Sobrecarga de estímulos e sede de sucesso minam a condição humana, diz psiquiatra

Lincoln  Almeida reflete sobre o panorama da saúde mental e os crescentes casos de doenças autoimunes

Em entrevista para o (En)Cena, o médico psiquiatra Lincoln José Cueto de Almeida, que também tem experiência na docência do ensino superior,  aborda os riscos da falta de aprofundamento da Psiquiatria nas questões que verdadeiramente afligem as pessoas, para além da medicalização. Com uma visão acurada, Lincoln traz um panorama amplo sobre temas como saúde mental, pós-humano, trans-humanismo, psicanálise e psicologia. E aborda que o excesso de desejos e ausência de paz são questões para serem levadas em consideração por aqueles que buscam minimizar o sofrimento.

O psiquiatra tem pós-graduação pela Universidade Complutense de Madrid-Espanha e Servizio di Saluti Mentale de Trieste-Itália – este último, berço da reforma psiquiátrica no mundo; é especialista em psiquiatria pela AMB e ABP, além de mestre em Ciências da Saúde pela Universidade de Brasília. No mais, é ex-professor de psicopatologia e psicofarmacologia no curso de Psicologia do CEULP/ULBRA, e aluno do curso de pós-graduação em Esquizoanálise, Esquizodrama e análise institucional pela Fundação Gregório Barenblitt. Lincoln também é autor do livro Entre Borboletas e Salmões (2009).

Confira, abaixo, a integra da entrevista.

(En)Cena –  O filósofo Byung-Chul Han destaca que, hoje, o drama humano não é mais os vírus e bactérias, mas sim as demandas de ordem neuronais. Como a Psiquiatria encara este momento?

Lincoln Almeida – Há cerca de dois anos tive o privilégio de ler o ‘pequeno-grande’ livro de Byung-Chul Han, ‘A Sociedade do Cansaço’. Junto a ele, outras obras como ‘Sapiens’ e ‘Homo Deus’ ajudaram a tornar claro o que há muito vinha se construindo em mim de forma nebulosa e intuitiva, isto é, a certeza visceral de que há um processo de mutação transformando a essência do que significa ‘Ser Humano’. Uma mudança sem precedentes na História, tão intensa que concordo plenamente com Harari (Sapiens e Homo Deus) quando afirma estarmos numa verdadeira encruzilhada civilizatória com grandes riscos de deixarmos, em décadas, de sermos humanos para nos transformarmos em outra espécie: pós-humana, trans-humana ou super-humana…

Não temos mais, segundo Byung-Chul Han, inimigos externos que nos ameaçam maciçamente como foi em outras épocas: bactérias, vírus, epidemias de fome, guerras, impérios totalitários etc., (claro que tudo isso ainda existe, mas são focos espalhados, longe de se constituírem a regra). A esse modo anterior de funcionamento ele denominou “Paradigma Imunológico”, ou seja, diante de um inimigo, o sujeito se arma, protesta, se defende e luta; seja essa ameaça uma bactéria ou um soldado. Todavia, no mundo atual globalizado, supostamente já no controle dos flagelos externos, o indivíduo tem agora um excesso de cargas internas (positivismo) que engendra um modo de funcionamento a que o autor chamou de “Paradigma Neurológico”. Neste, se insere um indivíduo sobrecarregado de estímulos, sedento por sucesso, por consumir tudo o que for possível, por se parecer com aquilo que a Civilização do Espetáculo (Mário Vargas Llosa) determina como sendo o protótipo da normalidade contemporânea. A avidez pela prosperidade, assim como a obsessão pelo desempenho é tão grande que se fracassar, sobrevém uma significativa sensação de culpa. É um indivíduo que dorme mal, toma estimulantes, vive estressado, irritado e vazio, tendo a solidão e a exaustão como características marcantes. Sofre de um total enlouquecimento do sistema imunológico que não consegue mais reconhecer o que é uma ameaça externa daquilo que faz parte dele mesmo, passando confusamente a atacar o próprio sujeito, física ou mentalmente. Nunca se teve como agora no século XXI tantas enfermidades autoimunes, crônicas e transtornos mentais em escalada crescente.

Doenças como a esclerose múltipla, o lúpus, cardiopatias, câncer, diabetes, depressão, autismo, déficit de atenção, burnout, entre outras, são a tradução do excesso de positivismo, – na linguagem do autor -, provocando o sistema de defesa a atacar o próprio corpo ou a própria mente, crendo que esteja protegendo o organismo de uma ameaça qualquer. Como fala Byung-Chul Han: “O indivíduo é agressor e vítima ao mesmo tempo”. Já Harari, mesmo não abordando desta forma o tema, mostra que nosso genoma ainda é o mesmo de dezenas de milhares de anos atrás, sendo totalmente inadaptado à avalanche de mudanças velozes da nossa civilização: alimentação, ingestão maciça de remédios, agrotóxicos, antibióticos, hormônios, substâncias geneticamente modificadas, estressores sociais, excesso tecnológico, entre outros; o que, em última análise, leva a situação para o mesmo campo: mudanças imensas e velozes não acompanhadas pelos registros biológicos e psicológicos, fazendo enlouquecer os sistemas defensivos orgânicos… Sobre isso, entretanto, creio que a Psiquiatria parece se comprometer ou argumentar muito pouco, pois continua fixada em sua marcha transloucada para descobrir nomes modernos de transtornos, padronização e medicalização de comportamentos. Com isso, não soma, mas subtrai ainda mais da imensa riqueza da subjetividade humana, transformando enfrentamentos existenciais em nomes complexos e fabricando remédios para tratar doenças que ela mesma nomeia. E o que é mais curioso, ao invés dessas supostas doenças diminuírem, elas só aumentam progressivamente.

Os modernos e eficazes remédios não fazem desaparecer ou diminuir, por exemplo, a depressão, pois ela só tem aumentado em escala global. Seria talvez como fazer uma analogia entre a varíola e sua vacina, isto é, quanto mais aperfeiçoada e combativa a vacina, mais casos de varíola iam surgindo no mundo! Obviamente esse raciocínio é absolutamente impossível, já que a eficiência da vacina é medida pela diminuição ou extinção das doenças que combatem! O mesmo pensamento valeria para as cardiopatias, diabetes, hipertensão etc., que só têm aumentado ao invés de diminuírem. Trata-se de um assunto, não obstante, longo e polêmico que não teria como ser aprofundado aqui. Mas, sinceramente, não vejo um comprometimento da Psiquiatria, enquanto campo do saber, em construir pontes, fazer a correlação entre o que acontece com o sujeito (novos sintomas/patologias) e as formas dele estar no mundo.

Ela ainda busca se legitimar como ciência médica, entranhada agora num conluio com a bilionária indústria farmacêutica, criando diagnósticos e patologizando o cotidiano. Talvez seja, junto com o processo de imbecilização que vivemos, o arauto desse novo ser que citei anteriormente, pautado pela des-humanização ou trans-humanização, fundido ao aço frio da robótica, à plasticidade do silicone e ao domínio absoluto da Inteligência Artificial. A Psiquiatria, de maneira geral, está ocupada em tratar sintomas e não mais pensar o humano nas suas complexas dimensões. Consegue trazer alívio a muitas vidas, sem dúvidas, mas a um preço cada vez mais alto, caso o uso desses remédios siga excessivo e absurdo como tenho visto.

(En)Cena – Até certo tempo, a Psiquiatria estava – de alguma maneira e no campo da intervenção terapêutica – atrelada às epistemologias da Psicologia, com ênfase nas teses da Psicologia Analítica e das Ciências Comportamentais e, claro, da própria Psicanálise. Este panorama se alterou?

Lincoln Almeida –  Claro, mudou muito. Todo o atrelamento da visão terapêutica ainda visava compreender o humano como um todo em suas dimensões biológicas, psíquicas e sócio espirituais. Não é mais o que vemos no mundo líquido de Bauman, consumista e vazio de sentido, onde só há espaço para o alívio rápido. Não há tempo dentro do sujeito, não há tempo fora do sujeito (família, trabalho), não há tempo no profissional que também sofre um processo de coisificação, pois ele experimenta de igual maneira, em sua pele, toda a pressa contemporânea, sendo sua competência medida apenas pela eficiência das drogas que aliviam o paciente. Uma sociedade, portanto, que prima pelo Desempenho (Byung-Chul Han). Não penso ter sido a Psiquiatria que se empobreceu, mas o humano que se deixou levar pela imposição de desejos fantasiosos, infinitos e supérfluos por tudo aquilo pode ser consumido insaciavelmente. Gilles Kepel, no livro ‘A Revanche de Deus’ denuncia essa derrocada cosmopolita das utopias terrenas e das consequências catastróficas de desamparo e vazio na alma.

(En)Cena – Melanie Klein defende que quem come da árvore do conhecimento será expulso, impreterivelmente, de algum paraíso. Diante de uma sociedade marcada pela informação, estamos todos condenados ao sofrimento psíquico?

Lincoln Almeida –  Não penso exatamente assim. Melanie Klein falava mais da perda do Paraíso quando alguém se dá conta de si, quando toma da árvore da ciência este conhecimento. E isso se trata de um momento de crise, ou seja, da falência de algum modelo construído pelo sujeito, ao mesmo tempo em que há uma obscuridade no seu porvir… É um momento de dor, de limbo, de desterritorialização, mas também de grande potencial de crescimento e mudança. Este conhecimento de que Klein fala é a dor da visão, da compreensão, do insight.

Bem, nesse sentido penso ser o contrário do que vivemos hoje. A informação da qual você se refere, ao meu ver, nada oferece de conhecimento profundo, ao contrário, ela ludibria (pelo excesso e superficialidade) a capacidade de se conhecer e se reconhecer. O processo de conhecimento exige tempo, repetição, investimento, entrega e coragem, ou seja, tudo aquilo que é desprezado hoje em dia na cultura do imediatismo e do espetáculo; da imagem no lugar da palavra; das notícias fugazes das redes sociais em detrimento da análise dos fatos e seus contraditórios. Não há espaços para o insight, só para o entorpecimento dos sentidos. Outro dia enquanto assistia o filme Dumbo de Tim Burton, vi na fileira da frente uma mulher que passou o filme todo fixada na tela de seu celular, ora filmando Dumbo, ora visitando fotos intermináveis em redes sociais e publicando recortes do que filmava… Será que ela sabia em que filme estava? O que foi apreendido e sentido efetivamente por ela da história de Dumbo? Essa é a nossa realidade atual, não há espaço para a degustação lenta do processo do conhecimento, só imagens e textos rápidos que passam e nada deixam, a não ser o cansaço e o mal-estar que logo se transformam em ansiedade impulsionando o sujeito a buscar mais de algo que ele sequer sabe do que se trata.

A tecnologia traz avanços fantásticos na qualidade e expectativa de vida, na cognição pragmática, sem dúvidas, mas produz um ônus terrível e, talvez, fatal à nossa espécie: o excesso de estímulos, o vazio, o nada, o previsível, o distanciamento e até a aniquilação do humano. Forja almas consumidas em repetições fugazes, explodidas, suicidas, imediatistas, solitárias, drogadas… É um preço alto que pagamos, alto demais, eu penso.

(En)Cena – Como foi sua experiência com Saúde Mental na Itália?

Lincoln Almeida – Foi linda. Lá pude viver, em Trieste, um gueto de resistência contra a coisificação. Berço da Reforma Psiquiátrica no mundo (Lei 180 de 1978 – Lei Basagliana), tentou utopicamente (uma utopia criativa) resgatar o potencial humano para além dos sintomas, do controle diagnóstico e terapêutico. Foi uma experiência que frutificou no mundo todo, mas que hoje decaiu, pois cada vez menos há espaço para sermos humanos. Vivemos ainda na ilusão de combater às drogas, no sentido mais militar do termo. Estamos, como disse, vivendo uma era de homogeneização e coisificação. Mas, creio que ainda temos chance de mudar, aproveitando o que a tecnologia nos dá de melhor e alterarmos o rumo dessa crise civilizatória, nos agarrando ao humano que ainda somos.

Em Trieste pude entender porque coube numa especialidade médica o termo antipsiquiatria (Laing e Cooper). Será possível imaginarmos termos como ‘anticardiologia’ ou ‘antipediatria’? Claro que não. Negar que o coração ou que a infância respectivamente existam é impossível, pois são fatos mensuráveis, palpáveis, visíveis, auscultáveis… Mas, com as chamadas doenças mentais, foi possível construir toda uma corrente filosófica muito bem embasada que negou a enfermidade mental, colocando-a como uma criação surgida, dentre outras razões, nas relações de poder entre oprimidos e opressores (M. Foucault, Thomas Szasz etc…). Não entrarei nessa dialética agora, isso é papo pra outra hora…

(En)Cena – Qual sua abordagem teórica preferida, na Psicologia?

Lincoln Almeida – Na realidade acho o termo Psicologia inadequado, pois sendo no singular, pressupõe existir uma única Psicologia. Mas, claro que não é. São Psicologias! Várias escolas, tendências e métodos pra todo gosto dentro da diversidade do humano. A meu ver não existe ainda construção teórica mais profunda e abrangente do que a Psicanálise. Como corpo teórico que trata da formação do aparelho psíquico, nada a suplantou e, digo mais, ainda é para a posteridade. A genialidade de Freud ainda é para o futuro. Já, como método, podemos dizer que além de ter se tornado elitista, não encontra ressonância nos dias atuais em uma cultura que prima pela superficialidade, controle e alívio imediato dos sintomas.

A adequação de psicoterapias como a Psicanálise se faz cada vez mais necessária em todos os sentidos, e, como diria o psicanalista Joel Birmam, já não cabe mais ficar procurando o sujeito oculto causador de conflitos. Cabe agora à Psicanálise uma dimensão estética e ética. Isto é: ajudar o indivíduo e ser quem ele é, e que ele aceite os outros como os outros são.

Freud viveu e pensou dentro de uma época vitoriana e assim aplicou uma metodologia própria àquela sociedade burguesa e reprimida. Mas, assim como Da Vinci, Galileu, Cristo, Buda em suas respectivas épocas, nada, no contexto temporal de suas construções teóricas ou filosóficas, tira a enorme envergadura que representam para a humanidade.

(En)Cena – Em sua opinião, o que levou a este boom de problemas psicológicos na contemporaneidade?

Lincoln Almeida – Muita coisa: a falência das utopias terrenas, principalmente a do modelo econômico neoliberal; do comunismo enquanto projeto político mundial; o descortinamento de dogmas religiosos que vieram por terra com a tecnologia; a velocidade extrema das mudanças trazidas pelo universo virtual; o consumismo excessivo como a grande religião do momento; a migração dos excluídos e colonizados do mundo para os países de primeiro mundo (a africanização e islamização da Europa, a latinização dos Estados Unidos…), além da falência do paradigma científico que prometia resolver os principais problemas da humanidade…

Não posso me esquecer aqui da mãozinha que a Psiquiatria tem dado. À medida que privilegia sintomas como sendo doenças, favoreceu os chacais das multinacionais farmacêuticas a patrocinarem pesquisas para venderem mais e mais remédios. Com isso foram unificadas as classificações diagnósticas e quase todo comportamento humano que fuja de uma normatização estabelecida tem nome de doença, a ponto de Allem Frances, um dos idealizadores do DSM 5 (Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais – 5a edição) denunciar o abuso e excesso de diagnósticos em seu livro ‘Diagnóstico Psiquiátrico’. Apenas por curiosidade, cito aqui dois exemplos: descobriu-se há anos um remédio chamado Bupropriona (batizado inicialmente de Wellbutrin) para depressão. Notou-se, entretanto, que muitas pessoas usando esse remédio perdiam a vontade de fumar. Os fabricantes pegaram o mesmo remédio e, bingo! Deram a ele outro nome (Zybam) que passou a ser vendido para tratamento do tabagismo. Toda uma mídia milionária foi direcionada a isso, praticamente incutindo no ideário das pessoas que se tratava de dois remédios distintos para uso distintos. Com isso as vendas foram multiplicadas.

Outro exemplo: na França existiam ‘menos’ esquizofrênicos que nos Estados Unidos. Não por questões estatísticas, mas porque a França era muito mais tolerante com os sintomas e enquadravam os pacientes em várias outras categorias diagnósticas, reservando a esquizofrenia para um composto sintomático em especial. Já, nos EUA, não havia esta distinção e quase tudo que era psicótico, diagnosticado como esquizofrenia. Com a unificação diagnóstica do CID 10 (Código Internacional da Doenças – 10a ed.) e do DSM, voilá! O índice de esquizofrenia no mundo passou a ser de 1% da população e não se fala mais nisso. Ficaram mais fáceis as pesquisas unificadas e a indústria farmacêutica passou a vender muito mais. Mas, e como se mudou o diagnóstico? Bem, um grupo altamente seleto se reúne em algum lugar do planeta de tempos em tempos e diz: ‘Isso aqui é doença, isso aqui não é.’ Por votação, a maioria vence! Sim, assim são construídos os diagnósticos em psiquiatria a grosso modo. Esses exemplos não se tratam de teorias da conspiração, mas de uma consequência natural de um mundo que não consegue ser regido por nada que não seja a lógica do lucro acima de tudo e de todos. Pra quem se interessar recomendo ler: ‘A verdade Sobre os Laboratórios Farmacêuticos’ de Marcia Angell e ‘A Anatomia de Uma Epidemia’ de Robert Whitaker.

(En)Cena – Como está a sua atuação clínica em Palmas?

Lincoln Almeida – Procurando ser coerente com aquilo que creio, dentro dessa forte e gigantesca onda que ameaça tombar o navio humano, numa tempestade silenciosa e sem armas, como nunca vista na História. A prescrição de remédios é conveniente e muito bem-vinda em várias situações, e, para algumas pessoas, é a única coisa que as alivia. Porém, as medicações quando indicadas, não devem ser a finalidade única de um tratamento, uma vez que remédio não trabalha a dinâmica psíquica e não muda ninguém, muda sim a vida da pessoa, para o ‘bem’ ou para o ‘mal’. Além disso, por remédios, não deve se entender apenas a química da droga, pois o conceito é muito mais amplo e nos arremete à Grécia antiga: Pharmakon.

Trata-se da interação do sujeito que prescreve e daquilo que é prescrito, podendo ser qualquer coisa que traga alívio, mudança ou cura. Remédio pode ser psicoterapia, yoga, meditação, espiritualidade, amor, compaixão… O que sim tem se tornado cada vez mais complexo e angustiante é que as pessoas não têm mais espaço para se questionarem, para falar e ouvir.

Querem mudanças mágicas e rápidas. Muitos que buscam ajuda, mal sabem por que estão diante do profissional e pouco querem saber de si mesmo. Querem apenas alívio. Essa é a onda que varre lenta e, talvez irremediavelmente nossa espécie: transformar-se em outra coisa, sem contradições, paradoxos poesia ou qualquer outra forma de dor, incluindo o amor; regida não mais pelo registro da natureza, como já fomos um dia, mas por uma nova forma de inteligência, meio bicho, meio máquina.

(En)Cena – Qual a sua dica para os estudantes e/ou jovens profissionais de Psicologia, na práxis da profissão?

Lincoln Almeida – É difícil generalizar uma resposta, pois, dentro do plural da Psicologia, cada um encontrará a linguagem que melhor se sentir e se adequar. Mas, seja qual for a linha adotada, jamais se esqueça da humanidade que ainda há dentro de cada um e daquele com que você irá interagir, sejam pacientes, clientes, colaboradores, alunos etc. A profissão deve ser pautada pela ética, coerência, idoneidade e respeito. Ainda não há outra profissão mais voltada para o humano que a Psicologia. Não tenha medo de estudar a fundo outras linhas e formas de pensar. Isso só enriquece o capital de conhecimento e promove o estabelecimento de conceitos, principalmente quando se deixa de lado dogmas e crenças que não se devem misturar à prática profissional.

(En)Cena – É possível alcançar um equilíbrio mental ou, de fato, a vida é marcada por uma sazonalidade e uma intermitência desmedida?

Lincoln Almeida – O filósofo italiano Michele Federico Sciacca fala: L’uomo questo squilibrato (O homem, este desiquilibrado). Ou seja, a tendência ao desiquilíbrio é uma constante no coração humano, parecendo sempre estar à espreita, levando o sujeito a se entregar às demandas pulsionais e aos desejos sempre insaciáveis. Ou ainda, como diria o poeta do século XIX Adelmar Tavares: “Nossa alma é uma criança, que nunca sabe o que faz. Quer tudo que não alcança, quando alcança, não quer mais.”

Parece-me, de fato, que a busca por equilíbrio é permanente em nossa vida, pois assim que é alcançado, qualquer acontecimento pode fazer com que seja perdido. Tudo é impermanente. Tudo passa, tudo se esvai. Daí penso que o estado interior mais importante a ser alcançado é a paz. Podemos ter saúde, mas não ter paz; podemos ter felicidade e não ter paz; dinheiro, poder, conquista e tudo mais, sem paz. Mas, tendo paz, tudo mais pode coexistir.

(En)Cena – O que mais gostaria de abordar?

Lincoln Almeida – Sei que pareci pessimista em minhas respostas, mas não se trata de pessimismo, pois é uma realidade factual tudo isso que estamos vivendo. Já transcendi a briga interna entre: isso é bom ou ruim? Certo ou errado? Vivo outra fase onde busco apenas o que é essencial para a vida, procurando eliminar o que distrai e desvia. Busco relatividade e leveza.

Acho que a tecnologia tem vertentes fantásticas e maravilhosas, mas ela deve estar sob nosso controle, pois é também demoníaca e fatal, a medida em que pode assumir o controle sobre nós e corroer as únicas coisas que nos fazem verdadeiramente humanos: afetos, crenças, sonhos, partilhas, encontros e utopias. Fora disso seremos apenas animais cibernéticos regidos por algoritmos. Isto está para além do bem e do mal, parecendo estar mais para o risco de simplesmente varrer a humanidade de uma forma silenciosa e não bélica. Não sei o que será do mundo, mas quem o sabe? Sei que vejo, como nunca antes, pessoas se suicidando por falta de sentido ou por não suportarem limites; pessoas se drogando mais e mais por um buraco negro e fundo em suas almas; pessoas procurando ajuda nos consultórios, mas tendo cada vez menos queixas palpáveis, se referindo apenas a ‘coisas inominadas’: estresse intenso, vazio, cansaço, irritação, insônia… Com isso, só desejando alívio a todo custo. Vejo pessoas trabalhando loucamente (gastando seus preciosos tempos de vida) para poderem comprar cada vez mais, sem se perguntarem se aquilo que desejam importa mesmo pra ela ou pra sua família; vejo pessoas correndo mais e mais, sem terem de fato pra onde ir ou sabendo onde querem chegar…

Buscar alternativas que promovam a paz interior penso que, no mundo como está, seja o principal caminho a trilhar. Como se faz isso? Talvez desejando menos, suportando mais, priorizando o que de fato é fundamental, abrindo mão daquilo que não seja necessário… Não sei, cada um deve escolher qual o melhor caminho, focá-lo e trilhá-lo. O que as pessoas precisam é ressignificar suas vidas e não apenas se drogarem com os arsenais lícitos e ilícitos existentes em abundância; ou ainda, receberem carimbos de bipolaridade ou déficit de atenção e, passivamente, permitirem que eles passem a definir suas existências. Sou sim, após muitos anos, como psiquiatra e psicoterapeuta, um crítico, não da Psiquiatria, mas do que ela se tornou.

Creio e sou apaixonado na capacidade humana de dar a volta por cima, ainda que muitas vezes só se consiga fazer isso aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo, rompendo com qualquer prisão e engessamento empobrecedor; encanto-me ainda com o Ser, mesmo que agora, anestesiado, se lance descuidado ao mar bravio dos códigos binários de Matrix e se distancie perigosamente das praias azul-turquesa do Amor Feinho de Adélia Prado.

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.