, assim como Psiquê no mito “fracassa” movida por amor a Eros. A heroína parte rumo ao encontro com Ares para mata-lo e acabar com a guerra, que está destruindo a humanidade. Nesse embate Diana irá se confrontar com o aspecto paterno terrível.

No processo de desenvolvimento psíquico, o confronto com os aspectos terríveis da uroboros materna e paterna são decisivos para a estruturação da personalidade. Diana usa a espada nesse confronto, ou seja, ela ainda se apropria dos aspectos masculinos da personalidade nesse embate. Mas ela realmente se descobre e atinge a realização ao abrir mão da espada.

Steve se sacrifica pilotando um bombardeiro. Ao presenciar a morte do amado – que se sacrifica pela humanidade – Diana acessa o amor e a compaixão, todos aspectos da coniuctio superior, que na alquimia é o objetivo máximo da opus e do processo de individuação (Edinger, 2006). Com esse confronto e com esse amor ela se descobre deusa e imortal, bem como descobre sua missão. Edinger (2006) comenta que a coniuctio superior, o Si – mesmo une e reconcilia os opostos, com isso o ego humano faz com que o Si – mesmo se manifeste. Mas esse sustentar os opostos equivale a uma paralisia que chega às raias de uma verdadeira crucificação.

Jung (1997) sobre a coniuctio diz:“(…) E uma imagem daquele que ama alguém e seu coração é ferido de amor. Assim Cristo foi ferido na Cruz pelo amor à Igreja. ” Ele cita Santo Agostinho: “Cristo caminha em frente como o esposo ao deixar seu aposento; como o presságio das núpcias, sai para o campo do mundo…chega ao leito nupcial da cruz e lá estabeleceu a união conjugal…e entregou-se em castigo no lugar da esposa…e uniu a si sua mulher por direito eterno. ”

Portanto, em Mulher Maravilha, vemos retratado simbolicamente o desenvolvimento feminino rumo a realização máxima do processo de individuação, que ocorre por meio do amor. Diana suporta o sofrimento em si própria e integra os aspectos positivos e negativos de forças arquetípicas. Ela une Logos e Eros em si e se torna um símbolo que pode espelhar o desenvolvimento da mulher moderna em seu processo de individuação.

REFERÊNCIAS: 

EDINGER, E.F. Anatomia da psique:O simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo, Cultrix: 2006.

JUNG, C. G. O Desenvolvimento da Personalidade. Ed Vozes. Petrópolis, 1988.

JUNG, C.G. MysteriumConiuctionis. ed.Vozes. Petrópolis: 1997.

NEUMANN, E. Amor e Psique – Uma interpretação psicológica do conto de Apuléio. São Paulo, Cultrix: 1995.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed.Paulus. São Paulo: 2005.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

MULHER MARAVILHA

Diretor: Patty Jenkins
Elenco: Gal Gadot, Chris Pine, Connie Nielsen, Robin Wright;
País: EUA
Ano: 2017
Classificação: 12

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A Bela e a Fera: a iniciação do Feminino

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Concorre com 2 indicações ao OSCAR:

Melhor Figurino, Melhor Direção de Arte

A Bela e a Fera é um dos contos mais famosos da humanidade e que ainda causa extrema comoção nas pessoas. A versão do filme de 2017 é uma adaptação do conto que originalmente foi escrito pela escritora francesa Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve (La Rochelle, 1695 – Paris, 9/12/1755). Mas a versão mais conhecida foi escrita por Jeanne-Marie Leprince de Beaumont (Rouen, 26/4/1711 – Chavanod, 8/9/1780), escritora, também francesa, que resumiu e modificou a obra de Villeneuve. Com o tempo, e sucesso do conto, surgiram outras versões, incluindo a do também francês Charles Perrault.

Diversas adaptações desse conto para a televisão e cinema foram feitas, apontando um interesse emocional coletivo sobre o tema. A atual adaptação vem causando uma comoção bastante intensa, principalmente em adultos, que estão cada vez mais retomando o interesse pelos contos de fadas. Com isso gostaria de explorar nesse texto o simbolismo do filme derivado do conto A Bela e a Fera, de forma a buscar uma compreensão sobre essa comoção coletiva e com isso tentar trazer um pouco de consciência a respeito do que as necessidades emergentes que dinâmica psíquica coletiva tem ansiado.

Não pretendo esgotar o assunto, uma vez que um conto de fadas pode ser interpretado de diversas formas e visto de inúmeras maneiras. Essa é apenas a minha visão sobre o tema e como compreendo de forma subjetiva e pessoal o tema. Para iniciar a discussão é importante pontuar o que os contos de fadas representam na visão analítica. Conforme Von Franz (2005):

Contos de fada são a expressão mais pura e mais simples dos processos psíquicos do inconsciente coletivo. Consequentemente, o valor deles para a investigação científica do inconsciente é sobejamente superior a qualquer outro material. Eles representam os arquétipos na sua forma mais simples, plena e concisa. Nesta forma pura, as imagens arquetípicas fornecem-nos as melhores pistas para compreensão dos processos que se passam na psique coletiva.

Com essa premissa pode-se observar que os contos de fadas fornecem um rico material para a compreensão da dinâmica da psique coletiva. Por esse motivo quando um conto de fadas desperta tanta atenção e comoção como foi o caso de A Bela e a Fera, podemos retirar desse material alguma compreensão para uma tentativa inicial de entender a problemática que a psique coletiva apresenta e o possível desenvolvimento disso. O filme traz algumas alterações em relação ao original, contudo, a mensagem original permanece a mesma.

A estrutura do conto não se modifica. A história se inicia então com um príncipe sendo amaldiçoado por uma feiticeira. Disfarçada de mendiga, a feiticeira entra em uma festa dada pelo mimado príncipe e lhe oferece uma rosa feia. Ao desprezar a rosa, ele é amaldiçoado e transformado em Fera. Se ele não amar nenhuma jovem e não for correspondido antes da última pétala cair, ele será uma fera eternamente. No conto original há um problema de maldição com o príncipe também.

Na versão original de Villeneuve, a Fera foi um príncipe que ainda jovem perdeu o pai e sua mãe partiu para uma guerra em defesa do reino. A rainha deixou-o aos cuidados de uma fada malvada, que tentou seduzi-lo enquanto ele crescia. Quando ele recusou, a fada o transforma em fera. O original revela também que Bela não é realmente uma filha do mercador, mas descendente de um rei. A mesma fada que tentou seduzir o príncipe tenta matar Bela para casar com seu pai, e Bela toma o lugar da filha morta do mercador para se proteger. O príncipe então nas duas versões sofre a maldição por rejeitar uma feiticeira.

No original há uma alusão a um incesto simbólico, visto que a rainha e a fada malvada são polos opostos da imagem arquetípica da mãe. No filme o príncipe perdeu a mãe, foi criado por um pai cruel e por isso se tornou um homem narcisista e infantil e que precisa ser redimido. Ambas versões mostram um conflito materno do masculino. No original há a relutância em relação ao incesto. A mãe boa (rainha) é substituída pela mãe terrível que quer devorar a masculinidade do príncipe e assim ele precisa lutar contra esse incesto para sobreviver.

Neumann (1995) afirma que o desenvolvimento da consciência tanto individual quanto coletiva passam pelas fases urobórica, matriarcal e patriarcal. E que a sociedade contemporânea se encontra na fase patriarcal de desenvolvimento. Além disso, afirma que a consciência do ego tem um caráter masculino em ambos os sexos e o inconsciente tem caráter feminino. Com isso a relação consciência – dia – luz, e inconsciente – escuridão – noite se mantêm da mesma forma independente do sexo, sendo a consciência masculina mesmo nas mulheres e o inconsciente feminino.

A consciência patriarcal, então, luta para se separar do inconsciente e assim ficar livre de suas influências. Contudo, colocar o patriarcado e a separação do ego em relação à consciência em primazia e em um estado mais elevado de consciência traz problemas também, como mostra o conto A Bela e a Fera. Ao desprezar o feminino e matriarcal, nos deixaram amaldiçoados. Se por um lado o patriarcado foi muito importante para o desenvolvimento da intelectualidade, tecnologia e cultura, por outro o aspecto patriarcal da consciência é separatista, pautado na perfeição e não na completude, tem medo da morte e do inconsciente e não aceita o seu destino.

Ao buscar a perfeição a consciência patriarcal exclui os defeitos e o mal, e com isso exclui a totalidade. E todo aspecto reprimido da consciência se volta novamente se vingando dessa repressão. Vemos isso nas neuroses e doenças psicossomáticas. Uma pessoa neurótica pode ser comparada a uma pessoa amaldiçoada. Pois alguém neurótico pode ser impelida a agir de forma destrutiva consigo próprio ou com os outros. Von Franz (2010) aponta para o tema da vingança feminina no conto A Bela Adormecida.

Nesse conto a fada esquecida e desprezada se vinga na princesa fazendo com que ela durma 100 anos. Isso simboliza que o feminino dormiu em nossa sociedade e com isso nenhuma vida acontece, só há a esterilidade. A fada malvada, ou feiticeira no conto e no mito transforma, nesse caso, o príncipe em animal. Isso significa que a consciência desceu ao nível animal e primitivo. O masculino (tendo os homens como representantes), sucumbe aos aspectos animalescos e instintivos apenas em relação ao feminino.

A mãe marca os aspectos “femininos” do filho, bem como a imagem que ele cria da mulher, suas aspirações, exigências e temores face às mulheres (Von Franz, 2010). Com a ausência da mãe e dos aspectos maternos, ele se torna inseguro e temeroso em relação ao feminino e a anima. No filme, o fato da rainha ter morrido mostra que não há o feminino no sistema regente da consciência. Os valores femininos foram reprimidos e negados, uma vez que a rainha seria o elemento feminino correspondente ao rei na consciência coletiva.

A ausência da rainha significa que o aspecto coletivo do feminino foi renegado e reprimido e, consequentemente, o rei se torna estéril e despreza o feminino. Algo que ele passa para o filho no filme. Pode-se pressupor, então, que a história trata da problemática de uma atitude coletiva dominante na qual o princípio de Eros — o relacionamento com o irracional, o feminino — foi perdido.

O filme então traz um tema muito atual, que é a desvalorização dos aspectos femininos na consciência coletiva. Hoje testemunhamos o anseio pelo resgate da essência do feminino perdida, pois essa unilateralidade fez mal tanto as mulheres – que se sentem perdidas em relação ao que é ser feminina – quanto ao homem que desconhece o feminino em si, desvalorizando esse aspecto interno na depreciação da mulher. O homem quando não desenvolve sua anima (o aspecto feminino da sua psique) se torna um narcisista, assim como o príncipe no filme.

O interessante em A Bela e a Fera é que quem redime o príncipe é a mulher, algo oposto ao que estamos acostumados. Temos imprimido que o heroísmo é manifestado pelo herói solar. Ou seja, aquele que luta contra o mal para salvar a princesa. Portanto, Bela é a heroína do conto e do filme. Ela é quem redime a situação deficiente da consciência, sem, contudo, desembainhar nenhuma espada. Por isso é importante analisarmos a figura de Bela, tanto o filme quanto o conto original descrevem a heroína como humilde e com gosto pela leitura.

Já o filme acrescenta o conflito vivido por uma mulher inteligente e que quer seguir seu coração ao invés dos ditames da sociedade, que lhe diz que ler é inapropriado a ela. Para os aldeões a mulher serve apenas para cuidar do marido e ter filhos. Esse conflito foi relatado a primeira vez na animação de 1991. De fato, as mulheres durante séculos não puderam expressar seus dons criativos advindos do contato com o animus criativo reprimidos, sendo relegadas ao papel de mãe e esposa.

Qualquer manifestação intelectual ou criativa era reprimida e combatida. Contudo hoje a mulher conseguiu cada vez mais alcançar o sucesso no mundo externo e patriarcal. Tornamo-nos “filhas do pai”, ou seja, estamos cada vez mais bem adaptadas a uma sociedade com orientação masculina, porém à custa da repressão de nossos instintos femininos. Essa “filha do pai” aparece na figura de Bela. A filha única e amada de seu pai. O que aponta, de forma individual, para uma mulher com complexo paterno positivo, com a idealização do pai. Como no caso da menina, o pai é o diferente, por isso a tendência à idealização.

No conto e no livro o pai de Bela acaba no castelo da Fera, que o mantém em cativeiro por ter roubado uma rosa de seu jardim. Bela então se torna prisioneira no lugar do pai. A rosa é um aspecto que representa o arquétipo materno, no sentido de flor como recipiente (Jung, 2008). Símbolo associado à deusa do amor e sexualidade Afrodite, e indica uma busca de amor erótico e transcendental, bem como a união com seu oposto. Ela deseja inconscientemente quebrar esse pacto de união amorosa e incestuosa com o pai e experimentar o amor por outro homem diferente. Além disso, a rosa é em geral disposta em quatro raios, o que indica a quadratura do círculo, isto é, a união dos opostos. Isso significa que o amor é um grande aliado no processo de individuação, pois é esse desejo de união que leva a coniunctio, que na alquimia representa a meta da individuação.

Ao pedir a rosa ao pai observa-se um pedido de ajuda inconsciente. Sua bondade e seu desejo de se livrar de conceitos que já não lhe trazem significado, está simbolizada na encomenda dessa rosa. O que ela não sabe é que, ao pedir a rosa, está a ponto de pôr em perigo a vida do pai e o relacionamento ideal existente entre os dois. É como se ela desejasse ser salva de um amor que a mantém virtuosa, porém em uma atitude irreal.

Ela idealiza o amor e assim não enxerga o homem real nem o relacionamento. Isso significa que Bela deseja sair da experiência do apego à lei masculina – representada no pai -, que transforma um homem em Fera, para o amor carnal através do seu lado feminino, do seu desejo e sexualidade. Para deixar o pai precisou aceitar o desejo erótico – que estava encoberto em uma fantasia incestuosa simbólica – para conhecer o homem animal e descobrir suas verdadeiras reações como mulher. Para isso ela deve abrir mão dos aspectos paternais, como seu apego a intelectualidade.

Uma mulher presa a um complexo paterno tende a ficar bastante racionalizar e voltada ao mundo exterior com suas exigências. Ela se afasta de seus desejos, de sua essência feminina e sua adaptação ao mundo interno, mágico e recheado de emoções e intuições. Nos contos de fadas há um tema comum onde o pai que entrega ou vende a filha a um monstro ou demônio, como por exemplo, no mito de Eros e Psique, ou no conto A Donzela sem mãos. Isso mostra que o animus da mulher se desenvolve a partir da relação com o pai pessoal.

O demônio, monstro ou fera nos contos de fadas simboliza o animus negativo que ainda está contaminado pela imagem do pai. Além disso, o fato da heroína ter mãe mostra uma fraqueza e incerteza sobre a feminilidade dela, o que a deixa suscetível a dominação pelo animus. Bela então vai sacrificar justamente esse “monstro” da intelectualidade unilateral, senão ela pode se torna igual ao seu pai: alguém muito inteligente, mas que não consegue progredir e se tornou pobre, sou seja, alguém com uma visão empobrecida e unilateral da vida.

A bruxa (ou feiticeira) que amaldiçoou o príncipe simboliza o feminino rejeitado na consciência coletiva. E nos mitos e contos de fadas vemos que o feminino não aceita bem a rejeição. O feminino quer ser aceito, incluso e adorado e quando isso não ocorre seu aspecto sombrio vem à tona sob a forma de vingança. Exemplos disso: Hera em sua cólera devido as “escapadas” de Zeus se vingava das amantes e filhos bastardos; Demeter quando teve sua filha raptada por Hades se vingou trazendo a esterilidade a terra.

Então, do ponto de vista coletivo, o desenvolvimento dos aspectos patriarcais da psique coletiva como, por exemplo, o desenvolvimento tecnológico e da racionalidade (representado aqui pelo pai de Bela) que tanto nos auxiliou agora necessita diminuir, pois com ele também veio a exploração indevida da natureza o que faz um grande estrago na psique coletiva. E é isso que a bruxa no conto vem reclamar, que a consciência olhe para novamente para o feminino e a natureza que clama por atenção.

É comum nos contos de fadas que a heroína se submeta a uma situação, suportando o sofrimento com paciência e aguardando o tempo certo para agir. Isso ocorre, pois ela não deve agir da mesma forma que seu animus e os aspectos femininos da sua psique que foram reprimidos, como o seu desejo e sua irracionalidade, devem ser agora resgatados. Em nossa sociedade que privilegia a ação, a extroversão e o sempre fazer algo, ter paciência e aprender a suportar e esperar algo é um feito realmente heroico.

Bela mesmo a contragosto passa a cuidar da Fera e da casa e ao conviver com a Fera, ela percebe que ele é sensível e realiza todas as suas vontades a despeito de sua aparência. A redenção da Fera então é feita por meio do amor. De príncipe mimado, que não suportava ver a realidade da vida com seus aspectos mais feios (a feiura da mendiga simboliza a morte e a destruição presentes na natureza), ele se descobre um ser sensível e capaz de amar. Bela então sente saudades do pai e a Fera, por amor, permite que ela regresse para salva-lo.

E ao voltar, diferentemente do conto, ela enfrenta não as irmãs invejosas, mas um pretendente, Gaston, que não aceita ser trocado. O que é bastante interessante. O voltar para a casa original significa uma regressão da libido ao inconsciente original. E no filme não há um feminino sombrio, mas um masculino. Gaston representa as opiniões de um animus não diferenciado. É dele a frase na animação: “Não é certo uma mulher ler. Logo ela começa a ter ideias… a pensar”.

Individualmente então, ele representa um caráter regressivo da mulher, uma opinião infundada e obsessiva. Ele não olha para os desejos dela, ele não a apoia em seus sonhos. Ela é apenas um objeto. Em termos coletivos, Gaston representa a opinião coletiva da época. Até hoje vemos que mulheres muito inteligentes são tachadas com algum estereótipo e ainda hoje beleza e inteligência não são atributos que podem andar juntos em uma mulher.

E nesse confronto ela descobre que ama a Fera de verdade, pois com ele Bela se sente incluída, vista e respeitada em seus desejos. Tudo o que o feminino busca. A Fera e Gaston se enfrentam e ambos morrem. Dois polos opostos se enfrentam. Ambos se odeiam, pois até então eram semelhantes. Ambos desprezaram o elemento feminino. Mas quem morre é o aspecto animal, hostil e assustador da Fera e ele volta a ser um príncipe. Agora não mais mimado, mas um homem amadurecido que aceitou e integrou a morte e a feiura em sua vida.

Agora é possível a união com um animus positivo e o encontro com a plenitude. Esse masculino se liberta da maldição e o equilíbrio masculino e feminino é estabelecido na consciência. E Bela pode exercer sua função intelectual e o uso da sua imaginação sem cair na armadilha de se tornar fria e calculista. Agora ela se torna apta a atender as demandas externas e internas sem perder o contato com sua essência mais profunda. Com o animus positivo integrado, ela pode ser firme sem perder a feminilidade e a doçura.

FICHA TÉCNICA:

A BELA E A FERA

Diretor: Bill Condon
Elenco: Emma Watson, Dan Stevens, Audra McDonald, Emma Thompson
País: EUA
Ano: 2017
Classificação: 10

Referências:

EDINGER, E.F. Anatomia da psique: O simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo, Cultrix: 2006.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

KAWAI, H. A Psique Japonesa – Grandes temas dos contos de fadas japoneses. São Paulo: Paulus, 2007.

NEUMANN, E. História da Origem da Consciência. 10 ed. Cultrix. São Paulo: 1995.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo: 2005.

O feminino nos contos de fada. Vozes. São Paulo: 2010.

Animus e Anima nos contos de fada. Verus. Campinas: 2010.

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Moana: um mar de emoções

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Com duas indicações ao OSCAR:

Melhor animação e Melhor canção original ( Lin-Manuel Miranda, Mark Mancina e Opetaia Foa’i).

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A animação Moana mostra uma heroína que tem sido bem típica nas animações da Disney pelo fato de não terminar com um príncipe e não se casar ao final. Esse tema da princesa sem príncipe tem sido bem comum e vem para agradar as mulheres em seu recente processo de empoderamento. Se por um lado isso reflete a necessidade da mulher atual em buscar e afirmar sua identidade tão reprimida ao longo dos séculos, por outro transformou certos aspectos da personalidade antes valorizados em verdadeiros tabus. Expressar o desejo de se casar ou encontrar o amor é quase uma ofensa para a mulher moderna.

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No entanto, não é esse assunto que quero abordar nesse texto. Algo maior e de importância coletiva surgiu como tema central em Moana, e é sobre isso que pretendo escrever esse texto. Não que a questão da afirmação da personalidade feminina não seja importante, mas o tema que a animação trouxe é de uma importância coletiva para as mulheres e para a sociedade contemporânea. A animação começa contando uma lenda sobre a grande deusa Te Fiti.

A deusa, que havia criado toda a vida na Terra e se tornou uma ilha, teve seu coração – uma pequena pedra pounamu – roubado pelo semideus Maui. Aparentemente a intenção dele era encontrar o monstro de lava Te Ka, porém o monstro faz com que seu anzol mágico e o coração desapareçam no oceano. Por causa do coração roubado, as ilhas que Te Fiti criou foram amaldiçoadas.

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A animação tem como base a mitologia polinésia. O semideus Maui está presente no panteão polinésio e é utilizado na história. É interessante que a Disney tenha se apoiado em uma mitologia e cultura antiga e pouco conhecida pela sociedade ocidental. A cultura polinésia é pautada por uma ligação entre o homem e a natureza muito intensa. Mesmo que a Disney retrate a cultura polinésia de forma simplificada, esse pequeno contato serve como porta de entrada para o conhecimento de uma cultura e mitologia perdidos.

No início da animação vemos o povo da ilha Motuni sendo retratado. Trata-se de uma sociedade tribal, onde as pessoas possuem uma relação de muito respeito com a natureza, pois dependem dela para viver. É intrigante a escolha de um povo tribal, que zela e preza pela natureza e que ao mesmo tempo adora uma Deusa Mãe criadora. Se trata de uma sociedade e cultura oposta a Ocidental patriarcal, que valoriza a exploração dos recursos naturais e prol do desenvolvimento tecnológico, e que se encontra sob o estigma do Deus pai judaico-cristão.

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A animação então, vem trazer uma compensação para a Consciência Coletiva, de forma a tentar o equilíbrio entre essas duas polaridades matriarcal/patriarcal. Conforme Edinger (1993), a sociedade ocidental já não possui um mito viável, que sustente nossa necessidade intrínseca de estarmos imbuídos em um mito. Sem esse mito estruturante, o indivíduo perde a razão de ser. Por essa razão temos hoje uma epidemia de depressão, ansiedade e pânico, nos grandes centros.

Com a carência de mitos nossos valores são substituídos por motivações elementares de poder e prazer, ou então o indivíduo é exposto ao vazio existencial e ao desespero. Por isso, há uma necessidade urgente da descoberta de um mito central. Von Franz (2010) também aponta que em nossa sociedade ocidental judaico cristã, de tradição estritamente patriarcal, não existe imagem arquetípica da mulher. O resultado é que a mulher, o feminino, o matriarcal e a anima são negligenciados e incompreendidos. Com isso as mulheres se tornaram incertas com o que é ser feminina, não sabem o que são nem o que poderiam ser.

Atualmente, para as mentes mais reflexivas essa atitude unilateral não faz mais sentido e vem trazendo mais malefícios do que benefícios. Uma nova revisão dos valores se faz necessária. Cada dia mais crescem os movimentos de defesa da natureza. A consciência ecológica cresce cada dia mais, bem como os questionamentos e a importância do que é a essência feminina. A Deusa Te Fiti na animação é a grande Deusa da natureza e a criadora de tudo. Ela possui a capacidade de gerar a vida em torno dela. É a responsável pelo crescimento das plantas de todos os tamanhos e pode manipular o terreno ao redor de seu corpo. Com o coração dela, ela pode criar outras ilhas repletas de flora e fauna e afetar esses elementos de longe.

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A Deusa Te Fiti não está no panteão polinésio, mas parece ser uma representante de Gaia, a deusa grega primordial da Terra. Podemos observar, então, características de uma sociedade matriarcal. Diante desse contexto não há nenhuma novidade no fato de Moana ser a nova líder do povo. As sociedades matriarcais valorizavam o cultivo da terra e os alimentos por ela proporcionados. Os povos agrícolas vivam em um estado de fusão com a natureza, como sendo integrantes desse todo. Havia, nesses povos, a predominância da terra e da vegetação. E a terra e a natureza, como fontes de fertilidade e alimento, bem como de morte e também como aquela que devora os filhos.

A Deusa para esses povos era a fonte de fertilidade e o masculino era sempre subserviente dela. Eles não acreditavam e não sabiam que o homem tinha participação na reprodução. Sua função era só romper o hímem para a passagem da criança (Harding, 2007). Além disso, era incumbência da mulher cuidar dos assuntos relativos ao suprimento de alimento, exceto a caça e abatimento de presas. Elas colhiam frutas, ervas, raízes e as preparavam para comer. Plantar, cultivar e colher eram tarefas femininas essencialmente. Acreditava-se que a mulher fazia com que as coisas frutificassem e crescessem devido a sua capacidade de gerar crianças e de ter seus ciclos hormonais em relação direta com a Lua – fonte de fertilidade. Com isso, o feminino sempre foi visto mais próximo a natureza e aos processos corporais.

Ao desenvolvermos então o aspecto patriarcal da psique coletiva, perdemos a ligação com o corpo e consequentemente com a natureza. Nos separamos dela e passamos a enxerga-la como fonte de exploração para o ego humano. Privilegiamos o mental e deixamos o emocional e instintivo de lado. Hoje sentimos novamente essa necessidade de nos reaproximarmos desse lado matriarcal. Urgentemente precisamos encontrar um equilíbrio entre essas duas forças. Vemos esse apelo emocional na animação, que resgata e traz à tona esse nosso lado esquecido.

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Moana é então escolhida pelo mar para a jornada de resgate do coração de Te Fiti. O mar para a psicologia analítica simboliza o útero de onde surge toda vida. Deuses do mar como Posídon são considerados deuses ctônicos e estão ligados a Grande Mãe e aos aspectos da natureza de doador de vida e alimento e destruidor da vida. O fato de termos a Deusa como centro vital da animação e o de ser uma garota escolhida para essa jornada chama bastante a atenção. A tendência de uma divindade encarnar em um filho não é algo desconhecido e revelou-se no cristianismo. A encarnação de Deus no Cristo foi vivida como uma experiência religiosa coletiva de enorme alcance (Von Franz). Mas a tendência da antiga deusa – mãe de encarnar em uma filha ainda não se realizou. Assim a imagem do feminino em sua totalidade ainda não alcançou o humano e a consciência, temos apenas vestígios disso.

O culto a Deusa foi reprimido com o advento do Cristianismo. Isso aconteceu em partes, pois a força de um arquétipo é muito forte, e ocorreu a reaparição da deusa na Virgem Maria, com a subsequente devoção. Contudo essa imagem feminina veio para a nós com sérias restrições. A imagem feminina precisou ser retratada purificada de sua sombra e de forma que agradasse o patriarcado. A sombra da Deusa então, ainda não fez sua reaparição em nossa sociedade. Contudo, essa reaparição parece ser uma necessidade emocional muito forte e algo iminente de ocorrer.

Vemos algumas animações que trazem heroínas que representam “filhas” de deusas antigas. Em Valente vemos uma representante da deusa Artemis em Merida, em Mulan a heroína pode ser considerada uma representante de Atena, a deusa da guerra. Moana também pode se encaixar nessa categoria. Ela representa a jornada da heroína escolhida para humanizar esses aspectos sombrios da antiga Deusa e assim deixando viável a assimilação desses conteúdos para a consciência. Vemos na animação que o coração da deusa é roubado e ela se vinga se transformando no monstro Te Ka, retirando toda a vida e alimentação.

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Esse tema da vingança da deusa é recorrente nos mitos antigos. Demeter outra deusa da fertilidade, se vingou com a esterilidade da terra ao ter sua filha roubada e sequestrada. Hera era a rainha da vingança. Afrodite se vingava quando deixava de ser adorada ou quando alguma humana lhe suplantava em beleza. Atena e Ártemis também possuem episódios de vingança. A vingança feminina é um dos aspectos da Deusa feminino que está ausente da consciência. As mulheres conhecem esse sentimento muito bem, mas não o aceitam e por isso lidam mal com ele. Pois se prega a benevolência feminina.

Para finalizar é importante falar sobre Maui. Maui na mitologia polinésia é um Herói trapaceiro, conhecido por suas aventuras extravagantes e sobrenaturais. Sua lenda diz que ele era um humano nativo das ilhas do Havaí. Sua mãe, o achava fraco ao nascer e preferiu afogá-lo. Maui, porém, sobreviveu às ondas, foi salvo pelo Sol e tornou-se um homem extremamente forte, sem medo em seu coração, um semi-deus. Em uma de suas aventuras, ele vai ao submundo atrás da deusa da morte para conseguir a imortalidade, mas é morto por ela. Diz-se que por causa dessa transgressão a humanidade perdeu a imortalidade. Outra aventura de Maui é o furto do fogo e a posterior entrega para os seres humanos que passaram a utilizar a madeira para fazer fogo.

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Na animação isso se repete de uma forma diferente. Ele rouba o coração de Te Fiti para entregar aos humanos. Na lenda como no filme e ele é uma espécie de Prometeu que rouba algo para a humanidade e é posteriormente punido. Maui simboliza a exploração da natureza em prol do desenvolvimento da humanidade. Pretendemos nos igualar aos deuses para sermos imortais, exploramos a natureza em busca de remédios e imortalidade, mas com isso somos punidos cada vez mais por ela. A natureza vem cobrar seu preço e sua vingança. Sua relação com Moana se desenvolve em uma amizade profunda e duradoura. Algo que se perdeu nas relações aqui é resgatado na relação de Moana e Maui – a amorosidade. A relação entre eles se constrói no conhecimento das fraquezas e virtudes um do outro.

Maui e Moana estabelecem um equilíbrio harmônico e desprovido de competição entre masculino e feminino que precisamos encontrar. A amorosidade, característica do feminino precisa ser resgatada em todas as relações. O amor fraterno ou o romântico se constrói com isso e somente após as projeções serem retiradas. Mas é necessária paciência nesse processo. Não sabemos amar, pensamos que amamos, só saberemos quando aprendermos a construir isso na amorosidade.

REFERÊNCIAS:

EDINGER, E. F. A Criação da Consciência. O mito de Jung para o homem moderno. São Paulo: Cultrix, 1993.

HARDING, E. M. Os Mistérios da Mulher. 4 ed. São Paulo: Paulus, 2007.

NEUMANN, E.História da Origem da Consciência. 10 ed. Cultrix. São Paulo: 1995.

VON FRANZ, M. L. O feminino nos contos de fada. Vozes. São Paulo: 2010.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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MOANA

Diretor: Ron Clements e John Musker
Elenco (vozes): 
Auli’i Cravalho, Dwayne Johnson, Rachel House, Temuera Morrison
País: EUA
Ano: 2016
Classificação: Livre

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A consciência patriarcal Rogue One: Uma História Star Wars

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Concorreu com duas indicações ao OSCAR:

Melhores Efeitos Visuais e Melhor Mixagem de Som (David Parker e Stuart Wilson).

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Os eventos de Rogue One se passam em um momento posterior ao surgimento de Darth Vader e antes dos eventos de Star Wars. A galáxia então se encontra dominada pela ditadura, escravidão e opressão. O Império Galáctico, inicia então uma busca por pessoas que possam contribuir para a construção de uma super-arma de destruição em massa.

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O designer de armas Galen Erso, é recrutado a força pelo diretor Imperial Orson Krennic para completar o projeto da Estrela da Morte, uma estação espacial capaz de destruir planetas inteiros. O filme traz então questões que são muito atuais, como o advento de um poder tirânico e opressor de escala mundial. A filha do designer – Jyn Erso – se esconde, para não ser morta pelo Império. Após 13 anos, agora uma adulta, Jyn é liberta do cativeiro Imperial pela Rebelião, que planeja usá-la para rastrear seu pai, e depois matá-lo para impedir a arma que está sendo construída.

Jyn é mais uma nova heroína dessa safra de mulheres fortes e guerreiras que estão despontando no cinema. Em meu texto sobre O Despertar da força, aponto que na primeira trilogia, o herói Luke segue bem a cartilha do típico herói mitológico. Luke é o escolhido, aquele que vai restabelecer a situação saudável e acabar com o mal. E assim como em O despertar da Força temos aqui uma mulher como heroína. Ainda no texto sobre O Despertar da Força, cito que a Trilogia inicial de Star Wars é baseada na Jornada mítica do herói Solar. Onde toda sociedade Ocidental se encontra sob o estigma desse herói que pautou a entrada da era Patriarcal do homem Ocidental.

Jyn Erso (Felicity Jones).
Jyn Erso (Felicity Jones).

Erich Neumann (1995), trata com detalhes esse assunto do herói Solar, afirmando que a consciência do ego tem um caráter masculino e que a relação consciência – dia/luz, e inconsciente/escuridão/noite se mantêm independente do sexo. Ele diz também, que a consciência é masculina mesmo nas mulheres, assim como o inconsciente é feminino. Ele então define a consciência patriarcal, que se separa do inconsciente e fica livre de suas influencias.

Jyn Erso (Felicity Jones) e Cassian Andor (Diego Luna).
Jyn Erso (Felicity Jones) e Cassian Andor (Diego Luna).

Portanto, para Neumann, a mulher moderna, assim como os homens, possui uma consciência patriarcal e um ego denotado pelo herói masculino solar. O que as recentes adaptações têm feito é transformar a figura feminina em uma cópia exata do modelo masculino. Para a psicologia analítica os heróis míticos e dos contos de fadas são modelos arquetípicos para o ego humano. O herói masculino não deve ser considerado como um humano, mas como um modelo ideal de um ego em consonância e harmonia com a totalidade psíquica.

Tanto heróis como heroínas servem como modelo arquetípico, para homens e mulheres, do masculino e feminino. Apesar da crescente aparição das heroínas representar a busca de expressão feminina que foi reprimida durante muitos séculos, vemos um movimento ainda de unilateralidade, onde os valores tipicamente masculinos estão sendo valorizados também nas mulheres.

"Que a Força esteja conosco."
“Que a Força esteja conosco.”

Jyn Erso possui também traços do herói solar: assim como Luke, ela está em busca do Pai. O Pai na psicologia analítica simboliza a realização externa, a segurança material, a eficiência, a realização profissional. Ou seja, tudo aquilo que é voltado para a realização no mundo externo. E essa premissa é o que ainda norteia nossa sociedade, à custa de uma separação do mundo interior.

Como uma Electra vingativa, Jyn busca a revanche pela sua morte e pela sua memória manchada. O mito de Electra, que planeja a morte da mãe coagindo seu irmão Orestes a matá-la junto com o amante, em função do assassinato do pai, é o mito que mostra a transição do matriarcado para o patriarcado. Porém, apesar de estarmos ainda enraizados no patriarcado, essa representação mais expressiva da mulher guerreira no cinema, já mostra um indicio de uma reflexão sobre o que é ser feminina. As discussões são muitas sobre a questão do feminino, mas ainda estamos longe de resgatar esse arquétipo para a consciência coletiva, pois temos como referência ainda o que é masculino.

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Por isso, com esse texto resolvi abrir essa discussão, pois a unilateralidade, prejudicou não somente as mulheres, mas os homens também. Até a masculinidade madura foi suprimida da sociedade, e no lugar do masculino sábio, encontramos meninos perdidos, pois o processo de desenvolvimento psíquico individual e coletivo ocorre na dinâmica e interação desses dois princípios. Masculino só pode ter referência com o feminino e vice versa.

REFERÊNCIAS:

JUNG, C. G. Tipos Psicológicos. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.

NEWMANN, E.História da Origem da Consciência. 10 ed. Cultrix. São Paulo: 1995.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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ROGUE ONE: UMA HISTÓRIA STAR WARS

Diretor: Gareth Edwards
Elenco: Felicity Jones, Diego Luna, Donnie Yen, Mads Mikkelsen
País: EUA
Ano: 2016
Classificação: 12

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