O adeus à Anna O.

Já nos aproximamos do final do semestre letivo. Todas as atividades se tornaram urgentes e inadiáveis e ontem vivi um desafio interessante: precisei me despedir da minha primeira paciente na clínica escola a quem chamarei simbolicamente de Anna O, em homenagem à analisanda de Breuer e Freud que inaugura os estudos de psicanálise.

Sobre verdadeira Anna O. é preciso dizer, ao menos, que também não tinha esse nome. Era Bertha Pappenheim, que aos 21 anos quando foi diagnosticada com histeria, doença exemplar da época Vitoriana, pelo médico Joseph Breuer.

A jovem estava recolhida em seu quarto sofrendo de contraturas, de paralisia no lado esquerdo do corpo, mergulhada em mutismo e delírios diversos quando recebeu os primeiros cuidados por meio de catarse e hipnose de Breuer.

Anos depois, em decorrência do tratamento de Freud, por meio da psicanálise, Bertha Pappenheim se tornou a primeira assiste social da Alemanha dedicando-se a acolher jovens judias pobres e inúmeras órfãs que eram levadas a prostituição.

O caso de Anna O. descrito por Freud no Livro Estudos Sobre Histeria, deixa claro que era preciso ouvir e interpretar as falas que vinham do inconsciente, o que os sonhos poderiam revelar e fazer de toda dor, sofrimentos banais. Com isso, Freud inaugura a psicanálise, tratamento que propõe a cura pela fala; inicia a noção da sexualidade na origem das neuroses, desenvolve a ideia da reversibilidade dos sintomas histéricos e, também, identifica evidências do amor de transferência.

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Voltemos à história da minha Anna O.!

Confesso que adiei o dia da despedida ao máximo, afinal, esses momentos propiciam os temíveis feedbacks e as avaliações. E eu estava insegura sobre qual seria a percepção da minha primeira paciente sobre o resultado do nosso ano de terapia.

Quanto a isso é preciso destacar que o trabalho desenvolvido com ela, que é estudante de psicologia, foi muito marcado pela transferência e pela contratransferência. Desde uma interação facilitada por uma transferência positiva iniciada nos primeiros contatos, até os desafios intensos do manejo continuado de transferência negativa, nos dois meses finais. Além, da inegável, contratransferência causada pelo fato de a minha Anna O. ser estudante de psicologia, conhecer das teorias e técnicas que eu aplicava nas sessões e, por fim, utilizar-se deste conhecimento como meio de resistência ao processo terapêutico.

Para o dia da despedida, eu ensaiei ao máximo todas as saídas previsíveis a fim de ter apoio em caso de dificuldades. E se ela não dissesse nada, isso significaria que ela não havia gostado do trabalho? E se ela fizesse uma crítica dura, ainda poderia ser interpretada como transferência negativa?

Enfim, como eu iria lidar com o meu ego narcisista de psicóloga em formação ante ao feedback da paciente que pegou o início da minha prática ainda tão rudimentar?

Foi assustador! Mas como os prazos não esperam, me lancei ao desafio.

E no final deu tudo certo. Ela chorou a sessão toda. Confessou que também tinha medo do dia da despedida. Agradeceu a disponibilidade e o trabalho desenvolvido: mais por ela do que por mim. Que fique claro! Disse ter ficado surpreendida com a clínica de ênfase em psicanálise, pois quando se dispôs a iniciar a terapia imaginava que ia apenas “se conhecer melhor” e não esperava que a experiência e a transferência fossem provocar tantas dores e tantas conquistas.

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Confesso que eu só não chorei, porque, afinal psicólogo não chora! Faz semblante de analista!

Mas que eu precisei lembrar disso várias vezes, eu precisei.

O bacana da experiência foi perceber na prática que o esforço do estudo, do empenho e da coragem de se arriscar mesmo sendo ainda tão iniciante trouxe resultado útil à paciente, apoiando-a a alcançar alterações concretas em suas relações e no manejo dos seus sintomas.

Quando eu lembro que perdi noite de sono preocupada com a possível ideação suicida de Anna O., mal consigo reconhecer a moça que falava comigo na última sessão. Sua libido não estava mais regredida, ela conseguiu trabalhar, não deixou a faculdade, não tinha mais crises de insônia ou de ansiedade, nem levantava a cada 10 minutos para ir ao banheiro durante a sessão.

Contudo ela ainda continua a ser minha Anna O. E como se dispôs a manter a terapia na clínica escola da Ulbra, na ênfase da psicanálise, certamente será o maravilhoso desafio de outro colega a partir do próximo ano.

REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund, 1856-1939. Obras completas, volume 2 : estudos sobre a histeria (1893-1895) em coautoria com Josef Breuer / Sigmund Freud ; tradução Laura Barreto ; revisão da tradução Paulo César de Souza — 1a ed. — São
Paulo: Companhia das Letras, 2016.

FREUD, Sigmund, 1856-1939 Cinco lições de psicanálise, Leonardo da Vinci e outros trabalhos (1909) / Sigmund Freud.

SANTOS, Manoel Antônio. A transferência na clínica psicanalística: a abordagem freudiana. Temas psicol. vol.2 no.2 Ribeirão Preto ago. 1994

ISOLAN, Luciano Ransier. Transferencia erótica uma breve revisão. 189 Transferência erótica – Isolan Rev Psiquiatr RS maio/ago 2005;27(2):188-195