O brincar na vida da criança

Brincar é parte primordial na vida da criança, tão importante a ponto de a Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos reconhecê-lo como direito de toda criança (GINSBURG, 2017). Sendo um fenômeno tão comum, o brincar desperta interesse da Psicologia devido à influência que exerce na infância e à motivação interna por trás desse fenômeno. A versão online do dicionário Michaelis explica o termo brincar como “entreter-se com objetos ou atividades lúdicas e simular situações da vida real”. Pearson (s. d.) diz haver dificuldade na conceituação de brincar, mas revela um modelo que identifica cinco características que atestam uma provável brincadeira, são elas: não-literalidade; simulação de emoção real; motivação interna e livre escolha.

Embora o senso comum deduze não acontecer nada enquanto as crianças gastam tanto tempo “só jogando”, como se o brincar fosse apenas uma indulgência concedida aos pequenos (CALDWELL s.d.), Vázquez (2015) escreve que a brincadeira não é apenas entretenimento como também fator por trás do desenvolvimento infantil, através da qual são ativadas a afetividade, a motricidade, inteligência, criatividade e sociabilidade; assim sendo, o brincar, de certo modo, é a razão de ser da infância.  Valério (2016) confirma ao frisar que isso não compreende apenas diversão prazerosa, mas também um meio através do qual a criança expressa seus sentimentos e aprende. Há quem diga que os pequenos conhecem a vida jogando, pode-se parafrasear tal afirmação por uma frase mais abarcadora, “os pequenos conhecem a vida brincando”.

Em virtude disso, a brincadeira deve ser vista como algo sério, pois a criança investe toda sua afetividade nisso (ROLIM; GUERRA; TASSIGNY, 2008).  Utilizam o brinquedo para externar suas emoções, construindo um mundo a seu modo e, dessa forma, questionam o universo dos adultos. Elas já nascem em um meio pautado por regras sociais e o seu Eu deve adaptar-se a essas normas. Na brincadeira, ocorre o processo contrário: são as normas que se encaixam em seu mundo. Não é uma tentativa de fuga da realidade, mas, sim, uma busca por conhecê-la cada vez mais. No brincar, a criança constrói e recria um mundo onde seu espaço esteja garantido. As pressões sofridas no cotidiano de uma criança são compensadas por sua capacidade de imaginar; assim, fantasias de super-heróis, por exemplo, são construídas (MELO & VALLE, 2005 apud ROLIM; GUERRA; TASSIGNY, 2008). 

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Aberastury enfatiza a brincadeira infantil como externalização dos medos, angústias e problemas que a criança enfrentou; assim, ela revive ativamente tudo o que sofreu passivamente, por fim modificando um final que lhe foi penoso, consentindo relações que seriam proibidas na vida real. Melo e Valle (2005 apud ROLIM; GUERRA; TASSIGNY, 2008) escrevem que, através do brinquedo e sua ação lúdica, a criança expressa sua realidade, ordenando e desordenando, construindo e desconstruindo um mundo que lhe seja significativo e corresponda às suas necessidades intrínsecas para seu desenvolvimento global. Ginsburg (2007) segue linha semelhante ao ressaltar que, durante uma brincadeira, a criança está navegando em um mundo perfeitamente criado somente para suprir suas necessidades; além disso, por mais que seja pouco verbal, o infante pode ser hábil a expressar suas visões, experiências e mesmo frustrações através do brincar.

À medida em que a criança cresce, suas necessidades mudam ou são acrescidas outras, assim sendo, é inevitável que a forma de brincar se transforme e os próprios brinquedos sejam substituídos por outros. “[…] Assim, como as necessidades das crianças vão mudando, é fundamental conhecê-las para compreender a singularidade do brinquedo como uma forma de atividade” (ROLIM; GUERRA; TASSIGNY, 2008).

“[…] Uma criança muito pequena sempre deseja algo de imediato. Ninguém jamais encontrou uma criança com menos de 3 anos de idade que planejasse fazer algo específico em um futuro próximo. O intervalo entre o desejo e a satisfação é muito curto. Entretanto crianças um pouco maiores, em idade pré-escolar, já estão sujeitas a desejar algo impossível de ser realizado imediatamente. Vygotsky (1998) conclui que o brinquedo surge dessas necessidades não realizáveis de imediato. Eles são construídos quando a criança começa a experimentar tendências não realizáveis: para resolver a tensão gerada pela não realização de seu desejo, a criança envolve-se em um mundo ilusório e imaginário onde seus anseios podem ser realizados no momento em que quiser. Esse mundo é o brincar” (ROLIM; GUERRA; TASSIGNY, 2008).  

Vê-se a aquisição da capacidade de imaginar e o desenvolvimento desse processo através da brincadeira; a criança já não está limitada ao mundo físico, aos fenômenos captados por seus olhos, mas ao seu pensamento concreto une-se o pensamento abstrato, permitindo ao infante a diferenciação entre o brinquedo e a ideia que este representa. Vygotsky (1998 apud ROLIM; GUERRA; TASSIGNY, 2008) diz que, através do brinquedo, a criança aprende a agir numa esfera cognitiva, ao invés de uma esfera visual exterior, tornando-se dependente das motivações e tendências interiores, estando imune aos incentivos dos objetos externos.

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Poder imaginar é uma capacidade sinalizadora de amadurecimento e evolução cognitiva da criança, e um importante passo gradual na sua autonomia em relação aos pais e ao mundo em geral. Vygotsky (1998 apud ROLIM; GUERRA; TASSIGNY, 2008) escreve que o criar uma situação imaginária não é algo acidental na vida da criança, mas a primeira manifestação da independência da criança em relação às restrições situacionais.

O brinquedo cria uma zona de desenvolvimento proximal na criança. […] essa zona de desenvolvimento proximal é um domínio psicológico em constante transformação, refere-se ao caminho de amadurecimento de suas funções, ou seja, ações que, hoje, a criança desempenha com a ajuda de alguém conseguirá, amanhã, fazer sozinha. Ao brincar ela se solta e se permite mais, vai além do comportamento habitual para sua idade e de suas atitudes diárias. Ela se torna maior do que realmente é na realidade. Assim, o brincar vai despertar aprendizagens que se desenvolverão e se tornarão parte das funções psicológicas consolidadas do indivíduo (OLIVEIRA, 1995 apud ROLIM; GUERRA; TASSIGNY, 2008).

Assim sendo, fica evidente a importância da brincadeira na vida criança, uma atividade que não somente beneficia o infante no presente como também retumbará em benefícios no seu futuro. Como escreve Santamaría (sem data), brincar significa indagar, conhecer, descobrir tudo o que é necessário para tornar-se adulto. Como certa vez disse o pedagogo Fred Rogers, a brincadeira é realmente o trabalho da infância.

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Referências:

Dicionário Michaelis. Disponível em <http://www.michaelis.uol.com.br>. Acesso em: 16 set. 2017. 

CALDWELL, Bettye M. Importance of Play in Early Childhood Education. Fisher-Price. Disponível em <http://www.fisher-price.com>. Acesso em: 14 set. 2017. 

GINSBURG, Kenneth R. The importance of play in Promoting Healthy Child Development and Maintaining Strong Parent-Child Bonds. AAP Gateway. Disponível em <http://www.aappublications.org>. Acesso em 17 set. 2017.  

PEARSON, Charese. Importance of Play in the Early Childhood Classroom. Miami University. Disponível em <http://www.miami.edu/>. Acesso em 15 set. 2017.  

ROLIM, Amanda Alencar Machado; GUERRA, Siena Sales Freitas; TASSIGNY, Mônica Mota.  Uma leitura de Vygotsky sobre o brincar na aprendizagem e no desenvolvimento infantil. Humanidades. Fortaleza, v. 23, n. 2, p. 176-180, jul./dez. 2008.  

SANTAMARÍA, Marisa Alonso. La importancia del juego para el aprendizaje del niño. Disponível em <http://www.guiainfantil.com/>. Guía Infantil. Acesso em 17 set. 2017.

VÁZQUEZ, Cristian. ¿Por qué el juego es tan importante para los niños? Eroski Consumer.  Disponível em <http://www.consumer.es/>. Acesso em 14 set. 2017. 

VALÉRIO, Joana Simão. A importância do brincar no desenvolvimento da criança. Psicologia.pt. Disponível em <http://www.psicologia.pt/>. Acesso em 14 set. 2017.  

Artigo originalmente publicado no site: <https://comunidadepsi.com/>.