Robôs no cuidado a idosos: a empatia pode ser programada?

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Em 2013, o professor Jackson fez uma excelente síntese para o (En)Cena de algumas importantes pesquisas na área da robótica voltadas para questões de atenção à saúde (física e psicológica) [1]. Geralmente, as discussões que se seguem sobre esse tema vêm acompanhadas de sentimentos de incerteza, medo e angústia. O ser humano desde os tempos mais longínquos ama a tecnologia, mas também a teme, porque parece que quanto mais humanizada ela se torna (inclusive em seu formato), mais aqueles pesadelos gerados por alguns filmes/livros de ficção científica tendem a se tornar reais. Não vou me ater a esses medos, nem o que acho que eles significam. Nesta reflexão, baseada na matéria de Adam Satariano, Elian Peltier e Dmitry Kostyukov para o The New York Times (disponível em [2]), observo que a tecnologia está se tornando um meio inevitável para a criação de um amplo conjunto de serviços voltados para a atenção à saúde, e as pesquisas direcionadas para esse fim não podem estar de fora das discussões dos profissionais de saúde, nem das matrizes curriculares dos cursos de graduação nessa área.

Segundo [2], em quase todos os países, a população de pessoas mais velhas está aumentando. Assim, de acordo com uma pesquisa das Nações Unidas [2], o número de pessoas com mais de 60 anos vai mais que dobrar, para 2,1 bilhões, até 2050. E essas pesquisas são alguns dos fatores que fizeram com que grandes empresas de tecnologia robótica criassem propostas de valor que pudessem atender a esse tipo de necessidade do mercado a médio e longo prazo.

Foto de Dmitry Kostyukov

Em novembro de 2018, li uma matéria do NYTimes sobre o robô Zora [2], que até pode parecer um brinquedo (e, em alguns contextos, é), mas, nesta matéria, foi apresentado como tema central de um experimento científico em um hospital francês. Esse experimento está sendo realizado em um hospital que atende pacientes idosos com perda de função cerebral e que exigem atendimento 24 horas por dia. Com a pesquisa, eles tentam verificar como os pacientes reagem ao robô, ou seja, se Zora produz novos estímulos nesses pacientes e o quão esses estímulos são benéficos às suas condições. Para tanto, uma enfermeira do hospital supervisiona Zora, controlando-o por meio de um laptop. Assim, Zora pode estabelecer uma conversa com um paciente porque a enfermeira digita as palavras no laptop criando a fala do robô durante a conversação.

Para o pessoal do hospital, quando Zora chegou na enfermaria algo estranho começou a acontecer, “muitos pacientes desenvolveram uma ligação emocional, tratando-o como um bebê, segurando e exprimindo sentimentos de carinho e ternura, dando-lhe beijos na cabeça” [2]. O que mostra, mesmo sem uma análise dos dados da pesquisa, que no primeiro momento Zora pôde ser uma companhia diferente, ao invés de estar ali para cuidar deles, pelo seu tamanho e seu aspecto, parecia querer (e precisar) de seus cuidados. Alguns pacientes referem-se a Zora como “ela”, outros “ele”. Não foi citado na matéria se isso tem relação ao tipo de relação estabelecida, por exemplo, se o robô aciona lembranças do paciente relacionadas a seus filhos quando estes precisavam dos seus cuidados. De certa forma, a solidão tem várias camadas, talvez a pior delas, é aquela que te conduz à reflexão em relação à sua função no mundo.

Foto de Dmitry Kostyukov

Para alguns enfermeiros e outros profissionais do hospital, Zora é uma ferramenta supérflua, pois não pode executar as ações que um humano estaria habilitado, por exemplo, verificar a pressão arterial, trocar a roupa da cama, dar os remédios nos momentos certos. Para alguns deles, o robô apenas “mantém os pacientes ocupados”. Uma das enfermeiras enfatizou que “não deixaria um robô alimentar os pacientes, mesmo que estes pudessem, pois os humanos não devem delegar esses momentos íntimos às máquinas”, e acrescentou que “nada jamais substituirá o toque humano, o calor humano que nossos pacientes precisam” [2].

A robótica ainda tem um longo caminho para criar robôs com um grande conjunto de características humanas, inclusive com aparência humana, mas se nos voltarmos ao “manter os pacientes ocupados”, podemos ter outras reflexões: será que os pacientes deixaram Zora compartilhar suas vivências pois viram nele um tipo de companhia que não via nos profissionais do hospital ou mesmo em suas famílias? Ou será que estabelecer o contato com Zora lembrou-lhes um outro tipo de convivência, aquela que existia antes de serem apenas pacientes? Por exemplo, foi relatado na pesquisa que os pacientes contaram ao robô coisas sobre sua saúde que não compartilhavam com os médicos. Em uma dessas histórias, “uma mulher que tinha contusões nos braços e não contava à equipe do hospital o que havia acontecido, compartilhou com Zora que ela havia caído da cama enquanto dormia” [2].

Foto de Dmitry Kostyukov

Uma paciente que está no hospital há mais de um ano, uma senhora de 70 anos, disse que Zora “traz alguma alegria em nossas vidas aqui”. E acrescentou: “nós a amamos e sinto falta dela quando não a vejo. Eu realmente penso nela com bastante frequência” [2]. Sei que essas demonstrações de afeto para um robô, que está sendo guiado por alguém que observa à distância, pode parecer cenas de um futuro distópico, em que nosso afeto é repassado às máquinas por falta da proximidade entre humanos, ou pela solidão originada do abandono.

Ao mesmo tempo que essa ideia pode parecer uma potencial realidade melancólica e absurda em certos aspectos, o investimento em estudos relacionados a isso é real. Em algumas décadas, grande parte da população mundial estará envelhecida. Estamos vivendo mais e precisamos de cuidados por mais tempo. Assim, talvez seja correto presumir que não haverá tantos humanos interessados em fazer o papel de cuidador, ou mesmo que nem numericamente isso seja possível. Logo a evolução tecnológica nesse sentido parece ser inevitável (e necessária).

Foto de Dmitry Kostyukov

Mas, por enquanto, ainda penso em Zora e como este, ao final do dia, volta para sua caixa em um armário na sala de uma das secretárias do hospital. É meio assustador que um ser não vivo seja lembrado com carinho, seja aguardado com alegria, seja querido como se fosse uma criança, confidente como se fosse um amigo, amado como se fosse um filho. Li uma vez que no epitáfio do escritor americano Raymond Carver está escrito o seguinte diálogo: “ – E, afinal, você conseguiu o que queria dessa vida? – Consegui. – E o que você queria? – Considerar-me amado, me sentir amado nessa terra”. Parece-me cada vez mais que sentir-se amado está relacionado à capacidade de conseguir amar e, especialmente, de ser necessário a alguém. Neste sentido, entendo (e muito) os sentimentos que Zora produziu naquelas pessoas. E, novamente, volto a pensar na frase da enfermeira, de que o robô apenas ocupa o tempo dos pacientes. Talvez seja esse o tempo que nos falta, o tempo de convivência que permita às pessoas idosas e doentes ter novamente a possibilidade de sentir-se necessárias a alguém.

Referências:

[1] https://encenasaudemental.com/comportamento/insight/eu-um-robo-a-codificacao-da-empatia/

[2] https://www.nytimes.com/interactive/2018/11/23/technology/robot-nurse-zora.html

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A Ghost Story – uma história sobre a enormidade do tempo e a preciosidade de pequenos gestos

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Nas buscas por respostas para a questão da vida, experimentei exatamente o mesmo sentimento que um homem experimenta na floresta.

Saí numa clareira, subi numa árvore e vi claramente o espaço infinito, mas vi que lá não há nenhuma casa, nem pode haver; fui para a mata fechada, para a escuridão, e vi a escuridão, e lá também não havia nenhuma casa.

Desse modo, vaguei pela floresta dos saberes humanos, entre os raios de luz dos saberes matemáticos e experimentais, que desvelavam para mim horizontes claros, mas em cuja direção não podia haver nenhuma casa, e vaguei entre a escuridão dos saberes especulativos, na qual, quanto mais eu avançava, mais afundava, até que por fim me convenci de que não havia saída nem podia haver.

Uma Confissão, Liev Tolstói [1]

 

É possível que cada um de nós, à sua maneira, já tenha pensado sobre a brevidade da vida, a complexidade do tempo e, especialmente, sobre a nossa relevância em meio a tudo isso. A cada geração, várias coisas mudam, mas essa angústia perante a morte ou ao desconhecido é perene, constante. A Ghost Story é um filme originalmente diferente,  mas que fala sobre coisas que são tão comuns, especialmente essa busca por um sentido que nos liberte do ciclo de perguntas que se formam quando oscilamos entre o medo de ser esquecido e o peso da enormidade de existir para sempre.

O filme conta a história de um casal, protagonizado por Rooney Mara e Casey Affleck, e não há nenhum grande esquema no roteiro sobre isso, ou seja, o casal faz aquilo que as pessoas costumam fazer, dormem juntos, discutem sobre a divergência de pensamentos, se assustam, ouvem música, riem. Mas, para que fazer um filme que tem como base questões tão complexas a partir de algo tão comum? Talvez porque o sentido que buscamos no infinito, no cosmo, na religião, nos livros, na loucura, na fé, esteja estranhamente nas pequenas coisas que compõem o nosso dia a dia.

A vida rotineira e feliz do casal é interrompida pela morte do jovem marido. Assim, quando sua esposa vai ao necrotério reconhecer o corpo e o cobre com o lençol, e depois sai, deixando-o sozinho, tem-se o início de uma nova jornada. Um fantasma, como aqueles que construíamos na infância com um enorme lençol e dois furos para representar os olhos, passa a ser a personagem principal da história. Sua figura melancólica, quase estática, nos conduz nos infinitos quadros que compõem a vida que o cerca. Como o fantasma, nos tornamos observadores da vida das pessoas que viveram e viverão naquela casa, onde o jovem marido morto vivenciou seus melhores dias e cuja necessidade de entender um pequeno gesto é tão pungente que o prende ali por séculos.

Como um personagem fala em um dado ponto do filme, parece que sempre fazemos questão de criar um contexto que nos permita ser lembrados, mesmo quando já não existirmos. Seja Beethoven com sua sinfonia, um escritor com sua grande obra, os pais por meio das lembranças de seus filhos.  Porque parece que ser esquecido é a maior constatação da finitude. Mas há alguma chance, considerando a ínfima parte que representa nossa existência no tempo e no espaço, disso em um dado momento não acontecer?

O filme não traz respostas, mas reforçam alguns questionamentos, traz à tona uma estranha sensação de que alguém conseguiu enxergar nossas inquietações e representá-las tão bem e uma forte constatação de que nos apegamos, de fato, a poucas coisas nessa vida. Por isso, que a explicação inicial que a esposa dá ao marido sobre o motivo que a leva a deixar pequenos bilhetes escondidos pelas casas que passa é tão reveladora, ainda que tão íntima.

– Eu escrevia bilhetes e os dobrava bem pequeno, então os escondia.

– O que eles diziam?

– Eram só coisas que eu gostaria de lembrar para o caso de que se eu quisesse voltar, haveria um pedaço de mim esperando.

E ela parte… A casa fica só com o fantasma e sua busca, que é a de conseguir resgatar aquele pequeno pedaço de papel, a última motivação consciente de alguém que não tem mais uma existência, mas tem um propósito. O luto geralmente é apresentado nos filmes através da visão de quem fica. Nesse filme, em particular, acompanhamos, no silêncio e na ausência de expressão, o luto de um fantasma que só tem uma casa e um desejo: descobrir o que alguém que partiu gostaria de lembrar. Segundo Elisabeth Kubler-Ross [2], há cinco fases do luto: a negação, a raiva, a barganha, a depressão e a aceitação, e vimos todas elas em um lençol com dois buracos em forma de olhos. O que mostra a direção espetacular de David Lowery.

E nada é mais solitário do que o diálogo silencioso entre duas almas, cada uma em sua casa. Uma delas (o fantasma da casa vizinha) espera alguém chegar, mas sem conseguir mais lembrar quem é esse alguém. Talvez ser esquecido seja mesmo inevitável. Quando a alma esquecida tem a sua casa destruída, finalmente a sua imagem de fantasma desaparece.

Mas o nosso fantasma em particular fica na casa, mesmo quando no lugar não há mais casa, nem paredes, nem nada. Mesmo quando ele está em um tempo anterior à sua própria existência, um tempo que ainda não existe a mulher que amou, o bilhete que quis alcançar, ainda que o propósito de alcançá-lo permaneça vivo.

O tempo…. Ah, o tempo…. Já assisti inúmeros filmes de ficção científica que tem como foco essa temática, mas nenhum me tocou tão profundamente quanto esse. Não há máquinas mirabolantes, nem teorias cientificamente plausíveis, há apenas o tempo em sua forma mais brutal nos mostrando que sabemos tão pouco sobre as coisas, sobre o mundo e, especialmente, sobre a nossa existência.

O tempo (anos, décadas, séculos) passa diante da figura contemplativa do fantasma e do seu olhar melancólico, mostrando-nos que, talvez, as escalas que compõem nossa saudade, nossa esperança, nossas dores, nossos sonhos, sejam apenas variações em um dado tempo x espaço, mas não podem responder as perguntas que temos ou explicar aquelas que nem mesmo conseguimos formular, já que a linguagem também não é suficiente. Em uma escala maior, por exemplo, o universo, em qualquer contexto que observamos, o ser humano parece sempre tão pequeno, tão insignificante. O que importa ao final? Essa resposta não está no filme. Talvez esteja em nós, mas ainda não seja plenamente compreendida.

Referências:

[1] TOLSTÓI, Liev. Uma Confissão / Liev Tolstói; tradução Rubens Figueiredo. 1ª. Edição – São Paulo, 2017.

[2] KUBLER- Ross, E. “Sobre a morte e o morrer”: 8ª Ed., Martins Fontes. São Paulo, 1998.

FICHA TÉCNICA DO FILME

Roteiro e Direção: David Lowery
Música: Daniel Hart
Elenco: Casey Affleck e Rooney Mara
Ano: 2017

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Memórias são feitas de Proteínas?

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Proteínas e sua relação com a esquizofrenia, a deficiência intelectual e a síndrome do X frágil.

Em nossas aulas de química e biologia no ensino médio, ensinaram-nos que as proteínas executam a maior parte das funções das células. Logo, mesmo esquecendo grande parte de todas as teorias estudadas em relação a isso, guardamos um fato importante: a relevância desta substância química.  Como explicado no excelente livro sobre a história do Gene de Siddhartha Mukherjee [1], as células só existem graças às reações químicas. Considerando essa premissa, quando durante a respiração o açúcar combina-se quimicamente ao oxigênio para produzir dióxido de carbono e energia, são as proteínas que induzem e controlam essas reações químicas fundamentais das células. E acrescenta:

A vida pode ser química, mas é uma circunstância especial de química. Organismos existem não graças a reações que são possíveis, mas a reações que estão nos limites do possível. Se a reatividade fosse excessiva, entraríamos em combustão espontânea. Se fosse moderada demais, resfriaríamos até a morte. Proteínas possibilitam essas reações nos limites do possível e nos permitem viver na fronteira da entropia química – patinando de modo perigoso, mas sem jamais cair.  [1]

Um estudo publicado na revista Proceedings of National Academy of Sciences [2], de pesquisadores do Picower Institute for Learning e Memory do MIT, baseado em experimentos e observações de duas proteínas, lança luz sobre os mecanismos moleculares da memória e como isso pode melhorar a compreensão de deficiências cognitivas, além de distúrbios como a esquizofrenia e a síndrome do X frágil (mais informações em [3]). Isso reforça a premissa de outras pesquisas de que as proteínas têm efeitos extraordinários no processamento de informação. Para entender esse complexo estado de processamento de informação, voltamos ao livro de Mukherjee [1], em que ele aponta que “um gene ‘atua’ codificando informação para construir uma proteína, e a proteína concretiza a forma ou função do organismo”, conforme ilustrado a seguir:

Fonte: Figura extraída do livro “Gene” [1]

Essa capacidade da proteína de transformar forma em função permite que estas executem diversas funções nas células Ou seja, podem assumir uma forma globular e capacitar reações químicas – isto é, enzimas, podem ligar substâncias coloridas e tornar-se pigmentos no olho ou em uma flor, podem, especialmente, especificar como uma célula nervosa se comunica com outra célula nervosa e, assim, se tornam árbitros de cognição e do desenvolvimento neural normal [1]. Esse último exemplo é onde está situada a descoberta apontada neste texto.

A pesquisa apresentada em [2] vai além das descobertas realizadas por neurocientistas há algum tempo, que resultaram no entendimento de que a criação de novas memórias implica necessariamente na criação de novas proteínas. Segundo o pesquisador Weifeng Xu, professor assistente do Departamento de Ciências Cerebrais e Cognitivas do MIT e autor sênior do estudo em questão [4], ainda há várias camadas de perguntas, por exemplo: “Quão rápido é a síntese de proteínas necessária para a codificação da memória? Quais alvos ou sínteses de proteínas se correlacionam com o processo de codificação? E esses alvos são necessários para a codificação? [4]

Em um esforço de responder aos questionamentos iniciais da pesquisa, a equipe de Xu, conforme apresentado em [2], conduziu experimentos em camundongos em uma região do cérebro denominada hipocampo, considerada a principal sede da memória.  Para elucidar como foram feitos os experimentos, é importante entender que “a produção de proteínas associada à formação de novas memórias ocorre em locais chamados sinapses, onde os neurônios se conectam em circuitos com outros neurônios e isso pode ser impulsionado pela atividade neural desencadeada por eventos específicos, como encontrar um novo local” [4]. Basicamente, o experimento foi realizado a partir do seguinte raciocínio:

Quando ocorre a memória de uma nova experiência, um novo padrão de conexões se forma entre os neurônios. Novas conexões podem ser feitas, enquanto as existentes são fortalecidas e outras, enfraquecidas. Sabe-se que isso requer um amplo suprimento de novas proteínas. Assim, a atividade neural associada a uma nova experiência, como a entrada em um novo local, faz com que as células do cérebro aumentem a produção de proteínas [5].

Segundo [5], os pesquisadores descobriram que a formação da memória está associada a um aumento singular nos níveis de mRNA (RNA mensageiro) do gene Ngrn, que codifica uma proteína chamada neurogranina, que foi ligada pela primeira vez à formação da memória em 2017.  Para um entendimento mais didático de como um gene codifica uma proteína, três fluxos de informações são apresentados a seguir. São três formas de entender uma mesma sequência e foram retiradas (e adaptadas) do livro O Gene [1]:

Nas palavras de Mukherjee [1], “o DNA fornece instruções para construir o RNA. O RNA fornece as instruções para construir proteínas. Por fim, as proteínas ensejam a estrutura e a função, dando vida aos genes”.

Os pesquisadores observaram que a formação de memórias relacionadas à experiência parece depender da rápida produção de altos níveis de neurogranina, mas em investigações posteriores foi revelada uma outra proteína, chamada de FMRP. Segundo [5], “o FMRP interage com o mRNA da neurogranina, permitindo que ele retransmita suas instruções de produção de proteína.” Assim, quando o gene para a FMRP foi inativado, os ratos tiveram dificuldade em formar novas memórias. As proteínas que foram evidenciadas nesse experimento, neurogranina (NRGN) e FMRP, rapidamente foram associadas a questões relacionadas a alguns distúrbios. Uma síntese das descobertas está apresentada a seguir [4]:

De fato, anormalidades em ambas as proteínas têm sido associadas a distúrbios neuropsiquiátricos e de neurodesenvolvimento humanos – FMRP significa “Proteína do Retardo Mental do X Frágil” porque é central para a condição genética síndrome do X frágil, que especialmente quando apresentada em meninos possui alguns traços que remetem ao espectro do autismo; e estudos anteriores ligaram a neurogranina à esquizofrenia e à deficiência intelectual. [4]

Para os pesquisadores, “este estudo é parte de um esforço contínuo em experiências no laboratório para elucidar a maquinaria molecular necessária para sintonizar a transmissão sináptica crítica para a cognição” [2]. Logo, mais do que fornecer insights sobre como o cérebro se lembra de novos lugares e como as proteínas são fundamentais na formação da memória, essa pesquisa mostrou novos caminhos sobre como os contextos envolvendo essas duas proteínas em outras partes do cérebro, como o córtex frontal, podem prejudicar a cognição no contexto desses distúrbios.

Para lidar com questões tão complexas, especialmente quando se trata dos códigos informacionais que fornecem a base de determinadas patologias ou elucidam questões relacionadas a como o cérebro guarda (ou esquece) nossas vivências, entender entre tantas possibilidades como uma variável se comporta, é uma grande vitória.  Mas, voltando à pergunta que deu título a esse texto, “memórias são feitas de proteínas?”, em nosso cérebro, sim, mas existem porque ocorreu um acontecimento que a gerou. O contexto nos afeta, são estímulos para despertar todo o emaranhado de informações químicas em nossa mente. Se por um lado a ciência nos mostra factualmente que somos um complexo mecanismo de reações químicas, uma extraordinária máquina de processamento de informações, por outro a memória é evidenciada no cerne da natureza complexa da nossa humanidade, mostrando-nos que somos aquilo que vivenciamos, sentimos ou imaginamos, mas também, o que nossos mecanismos de defesa sabiamente nos permitem esquecer.

Referências:

[1] Siddhartha Mukherjee. O Gene: uma história íntima. Tradução: Laura Teixeira Motta. 1ª. Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

[2] J. Jones, Sebastian Templet, Khaled Zemoura, Bozena Kuzniewska, Franciso X. Pena, Hongik Hwang, Ding J. Lei, Henny Haensgen, Shannon Nguyen, Christopher Saenz, Michael Lewis, Magdalena Dziembowska, Weifeng Xu. “Rapid, experience-dependent translation of neurogranin enables memory encoding Kendrick”. Proceedings of the National Academy of Sciences Jun 2018, 115 (25) E5805-E5814; DOI: 10.1073/pnas.1716750115

[3] https://drauziovarella.uol.com.br/doencas-e-sintomas/sindrome-do-x-fragil/

[4] https://picower.mit.edu/news/protein-pair-quickly-makes-memories-new-places#

[5] https://cosmosmagazine.com/biology/memories-are-made-of-this-two-proteins

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Detainment: a história real de duas crianças acusadas de um crime brutal

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Concorreu com  1 indicação ao OSCAR:

Melhor Curta-metragem

O curta-metragem indicado ao Oscar, “Detainment”, apresenta a história real de um dos mais perturbadores assassinatos do século XX. O curta de 30 minutos revive o assassinato de uma criança de 2 anos de idade, em 1993, tendo como base as transcrições das entrevistas que ocorreram entre a polícia e os meninos Robert Thompson e Jon Venables, ambos com 10 anos, logo após às suas prisões. Os meninos, ao final, foram condenados pela justiça inglesa pelo sequestro, tortura e assassinato de James Bulger. Os dois garotos atraíram a criança em um shopping center próximo a Liverpool, depois o torturaram, violaram e mataram.

O filme do diretor Vicent Lambe provocou a indignação de várias pessoas na Grã-Bretanha, inclusive foi feita uma petição, iniciada por Denise Fergus, a mãe do bebê assassinado, que contou com mais de cem mil assinaturas solicitando que o curta fosse retirado da lista do Oscar, o que não aconteceu. O diretor do filme disse à BBC , antes da indicação ao Oscar, que “o motivo pelo qual o filme foi feito foi uma tentativa de buscar uma compreensão sobre como esses dois garotos de 10 anos puderam cometer um crime tão horrível, pois acho que, se não entendermos a causa disso, é provável que algo similar aconteça novamente no futuro” [1].

Para o diretor, ao adaptar quase 15 horas de entrevistas em um drama de 30 minutos, tem-se um breve vislumbre do que aconteceu durante o procedimento da entrevista. Segundo ele, tudo no filme é inteiramente factual, sem nenhum embelezamento. E acrescentou que “há certos eventos na história que são deixados intocados por um longo tempo e este é um deles. É um assunto extremamente sensível – de medo, desespero e tão horrível que muitas pessoas evitam absorver mais fatos sobre isso” [2].

Fonte: https://goo.gl/WKrYiR

Segundo artigo publicado em [3], casos de crianças (12 anos de idade ou ainda mais novas) que mataram outras crianças são extremamente raros.

David Finkelhor e Richard Ormrod, professores da Universidade de New Hampshire, em um estudo realizado para o Departamento de Justiça Juvenil e Prevenção da Delinquência (OJJDP), descobriram que os assassinatos de crianças cometidas por menores de 11 anos representam menos de 2% de todos assassinatos de crianças nos EUA Os casos também tendem a diferir significativamente, por isso as conclusões podem ser difíceis de serem feitas. Mas há algumas semelhanças que surgiram, esclarecendo um pouco mais sobre o perfil de quem, ainda bem jovem, comete esse tipo de crime. [3]

Algumas conclusões apresentadas nesses estudos mostram que as crianças que cometem o crime de assassinato, geralmente, foram severamente maltratadas ou negligenciadas, além de terem tido uma vida doméstica tumultuada. Para o psicólogo Terry M. Levy [3],

as crianças que têm sérios problemas de apego (que geralmente resultam de cuidados ineficazes) e uma história de abuso podem desenvolver comportamentos muito agressivos, assim como também podem ter dificuldades em controlar as emoções, o que pode levar a explosões impulsivas e violentas dirigidas a si ou aos outros.[3]

Segundo pesquisa realizada pelo cineasta em relação às origens das famílias dos dois meninos, suas personalidades e como funcionava a dinâmica em suas casas, ele relatou em entrevista que [2]: Jon veio de uma família de classe média, respeitável, seus pais estavam separados, mas conduziam juntos a educação do filho. Jon passava parte da semana com a mãe e a outra parte com o pai. Nessas pesquisas, foi apresentado que Jon era hiperativo e fazia brincadeiras um tanto violentas na escola. Ele conheceu Robert quando foi transferido de escola. Ambos haviam repetido de ano e começaram a estudar juntos. Já Robert fazia parte de uma família terrivelmente disfuncional. Seu pai era um homem abusivo, que bateu em sua mãe durante o tempo que ficou em casa e deixou a família quando Robert tinha 5 anos. Sua mãe tentou se suicidar com overdose de comprimidos, mas acabou recorrendo à bebida como meio de fuga. Em síntese, a família Thompson era um caos completo, seis filhos, uma mãe alcoólatra e um pai ausente. Enquanto Robert era agredido e espancado por seus irmãos mais velhos, seu comportamento refletia também na forma que tratava seus irmãos mais novos e vulneráveis, ou seja, espancando-os como era espancado.

Fonte: https://goo.gl/DLfT41

Enquanto Robert tem um tipo de contexto familiar que se assemelha aos perfis traçados de assassinos muito jovens, Jon aparentemente não tinha um ambiente que suscitasse tal falta de controle e violência. Em parte do tempo do interrogatório, conforme toda a documentação disponibilizada para domínio público, e como foi apresentado no filme, Jon se mostrava extremamente emotivo, angustiado. Enquanto foi possível, negou com toda veemência que havia cometido o crime, e fazia isso entre lágrimas, abraçando a mãe e até o investigador. Mas na medida em que sua culpa se tornava mais evidente, ele tentava mostrar que a ação de Robert tinha sido maior na consecução do crime. Robert, por sua vez, agia de forma mais fria, dura, tentava não demonstrar emoções, argumentava com mais facilidade e, também, insistiu em sua inocência. Quando as provas tornaram-se mais contundentes para a resolução do assassinato, um menino tentou responsabilizar o outro em relação às partes mais violentas do crime.

Fonte: https://goo.gl/BzcU8Y

É aterrador tentar entender como duas crianças espancaram de forma tão brutal e sem piedade um bebê e o deixou jogado em um trilho de trem para morrer. O corpo de James foi encontrado dois dias depois. “Um legista disse mais tarde que seus ferimentos eram tão intensos, que não tinha como dizer qual ‘golpe’ o matou, pois havia cerca de 42 ferimentos em seu corpo, além de ter sido atropelado por um trem” [4].

Esse caso provocou atenção internacional e desencadeou intensos debates sobre quais motivos eram capazes de gerar tamanha violência. Para alguns, não haviam motivos, os meninos tinham simplesmente nascido maus, só precisaram de um gatilho para despertar tais instintos maléficos. No entanto, não vimos de forma frequente crianças com impulso de matar ou mutilar, isso é raro, conforme pesquisas apresentadas em [3]. Então, quando ocorre a exceção, de quem é a culpa? Somente da criança? Ou da família, do contexto? Essa é a pergunta mais perturbadora, pois isso retira os impulsos ocultos do foco e traz à tona comportamentos violentos, abusivos, ausentes ou inadequados capazes de modificar ou extinguir a noção de empatia.

Para Katie Woodland, psicóloga do desenvolvimento com ênfase em criminologia, “nós nunca olhamos para trás e perguntamos ‘por que isso aconteceu?’ Há uma percepção criada há 25 anos de que esses garotos eram apenas maus. Nós, como sociedade, temos dificuldade em examinar esse caso horrível porque temos medo” [5]. E ainda acrescentou que:

“Sim, existe uma interação genética, sim, há muitos fatores, mas durante a infância, a responsabilidade da sociedade é garantir que as crianças cresçam bem. É mais seguro pensar em mim como mãe: não há como meus filhos crescerem dessa maneira, eles não são maus. Mas quando você recua e trabalha todas as pequenas coisas que aconteceram para levar a algo, como ofensas violentas ou falta de cuidados, você começa a se questionar.”[5]

Fonte: https://goo.gl/HKfLAA

Em 2016, a APA (American Psychological Association) publicou um estudo abrangente sobre a violência juvenil (disponível em [5]). Atos de violência são frequentemente influenciados por múltiplos fatores, assim análises em relação ao comportamento violento possuem grande complexidade. Uma síntese desse estudo foi realizada em [4] e é apresentada a seguir:

Pesquisadores descobriram que a influência da família desempenha um papel descomunal em crianças que cometem atos potencialmente violentos. Os pais que são autoritários, rejeitam seus filhos, cometem atos de violência doméstica, negligenciam seus filhos ou não monitoram seu comportamento, muitas vezes têm filhos que mostram sinais anteriores de comportamento violento. Crianças sem vidas familiares estáveis ​​podem ser violentas e têm maior probabilidade de ter abuso de substâncias e problemas de saúde mental. Além disso, a violência na mídia popular, o abuso de drogas, a rejeição social e a doença mental diagnosticada também podem desempenhar um papel na determinação do motivo pelo qual um ato violento foi cometido.

Quando o crime ocorreu, segundo Vicent Lambe, a mídia em geral, buscando refletir a indignação das pessoas, rotulou os meninos como “monstros “, “cria de Satanás” e “aberrações da natureza”. Para ele, o curta metragem mostra Jon e Robert, pela primeira vez, “não como os monstros malignos da imaginação popular, mas simplesmente como eles eram – dois garotos de dez anos que cometeram um crime horrendo e não sabem explicar o porquê”. E acrescentou que “o filme não teve a intenção de ser simpático aos meninos ou de dar desculpas de qualquer forma, mas ao dramatizar autenticamente as transcrições das entrevistas, talvez nos força a reconhecer o pior do potencial humano e ainda ver a humanidade” [2]. Para a psicóloga Katie Woodland, ao mostrar Jon e Robert como seres humanos e, portanto, complexos, o filme “abre um diálogo necessário para entender esse tipo de ofensa violenta e abominável”, e acrescenta “e isso nunca teve como propósito diminuir o dano em relação ao que eles causaram e como tais atos terríveis afetaram a família do bebê James, mas sim sobre o fato de que se não entendermos o porquê, não podemos melhorar” [5].

Robert Thompson e Jon Venables – imagens reais

Robert Thompson e Jon Venables foram os mais jovens assassinos condenados na Inglaterra, mas devido à sua idade, eles foram libertados da prisão quando completaram dezoito anos, em 2001. A partir desse ano, ficaram em liberdade condicional vitalícia e adotaram novas identidades. Jon quebrou sua liberdade condicional duas vezes (em 2010 e em 2017), em ambos os momentos porque a polícia encontrou fotos de pornografia infantil em seu computador [6]. Os últimos acontecimentos parecem indicar que Jon Venables terá problemas em relação ao seu comportamento inadequado e criminoso pelo resto de sua vida, e continuará preso pelos próximos 3 anos. Já Robert Thompson, que no interrogatório se mostrou mais frio e maduro para sua idade, vive no anonimato e nunca violou a condicional.

Duas crianças tomam uma decisão aos 10 anos de idade e modificam por completo suas vidas, a vida de suas famílias e, em especial, da família da vítima, pois todos os sonhos que os pais haviam tido em relação ao seu bebê foram brutalmente interrompidos. Para [4], a questão não é “se devem ou não ser perdoados, mas o que levou esses dois garotos a se transformarem em monstros”.

Crimes como esse tendem a desencadear pensamentos binários sobre a natureza do ser humano. É mais fácil acreditar que alguns já nasceram maus, pois isso nos liberta da reflexão sobre os corriqueiros atos que nos torna mais e mais insensíveis a dor do outro. Se o mal vem de uma conjunção genética, então não há o que discutir, o que refletir, o que mudar, apenas há o isolamento e o castigo para quem nasce assim, sem remorsos ou culpa. Humanizar alguém não é torná-lo bom, é entender, sobretudo, que o ser humano não está situado entre dois polos (bom ou mau), mas está em trânsito entre uma série de complexos fatores.

FICHA TÉCNICA DO FILME

DETAINMMENT

Título Original: Detainment 
Direção:
Vicent Lambe
Elenco: Ely Solan, Leon Hughes
Ano: 2018
Reino Unido
Drama, História

Referências:

[1] https://www.mercatornet.com/features/view/detainment-should-a-film-about-two-boy-murderers-have-been-made/22139

[2] https://www.thefourohfive.com/film/article/meet-vincent-lambe-director-of-detainment-the-award-winning-short-film-based-on-the-interrogations-in-the-1993-murder-of-james-bulger-154

[3] https://www.psychologytoday.com/intl/blog/talking-about-trauma/201502/children-who-kill-are-often-victims-too

[4] https://www.fatherly.com/love-money/detainment-oscars-parents-controversy/

[5] Bushman, B. J., Newman, K., Calvert, S. L., Downey, G., Dredze, M., Gottfredson, M., . . . Webster, D. W. (2016). Youth violence: What we know and what we need to know. American Psychologist, 71(1), 17-39. http://dx.doi.org/10.1037/a0039687 Disponível em: https://www.apa.org/pubs/journals/releases/amp-a0039687.pdf

[6] https://www.themarysue.com/short-film-james-bulger-criticism/

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Vice: quando homens ordinários conduzem a política de um país

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Concorre com 8 indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Ator, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Original, Melhor Montagem, Melhor Maquiagem e Penteados

Vice, escrito e dirigido por Adam McKay, conta a história “real” de Dick Cheney, o 46º vice-presidente americano durante a era Bush (2001 a 2009). Já no início do filme, McKay esclarece em um tom satírico que Cheney é conhecido justamente por ser um dos líderes mais reservados da história, então, nestas condições, fez o melhor possível (em suas palavras: “But we did our fucking best”). De certa forma, o que McKay tenta mostrar nas duas horas do filme foi como um funcionário burocrático de Washington se tornou silenciosamente, como um fantasma, o homem mais poderoso do mundo quando foi vice-presidente de George W. Bush, remodelando a forma como o jogo do poder político era conduzido e promovendo interpretações obscuras da constituição americana. Para Wilkinson [1],

Vice não quer humanizar Dick Cheney. Então, em vez disso, (talvez) demoniza a América. Poucos filmes em 2018 foram mais polêmicos do que Vice, o conto do diretor Adam McKay sobre o moderno Partido Republicano, concentrado na pessoa do ex-vice-presidente Dick Cheney. As resenhas de críticos foram fortemente divididas entre aqueles que amaram o filme e aqueles que o desprezaram, assim como a abundância de comentários polarizados.

Dick Cheney é interpretado de forma magistral por um irreconhecível Christian Bale, que teve sua forma física alterada, ganhando mais peso, e sua face e cabeça remodeladas por próteses.  A história toda é narrada por um personagem fictício interpretado por Jesse Plemonse o tom como este conduz a narrativa mostra-nos, de certa maneira, a forma como o diretor enxerga a figura central do seu filme.

Em alguns pontos da narrativa, há recortes do passado de Cheney, mostrando-nos que antes dele se tornar uma figura tão poderosa, ainda nos idos de 1963, era apenas um estudante e esportista medíocre, que só conseguiu obter uma bolsa em Yale graças a ajuda de sua inteligente e focada namorada (e futura esposa) Lynne (Amy Adams, impecável). Mas as bebedeiras e sua inabilidade para os estudos acadêmicos acabam lhe rendendo uma expulsão da faculdade e o consequente retorno a Wyoming, onde trabalhou como eletricista. McKay, na voz do seu narrador, insiste em dizer que naquela época Cheney deveria ser considerado um moleirão inútil, já hoje o chamariam simplesmente de imbecil. Ou seja, tudo o afastava do seu destino de ser o homem mais poderoso do mundo, ainda que nossa recente história nos mostra que possivelmente por essas características ele teria muito mais chance de ser eleito presidente de um país.

Lynne tinha um foco bem definido na vida, queria ter uma vida extraordinária, e isso seria menos difícil se não tivesse nascido em uma época em que as mulheres vinham em segundo plano na política e em todo o resto. Logo, dedicou sua vida a fazer de Cheney um homem importante e, também, de se fazer importante nesse meio. De forma bem simplista, a reviravolta de Cheney é mostrada ao público, por exemplo, quando seu vício em álcool é substituído pelo vício em comida e, especialmente, pelo vício em um tipo específico de energia, aquela advinda do poder.

Sua escalada ao poder começa na era Nixon, quando iniciou o trabalho com o implacável Donald Rumsfeld (Steve Carell). Em sua primeira investida no universo político, Cheney não passava de um estagiário de Rumsfeld, que o seguia para todos os lados, permanecia em silêncio o suficiente para não ser descartado e tinha uma esposa que alegrava os jantares. Certa vez, quando o jovem Cheney perguntou a Rumsfeld em que ele acreditava? Ele riu. Ao final, parece que Cheney entendeu que na política as verdades estavam relacionadas com a interpretação dos fatos de quem detinha o poder, ou melhor dos fatos criados para produzirem verdades desejadas.

O início do filme traz o momento dos ataques terroristas de 11 de setembro, e depois de mostrar um pouco da fase jovem de Cheney, inicia-se a parte principal da história, que são as ações do governo seguidas das consequências imediatas aos ataques, já com Cheney como vice-presidente. O Cheney apresentado no filme é uma figura paradoxal, parece um funcionário público saído de um livro de Dostoiévsky, aparentemente calmo, quieto, monótono, que aceita ordens e as cumpre simplesmente porque elas vieram de uma figura superior, mas também é um predador voraz, que olha o inimigo ou quem ele considera idiota com menosprezo, e que é capaz de dar ordens para destruir um avião ou uma cidade com o mesmo tom de quem pede duas colheres de açúcar no café.

Para contrabalançar a figura política de Cheney, vimos, em alguns momentos, ele com sua família, mostrando-o totalmente devotado à sua esposa e filhas. Para Bradshaw, do The Guardian [2],

Vice é divertido e niilista, especialmente quando se trata do relacionamento de Cheney com sua amada filha Mary Cheney (Alison Pill), uma mulher gay e ativista do casamento entre pessoas do mesmo sexo. O tratamento final de Cheney com ela neste filme me fez pensar em Cidadão Kane ateando fogo em seu trenó de infância e dizendo que nunca gostou de equipamento de esportes de inverno com o nome de flores.

De certa forma, nem seus momentos de pescaria, ou carregando os netos, nem seu carinho pela filha caçula o tiram do foco. Se para candidatura da sua filha mais velha, esta precisaria dizer que era contra o casamento gay, pois estava fazendo campanha em um estado extremamente convencional, então ela diria. Nesse ponto, as cenas bucólicas da família são substituídas pelas ações que o mantêm como parte do tabuleiro político. Mesmo o trenó sendo tão significativo para Kane, ele o queimou. Mesmo Cheney tendo apoiado a filha quando esta revelou a sua homossexualidade, ele a traiu quando foi necessário fazer uma jogada no tabuleiro político em que estava inserido.

É difícil pensar em algum cenário que humanize Dick Cheney quando se entende o ambiente que ele ajudou a criar depois dos ataques terroristas de 11 de setembro, a partir do poder que exercia sobre o presidente (o aparentemente confuso George W. Bush) e sobre outras figuras importante do universo político americano.

Em uma síntese, McKay apresenta alguns fatos que compõem esse cenário nos momentos finais do filme: a Halliburton Company, uma empresa multinacional americana do ramo petrolífero, nos anos seguintes à invasão do Iraque aumentou o valor de suas ações em 500%; a gestão Bush-Cheney alegou ter perdido 22 milhões de e-mails, incluído milhões que foram escritos no período que precedeu a guerra do Iraque; os memorando do advogado John Yoo estabeleceram uma base legal para a tortura, descrito por Cheney em uma entrevista como “interrogatório aprimorado”. E, ainda o uso da Teoria Unitária do Poder Executivo, que segundo [3],  remete “a ideia de que nada que um presidente faça possa ser considerado ilegal e, portanto, este não pode ser processado (recentemente este argumento legal especioso foi reciclado por estudiosos conservadores e oportunistas em defesa do presidente Trump)”. É um tipo de política melhor descrita a partir da regra Reductio ad Absurdum, ou seja, cria inimigos, expõe sua própria força armada a experiências terríveis, mata civis, mas vai à igreja aos domingos orar pela família e pelo país.

Nos momentos finais do filme há uma cena de uma entrevista com Cheney e em um dado momento ele olha para a tela e diz: “Não vou me desculpar por manter suas famílias seguras. E não vou me desculpar por fazer o que precisava ser feito para que seus entes queridos pudessem dormir tranquilamente à noite. Tem sido uma honra servir a vocês. Vocês me escolheram e eu fiz o que vocês pediram.” E essa frase final é o que há de mais terrível, pois geralmente o mal extremo pode até ser articulado por uma pessoa ou um grupo, mas só acontece, de fato, quando o povo cegamente o permite (e o deseja).

FICHA TÉCNICA DO FILME:

VICE

Título original: Vice
Direção: Adam McKay
Elenco: Christian Bale, Amy Adams, Steve Carell, Sam Rockwell, Alison Pill, Jesse Plemons;
Ano: 2018
País: EUA
Gênero: Biografia, Drama

REFERÊNCIAS:

[1] https://www.vox.com/2018/12/21/18144605/vice-review-dick-cheney-adam-mckay-christian-bale-sam-rockwell-bush-steve-carell-rumsfeld

[2] https://www.theguardian.com/film/2018/dec/17/vice-review-christian-bale-dick-cheney-biopic

[3] https://www.spin.com/2018/12/vice-movie-review-dick-cheney/

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Nasce uma Estrela: Lady Gaga se despoja de artifícios e traz música à superfície

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Concorre com  8 indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Ator, Melhor Atriz, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Fotografia, Melhor Mixagem de Som, Melhor canção original

Em todos os bons momentos
me vejo desejando uma mudança
E, nos momentos ruins,
tenho medo de mim mesma
(Tradução de versos da música Shallow,
de Lady Gaga e Bradley Cooper)

Star is Born é a quarta versão da história de uma estrela que nasce enquanto outra se apaga. Até 1970, a cada duas décadas esta história era novamente contada. A primeira produção ocorreu em 1937, quando William Wellman dirigiu Janet Gaynor como a jovem atriz que se apaixonava por Fredric March, o ídolo alcoólatra e desiludido. Judy Garland e James Mason reprisaram os papéis no clássico de Cukor em 1954, quando novamente a estrela era uma atriz, e sua estreia em um musical ocupou 15 minutos do filme. Só em 1976, no remake de Frank Pierson, que há uma mudança de cenário, os bastidores do cinema dão espaço ao mercado musical, com Barbra Streisand no papel principal e Kris Kristofferson como uma estrela de rock em declínio.

Fonte: Live Nation Productions, LLC; Malpaso Productions.

Depois de mais de 40 anos, nossa geração finalmente ganha sua versão de Star is Born, e a espera não poderia ter um resultado mais interessante. Bradley Cooper estreia na direção (além de ser co-roteirista, ter o papel masculino principal do filme e colaborar na composição da canção principal) e traz como estrela da sua versão de Star is Born nada menos que a rainha do pop, Lady Gaga, até então vista, na maior parte de suas apresentações e saídas públicas, com adereços espetaculares, roupas inusitadas (quem não lembra daquele vestido de carne?) e performances acrobáticas (vide o show no Super Bowl https://www.youtube.com/watch?v=txXwg712zw4). Além disso, Gaga é dona de uma voz poderosa, toca vários instrumentos e compõe suas próprias músicas (grande parte das composições do filme tem sua assinatura). Isso, mais sua personalidade intrigante, sempre a colocaram em um patamar elevado nesse competitivo e implacável cenário musical do século XXI.

Mas, voltando ao filme, Jackson, o country-roqueiro que passa grande parte da sua vida alcoolizado (interpretado por Bradley Cooper) tem uma visão bem particular sobre a música. Sua visão parece ser a metáfora ideal para explicar porque uma história tão batida ainda chama tanto a atenção e é tão aclamada pelo público e pela crítica. Ele dizia que “a música é essencialmente 12 notas entre qualquer oitava. 12 notas e a oitava se repete. É a mesma história contada várias vezes, para sempre. Tudo que um artista pode oferecer ao mundo é como ele vê essas 12 notas. Só isso.” E acrescentou que amava como Ally (Lady Gaga) as via. Talvez aí esteja o segredo do sucesso do filme, a história tem um mesmo esqueleto, mas quando vemos Ally aparecer em um palco de um bar cantando “La Vie en Rose”, e Jackson é atraído por aquela voz, aceitamos embarcar na história novamente, mesmo já presumindo o inevitável final. A química entre eles, citada em toda crítica e entrevista sobre o filme, salta da tela. Isso e mais uma Ally tão diferente da imagem que temos da Lady Gaga, ou seja, mais vulnerável (sem ser fraca), quase nenhuma maquiagem e com um cabelo sem produção tornaram essa versão de Star is Born especial e, por que não, única.

Fonte: Live Nation Productions, LLC; Malpaso Productions.

A impressão que temos é que os dois se apaixonam, especialmente, pelo talento um do outro. Para Jackson, um artista precisa ter algo a dizer, não basta ser apenas uma voz, e ele via isso em Ally, pela forma natural que a música nascia dela. Shallow, a música tema, é apresentada pela primeira vez em um estacionamento, na noite que eles se encontraram. Na música, Ally mostra que em pouco tempo já entendeu a falta de sentido e o desassossego que marcam a vida dele (Diga-me uma coisa, garoto, você não está cansado de tentar preencher esse vazio? Ou você precisa de mais? Não é difícil manter isso tão extremo?). Na próxima vez que a música vem à tona, é no show dele, quando a convida para cantar no seu show de surpresa e começa a entoar um verso que compôs para ela: “Diga-me uma coisa, garota, você está feliz neste mundo moderno? Ou precisa de mais? Há algo mais que está procurando?”. E nestes versos são apresentados como um vê o outro, mas, especialmente, como a história de cada um fatalmente os separará.

Fonte: Live Nation Productions, LLC; Malpaso Productions.

Segundo Peter Travers, da Rolling Stone [1], o papel de Ally foi geralmente interpretado como uma moça ingênua à procura de orientação em um mundo de predadores masculinos. Mas, sorte a nossa – e do filme – Gaga não faz a ingênua. Ally sabe de seu potencial, sabe que é boa, apesar de ter sido preterida por uma indústria que gosta de seu som, da sua voz, mas não da sua aparência.

Dois outros relacionamentos são trazidos à tona no filme: a relação da Ally com seu pai, um cantor frustrado, mas amável e presente; e de Jackson com seu irmão mais velho, Bobby (Sam Elliott), que também tinha sido um cantor, mas abriu mão de sua carreira para apostar no irmão mais talentoso, que além da voz, também criava suas composições. A bebida não fez de Jackson um homem violento ou fanfarrão, como em algumas das versões anteriores do filme, mas levou-o a um estado mais autodestrutivo, presenciado, em alguns momentos, por seu irmão.

Fonte: Live Nation Productions, LLC; Malpaso Productions.

Na segunda parte do filme temos conhecimento do passado do Jackson, da sua vida com o pai alcoólatra e da sua tentativa de suicídio aos 13 anos, também vemos Ally atingir o estrelato de forma meteórica. Meteoros iluminam, mas também destroem. Nem sempre o amor ou a arte são capazes de mudar a direção de uma pessoa. A jornada obscura que Jackson travava em sua mente e em seu organismo enfraquecido pelo vício mostrou-se, muitas vezes, uma jornada solitária e, em alguns aspectos, doentia.

Assim, cada vez mais distantes da parte rasa e, talvez, por isso mesmo, estupidamente tranquila da vida, tem-se o ápice da jornada de ambos. A ícone pop e o artista em declínio parecem, em um dado momento, vivenciar um dos aspectos mais estranhos da física quântica, o entrelaçamento quântico, aquilo que Einstein nomeou uma vez como uma “ação fantasmagórica à distância” [2]. Isso é notado quando dois objetos estão em uma espécie de paralelo infinito, mas em um dado ponto (neste caso, a música), misteriosamente, se encontram. De certa forma, algumas músicas podem tocar vários pontos equidistantes e heterogêneos, podem até ultrapassar nossa noção de espaço e, especialmente, de tempo. Talvez para Ally e Jackson, a música é a constante em meio a turbulência, conectando-os a muitos outros que são tocados pelas suas composições, mesmo que todos pareçam estar sempre em um infinito e angustiante movimento.

FICHA TÉCNICA:

NASCE UMA ESTRELA

Título original: A Star Is Born
Direção: Bradley Cooper
Elenco: Lady Gaga, Bradley Cooper, Sam Elliott;
Ano: 2018
País: EUA
Gênero: Drama, Música

REFERÊNCIAS:

[1] https://www.rollingstone.com/movies/movie-reviews/a-star-is-born-movie-review-lady-gaga-729475/

[2] https://www.sciencemag.org/news/2018/04/einstein-s-spooky-action-distance-spotted-objects-almost-big-enough-see

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Beautiful Boy: Vício em Drogas Fragmentando o Indivíduo e sua Família

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A faca se aproximou da minha garganta novamente,
eu quase voltei a ligar o gás,
mas quando os bons momentos chegaram,
não lutei contra eles como um adversário.
Deixei-os me levarem, deleitei-me com eles,
fiz com que fossem bem-vindos em casa.
“Let It Enfold You,” by Charles Bukowski

Beautiful Boy (Querido Menino) é uma adaptação de dois livros de memórias: Beautiful Boy (2008), de David Sheff; e Tweak: Growing Up on Methamphetamines (2009), de Nic Sheff. Ambos são pai e filho e mostram na descrição de suas memórias como as consequências do vício podem produzir feridas profundas no indivíduo e em sua família. O filme traz à tona a história real de David e Nic, interpretados respectivamente por Steve Carell e Timothée Chalamet a partir da perspectiva de David, o pai, em sua tentativa de entender e ajudar o filho Nic, de 18 anos, em sua complexa jornada de dependente químico.

O desafio do diretor Felix Van Groeningen foi distinguir este filme de tantos outros sobre o mesmo tema (como os espetaculares Trainspotting e Requiem for a Dream, ou o drama adolescente estrelado por DiCaprio, The Basketball Diaries). Assim, quando o diretor concentrou-se na relação pai e filho, apresentou alguns diferenciais na trajetória por vezes tão repetitiva do vício (uso, reabilitação, sobriedade e recaída). Nessa direção, ao acompanharmos as angústias de David, vimos as indagações de tantos pais antes e depois dele: “Por quê?” Por que seu filho inteligente, sensível e carinhoso se tornou um dependente químico? Que momento ativou a mudança de comportamento? De quem é a culpa? Nenhuma dessas indagações tem uma resposta satisfatória, muitas delas nem têm respostas.

Várias gerações leram na adolescência o livro O Estudante, de Adelaide Carraro, publicado pela primeira vez em 1975. O livro é um alerta a pais, jovens e professores sobre as múltiplas faces do dependente químico, mostrando que qualquer pessoa pode se envolver nesse universo, logo não há distinção de classe social, idade etc., e muitas vezes, não há um porquê, por exemplo, um trauma na infância ou adolescência motivador da mudança de comportamento. Em Beautiful Boy é essa ausência de motivo que torna a jornada do pai ainda mais angustiante. Ele é um escritor, sempre buscou elementos em suas histórias que fossem condutores dos seus personagens, estava acostumado a identificar estímulos que geravam mudanças de comportamento. E justamente na história protagonizada por seu filho, esses estímulos lhe pareciam obscuros. Talvez porque o ambiente e suas variáveis são assimilados diferentemente por cada indivíduo, o que para o pai não parecia ter sentido, para Nic, estar sob o efeito de uma droga que lhe permitisse ter sensações novas, aflorava sua sensibilidade e sua percepção.

Para mostrar como funciona a mente do pai nessa jornada em entender os motivos que levaram seu querido menino ao vício, o diretor trabalha com flashbacks dos momentos da infância à adolescência de Nic, sempre mostrando a relação dos dois. O filme não tem uma sequência linear, todo esse vai e vem de lembranças, ao final, reforçam a tentativa de David em entender em que momento perdeu o filho, ou em que momento algo foi potencialmente acionado e que transformou de forma aparentemente definitiva o menino que ele criou, que ele ama.

A metanfetamina, que é a principal droga usada por Nic, é um estimulante extremamente potente que afeta várias áreas do Sistema Nervoso Central (SNC). Segundo Gouveia (2017, apud LINEBERRY and BOSTWICK, 2006; ALAM-MEHRJERDI et al, 2015):

Há vários efeitos sistêmicos associados ao consumo de metanfetamina, destacam-se no nível psiquiátrico: ansiedade, irritabilidade, paranoia e o comportamento compulsivo e obsessivo; no nível cardíaco: taquicardia, hipertensão, palpitações, arritmias e síndrome coronário agudo; no sistema pulmonar: taquipneia, dispneia e edema agudo do pulmão; no sistema renal: insuficiência renal aguda e rabdomiólise; no nível dermatológico: escoriações, úlceras e queimaduras químicas; e, por fim, no nível metabólico: hipertermia e acidose metabólica.

Para entender o que se passava no organismo do filho, especialmente como a droga afetava sua mente, David procurou ajuda de um médico, e a resposta que recebeu foi devastadora. Segundo o psiquiatra, a metanfetamina muda fisicamente o cérebro, pois há uma perda dos receptores de dopamina. Além disso, o médico mostrou uma imagem do cérebro de um viciado em metanfetamina e apontou para dois pontos vermelhos, que representavam uma hiperatividade na amígdala, a região do cérebro ligada à ansiedade e ao medo. No caso de um viciado nesta droga, “a amígdala está gritando”, segundo o psiquiatra “isso mostra que há uma base biológica que pode fazer com que os usuários desta droga sejam incapazes, não sem vontade, mas sim incapazes de participar de programas de reabilitação tradicionais”.

Enquanto David sai em sua cruzada para entender as consequências da droga no organismo do seu filho na esperança de encontrar algum meio para ajudá-lo, Nic se afasta cada vez mais do garoto que ele foi. Usa várias drogas até se viciar em metanfetamina. Nesse percurso é mostrado desde o garoto de personalidade introspectiva, muito inteligente e sensível, brincalhão e carinhoso com seus irmãos mais novos, fã de David Bowie e um leitor voraz das poesias de Charles Bukowski até o rapaz fragmentado, confuso, sem forças para lidar contra o vício e com uma aparência modificada pelo uso excessivo da droga. Ao final, pouco lembra o “beautiful boy” que dá título ao filme.

Na poesia de Charles Bukowski, lida por Nic, há um trecho que diz “paz e felicidade para mim eram sinais de inferioridade, inquilinas de uma mente fraca e confusa, mas enquanto eu prosseguia com minhas lutas no beco, meus anos suicidas, […] me ocorreu que eu não era diferente dos outros, eu era o mesmo, eram todos cheios de ódio, encobertos por pequenas queixas”. A homogeneização potencializada pelo uso de drogas favorece uma interpretação mais perturbadora dessa poesia. Nic e sua namorada, assim como outros viciados que aparecem no filme, começam a evidenciar angustiantes semelhanças, até no aspecto físico.

Um dos pontos mais emocionantes do filme ocorre no depoimento de uma mãe em uma reunião de apoio a familiares de dependentes químicos. Ela inicia o depoimento dizendo que sua filha tinha morrido de overdose naquela semana, e depois acrescenta: “Estou de luto, mas eu percebi outra coisa, na verdade estou de luto há anos, porque, mesmo quando viva, ela não estava lá. Quando você fica de luto pelos vivos, é um jeito duro de viver.” Além de todos os problemas causados no organismo do dependente químico, as drogas também deixam um rastro de dor, desespero, vergonha e culpa. Nas reuniões com os familiares, há uma tentativa de minimizar tais sentimentos negativos por meio do compartilhamento de vivências.

Ao final, talvez a mensagem mais contundente seja a transmitida por alguns versos do Bukowski em sua poesia “Let It Enfold You”: “Cautelosamente me permiti sentir-me bem às vezes. Eu encontrei momentos de paz em quartos baratos apenas olhando para os botões de alguma cômoda ou ouvindo a chuva no escuro, quanto menos eu precisasse, melhor me sentia.” Mas, sentir-se bem nem sempre é possível, nem sempre é algo que dependa somente da pessoa, nem sempre nosso organismo contribui com nossos lampejos de enfrentamento. Assim tão relevante quanto apreciar as coisas simples da vida, é importante ter empatia com o outro. E, neste contexto, prestar atenção ao outro que sofre compreende a atenção ao dependente químico e aos seus familiares, cujas relações foram fragmentadas em meio a resíduos de dor, violência e desesperança.

FICHA TÉCNICA DO FILME

BEAUTIFUL BOY

Título original: Beautiful boy
Direção: Felix Van Groeningen
Elenco: Steve Carell, Timothée Chalamet, Maura Tierney, Amy Ryan
Ano: 2018
País: EUA
Gênero: Drama

Referências
ALAM-MEHRJERDI, Z., MOKRI, A., DOLAN, K. Methamphetamine use and treatment in Iran: A systematic review from the most populated Persian Gulf country. Asian journal of psychiatry. 2015; 16:17-25.

GOUVEIA, P. J. B. Psicoses induzidas por anfetaminas: Um trabalho de revisão. Dissertação de Mestrado. Março, 2017. Disponível em: https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/104590/2/195181.pdf.

LINEBERRY, T.W., BOSTWICK, J.M. Methamphetamine abuse: a perfect storm of complications. Mayo Clinic proceedings. 2006; 81(1):77-84.

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ROMA: fragmentos de uma infância

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Concorre com 10 indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Direção (Alfonso Cuaron), Melhor Atriz (Yalitza Aparicio), Melhor Atriz coadjuvante (Marina de Tavira), Melhor Roteiro Original, Melhor Fotografia, Melhor Filme Estrangeiro (México), Melhor Edição de Som, Melhor Mixagem de Som, Melhor Design de Produção (Eugenio Caballero, Bárbara Enriquez)

O diretor mexicano Alfonso Cuarón (ganhador do Oscar por Gravidade) apresenta de forma intimista, mas com quadros grandiosos e repletos de detalhes, um olhar sobre suas memórias de infância na Cidade do México, no início da década de 70, em um bairro chamado Roma (que dá título ao filme). Roma é apresentado sob a perspectiva de uma jovem indígena que trabalha como empregada doméstica para uma família branca de classe média. Ela também é a babá dos filhos do casal e essa personagem foi inspirada na babá da vida real de Cuarón, Liboria “Libo” Rodríguez, que desempenhou um papel importante em sua criação e a quem ele dedicou esse filme.

Desde a abertura, que mostra a água sendo jogada em um chão de azulejo e nela surge o reflexo de um céu que parece estar distante demais da sujeira que escorre pelo ralo, é revelado que a água é a metáfora condutora da história. Seja para mostrar a separação aparente das classes sociais, como analisou o cineasta Guillermo Del Toro [1], seja para dar voz finalmente a personagem principal em um dado ponto da história.

Fonte: https://goo.gl/5bddhj

Em todos os sentidos, Roma é o olhar do Cuáron sobre alguns recortes de sua infância, especialmente sobre a babá que, segundo ele, o criou e contou-lhe histórias de sua aldeia e seus costumes, fatos esses que o inspiraram em sua trajetória como cineasta [2]. Mas, não ouvimos essas histórias de Cleo, a babá interpretada por Yalitza Aparicio em seu primeiro filme, nem sabemos como é a sua família, nem temos a verbalização de suas angústias. O que vimos, na realidade, é a representação do seu silêncio ao acompanharmos sua rotina na casa da família. Ela limpa, faz compras, lava roupa, apaga as luzes, abre os portões, cuida do cachorro, coloca as crianças para dormir e, principalmente, escuta as crianças, compartilha dos seus mundos, o que aparentemente não é algo que os pais fazem.

Ao mesmo tempo que a família é grata a ela, o que é mostrado em pequenos gestos, como quando a levam ao médico para que tenha os cuidados necessários em sua inesperada gravidez, ou compartilham alguns momentos de intimidade, também pode ser observado nos detalhes da convivência a aparente irreconciliável separação entre as classes. O lugar que, de fato, Cleo ocupa naquela família transita entre dois extremos, do tipo, salvou as crianças, que ótimo, somos gratos, estamos todos emocionados, agora vai preparar uma vitamina de banana.

Em Roma, as falas estão sempre em segundo plano perante uma fotografia exuberante, apresentada em uma tela panorâmica e em preto e branco. Assim, quando a mãe da família diz a Cleo, em um momento de embriaguez, “estamos sozinhas; não importa o que eles digam, nós mulheres estamos sempre sozinhas”, novamente, temos o silêncio e o espaço como resposta.

Fonte: https://goo.gl/Nr1b8S

Dos quatro filhos do casal, é Pepe (Marco Graf, que talvez seja a representação do Alfonso Cuarón no filme) que tem mais destaque, pois é a criança mais nova e, consequentemente, a que fica mais tempo com Cleo. Com Pepe, Cuáron traz a premissa de que “tudo é cíclico”, conforme analisa o cineasta Guillermo Del Toro [1], por isso que ele sempre fala de sua vida adulta no passado, quando teve diferentes profissões e viveu inúmeras experiências. Um dos momentos mais bonitos no filme ocorre entre os dois, quando Pepe deitado em um ponto do telhado se recusa a levantar, pois está morto (já que o irmão disse que sua missão nas brincadeiras de pistola com água era morrer). Cleo deita-se também, assim quando é questionada por Pepe sobre o que está fazendo, ela diz: “estou morta”. E acrescenta: “Olha só, gostei de estar morta”. Como diz Caleb Crain [2],

Não há muitos filmes capazes de transmitir o prazer de estar no mundo sem qualquer outro objetivo além da apreciação. Assim, talvez, em parte, a gratidão do espectador por ser lembrado deste prazer é o que faz com que os personagens deste filme sejam tão caros.

Voltando a metáfora da água, citada por Del Toro [1], para contar alguns aspectos importantes na vida da personagem principal, tem-se em uma das sequências Cleo e a avó da família em uma loja de móveis, quando assistem assustadas uma manifestação estudantil se transformar em um motim policial. Cuarón não identificou o incidente, mas é conhecido no México como o Massacre de Corpus Christi de 1971. Nesse contexto, aparece em frente a Cleo, com uma arma na mão, o pai do seu filho que, ironicamente, está com uma camisa dos desenhos “Amar é”. Com o susto, a bolsa se rompe, a água jorra e, mais tarde, o bebê nasce morto. Acompanhamos o olhar dela para a criança morta sendo enrolada em uma mortalha branca, não há música, nem palavras, só a imagem e o som ambiente do movimento dos médicos, das enfermeiras e, especialmente, do seu choro sufocado. Vale ressaltar que nenhuma música foi usada no filme, o som vem apenas das ações que acontecem na tela.

Fonte: https://goo.gl/PD5etM

A outra sequência que mostra a força da água e, consequentemente a força de Cleo, é um dos momentos mais impactantes do filme. Há o barulho das ondas, o grito das crianças e o desespero da babá para conseguir resgatá-las, mesmo sem saber nadar. Quando finalmente consegue e volta a areia e toda a família a abraça, ela fala: “Eu não a queria. Eu não a queria. Eu não queria que ela nascesse.” Ali, ela conseguiu trazer à tona a dor e a angústia que a sufocavam, pois em todos os acontecimentos ela estava sempre em segundo plano, como se ela tivesse vindo ao mundo apenas para servir, para tornar a vida dos outros mais fácil.

Fonte: https://goo.gl/YpUHFv

A criança que eu fui não viu a paisagem tal como o adulto em que

se tornou seria tentado a imaginá-la desde a sua altura de homem.

A criança, durante o tempo que o foi, estava simplesmente na

paisagem, fazia parte dela, não a interrogava, […]

(SARAMAGO, 2006, p. 18 [3])

Quando recordo a minha infância, as imagens vêm em recortes sem uma sequência definida, não lembro de acontecimentos mundiais grandiosos vinculados a alguma passagem, mas de pequenas coisas que me marcaram, como a última vez que estive no colo da minha mãe, ou quando eu corria atrás dos barquinhos de papel jogados na lama. Mas é sempre a pessoa adulta recordando, então, como disse Saramago em suas “pequenas memórias”, talvez essas passagens tão importantes para mim sejam um tanto diferenciadas da real experiência. Assim, também, parece-me coerente deduzir que Cuáron retratou a babá que ele imaginava, ou seja, recriada por ele. Então, mesmo que ela ainda esteja viva e que eles mantenham contato, aquelas passagens descritas no filme, vivenciadas por ele quando criança, estão sujeitas a composição criada em sua memória, a partir do seu olhar. Nesse caso, um olhar em preto e branco, detalhadamente orquestrado, ainda que sem música, mas indubitavelmente pessoal. É um filme sobre Cuáron, não sobre Cleo.

FICHA TÉCNICA:

ROMA

Título original: ROMA
Direção: Alfonso Cuarón
Elenco: Yalitza Aparicio, Marina de Tavira, Marco Graf
Países: México, EUA
Ano: 2018
Gênero: Drama

REFERÊNCIAS:

[1] https://twitter.com/RealGDT/status/1084701184110153729

[2] https://www.nybooks.com/daily/2019/01/12/roma-through-Cuaróns-intimate-lens/

[3] SARAMAGO , José. As pequenas memórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

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First Man: a odisseia no espaço que há entre nós

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Concorre com 4 indicações ao Oscar:

Melhor Edição de Som, Melhor Mixagem de Som, Melhor Direção de Arte, Melhor Efeitos Visuais

“Um pequeno passo para um homem,
um salto gigantesco para a humanidade.”
(Neil Armstrong, 1969)

Em 1969, as duas grandes potências mundiais, EUA e URSS, ainda viviam em meio aos embates “silenciosos” da Guerra Fria, que em uma síntese do sociólogo francês Raymond Aron foi um período de “paz impossível, guerra improvável” [1].  Nos EUA, muitas pessoas iam às ruas em manifestações exigindo que as tropas americanas se retirassem do Vietnã, havia intensos conflitos raciais e um crescimento do movimento de contracultura. Em agosto desse mesmo ano, em uma fazenda em Nova York ocorria o mais famoso festival de música dos tempos modernos, “WOODSTOCK”, e a música ao redor do mundo contava com grupos e nomes como The Doors, Led Zeppelin, Janis Joplin e Beatles.  

Especialmente nesse ano, o mundo era palco de extremas possibilidades no desenvolvimento tecnológico, afinal o homem finalmente havia pisado na Lua, mesmo usando um computador infinitamente menos potente que o smartphone que você usa hoje e em foguetes que pareciam a evolução de uma claustrofóbica lata de sardinha. O Apollo Guidance Computer tinha uma CPU de 15 bits, não possuía um sistema operacional, era mais uma espécie de super calculadora programável, mas, ainda assim, era impressionante para o seu tempo, e estava pelo menos 10 anos à frente da tecnologia da sua época [2].

Fonte: encurtador.com.br/JQ179

First Man (O primeiro homem), de Damien Chazelle (La la land e Whiplash), traz um olhar mais intimista para toda a trajetória que culminou na missão Apollo 11 em 1969. Com isso, o filme mostra a missão sob o ponto de vista de Neil Armstrong (Ryan Gosling), e a forma que a história é conduzida parece ser uma tentativa de nos colocar no lugar dele, seja no uso de uma fotografia espetacular e realista do espaço e uma mixagem de som que nos transporta para dentro das cápsulas espaciais, seja dando vislumbre de suas emoções por detrás do seu silêncio e fuga. Desta forma, as questões políticas e técnicas relacionadas à missão ficam em segundo plano.

Fonte: encurtador.com.br/aikuH

O roteiro, assinado pelo vencedor do Oscar por Spotlight, Josh Singer, é uma adaptação do livro de 2005 de James R. Hansen. Nesse processo de tornar o filme mais intimista, mesmo que tenha como premissa o desbravar do espaço e o caminhar no solo lunar, são mostrados alguns recortes da relação de Neil com os seus filhos e, especialmente, com sua esposa. Primeiro, eles foram afetados pela morte de sua filha Karen, aos 3 anos, de Câncer.  Mesmo que Armstrong  contasse com todo o apoio tecnológico da medicina da época, não conseguiu evitar o sofrimento da menina após as sessões de radioterapia, nem sua partida tão repentina. No filme, esse acontecimento é apontado como um possível fator para tornar Armstrong ainda mais ausente emocionalmente. Depois, o entendimento de que a própria jornada de um astronauta em uma missão tão arrojada já estava eclipsada por uma melancólica sensação de partida e finitude.

Fonte: encurtador.com.br/lopqy

A forma realista em que cada situação é apresentada faz com que, mesmo na imensidão do espaço, onde talvez seja mais comum capturar os momentos de silêncio e contemplação (como em Gravidade, por exemplo), temos sempre uma sensação de claustrofobia, agitação e medo, como se algo ruim fosse acontecer a qualquer momento.  Essa sensação é exponencializada especialmente em virtude do realismo do som e da câmera posicionada de tal forma que você também pensa estar na cápsula com os astronautas.

A impressão que temos é que a possibilidades dos eventos ali programados funcionar é bem menor do que a perspectiva latente de um fracasso. Assim, a finalização abrupta da vida dos astronautas Ed White (Jason Clarke), Gus Grissom (Shea Whigham) e Roger B. Chaffee (Corey Michael Smith) por causa da explosão de um cockpit quando era realizada uma aparentemente tranquila etapa de testes de pré-voo da missão Apollo, mostrou o quão tênue era a linha entre a vida e a morte para os astronautas naquele tipo de missão.  

Janet, esposa de Armstrong, interpretada com maestria por Claire Foy, mostra como foi conviver com alguém cujo trabalho poderia, muito provavelmente, matá-lo, considerando que esse foi o destino de vários astronautas durante o processo de aperfeiçoamento dos equipamentos e métodos que culminou na Apollo 11.  

Fonte: encurtador.com.br/clmW9

Segundo A.O. Scott [3],

Janet às vezes parece passar os dias como se estivesse em uma antecipação à viuvez, e o progresso dos programas Gemini e Apolo foi medido em parte pelas vidas perdidas. Mesmo para espectadores versados ​​na história da NASA, que conhecem o destino de certos personagens, as mortes são um choque. Elas são dramatizadas com tato cinematográfico, de modo que o que você registra não é o horror, mas uma ausência súbita e desorientadora, como se os homens tivessem desaparecido no espaço, em vez de cair na terra ou queimar no momento do lançamento. [3]

Fonte: encurtador.com.br/hFH05

O homem, bicho da terra tão pequeno
Chateia-se na terra
Lugar de muita miséria e pouca diversão,
Faz um foguete, uma cápsula, um módulo
Toca para a lua
Desce cauteloso na lua
Pisa na lua
Planta bandeirola na lua
Experimenta a lua
Coloniza a lua
Civiliza a lua
Humaniza a lua.
(O Homem; As Viagens, Carlos Drummond de Andrade)

Mas, talvez o maior desafio de Chazelle tenha sido realizar uma viagem na aparentemente impenetrável psique de Armstrong. Neil é retratado como uma pessoa de poucas palavras, que não expõe seus sentimentos, nem costuma expressar emoções, sejam elas de medo, alegria ou raiva. Isso reforça a descrição que Janet fez uma vez sobre ele em uma entrevista: “O silêncio é a resposta de Neil Armstrong. A palavra ‘não’ é um argumento. Ele é um homem muito solitário.” [4] Talvez para Armstrong, parafraseando a poesia do Drummond, tenha sido mais fácil humanizar a lua com a marca que deixou de sua pegada no solo e as imagens eternizadas de sua caminhada naquele ambiente até então misterioso do que entender o universo de rostos, gestos e sentimentos que o cercava quando estava na Terra.

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Fonte: encurtador.com.br/ahqK1

Como bem ressaltou Mark Kermode [5],

Significativamente, o anti-herói aparentemente sem emoção de Gosling parece estar perdido no espaço mesmo quando está na Terra. De vez em quando, o diretor de fotografia Linus Sandgren o enquadra sozinho em meio aos espaços escuros da casa de Armstrong – a câmera olhando através de portas, corredores e escotilhas que pintam uma mortalha escura em torno de sua figura suavemente iluminada.

Fonte: encurtador.com.br/agJY5

Só resta ao homem
(estará equipado?)
A dificílima dangerosíssima viagem
De si a si mesmo:
Pôr o pé no chão
Do seu coração
Experimentar
Colonizar
Civilizar
Humanizar
O homem
Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
A perene, insuspeitada alegria
De con-viver.
(O Homem; As Viagens, Carlos Drummond de Andrade)

Responsável por realizar uma das maiores façanhas do ser humano, que foi pisar no solo lunar e iniciar, juntamente com Yuri Gagarin (da ex-URSS) e outros astronautas,  uma jornada rumo a outros planetas, feito este que ainda é um grande desafio tecnológico da humanidade, suas palavras e seu comportamento pareciam não condizer com a magnitude da sua conquista.

Talvez seja aí que reside o interesse que há em torno de sua pessoa, e mesmo com tantos filmes já realizados sobre a jornada do ser humano ao espaço, retratando situações reais ou utópicas, Neil Armstrong e sua breve e importante caminhada na Lua ainda causam curiosidade, emoção e dúvida. Ao final, parece que, para além da nacionalidade, das conquistas e das ideologias, o ser humano, aquele que pareceu tão pequeno (quase insignificante) quando a Terra foi observada do espaço ou da Lua, tem um desafio que perpassa o tempo. Ou seja, novamente parafraseando Drummond, de viajar de si a si mesmo e humanizar-se no processo de conviver.

FICHA TÉCNICA:

O PRIMEIRO HOMEM

Título original: First Man
Direção: Damien Chazelle
Elenco: Ryan Gosling, Claire Foy, Pablo Schreiber, Kyle Chandler
Ano: 2018
País: EUA
Gênero: Drama

 

REFERÊNCIAS:

[1] http://www.ipri.pt/images/publicacoes/revista_ri/pdf/r7/RI07_03PHassner.pdf

[2] https://www.popularmechanics.com/space/moon-mars/a25655/nasa-computer-iphone-comparison/

[3] https://www.nytimes.com/2018/10/10/movies/first-man-review-ryan-gosling-damien-chazelle.html

[4] https://www.theguardian.com/science/1999/jul/18/spaceexploration.theobserver

[5] https://www.theguardian.com/film/2018/oct/14/first-man-review-damien-chazelle-ryan-gosling-claire-foy-apollo-11-neil-armstrong

Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=GKQXhQ8RuZI

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