Tokyo Ghoul: a complexidade de ter múltiplas identidades

É melhor machucar a si mesmo do que machucar os outros. Pessoas gentis podem ser felizes assim.
Ken Kaneki

O transtorno dissociativo de identidade é visto até hoje como um grande desafio para a Psicologia e Psiquiatria. Segundo Faria (2008), o transtorno de personalidade múltipla como era visto antigamente é um transtorno mental de difícil diagnóstico devido à sintomatologia diversificada e à sua forte comorbidade. Nos dias de hoje é conhecida como transtorno dissociativo de identidade, porém só ficou sendo considerado como transtorno mental, quando a Associação Americana de Psiquiatria (APA) conseguiu diagnosticar em meados de 1980. No âmago das características da síndrome, que não é um artefato iatrogênico e cuja característica essencial é a existência dentro do indivíduo de duas ou mais personalidades distintas, cada qual dominante num momento específico, encontram-se as chamadas personalidades alternativas, múltiplas ou alters (Hacking, 1995).

Outros autores fomentam que o que origina o transtorno são traumas vividos pelos indivíduos, sendo estes na infância, adolescência ou idade adulta, podendo ser físicos, psíquicos e emocionais. Ao passar por tais perturbações o sujeito pode desenvolver outra personalidade além da sua “primária”, com objetivo de defender-se do sofrimento vivido, pois esse transtorno se relaciona com processo mental dissociativo, incumbido de defender a mente, seja pela descompensação mental, cognitiva e física, seja  pela desconexão que o sujeito faz  com sua personalidade vivida naquele momento.

Para Freud (1923/1996) “(…) talvez o segredo dos casos daquilo que é descrito como ‘personalidade múltipla’ seja que as diferentes identificações se apoderam sucessivamente da consciência.” (pp. 43). Ele em conjunto com Joseph Breuer, apresentou informações que estão em consonância com os critérios diagnósticos atuais da Personalidade Múltipla:

(…) Num mesmo indivíduo são possíveis vários agrupamentos mentais que podem ficar mais ou menos independentes entre si, sem que um ‘nada saiba’ do outro, e que podem se alternar entre si em sua emersão à consciência. Casos destes, também ocasionalmente, aparecem de forma espontânea, sendo então descritos como exemplos de ‘double consciente’ (Freud, 1910 [1909]/1996, p.35).

Esse transtorno de tão complexo que é, vem sendo descrito além da literatura em outros meios de comunicação como em documentários na BBC, Discovery Home & Healph, filmes como em “Clube da luta” e o mais atual “Fragmentado” e em animes no caso de “Tokyo Ghoul”.

Tokyo Ghoul é um anime de origem japonês que se passa na cidade Tóquio, em um mundo parecido com os de hoje. Todavia, existem outros seres que habitam a grande metrópole, indivíduos quase idênticos as outras pessoas, a única diferença é que eles sobrevivem se alimentando dos seres humanos. Daí o título da animação, um lugar em que coexistem pessoas normais e outros seres considerados por muitos como “monstros”.

É certo que humanos e os ghoul vivem em guerra, uma batalha sombria que muitos preferem ignorar, os únicos humanos que enfrentam esses seres são da organização Comissão e Contra Medidas Ghoul (CCG) ou mais conhecidas pelos ghouls como “Pombas”, eles lutam contra os ghouls desde sempre e tudo começa a mudar quando alguém adentra essa história.

O protagonista da serie é um jovem estudante de literatura chamado de Ken Kaneki. Como os demais cidadãos dessa Tokyo, Kaneki não se importa com o ghouls, tudo muda quando ele conhece a linda e devoradora de livros, como ele, Rize (Atenção, alerta de spoiler). Eles saem para um encontro na cafeteria da Anteiku, quando eles terminam ela comenta que tem muito medo dos ghouls e gostaria que ele lhe levasse em casa. Tudo fazia parte dos planos de Rize, uma ghoul mais conhecida como “Gulosa”, que vivia aterrorizando o Distrito 11. Quando Kaneki percebe o plano dela já era tarde demais; Rize, do modo mais brutal possível, tenta matar ele e por sorte ela é atingida em uma construção. Contudo, Kaneki já estava muito debilitado e precisando de um transplante de órgãos, recebe então os de Rize e acaba se tornando metade ghoul, metade humano.

O transtorno de Kaneki começa quando ele percebe não ser um mero humano, com os órgãos de Rize ele ganha novas habilidades, não obstante também perde o apetite por comidas “normais”, só conseguindo se saciar ao comer carne humana. O dilema dele inicia quando este necessita comer humanos para sobreviver. Kaneki, no entanto, luta contra essa sede considerada por ele como algo abominável e até pura maldade. Embora isso aconteça, ele percebe que pode sim tentar uma vida “normal” sendo metade ghoul, metade humano, comendo somente carne de quem morreu de forma natural (sem ser assinado por ele, no caso).

Mesmo após ter lutado contra seu lado sombrio por ser ghoul, Kaneki tem uma personalidade bondosa, gentil, que sempre coloca os outros em primeiro lugar, ao invés dele. Isso muda quando ele encontra outro ghoul, Jason, que fora torturado em prisão na CCG; utilizando-se da mesma abordagem, Jason machuca das formas mais horríveis possíveis Kaneki, que não aguentando mais tanta dor, sofrimento, desencadeia uma nova personalidade, sombria, com sede de matança.

Kaneki ao todo possui três personalidades, a primeira é a sua principal, o Ken Kaneki, antes de se tornar ghoul, ele já havia sofrido muitos traumas na infância e tendo recalcado esses sentimentos, se tornou uma pessoa solitária, mas com um grande coração. O Kaneki ghoul, após ser torturado por Jason, muda completamente de personalidade, pois além de ser massacrado fisicamente e psiquicamente, ele aceita seu lado macabro ghoul que Rize lhe proporcionou. Virando um sujeito frio, com cabelos brancos, pele mais branca do que o normal, nesse estado ele tenta ainda não ferir as pessoas que gosta, mas acaba matando muitos outros, inclusive ghouls (ele até come os ghouls). Após sofrer novo trauma, a perda de um amigo e ter se entregado para a CCG, Kaneki se torna de novo outra pessoa, agora chamado de Kaise Sasaki, um membro de um grupo especial da CCG que caça e mata ghouls. Nessa nova identidade, Kaneki não se lembra de suas outras personalidades, tão pouco do que viveu no passado, ele se intitula um ser que faz a justiça acabando com os temidos monstros Ghoul.

Do personagem em questão o transtorno dissociativo de identidade é algo profundo, interessante de se ver registrado e abordado de modo diferenciado. Contudo, é importante dizer que cada pessoa passa pelo processo traumático de modo distinto, podendo ou não desenvolver tal transtorno. Em relatos de casos descritos por Santos (2015), durante a internação de um paciente, ao falar de seu passado, ou em consultas mais demoradas, o sujeito apresentava episódios característicos de dissociação, em que mudava bruscamente o tom de voz, a fisionomia do rosto, o modo de falar e respondia como sendo outra pessoa. O tratamento ideal de TDI se dá a partir do trabalho mútuo de psicoterapia e com medicação supervisionada, prescrita por um psiquiatra. O que se espera do tratamento é que a pessoa possa equilibrar as personalidades. Um desafio e tanto para a Psicologia e a Psiquiatria.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

Diretor: Shuhei Mota
Elenco: Masataka Kubota, Fumika Shimizu, Nobuyuki Suzuki, Shun’ya Shiraishi; 
Gênero: Suspense; Terror.
País:Japão
Ano: 2014

REFERÊNCIAS:

FARIA, M. A. O Teste de Pfister e o transtorno dissociativo de identidade. Aval. psicol. v.7 n.3 Porto Alegre dez. 2008.

FREUD, S. (1996). O Ego e o ID. Em. J. Strachey (Org. e Trans.), Edição STANDARD Brasileira das Obras Psicológicas Completas. (Vol. XIX). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1923).

FREUD, S. (1996). Cinco Lições de Psicanálise. In. J. Strachey (Ed. e Trans.), Edição STANDARD Brasileira das Obras Psicológicas Completas. (Vol. XI). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1910[1909]).

HACKING, I. (1995). Múltipla Personalidade e as Ciências da Memória. Rio de Janeiro: José Olympio.

SANTOS, M. P.; GUARIENTI, L. D.; SANTOS, P. P.; DAURA, E. F.; DAL’PIZOL, A. D. Transtorno dissociativo de identidade (múltiplas personalidades): relato e estudo de caso. Revista Debates em Psiquiatria, 2015.