Cinderela: estereótipo feminino no contexto do casamento/amor romântico

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Sabe-se que o surgimento do amor romântico se deu a partir do século XVIII, no Ocidente, passando a ser imprescindível para haver a união e consequentemente o casamento.Damasceno (2008) discorre que a partir do referido século esse quadro parece ter se modificado definitivamente, um novo ideal de casamento foi se estabelecendo, impondo aos cônjuges que se amem ou que pareçam se amar, e que tenham expectativas a respeito do amor romântico.

Isso se tornou algo tão sério e certo no Ocidente que ninguém duvida da dignidade do amor conjugal, cabendo a sociedade não aceitar e condenar alguém que se case por outros motivos.

O prazer e a felicidade amorosa não estavam previstos no contrato, já que o casamento “por amor” é um evento recente na história da humanidade, pois não muito tempo atrás, os pais escolhiam de forma sutil ou declaradamente, os cônjuges de seus filhos, de acordo com os interesses familiares, econômicos ou políticos (DAMASCENO, 2008, p.44).

Essa ideia de amor, que surgiu e se instalou nas mentes femininas, tem um quê de fantasia, de idealização, como nas histórias de contos de fadas, em que as noivas são princesas que passam por muitas dificuldades antes do casamento, mas que no final casam-se com um príncipe (homem perfeito) e, após essa união, vivem felizes para sempre. Existem vários contos de fadas clássicos que traduzem muito bem esse ideal coletivo (MELO, 2010).

Comecemos então pelo Conto da Gata Borralheira, a tão conhecida princesa Cinderela. A versão mais conhecida dessa história é ado escritor francês Charles Perrault, de 1697, que recuperou da tradição oral o referido conto popular (COELHO, 2003). Sociólogos, historiadores, literatos e pesquisadores, como Damasceno (2008) e Melo (2010), vêem na história de Cinderela muito mais do que uma simples trama romântica. Porque a trajetória da protagonista traduz uma espécie de arquétipo fundamental, traduzindo o anseio natural da psiquê feminina da contemporaneidade: a de ser reconhecida como especial, encontrar seu príncipe encantado e de ser feliz para sempre. Ou seja, representa um ideal feminino de que o casamento é uma relação muito especial e perfeita, que após concretizada pelo baile encantado não haverá  desafios, problemas, só terá um final que traduzirá tudo: “e foram felizes para sempre…”.

O conto da Cinderela mostra uma moça simples, boa de coração, lutando dia após dia com aquela esperança no peito de que será feliz. Essa ideia fica mais viva depois do encontro com o príncipe num baile dado em seu castelo – como o príncipe é lindo para Cinderela! Instantaneamente ele se apaixona por ela e ela por ele, tudo é tão perfeito!

No baile só a paixão permeia aquelas mentes e corações. Mas quando toca o sino da meia noite, Cinderela lembra que o feitiço se quebrará e que ficaria sem usar aquelas lindas roupas, a verdade seria mostrada para o príncipe,ele não poderia descobrir que ela era uma moça simples, que vivia na casa de sua madrasta limpando o chão, sem dotes, ele não iria aceitá-la se soubesse a verdade!

Então ela corre, mas sem perceber deixa uma pista pelo caminho e ele vai atrás dela através dessa pista: o sapatinho de cristal!

Por fim ele a encontra, a única mulher em que o sapatinho serviu. Para surpresa dela, ele nem cogita o fato de ela não ter as mesmas condições que ele, o amor supera tudo! Eles se casam numa cerimônia linda e perfeita e a única coisa que vemos no final do conto é uma festa de casamento, com todos muitos felizes e sorridentes e, por fim, a última frase “e foram felizes para sempre” que nos sugere que a partir dali eles tiveram a felicidade perfeita infinita.

Vejamos as possíveis influências do Conto da Gata Borralheira sobre o estereótipo feminino do casamento (ou seria o estereótipo feminino do casamento que influenciou o conto da Gata Borralheira?), que de acordo MELO (2010), podem ser percebidos nos seguintes aspectos:

  •  A mulher tem em seu âmago que um dia encontrará um homem perfeito, o príncipe encantado, que a tirará da posição de gata borralheira. Esperou a vida inteira por ele, sofreu de algum modo nessa espera, com a certeza de que ele apareceria para salvá-la da solidão ou de qualquer problema;
  • Ela é muito especial! Dentre tantas ela foi “a escolhida” no baile. O destino estava tão bem traçado que foi a única de toda aquela cidade em que o sapatinho serviu (que número de sapato era esse que ninguém tinha?);

  • Em seguida à conquista do príncipe encantado, alimentará a expectativa da cerimônia de casamento, quando se tornará princesa para sempre, linda, especial e com toda a atenção voltada para ela;
  • Não se ouve e não se fala o que se espera da vida conjugal, só se pensa e só se fala na grande cerimônia de casamento;

  • Após a cerimônia de casamento, esperará encontrar um matrimônio no qual será feliz para sempre. De acordo com Brasil (2009), muitas mulheres aprendem que a realização do casamento terá lhes assegurado a felicidade eterna, assim como ocorria nos contos de fadas.

Nos contos de fadas, o final da história costuma ser o casamento, e é dito no conto que através deste se dá o final feliz, mas não é mostrado o que aconteceu depois. E assim, na realidade, levadas por esta fantasia, as mulheres creem que através da realização da cerimônia/festa de casamento, viverão felizes para sempre com seu príncipe encantado/companheiro, e não questionam sobre o que há por vir e o que precisará ser feito para continuar sendo feliz (MELO, 2010).

Carneiro (1998) discorre que os ideais do amor romântico no casamento contemporâneo tendem a se fragmentar pela pressão da emancipação da mulher e da autonomia feminina. Além disso, é importante pontuar que essa emancipação feminina junto às novas configurações de casamento da contemporaneidade parecem não ter sido suficiente para modificar o estereótipo feminino de casamento. Isso porque o imaginário feminino carrega a crença no casamento perfeito/amor romântico sem problemas, muito bem reproduzido também em filmes, novelas e músicas atuais, que continuam a propagar esta forma de pensamento.

Não é comum vermos filmes, novelas, contos em que a mulher tenha um final triunfante e que sua felicidade final seja realizando grandes feitos. O estereótipo é sempre o da Cinderela, a mulher sofrida que se libertou do sofrimento através do casamento. Será que a maior felicidade para uma mulher é somente isso? (Num mundo machista era! Era ou é?)

E uma dúvida que não quer calar: E viveram felizes para sempre após o casamento por quê?

Só porque se casaram? Por que os dois eram perfeitos um com o outro? Por que nunca houve discórdia entre os dois? Por que nenhum tinha diferenças que irritavam um ao outro? Por que o fato de se unir a alguém resolve todos os problemas de tristeza, traumas, complexos e outros? Por que casamento é o que  proporciona felicidade infinita? Por que casamento é o que falta para uma mulher eliminar todos seus problemas e proporcionar uma saúde psíquica perfeita?

Somos levadas (me incluo nessa, claro!) por esta crença do amor perfeito e infinito. Um amor perfeito que abrangeria: não haver diferenças, dificuldades e problemas. Queremos um par perfeito, alguém que nos arranque do marasmo, dos dias solitários e vazios. Mas esse alguém não existe! Um bom conto da Cinderela contemporâneo deveria ser a Princesa Cinderela  que se transforma na Gata Borralheira.

Porque após o casamento, ao se deparar com uma realidade diferente de tudo aquilo que ela sempre acreditou/idealizou (de modo não consciente) despertará que antes sim era feliz e agora só lhe resta amadurecer, se adaptar a uma nova realidade, limpar o chão, lavar louça, trabalhar e mais um monte de responsabilidade que ela não tinha cogitado numa união. E após se deparar com esta realidade, se decepciona e sofre com a realidade, NÃO PORQUE ELA SEJA NECESSARIAMENTE RUIM! Mas sim porque não é igual ao que sonhou, a sua expectativa, ao seu estereótipo de casamento da Cinderela.

Então, a Cinderela no mundo real, já casada, encontra aquelas amigas que ainda não casaram, e ao ser perguntada sobre seu matrimônio, responde: “ – Nunca estive tão feliz!”, e por dentro pensa “- Ninguém pode saber que não estou feliz com a minha união, só posso ser casada se tiver amor e não enxergo mais aquele amor romântico “, e pensa mais um pouco “- Será que é esse mesmo meu príncipe encantado? Será que eu me casei com o certo? Não encontro aquela felicidade prometida! Acho que preciso me separar para ver se encontro”.

E assim segue até descobrir uma forma mais funcional de casamento e/ou de união, com ideias compatíveis com o mundo real.

Referências:

COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. São Paulo: Ática, 1991.

CARNEIRO, Terezinha Feres. Casamento contemporâneo: o difícil convívio da individualidade com a conjugalidade. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 11, n. 2, 1998.

CARRASCO, Walcyr. Contos de Perrault: Cinderela e outras histórias. São Paulo: Manole, 2009.

BRASIL, Francisca Patrícia Pompeu. Contos de fadas e casamento na prosa romântica de José de Alencar. Dissertação (Mestrado em Letras), 2007. Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 112 p.

DAMASCENO, Elenise Roldan Melgarejo. Para além dos contos de fadas: o ideal e o real no pensamento das mulheres sobre o casamento. Dissertação (Mestrado em Psicologia), 2008. Universidade Estadual Paulista, Assis, 120 p.

MELO, Daniely Damasceno de. Cinderela: o símbolo arquetípico investigado entre as mulheres casadas de Palmas/TO./ Daniely Damasceno de Melo. – Palmas, 2010.

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Before Sunrise – Antes do Amanhecer

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“Acredito que se há algum Deus, ele não estaria nem em você nem em mim, mas nesse espaço que existe entre nós. Se há algum tipo de magia no mundo, ela deve estar na tentativa de entender e compartilhar algo com alguém. Sei que é praticamente impossível conseguir. Mas e daí? A resposta deve estar na tentativa.” (Celine)

 

“Antes do Amanhecer” estreou em 1995. Nessa época, a internet ainda não tinha sido massificada, não havia Google, nem Facebook e os celulares se assemelhavam a um tijolo. A contextualização é importante porque a história do filme poderia ser inverossímil nos dias de hoje, já que as relações, por mais breves que sejam, vêm sempre acompanhadas por um agregado de informações, seja um “curtir” em uma rede social, ou uma foto com filtro publicada no Instagram.

Celine e Jesse, uma francesa e um americano, ambos com 23 anos, se conhecem em um trem em direção a Viena. Resolvem, num impulso, passar o final da tarde e a noite juntos na cidade. Na manhã seguinte, ela seguirá para a França e ele partirá num voo para os Estados Unidos. Mas, talvez, a história se resuma numa simples constatação dita por Celine: “Isso parece uma fantasia masculina: conhecer uma garota francesa num trem, transar com ela e nunca mais vê-la novamente.

Navegando a ermo pela net, constato que “Antes de Amanhecer” se tornou um filme inesquecível para muita gente. E, quando penso sobre isso, acredito que uma das razões seja o fato das duas pessoas retratadas ali, apesar de serem tão singulares, parecerem tão reais. Elas podem ser alguém que já encontramos em algum lugar distante, quando estávamos sozinhos, ou alguém que ainda iremos encontrar. E enquanto pipocam por aí filmes que usam uma série de artifícios para servir de base para uma história de amor, esse filme tem apenas dois personagens nomeados (Celine e Jesse). Não há a divertida melhor amiga da mocinha, nem a mãe ciumenta do rapaz ou o chefe irritante. E é isso que torna o filme tão interessante, ele mostra que, de fato, cada um de nós carrega consigo um diversificado universo, que pode vir à tona quando dialogamos com alguém sem tantas amarras sociais e compromissos. Por isso, às vezes, é tão encantador simplesmente ouvir/ver duas pessoas conversarem.

Richard Linklater (diretor e roteirista), Ethan Hawke e Julie Delpy criaram um dos momentos mais intimista do cinema ao permitir que tantas pessoas pudessem enxergar o mundo que existe no interior dos dois personagens, acompanhando-os em uma noite de suas vidas. Se Celine e Jesse não tivessem a certeza da brevidade do encontro, muito provavelmente não se revelariam tanto.

Celine: Eu acho que é porque eu sempre tenho esse sentimento estranho de que eu sou essa mulher velha se preparando para a morte. De que minha vida é um resumo das memórias dela.

Jesse: Isso é tão louco. Sempre penso que ainda sou um garoto de 13 anos, que ainda não sabe como ser um adulto, fingindo viver minha vida, cuidando para quando realmente for um. Como se estivesse num ensaio para uma peça de teatro.

Celine: Então, lá na roda gigante, foi uma mulher velha beijando um jovem garoto, certo?

A velha e o menino que andam pelas ruas de Viena, talvez pelo pouco tempo que lhes resta, têm uma urgência em falar sobre os mais variados assuntos. Nas palavras jogadas de forma desordenada e meio caótica, tem-se de tudo, de Deus à morte, de casamento Quark a ritos sexuais de insetos.

“Eu sempre gostei da ideia de que todas essas pessoas desconhecidas estão perdidas no mundo. Quando eu era pequena, pensava que se nenhum conhecido seu soubesse que você havia morrido, não seria tão ruim assim. As pessoas podem inventar o melhor e o pior pra você”. (Celine)

Imaginem o quão libertador seria se encontrássemos um desconhecido em algum lugar do mundo e pudéssemos simplesmente expor a ele nossos mais estranhos pensamentos sem termos que criar artifícios para nos moldar ao precioso círculo da “normalidade”. Então, poderíamos divagar – como Jesse – e, em um dado momento, refutar religiões ou corroborar com algum tipo de crença maluca ou ingênua:

50 mil anos atrás não havia nem um milhão de pessoas no planeta.  Há 10 mil anos havia 2 milhões de pessoas. Agora temos cerca de 5 ou 6 bilhões,  certo? Então, se temos uma alma individual, de onde vieram todas as outras? Será que as almas novas são uma fração das originais? Porque se elas são, isso representa uma divisão de uma alma em 5 mil, apenas nos últimos 50 mil anos. O que não é nada comparado à idade da Terra. Na melhor das hipóteses, somos uma dessas pequenas frações… Será por isso que estamos todos tão afastados? Será por isso que somos tão limitados? (Jesse)

E em meio a uma explosão de diálogos sobre os assuntos mais variados percebemos que Jesse e Celine passam por vários estágios emocionais. Esses estágios vão desde o cinismo perante alguns fatos da vida e a uma visão pessimista sobre alguns aspectos da natureza humana até a simples constatação de que alguns dos gestos mais simples e cotidianos podem ser os mais significativos, aqueles que nos lembraremos mesmo diante da implacável passagem do tempo.

“Gosto de sentir seus olhos em mim quando desvio o olhar.” (Celine)

Linklater conseguiu transformar a cidade de Viena em uma espécie de folha em branco para que Celine e Jesse escrevessem sua brevíssima história. E isso parece que foi possível somente porque eles não tinham um passado juntos ou a possibilidade de um futuro. De certa forma, pensar sobre isso provoca até um certo incômodo, especialmente quando percebemos que a rotina e todas as obrigações sociais agregadas a ela limita uma característica aparentemente tão humana: a capacidade de enxergar o outro.

“Eu tenho a sensação de que estamos sonhando. […] É como se o tempo em que estamos juntos fosse só nosso. Como se fosse uma criação nossa.” (Jesse)

“Como se eu estivesse no seu sonho, e você no meu, ou algo do tipo.” (Celine)

Essa liberdade que eles sentem nessa convivência tão súbita e breve e sua associação às manifestações que rementem aos sonhos é, em alguns aspectos, bem freudiano.

A fórmula que, no fundo, melhor atende à essência do sonho é esta: o sonho é uma realização (disfarçada) de um desejo (recalcado). O estudo do processo que transforma o desejo latente realizado no sonho no conteúdo manifesto do sonho – processo conhecido como trabalho do sonho – ensinou-nos a maior parte do que sabemos sobre a vida mental inconsciente. (FREUD, 1924 [1923]/1987, p.249).

Ou seja, se essa relação só existe para eles como se fosse vivida apenas numa espécie de sonho, então não há compromisso com a realidade, logo também não precisa estar presa às regras que acompanham nosso estado consciente.

Telas de Georges Seurat

“Suas figuras humanas são sempre tão transitórias.” (Celine)

Quando Celine vê um cartaz de uma exposição das telas de George Seurat, um pintor francês do século XIX, e fala do quanto seu trabalho a impressiona, percebemos que as figuras humanas tão nebulosas naquelas pinturas funcionam como uma metáfora para o filme. A técnica usada por Seurat, denominada Pontilhismo, vem de uma vertente do Impressionismo e utiliza os pontos justapostos como uma forma de apresentar “o desprezo dos impressionistas pela linha, uma vez que esta é somente uma abstração do Homem para representar a natureza”.  Então, considerando nossa transitoriedade e a impossibilidade de delimitarmos linhas precisas que nos separem de indivíduos e coisas, parece mais fácil entendermos a ligação estabelecida de forma tão rápida e tão profunda entre essas duas pessoas.

Quase 20 anos depois do primeiro filme, a história de Celine e Jesse se transformou numa trilogia, em um caso único no cinema em que a vida de dois personagens acompanha o processo de amadurecimento dos próprios atores. Em 2004, eles mostraram o que aconteceu com os dois após os nove anos que se passaram depois do primeiro encontro em Viena (Antes do Pôr-do-Sol) e em 2013 ficamos sabendo como estão suas vidas aos 40 (Antes da Meia-Noite). E em meio há tantos filmes com histórias de amor superficiais ou estúpidas demais, a história destas duas pessoas nos faz pensar inevitavelmente na variável tempo, tão temida e complexa.  Diante das rugas inevitáveis, das responsabilidades que acompanham a vida adulta e do pouco tempo destinado à reflexão e aos sonhos, acompanhar uma história assim provoca até um sopro de esperança. Mesmo que não saibamos definir, ao certo, que tipo de esperança é essa.

REFERÊNCIAS:

FREUD, S. Uma breve descrição da psicanálise (1924[1923]). In: FREUD, Sigmund. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987. v. XIX, p.235-259.

Leia mais sobre a trilogia “before”:

Antes do Pôr-do-Sol: http://ulbra-to.br/encena/2014/01/14/Before-Sunset-Antes-do-Por-do-Sol

Antes da Meia-Noite: http://ulbra-to.br/encena/2014/01/15/Before-Midnight-Antes-da-Meia-Noite

 

FICHA TÉCNICA:

ANTES DO AMANHECER

Título Original: Before Sunrise
Direção e Roteiro: Richard Linklater
Elenco: Ethan Hawke e Julie Delpy
Ano: 1995

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Adeus, Mãe!

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A minha mãe, que sinto, mesmo não estando de corpo presente,
mesmo que não saibamos onde se encontra  – se não nos nossos corações –
aplaude com orgulho mais essa fase que venci”

Essa foi minha dedicatória impressa em meu trabalho de conclusão de curso. Por quê? Porque ela está em tudo, assim como tudo aquilo que conquisto é para ela.

Foi exatamente no dia 26 de agosto de 1994 que um trecho da minha história acabou. Sei dessa data porque nos últimos dezenove anos eu a escutei diversas vezes e por infinitas vezes ela é considerada a data mais triste de nossas vidas. Se caso não tivessem me falado que foi no dia 26 de agosto de 1994 não saberia, certamente iria descobrir que de repente ela não estava mais por perto. O ruim de ser criança, nessas horas, é exatamente isso; de uma hora para outra o colo sumiu e muitos outros colos (alguns até estranhos) apareceram… e que bom que apareceram.

“O que é mais chato em tudo isso?”me perguntam. O mais chato é quando alguém pergunta por ela e, quando recebem a resposta, cuidam logo de pedir desculpas. Desculpa porquê? Entendo o peso da resposta, também entendo o desconforto, mas não existe uma razão para um pedido de desculpas, porque não há culpados. Não, eu não me sinto triste quando perguntam sobre ela, pelo o contrário, a coisa mais linda entre todas as coisas é saber que ela existiu. Aceito que ela tenha partido, mas não aceito que ela seja esquecida.

“Você sente saudades?” É possível que uma criança, aos cinco anos de idade, sinta saudades? Sim, mas é uma saudade diferente. Os outros sentem saudades do que viveram ao lado dela, sinto saudades daquilo que não vivi e do que eu poderia ter vivido com ela. Penso quase todos os dias como seria se ela estivesse aqui. Às vezes, numa tentativa de suprir essa saudade, simulo situações e as possíveis reações dela, se caso ainda estivesse presente. E funciona.

É bobeira lutar contra a saudade, é travar guerra com um inimigo poderoso e invencível. Prefiro seguir o ditado: quem não pode com o inimigo, une-se a ele.

“Você chorou?” Não sei. Não lembro.  Tenho poucas lembranças, tanto dela quanto da última vez que a vi, para falar a verdade. Lembro-me de pedaços de vida, lembro-me de alguns passeios, dos bolos de abacaxi que ela fazia, de ficarmos até tarde assistindo televisão, das broncas e da roupa que ela estava vestindo naquele último dia. Alguns dizem que foi meu “mecanismo de defesa” que agiu e que por isso não recordo, outros falam que por conta da pouca idade é difícil mesmo lembrar (e me apego a essa versão). Aí então,corro, pego algumas fotos dela e pronto: estou salva.

Mas eu choro, por tudo, pela saudade, pelas poucas lembranças, pela impossibilidade de um futuro ao lado dela. Imagino que ela esteja logo ali, de pé, orgulhosa e boba, igual uma mãe como todas as outras. E isso é lindo.

Ela é como uma “sombra de luz” porque está em tudo, está junto ao meu coração, que pulsa todos os dias para me fazer lembrar – e sentir – que ela está aqui, o tempo todo.

Quando vejo alguém passando pelo o que eu passei, a única coisa que aconselho é que chore. Chorar sem culpa e sem culpar. Porque as lágrimas aliviam o peso, lava a tristeza e é somente isso que nos resta, nos confortar entre uma lembrança e outra.

A saudade não passa, é inútil alguém dizer o contrário. Sinto informar, mas, ela só aumenta. Mas deixa de ser uma saudade dolorosa, que destrói o peito e os pensamentos, e se torna uma saudade bonita e, ao invés de chorar, a gente ri e agradecemos: Obrigada por ter existido e me escolhido para passar esse tempo com você.

O que penso sobre tudo isso? Que a senhora minha mãe deve estar muito orgulhosa porque os três presentes que ela deu ao mundo estão crescidos e formados, um deles até é metido a escritor e dedica versos a ela (minha mãe deve estar ‘se achando’ por ter se tornado literatura, eu diria, rs).

É isso, na verdade, não é somente isso, mas é um pedaço da experiência de um coração que, mesmo carregado de saudades, consegue pulsar tranquilamente e que se sente mais feliz ao lembrar que a mãe dele existiu.

Dos versos que dediquei a ela:

“26 de Agosto: data nenhuma parece ser tão importuna quanto essa. Acabo me rendendo às 24 horas pesadas que esse dia traz entre os minutos. Antecipo cansaço uma semana antes. Mesmo se eu fugisse para outra dimensão ainda recordaria esse dia, apesar de não lembrá-lo com clareza. Algumas pessoas chorando, correria, silêncio, questionamentos a Deus, aos santos e anjos.  Desculpas esfarrapadas e orações jogadas ao vento, sem querer isso marca qualquer dia do calendário. O mês não faz tanto efeito, o que pesa mesmo é o dia. 26 de agosto, que sempre tem gosto de vazio, embrulha meu estomago, é sempre espera sem resultados. (…) Grito saudade por dentro, dou parabéns à morte por conseguir, só para ela, alguém que todos nós tínhamos. Ninguém nunca me respondeu e nem mesmo sei porque ela se foi.”

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Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças: o que se perde em esquecer?

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“Abençoados sejam os esquecidos, pois tiram o melhor de seus equívocos.”
Nietzsche

 

Segundo Albert Schweitzer (ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1952), “felicidade nada mais é do que ter boa saúde e memória ruim”. E qual de nós, especialmente nos dias de hoje, assoberbados de informações, de explicações sobre traumas, permeados por doenças que ganham forma justamente pelo excesso de relações entre fatos e lembranças, não gostaria, vez ou outra, de simplesmente ESQUECER.

A possibilidade de ESQUECER é a premissa central do filme “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”.  Mas, talvez a questão principal lançada pelo fantástico roteiro de Charlie Kaufman (de Quero ser John Malkovich) esteja naquilo que deixamos para trás ao esquecer, aquilo que perdemos. Se nossas lembranças, sejam elas boas ou más, constrangedoras ou edificantes, humilhantes ou prazerosas, definem, de certa forma, quem somos, até que ponto poderíamos escolher o que esquecer sem nos apagar também nesse processo?

Esse é um dos questionamentos que vem à tona enquanto acompanhamos a história de Joel e Clementine. Jim Carrey (Joel), longe da leveza que costuma imprimir nos personagens dos vários filmes cômicos que protagonizou, mostra-nos um homem enfadado pela rotina, rodeado por um mundo opaco, cansado, introspectivo, subjugado, mas cuja vida parece mudar ao conhecer a colorida e cheia de vida Clementine. Tudo na personagem de Kate Winslet (Clementine) nos remete a uma ideia de excesso de vida, seja a cor laranja de sua jaqueta, seja o azul/vermelho/laranja dos seus cabelos. Mas, assim como o cabelo muda de cor rapidamente, o humor de Clementine também é alterado com frequência. Ela, como alguns de nós, se cansa facilmente da rotina e questiona-se sobre o motivo de ter que permanecer em um relacionamento no qual parece não ser mais feliz.

Esses dilemas e a sua impulsividade fizeram com que Clementine decidisse pela opção mais rápida e, talvez, mais fácil de tirar Joel de sua vida. Talvez fosse difícil demais para ela carregar a responsabilidade de ser o “brilho” que faltava ao seu cotidiano opaco ou, na verdade, estivesse cansada de ter que se importar com alguém. Já que parece que à medida que nos importamos com alguém aumenta a probabilidade de termos que lidar com o sofrimento.

É nesse contexto que o Dr. Howard Mierzwiak, um cientista que conseguiu sucesso ao criar um sistema que permite mapear a memória e, a partir disso, apagar rotas indesejadas que se definem na arquitetura da mente, entra na vida de Clementine. Ela procura a clínica que promete o esquecimento milagroso e apresenta as justificativas necessárias para realizar o procedimento. Assim, Joel passa a ser apenas um espaço apagado em sua memória, um espaço disponível para ser ocupado por novas lembranças, novos amores.

“Deixar as pessoas recomeçarem é lindo. Olhamos para um bebê e é tão puro, tão livre e tão limpo. Os adultos são essa confusão de tristezas e fobias.

 

Através de um bilhete da Clínica Lacuna, Joel entende que foi banido da vida de Clementine. Não há mais lembranças do primeiro encontro, nem das histórias que contavam um ao outro antes de adormecer, nem das infindáveis brigas. Ele não existe mais em sua memória, logo, não existe em sua vida.

E enquanto assistimos a tudo isso com aquela sensação de estarmos vendo mais um filme de ficção científica, pesquisas, como as citadas a seguir, são apresentadas cada vez com mais frequência em sites especializados ou, de forma mais superficial, na mídia de uma forma geral.

Um novo estudo do MIT [1] revelou um gene que parece ser fundamental para o processo de extinção de partes da memória. Segundo Li-HueiTsai, pesquisador do instituto de Aprendizagem e Memória do MIT, aumentar a atividade desse gene, conhecido como Tet1, poderá, por exemplo, beneficiar pessoas com transtorno de estresse pós-traumático, pois isso facilitará a substituição de memórias relacionadas ao medo a partir de associações com memórias mais positivas. O gene Tet1 parece controlar um pequeno grupo de genes necessários para a extinção da memória. “Se houver uma maneira de aumentar significativamente a expressão destes genes, então o processo de extinção pode se tornar muito mais ativo”, diz Tsai.

Já a equipe liderada por Courtney Miller, do The Scripps Research Institute (TSRI) na Flórida, conseguiu apagar com sucesso memórias associadas às drogas em camundongos e ratos, fornecendo esperança para a recuperação de viciados ou pessoas que sofrem de transtorno de estresse pós-traumático [2]. Eles observaram, por exemplo, que o desejo de drogas por ex-dependentes de metanfetaminas é desencadeado por associações de memória. Assim, o retorno de um paciente de uma clínica de reabilitação à sua rotina diária pode se tornar uma experiência terrível, já que as lembranças associadas ao vício podem retornar de forma mais intensa.

Os testes realizados após a alteração da estrutura das células nervosas nos camundongos e ratos revelaram que eles perderam “imediatamente e persistentemente” todas as memórias associadas com a metanfetamina. Todas as outras lembranças, tais como recompensas alimentares ou choque nas patas, ainda estavam intactas [2]. Miller diz:

“Não muito diferente do que é apresentado no filme “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças”, estamos à procura de estratégias para eliminar seletivamente evidências de experiências anteriores relacionadas ao abuso de drogas ou a um evento traumático. Nosso estudo em camundongos nos mostrou que podemos fazer exatamente isso, ou seja, apagar memórias relacionadas às drogas sem prejudicar outras memórias”.

E é com essa ideia de apagar uma experiência traumática, que no caso é sua relação com Clementine e, especialmente, uma forma de esquecer o fato de que foi sumariamente e literalmente apagado de sua vida, que Joel também procura os serviços do Dr. Mierzwiak. Desta forma, inicia-se uma nova fase no filme, que se passa dentro da mente de Joel.

O interessante de percorrermos essa jornada com o Joel é que podemos entender não apenas como ele vê a Clementine de forma consciente, mas, especialmente, como ele a percebe em seu subconsciente.

E é a Clementine construída por ele, em seu subconsciente, que traz à tona as formas e nuances mais profundas do seu relacionamento. Quando a vemos falar e interagir com ele, na verdade estamos vendo a marca mais profunda que ela deixou em seu subconsciente, ou seja, tudo ali é ele, é a forma que ele percebe o mundo com ela.

Em um dado momento nessa jornada, o entendimento de que o procedimento de exclusão da memória de suas vivências com ela está sendo realizado, faz com que ele tente criar meios para confundir o sistema, pois se arrepende de ter desejado apagá-la. Assim, ele leva-a a partes de sua memória em que o programa não poderia alcançar, já que o mapeamento realizado considerou um encadeamento de lembranças vividas com ela através de objetos, cheiros, locais. E é esse desejo inconsciente de estar com ela que o faz buscá-la mesmo depois que o procedimento é concluído com sucesso, ainda que, em tese, já a tivesse esquecido.

Com isso, retornamos ao início do filme, que na verdade é o seu final, já que o roteiro não é linear. E aquelas duas pessoas, esquecidas de sua vida em conjunto, voltam a se encontrar.

Ele, achando que estava agindo por impulso pela primeira vez na vida, desiste de ir ao trabalho e pega um trem em direção à praia. Mas, na verdade, seu impulso é um ato movido pelo subconsciente, onde as sensações vividas não foram totalmente apagadas e a lembrança da praia, que foi o lugar em que a conheceu, ainda estava presente, mesmo sem um significado consciente.

Em meio à jornada de Clementine e Joel, outras histórias se cruzam, como o fato de que em qualquer ambiente existem aqueles que vão se aproveitar de determinadas situações. Por exemplo, se o uso do cartão de crédito de alguém provoca estragos financeiros terríveis, o que dirá do uso de suas memórias? É isso que um dos funcionários da clínica faz ao ter acesso às memórias do romance do casal. Por achar que estava apaixonado por Clementine, tenta reconstruir as ações do Joel para que ela pudesse se apaixonar por ele, já que seguindo um raciocínio lógico, isso poderia ser provável.

Mas, a lógica não explica a maior parte das questões que permeia os sentimentos humanos. Ainda que o Joel tivesse sido apagado da memória de Clementine, as emoções que ela viveu e as sensações que tais emoções provocaram ainda estavam vívidas em seu subconsciente e refletiam nas formas mais variadas em seu dia-a-dia. Sem cair em um dramalhão vazio, a mensagem que o filme remete nesse aspecto é que mesmo seguindo um manual com regras e palavras adequadas, o funcionário da clínica não conseguiu atingir as emoções de Clementine. Assim, por mais que ela não se lembrasse da pessoa que encontrou no trem indo em direção a praia, o “conjunto de fatores” que formava aquele indivíduo despertou nela um interesse imediato.

As pesquisas que tem como temática o mapeamento da memória apresentam uma série de justificativas embasadas em problemas complexos. Esses problemas vão desde a dependência química até traumas terríveis vivenciados na infância (como abuso sexual). A questão, claro, é o limite que será imposto ao uso desses métodos. Será que algum dia poderemos modelar nossas memórias como modificamos nossa aparência em cirurgias plásticas? Quem decidirá que tipo de intervenção é “saudável”?

Somos apenas a soma das nossas memórias ou o somatório dessas experiências está intrinsicamente relacionado há algo que já se encontra inscrito em nosso DNA? Apagar um evento traumático poderá modificar o que esse evento já causou ou os danos dessa remoção poderão causar mais perturbações do que o próprio incidente?

A frase que deu título ao filme foi extraída de um poema de Alexander Pope, um dos maiores poetas britânicos do Século XVIII:

“Feliz é o destino da inocente vestal ! Esquecendo o mundo e sendo por ele esquecida. Brilho eterno de uma mente sem lembranças! Toda prece é ouvida, toda graça se alcança.”

Será que o esquecimento é, de fato, uma benção? A impressão que temos, ao final do filme, é que ter uma mente sem lembranças nem sempre significa ser tocado pelo brilho eterno. Antes de criarmos meios para apagar, talvez seja necessário entendermos o complexo conjunto de variáveis envolvido no processo de esquecer.

REFERÊNCIAS:

[1] How old memories fade away – Discovery of a gene essential for memory extinction could lead to new PTSD treatments. Disponível em http://web.mit.edu/newsoffice/2013/how-old-memories-fade-away-0918.html

[2] Scientists successfully erase unwanted memories. Disponível emhttp://www.medicalnewstoday.com/articles/265957.php

FICHA TÉCNICA:

BRILHO ETERNO DE UMA MENTE SEM LEMBRANÇAS


Direção: Michel Gondry
Roteiro: Charlie Kaufman
Elenco:  Jim Carrey, Kate Winslet, Kirsten Dunst, Victor Rasuk, Mark Ruffalo, Tom Wilkinson, Elijah Wood
Ano: 2004
Premiação: Oscar de roteiro original (Charlie Kaufman)

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Em que momento nos tornamos tão insensíveis à dor do outro?

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Hoje pela manhã, chegando ao trabalho, passei por um acidente de trânsito. Um carro atravessado na avenida, uma moto caída e um corpo que jazia sob um lençol branco. Cheguei para trabalhar tenso, preocupado (“será alguém conhecido?”), curioso, sim, sobre como se dera o acidente e também muito pensativo: quem era aquela pessoa? como estaria sua família? teria deixado filhos em casa? ou pais que chorariam a morte de um filho que partira cedo demais? teria essa pessoa sentido a morte se aproximar? sofrera, chorara, antes de morrer?

Fiquei meio que inundado destes sentimentos. Breve, muito rapidamente, vi pela internet detalhes sobre o acidente. Soube que era uma jovem de vinte e cinco anos e mais alguns detalhes de como tudo aconteceu. E já foi o suficiente para ficar mais e mais incomodado pensando em sua família, seus pais, seus irmãos, enfim, quem ficou e que por ela irá sofrer.

Logo apareceu, em um site de notícias, uma imagem do seu corpo no chão, ainda sem o lençol que a cobriria logo depois, que mostrava claramente as marcas da tragédia. Sangue e a brutalidade do acontecido estavam ali, para quem quisesse ver. Logo apareceu ali no Facebook a imagem original da qual o site de apoderara.

A partir dali aquela pessoa e sua tragédia, bem como a tristeza de toda a sua família, se transformou em uma imagem que parecia merecedora de ser curtida, compartilhada, comentada. E assim o foi. Em poucos minutos foram mais de duzentos compartilhamentos, um sem número de curtidas e centenas de comentários que iam se avolumando, tanto em quantidade quanto em insensibilidade à dor do outro.

Aos comentários que buscavam oferecer algum consolo (como se uma mãe ou um pai, em sua dor, fossem olhar cada foto de sua filha morta no chão para ler o que haviam escrito sobre ela buscando obter alguma forma de conforto) se misturavam centenas de outros que, detentores do saber, atribuíam a responsabilidade pelo acontecido ora à jovem, ora ao motorista do outro veículo. Como se já não bastasse a dor de quem perdeu um parente e o sentimento de culpa que, independente do que aconteceu, já devia pesar sobre a cabeça do outro motorista.

Palavras como “cabeça estourada”, “muita imprudência”, “que tragédia”, “esse infeliz tá solto e vivo”. Alguns poucos entenderam que a crueldade não estava somente no acidente em si, mas na insensibilidade de quem compartilhava uma imagem tão triste: “Isso não é foto de postar no face. Imagina a família dela vendo isso”; “lamentável……mas a foto é muito forte para os parentes e amigos”.

Em que momento a ânsia de sermos divulgadores de uma imagem tão brutal, nos impede de pensar que do outro lado pode estar um parente, um amigo, enfim, alguém muito próximo que acabará tendo sua dor ampliada pela nossa insensibilidade?

Em que momento não conseguimos nos colocar no lugar do outro para imaginar o quanto nos seria dolorido ver nosso filho, nosso irmão, nosso amigo, em uma imagem terrível e brutal compartilhada por pessoas a quem esta dor, na maioria das vezes, nem diz respeito?

É! Em que momento nos tornamos tão insensíveis à dor do outro?

Nota:

Texto escrito no dia 16 de outubro, quando imagens fortes de um acidente em Palmas, Tocantins, tomaram conta da rede social Facebook e de alguns portais de notícia. Após a grande repercussão da indignação das pessoas com essa atitude as imagens foram removidas dos sites de notícias e de vários perfis da rede social. O autor julgou o tema pertinente para ser registrado no (En)Cena.

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A Espuma dos Dias: para desencardir a poeira cotidiana

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Primeiramente gostaria de tornar este meu micro-ensaio sobre o filme baseado na obra de Boris Vian, publicada em 1947, um texto curto e polvilhado de curiosidades, para que seja entendido sumariamente como um conjunto de apontamentos de entradas, possíveis e não definitivas, frente a densa produção cinematográfica que lhe serve de referência.

Em segundo lugar, não me aterei em aspectos mais formais de uma análise cinematográfica como a desenvoltura dos atores principais, a riqueza do cenário ou a profundidade das falas que tecem a trama do filme. Tenho como foco trazer a tona “acontecimentos” que me arrebataram quando acompanhava o desenrolar da trama adaptada à sétima arte deste clássico da literatura francófona.

O que este resumo empolgado da obra supracitada tentará transmitir será a profundidade de questões existenciais que banham toda esta experiência refletida nas grandes projeções de cinema.

Trata-se de um filme que tangencia aspectos bastante intrigantes do fluir dos dias de cada ser humano. Nos três casais centrais da trama, há uma série de percepções e reflexões sobre o desenlace amoroso, a profundidade do amor, suas implicações na vida de um casal, a extensão de tais repercussões às vidas que circundam o casal, as disputas e inquietações das dúvidas que são metodicamente semeadas ao longo do relacionamento. Da entrega à cumplicidade, os casais se reformulam, criando uma trama cada vez mais complexa, que irá inclusive levar “a espuma dos dias” aos profundos questionamentos sobre a existência, a perenidade, a morte e a amizade.

Uma figura intrigante é a referência de um filósofo que consegue angariar súditos que o perseguem e o veneram mesmo não entendendo bulhufas do que seja profetizado em seus manuscritos. É uma figura inquietante que nos faz por em xeque as possíveis ideologias que tanto nos vemos abraçados, porventura de forma frágil e amedrontada.

Um dos temas também trabalhados de forma bela e profunda em toda a tessitura do filme é a questão da morte, que surge ao passo em que a doença se faz visível no corpo e, além do indivíduo, ao redor de seu eixo familial (intrigante pensar que a presença de um doente pode “envelhecer” os que o cercam, dos representantes humanos ao ambiente como um todo, imagens fortes que se ligam a terminalidade). Uma doença que confronta a solução mais vital existente entre os seres vivos – a água – que nesta obra ganha uma roupagem mortífera já que é essencial para a manutenção da “vida do mal” que ronda os pulmões de Chloé, o nénuphar(planta sabidamente aquática).  O médico do filme também é uma figura profunda, ambígua em sua postura fisicalista e fraternal, impondo regimes e pílulas para amenizar (ou prolongar) sofrimentos.

Finalizo dando ênfase ao fato de que a trama das vidas de Chick, Alise, Chloé, Colin, Nicolas, Isis, Jean-Pol Partre e do rato cinza de bigode preto são embaladas pelas belas composições do jazz de Duke Ellington, dando à atmosfera romântica, psicodélica e fantástica do filme um ar mais leve e desafiador.

Filme para deixar as espumas da vida mais arejadas do encardido do cotidiano! Duas horas de uma boa dosagem de alvejante para a alma!

 

FICHA TÉCNICA 

A ESPUMA DOS DIAS

Título original: L’écume dês jours
Gênero:
 Drama
Direção: Michel Gondry
Roteiro: Luc Bossi
Elenco: Aïssa Maïga, Alain Chabat, Audrey Tautou, Charlotte Lebon, Gad Elmaleh, Laurent Lafitte, Marina Rozenman, Mathieu Paulus, Natacha Régnier, Omar Sy, Philippe Torreton, Romain Duris, Sacha Bourdo, Vincent Rottiers, Zinedine Soualem
Produção: Luc Bossi
Fotografia: Christophe Beaucarne
Ano:2013

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