Criação e destruição em “Instinto Selvagem”

Lançado há 22 anos, “Instinto Selvagem” ainda é um dos filmes mais lembrados quando se fala em suspense, erotismo e sensualidade no cinema, uma combinação que, em mãos erradas, poderia facilmente ter se inclinado ao satírico ou à “pornodiversão”. Ambientado em São Francisco, na Califórnia, a excelente produção, dirigida por Paul Verhoeven, mostra a forte atração do detetive Nick (Michel Douglas) pela romancista Catherine Tramell (Sharon Stone), acusada do assassinato de seu amante Johnny Boz, dono de uma casa noturna na badalada cidade do Oeste americano.

Tudo começa quando Nick é destacado para investigar o caso e se depara com a envolvente Catherine, que desencadeia no agente uma espécie de Síndrome de Estocolmo1 às avessas. Combalido por um passado marcado por alcoolismo e drogas (estereótipo que Hollywood adora explorar nos personagens masculinos – veja-se o exemplo atual de “Sem Escalas” [EUA/França – 2014]), Nick acaba por ceder às manipulações e sensualidade da acusada. O “jogo” ganha novos contornos quando a psiquiatra forense Beth Gardner (ex-namorada de Nick Curran) passa a integrar a equipe de investigação e descobre que o assassinato de Boz é uma cópia fiel de um dos casos relatados num dos romances publicados por Catherine. No envolvimento desproporcional de Nick, ninguém escapa de ser um potencial suspeito, numa espécie de inquirição generalizada, difusa.

Extremamente bem desenvolvido, o filme exige maturação do espectador, já que se ancora numa estética que oferece múltiplas possibilidades, onde o sexo e a sensualidade são elementos de poder (bem ao estilo “foucaultiano”), muito além de meros apetrechos para se prender a atenção; em alguma medida a obra faz lembrar o alerta de inúmeros filósofos e intelectuais, que apontam a “imperturbabilidade” da alma (ataraxia2) como a antítese da incompreensão e domínio dos sentidos. Pode-se perceber claramente a entrada dos personagens no escabroso “labirinto” emocional tecido na trama das paixões desenfreadas.

A liberdade, neste sentido, é acompanhada do fardo do preço que se paga pelas escolhas que vão sendo feitas. Para cada ação, há uma reação correspondente, e nem sempre as coisas saem como planejado (aliás, nestas circunstâncias, praticamente nada sai como se espera).

Como bem pontua Sêneca, os arroubos provocados pelas emoções são meramente decorrentes de más interpretações da realidade. Presume-se, desta forma, que alguém inebriado pelo calor da confusão não tem condições de interpretar imparcialmente a questão como um todo (o caso de Nick). Muitos pensadores da linha estoica diriam que a “justa medida” nas ações vêm do autocontrole e da firmeza de quem a pratica. Não se deve, neste contexto, esperar sensatez de alguém que explicitamente aparenta fragilidade. Obviamente que há quem defenda que uma vida sem intensidade, sem paixões, é uma vida marcada pelo crivo da indiferença, do ostracismo e da falta de originalidade, pois esta [a originalidade, inclusive nas relações afetivas] vem justamente da possibilidade de se exercer a transgressão, sem imposições apriorísticas. No entanto, para quem deseja trilhar este caminho (da entrega total aos sentidos), como bem mostra o filme, deve-se estar disposto em igual medida a pagar o ônus das alternativas escolhidas.

Nick Curran é uma expressão bem acabada daqueles que experimentam “estados mentais confusos” [e que atire a primeira pedra quem nunca os experimentou], o que acaba por engendrar um ambiente fenomenológico marcado pela conspiração e pela desconfiança. A mulher bonita e sensual, na belíssima atuação de Stone (içada à fama neste longa) poderia ser provocantemente – e ironicamente – associada à “estetização” da própria pulsão de morte, o Tânato que em complementaridade a Eros empurra a vida, chacoalhando-a quando esta [vida] começa a apresentar os sinais de cansaço e apatia. No entanto, continuar por longos períodos nesta conjuntura (de vulnerável entrega) parece que acabaria por solapar os personagens numa espécie de “dissonância social”, de conflito irremediável.

“Instinto Selvagem” mostra quão falsas podem ser as conclusões que se fundamentam exclusivamente pelo calor das paixões; expõe a própria dinâmica da vida, balizada entre a tônica da criação (sexo) e a da destruição (morte), mas também aponta para uma espécie de terceira via, de busca de uma coerência para se evitar o eterno regresso a “velhas emboscadas”. Pois, parece, enquanto houver a existência simplesmente no sentido ordinário da palavra (ou seja, um existir por existir, sem reflexão), se estará totalmente sob a influência do desejo (e não o contrário, como muitos querem acreditar).

Notas

1 – Síndrome de Estocolmo é o nome dado a um estado psicológico particular em que uma pessoa, submetida a um tempo prolongado de intimidação, passa a ter simpatia e até mesmo sentimento de amor ou amizade perante o seu agressor. A síndrome de Estocolmo parte de uma necessidade, inicialmente inconsciente. Fonte: Brasil Escola – disponível em: <http://www.brasilescola.com/doencas/sindrome-estocolmo.htm – acessado em 08/03/2014>.

2– Ausência de perturbação: a paz na alma. É o nome grego (especialmente em Epicuro e nos estoicos) da serenidade. É também uma experiência de eternidade: “Porque não parece em nada um ser mortal um homem que vive em bens imortais”, escreve Epicuro (Carta a Meneceu, 135). Daí a ataraxia, como experiência espiritual, é o equivalente da beatitude, em Espinosa, ou do nirvana, no budismo. Fonte: COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico – São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011 (pág. 63).

 FICHA TÉCNICA:

INSTINTO SELVAGEM


Elenco: Michael Douglas (Detetive Nick Curran); Sharon Stone (Catherine Tramell); George Dzundza (Gus)
Gênero: Suspense
Duração: 127 min.
Lançamento: 1992
Direção: Paul Verhoeven
País: EUA

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.