O que Budismo e Cristianismo têm de diferente, pela análise de Lubac e Usarski

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Um dos maiores estudiosos contemporâneos da aproximação entre o Budismo e o Cristianismo, o francês Henri de Lubac parte do pressuposto de que há um núcleo central entre estas duas tradições. Desta forma, apresenta o conceito de piedade que, nas duas expressões, acabam por tentar tirar o homem de suas projeções egóicas. E a piedade, neste contexto, de acordo com o francês, pode ser definida, dentre outras coisas, como “amar ao próximo como a si mesmo”, ainda que a importância do “eu” seja diminuída na abordagem oriental, ao ponto de tornar-se (esse “eu”) quase que insignificante. Haveria, portanto, um ideal contemplativo no sentido último da piedade. No Budismo, este ideal se expressa, sobretudo, no Caminho do Bodisatva (Bodi = mente, Satva = compaixão: ser de mente compassiva), que é aquele que renuncia ao Nirvana (ou ao Reino de Deus, como exemplifica Buddadhasa) até que todos os seres tenham alcançado a libertação/salvação.

Nas práticas contemplativas cristãs e budistas, lembra Lubac, a piedade ganha um novo sentido na medida em que, pela prática espiritual, o agente (que realiza a piedade) não é influenciado por fatores meramente emocionais e, portanto, é possível manter um estado de serenidade em que o colocar-se no lugar do outro, sofrer com o outro transcende e ganha um sentido ampliado. No entanto, esta abordagem causou confusão nos historiadores ocidentais, diz Lubac.

Habiendo visto bien que la piedad budista no se ocupa de los casos particulares y que no debe confundirse en modo alguno com lós movimientos de uma fácil sensibilidad, han considerado demasiado rápidamente su carácter general como un signo de universalidad; de esa forma han olvidado que entre ló general y ló universal existe aún toda la diferencia que hallamos entre ló abstracto y ló concreto […]. (LUBAC, 2006, pág. 52)

Lubac lembra que a piedade tem três sentidos para o Budismo Mahayana¹, sendo a sattvalambana karuna, a dharmalambana karuna e a analambana karuna. Na sattvalambana karuna a piedade é focada para os seres que sofrem, de modo particular. Ela é uma manifestação incompleta pois ainda leva em conta uma realidade fenomênica, aquela visível aos olhos, apresentada pelo ser que sofre. No caso da dharmalambana karuna há um avanço na percepção de inseparatividade entre aquele que se apieda daquele que é objeto de piedade. Portanto, como nesta fase se superou o sentido de dualidade, o que fica é apenas as sensações dolorosas por si mesmas (já que o “eu” que sente tal sensação é visto como um conjunto de agregados, e não como um ente intrínseco e imutável). “Pero este es todavia um conocimiento aproximado, porque lãs sensaciones dolorosas no existen pó sí ni em si. Este segundo tipo de piedad implica aún um tipo de avidya (desconocimiento)” (Lubac, pág. 56). Por fim, a analambana karuna se refere a piedade pura, aquela que não tem um objeto. Ela ocorre não por as criaturas, não para remediar os sofrimentos, mas sim de um modo totalmente gratuito, pelo puro amor da piedade. Assim, “una virtud resulta tanto más alta cuanto más pura sea […]. [Allí entonces] habria la piedad perfecta, ideal” (idem, pág. 57).

Tanto no Budismo quanto no Cristianismo a piedade é um fator de valor universal, mas para o primeiro ela não pode ter caráter antropomórfico, sob o risco de perder importância. “Incluso aquel que se sacrificara a favor de todos lós seres, sin preferências particulares” (idem, pág. 54). Este sentido de piedade, destaca-se, se assemelha ao amor indiscriminado de Cristo, que considerava todos como parte de sua família, independente dos laços consanguíneos. À frente, São Paulo ampliaria esta visão ao estabelecer a mensagem cristã como de caráter universal e com forte ideal de justiça, não restrita a um único povo ou região, com um apelo que, num olhar mais aguçado, estende a visão cristã, lembra Lubac.

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O Budismo é uma religião não-teísta

Passado este primeiro momento, é necessário debruçar-se sobre o conceito de amor “com” e “sem” Deus. Para o Cristianismo, de acordo com Lubac, o Mandamento do amor do homem por Deus tem as mesmas bases do amor de Deus pelos homens. Amar ao próximo, então, estaria ancorado no amor a Deus, já que Ele também ama e se expressa no próximo, “porque el hombre há sido creado a imagen de Dios” (idem, pág. 54). Assim, através da imagem divina que se expande pela criação, o homem participa, com efeito, da eternidade de Deus. Desta forma, a vida eterna inclui, também, o conceito de amor ao próximo – e amar ao próximo é amar a si mesmo. “La Fe y la esperanza pasarán, para ceder su lugar a la vida y a la posesión; pero la caridade no passará nunca” (idem, pág. 55).

No Budismo, no entanto, pela falta de enfoque ontológico, toda prática caridosa e todo altruísmo levam à liberação dos desejos, e há uma negação de qualquer abordagem eternalista. A caridade e a piedade, portanto, “es uma virtud provisional. Dicho de outra forma, esa caridad forma todavia parte de ló que lós budistas llaman ‘el orden mundana’. Por médio de ella no puede definirse, em modo alguno, el ser – o el no-ser – supremo” (idem, pág. 55). Vale ressaltar que o Buda considera o amor como uma forma de redenção do coração, no entanto

este amor no toma su sentido de los esfuerzos que hace aquel que ama, a fin de reafirmar y de sostener el valor del que es amado, sino de lós esfurzos dirigidos hacia la aniquilación y supresión de la realidad y del modo de ser de aquel ama […]. (LUBAC, 2006, pág. 56)

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O Budismo, sobretudo o tantrayana, concebe a existência de deidades; na imagem, Mahakala

Sobre a questão de deidades no Budismo, ou mesmo em relação à existência de algo que transcende a realidade, numa referência teísta (obviamente, um teísmo sem traços antropomórficos), Lubac destaca a doutrina Yogacara, dentro do Budismo Mahayana (escritos e comunidades posteriores às primeiras comunidades budistas), que se divide em duas teorias. De um lado, a abordagem Yogacara diz que há budas que atraem os seres até eles, envolvendo-os até que (os seres) amadureçam ao ponto de despertar, de alcançar a budeidade.

Por otra parte, añaden que, sin esperar El cumprimiento de esa ‘maduración’, lós budas ofrecen a los seres un pregusto de la felicidad suprema, manifestándose a ellos a través de su sambhogakaya¹. Pero em realidad estas dos teorias no recuerdan em nada al Dios Cristiano dela caridade. (LUBAC, 2006, pág. 58)

A primeira teoria, de acordo com Lubac, lembra o deus da concepção aristotélica, imutável e sem amor, para o qual convergem todos os seres movidos pelo desejo (de se reconectar). No entanto, o francês lembra que na própria concepção de Asanga, um dos doutos das doutrinas budistas mahayana, a existência dos budas e de todos os outros seres (sencientes ou não) surge a partir de relações interdependentes, não havendo, portanto, um único ponto de partida, mas um conjunto destes. Desta forma, ante uma “multitud de lós seres que, sin ninguna causa (sin ningún Dios que lês impulse), van avanzando hacia la maduración completa, en todos lós lugares, de todas las formas” (idem, pág. 58). Ou seja, mesmo se se levar em conta que há uma influência dos budas sobre os seres sencientes, estes budas, por si próprios, não têm existência separada. São aspectos da budeidade impessoal e insubstancial que absorve a todos em um único dharmakaya².

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A segunda teoria, de acordo com Lubac, evoca a divindade contida na filosofia spinozana, para quem Deus é tido como único motivo da existência de tudo o que existe. Desta forma, Deus é substância única, sendo que nenhuma outra realidade pode existir fora d’Ele, e a partir d’Ele surgem todos os outros elementos. Assim, a essência de Deus implica a sua própria existência. Desta forma, em Lubac

En la raiz de la caridad ha de haber necesariamente independencia. Si los budas no se contentan com su dharmakaya, en el cual están unificados, si se manifiestan a los bodisatvas por mediación de sus sambhogakaya, esto significa que están interesados en ello. (LUBAC, 2006, pág. 59)

Passada esta observação inicial, sobre algumas das características principais da cristandade, que é o amor ilimitado a Deus, ao próximo (como expressão de Deus) e a si mesmo (dentro de certos limites, para evitar cair na armadilha da autopistis e respeitando a centelha divina que há em cada criatura), Lubac lembra que a concepção budista para “amor” se assemelha ao “amor ao próximo” dos cristãos. Para tanto, cita outro douto das doutrinas budistas, Shantideva³, que defendia que todos os seres são semelhantes aos budas, na medida em que possuem uma parcela das virtudes de um Buda. “Esta parcela insigne está presente em las criaturas; en virtud de esta presencia, las criaturas deben ser honradas” (idem, pág. 59).

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Superando mal-entendidos

Lubac diz que, depois de destrinchar a conceituação do amor, própria do Cristianismo, e procurando estabelecer os pontos de contato com o Budismo, há alguns aspectos defendidos por vários historiadores que merecem especial atenção. O francês lembra que no decorrer dos últimos 200 anos

no resulta em modo alguno sorprendente que los historiadores hayan descubierto que muchos textos cristianos se relacionan com otros budistas, a medida que estos han sido más conocidos. A veces se han sugerido acercamientos sorpredentes, que parecen obligarnos a plantear la hipótesis de que existen lazos reales entre las dos religiones. (LUBAC, 2006, pág. 105)

Os principais pontos que marcam as aproximações são calcados em algumas indagações importantes, como a necessidade de supor ter existido uma relação histórica entre as duas concepções – através do elo comum entre elas, o helenismo4 –, além do pressuposto de que o lastro doutrinário comum pode ter sido decorrente de um movimento do espírito humano que se pulverizou por todo o planeta, mais ou menos num mesmo período, numa série de processos análogos. Além disso, é questionado se no atual momento de conhecimento advindo de pesquisas de toda ordem, as relações entre a Índia e o Mediterrâneo atingiram tal estágio de influência mútua. “Si hubiera que admitir una influencia, habría que perguntarse todavía en qué sentido se ha dado” (idem, pág. 106).

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Budismo e Cristianismo provavelmente se cruzaram no antigo mundo helênico

Lubac (2006) lembra que a Europa tem pressa para compreender este processo, sobretudo porque o que se entende por Ocidente, na realidade, começa no Irã, região que abrigou um entreposto de diferentes tradições, que acabaria por resultar nas grandes religiões que sobreviveram até a contemporaneidade. Além disso, há ressonâncias neoplatônicas (assim como houve no Cristianismo) nos escritos de Asanga5, grande influente da doutrina budista. Outro detalhe é a presença da cosmologia helenista na Índia através dos mistérios de Mitra6, sendo que movimentos como o Amidismo7 budista do extremo oriente pode ter sofrido alguma influência desta abordagem (assim como alguns historiadores também atribuem essa mesma influência sob o Cristianismo). A grande questão levantada por Lubac é saber se foi o helenismo quem influenciou o Budismo ou vice-versa, ou ainda se houve uma influência recíproca entre estas tradições.

Especificamente sobre a possível influência hindu na formação do pensamento neo-platônico, Lubac prefere não entrar nesta seara, pois a existência de uma colônia budista em Alexandria é algo que, até o momento, ainda não se conseguiu provar totalmente. O que se sabe, a partir da análise dos escritos da época, é que os alexandrinos tiveram um conhecimento menos deturpado dos temas budistas, em relação às outras regiões pertencentes ao antigo Império Romano, o que sugere que aquela sociedade, de alguma forma, teve um contato mais próximo com o Dharma de Buda.

Lubac (2006) diz que são legítimos os estudos e comparações dos escritos de Orígenes8 de Alexandria que geraram estreitas aproximações tanto com o conceito de “manifestação de Deus em Fílon9” quanto com a exegese mais universalmente aceita do sutra budista Parinibbana-sutta. De acordo com Lubac, a ideia de Orígenes de universalidade na redenção de Cristo, além da eficácia sem limites do sangue derramado na cruz e, por fim, uma visão particular em relação os diferentes estados do Logos, aproxima-se sobremaneira da visão budista dos corpos de Buda, mas que de maneira alguma as duas versões podem ser consideradas idênticas.

Em Orígenes um dos pontos analisados é o de que o Logos assume diversos estados (corpos) – inclusive a forma angelical – para não apenas dirigir-se aos homens, mas a todas as criaturas. Para reforçar este aspecto, Lubac cita um dos comentários de Orígenes aos escritos de São Mateus:

Si tú puedes contemplar al Logos que ha vuelto a su primer estado, después que se há hecho carne y después que se ha hecho todos los tipos de cosas para los hombres, habiéndose hecho para ellos aquello de ló que cada uno de ellos tenía necesidad, a fin de ganarlos a todos; si tú puedes contemplarle después que ha vuelto a esse estado em El que él era em el principio junto a Dios… etc. (LUBAC, 2006, pág. 110)

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Haveria uma analogia, de acordo com Lubac, entre este escrito – só para citar um deles -, e o pano de fundo tanto do gnosticismo quanto do Budismo. O francês diz que os textos oferecem uma ideia comum que aponta para uma “economia” nas manifestações divinas, “economia” que os budistas aplicaram, por sua parte, às manifestações de Buda. Assim, “Cristo es ángel entre los ángeles, como Buda es Bodisatva entre los bodisatvas y dios entre los dioses” (idem, pág. 115). No entanto, mais a fundo, alerta Lubac, existem diferenças entre a encarnação do Logus cristão com o conceito de nirmanakaya (corpo de aparência – físico – dos seres puros) presente no Parinibbana-sutta. Da mesma forma, a transfiguração de Cristo, que é comparada ao sambhogakaya, pode ter aproximações apenas sob um aspecto, o da sutileza envolvida no processo, que transcende a expectativa do que se espera de uma manifestação física. No entanto, a insubstancialidade do sambhogakaya se opõe ao idealismo contigo na concepção cristã, lembra Lubac.

 

Naturalização e desnaturalização

Por fim, Lubac (2006) diz que não se pode negar que budistas e cristãos encontraram elementos comuns para a elaboração de seus símbolos. E estas semelhanças ocorrem no campo da linguagem, do discurso e das sucessivas tentativas de aproximação, e talvez a mais sólida destas aproximações é a herança genealogicamente semelhante (estruturalmente falando), em que ambos partem de arcabouços doutrinários muito antigos – no caso do Budismo, uma continuação dos Vedas, no caso do Cristianismo, uma “atualização” do Antigo Testamento – que, em certo sentido, representaram rupturas. Mas as aproximações ocorreriam apenas em análises simbólicas desta ordem, e não nos detalhes doutrinais. Ou seja, enquanto que para os budistas a espiritualidade se recobre de colorações espirituais naturistas, “todo ensayo de interpretaión naturista sería, en su caso, totalmente desnaturalizador” para o Cristianismo (idem, pág. 90). O homem, portanto, na sua tentativa de reconexão com o Sagrado, aponta para um caminho de transcendência. Mais do que isso, no Budismo a salvação vem do conhecimento que o homem descobre por si próprio, com auto-poder e, desta forma, tem a capacidade mental e emocional para cessar os aparecimentos futuros (encarnações futuras). No Cristianismo, no entanto, a “árvore do conhecimento” brota de Deus, é a árvore da vida eterna, da fonte de toda a vida, expressa pelos sacramentos da igreja.

Desta forma, Lubac (2006) parece querer apresentar um antídoto para toda tentativa de generalizações apressadas entre as aproximações das duas tradições ora estudadas. No coração de ambas as religiões, em que pese uma semelhança simbólica – de caráter histórico -, doutrinariamente há diferenças no sentido de caridade/compaixão e na abordagem que defende igualdade entre a transfiguração de Cristo e o conceito dos corpos de Buda.

Já Frank Usarski (2009) aponta um problema central, a questão de Deus, como um dos fatores preponderantes que diferenciam as doutrinas cristã e budista. Uma vez que o Budismo rejeita a ideia de que há um Deus a partir do qual todo o restante surge – ele defende a gênese condicionada12 -, a investigação começa a partir do suposto problema da teologia cristã que detém

um modelo que pretende explicar a existência do cosmo físico ou das forças nele existentes, [e ainda assim] precisa recorrer a uma concepção teísta. Também escapa à lógica budista a necessidade de postular uma “causa primeira” da qual dependem todos os demais aspectos da existência. (USARSKI, 2009, pág. 254)

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Além disso, destaca Usarski (idem), pela interpretação geral cristã, Deus é criador e senhor de um universo produzido ex nihilo (a partir do nada). Há, portanto, uma visão dualista do mundo, sendo o conceito de Deus totalmente transcendente e “completamente outro” em relação à criação.

O fato de a Bíblia atribuir a Deus o poder de interferir nesse mundo não muda a ideia de separação da existência em duas esferas, uma vez que as intervenções divinas que culminaram com a encarnação de Deus em Jesus Cristo são de caráter escatológico e não ontológico – elas, portanto, não questionam o dualismo cosmológico. (USARSKI, 2009, pág. 254)

Este tipo de abordagem é visto com reservas pelo Budismo de forma geral, e pelo Theravada13 em particular. Isso porque o Buda estaria essencialmente interessado na concepção psicológico-antrológica da existência, e as eventuais “consequências soteriológicas”. No entanto, sempre que questionado sobre assuntos de ordem metafísica, dava de ombros ou ficava em silêncio, ou ainda dizia claramente que considerava tais discussões inócuas, irrelevantes. No entanto, essa posição – de negação dos aspectos ontológicos no Budismo – não demorou muito tempo. O próprio surgimento do movimento mahayana é, segundo Usarski, uma resposta a esta questão. Isso teria ficado claro quando os budistas apresentaram a o conceito dos três corpos do Buda (ou Trikaya). Sobre este tema e a tentativa de aproximá-lo a alguns dogmas cristãos, Masao Abe – um dos principais expoentes da escola de Kyoto – dedicou boa parte da sua vida.

Se, por um lado, isso foi encarado como algo bem-sucedido do ponto de vista budista, por outro Abe a seus colegas foram acusados de tentar reformular a ideia de um Deus monoteísta a partir das categorias mahayanistas, em detrimento da autenticidade dos ensinamentos cristãos centrais. […] A doutrina dos três corpos é uma teoria budológica, segundo a qual a última realidade não-substancial e impessoal (dharmakaya) se manifesta em dois planos “concretos”. Esses dois planos correspondem aos Budas sutis, com seus corpos de glória (samboghakaya), e ao Buda histórico, cuja forma corporal “grosseira” é denominada de nirmanakaya. […] Nesse sentido, o plano de nirmanakaya é associado a Cristo, enquanto o Deus monoteísta cristão é colocado em analogia ao plano de samboghakaya. (USARSKI, 2009, pág. 255)

Usarski (2009) lembra que a primeira grande dificuldade desta abordagem – como já se viu em Lubac – é que para um budista esta analogia pode soar de forma não-problemática, mas “corre o risco de ser classificado, do ponto de vista cristão, como uma espécie de blasfêmia” (Idem, pág. 257). Além disso, segundo Usarski, a teoria de Abe revelou que a Teologia cristã até então não tinha sido pensada até as últimas consequências.

De acordo com uma leitura mais construtiva da obra de Abe, pode-se dizer que o filósofo da escola de Kyoto tentou melhorar a imagem teologicamente deficitária do Cristianismo. Para esse fim, praticamente realizou concessões teológicas a ambos os lados, sugerindo que tanto a concepção mahayanista, impessoal-monista da vacuidade (sunyata) quanto a ideia cristã refletem as respectivas construções básicas da outra religião. (USARSKI, 2009, pág. 257)

Por fim, sunyata é praticamente apresentada por Abe como uma espécie de “causa primeira” que se esvazia constantemente, num frenético movimento dialético em que a existência passa a oscilar entre dois estados (o vazio gerado pelo próprio vazio). “Com isso, a concepção monista-ontológica da unidade de samsara14 e nirvana torna-se um ‘princípio da criação’” (idem, pág. 258). Desta forma, a partir das contribuições de Abe, há uma aproximação tangível entre a teologia budista e a cristã.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LUBAC, Henri de. Budismo Y Cristianismo. Salamanca – Espanha: Ediciones Sígueme, 2006;

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NORBU, Lama Zopa. O Coração da Bondade. São Paulo: Clube de Autores, 1ª. Edição, 2010;

USARSK, Frank. O Budismo e as Outras. Aparecida, SP: Editora Idéias & Letras, 2009;

CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Editora Pensamento, 1995;

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;

O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;

PONDÉ, Luiz Felipe. Crítica e profecia. São Paulo: Leya Brasil, 2013;

DOURADO, Saulo Matias. A distinção entre vontade própria e desprendimento em Mestre Eckhart. Revista de Filosofia v.6, n.2, dezembro/2012;

WILKINSON, P. O livro ilustrado da mitologia: lendas e histórias fabulosas sobre grandes heróis e deuses do mundo inteiro. Tradução de Beth Vieira. 2ª edição. São Paulo. Publifolha. 2002;

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NETO, Antonio Florentino. Heidegger e o inevitável diálogo com o mundo oriental. Disponível em < https://anaiscongressofenomenologia.fe.ufg.br/up/306/o/ConftFlora.pdf > – Acesso em 14/09/2015;

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XAVIER, Maria Leonor. O Cristianismo e a Filosofia Ocidental – I Colóquio sobre Filosofia da Religião (2001). Disponível em < http://religioes.no.sapo.pt/leonor2.html > – Acesso em 15/09/2015;

SCHUON, Frithjof. De l’Unité transcendante des Religions. Disponível em < http://www.frithjof-schuon.com/unite.htm > – Acesso em 26/09/2015;

MIKLOS, Cláudio. Palestra realizada em Seshin na cidade de Goiânia – Goiás. Maio de 2015.

 

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“Carol” e o caminho da completude feminina

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Com seis indicações ao OSCAR:

Atriz (Cate Blanchet), Atriz Coadjuvante (Rooney Mara), Roteiro Adaptado (Phyllis Nagy), Fotografia (Ed Lachman), Trilha Sonora Origial (Carter Burwell), Figurino (Sandy Powell). 

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O homem só conhece a sua verdadeira natureza no momento em que se enamora

                   Aldo Carotenuto

O prenúncio de Eros e Pathos

É natal, a beleza da neve fina que cai logo se transmuta na lama que suja as ruas de Nova York. Mas nada disso importa para Therese Belivet (Rooney Mara). O frio a expulsa do seu apartamento sem calefação para o trabalho, onde toma seu café. Lá, vai para o seu posto atrás de um balcão, no setor de bonecas. Therese não é muito diferente delas, ali, esperando inerte, passiva, repetindo as mesmas frases decoradas para agradar os clientes enquanto distribui um sorriso plástico para atraí-los. Mas aquele dia em especial teria duas novidades: o primeiro, ter que usar um gorro de natal e, segundo, a presença de Carol (Cate Blanchett). Ela era “alta e clara, com um longo corpo elegante dentro do casaco de pele folgado (…), seus olhos eram cinzentos, claros e, no entanto, dominadores, como luz ou fogo” (Trecho do livro Carol).

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Ao avistar Carol pela primeira vez, Therese não quer se desprender daquele corpo evanescente que parece flutuar longínquo em meio a balburdia da multidão na loja. Um instante ali, em um respirar, a garota perde seu objeto de curiosidade, expande sua procura para outras partes da loja e quando a decepção começa a se instalar, Carol materializa-se na sua frente, carne, osso e sedução. Olhos nos olhos, postura contida da jovem diante da força feminina que penetra o seu espaço. O enlace lembra um excerto de Shakespeare.

“Assim que se olharam, amaram-se; assim que se amaram, suspiraram; assim que suspiraram, perguntaram-se um ao outro o motivo; assim que descobriram o motivo, procuraram o remédio”. (William Shakespeare)

Com seu primeiro livro, Strangers on a Train, a jovem autora Patrícia Highsmith conseguiu a atenção do público e da crítica. Alfred Hitchcock imortalizou a obra nos cinemas com o clássico O Pacto Sinistro. Seu segundo livro, O Preço do Sal, foi rejeitado por conflitos editoriais; não queriam arriscar a carreira da escritora com um tema delicado sobre o romance de duas mulheres. Que continuasse com os suspenses. Mas Patrícia preferiu entregar seu livro para outra editora, não iria jogá-lo no esquecimento de um fundo de gaveta. Sob o pseudônimo Claire Morgan, O Preço do Sal chegou às mãos dos leitores em 1953.

Somente depois de quase trinta anos a verdade veio à tona em uma confissão da própria autora em um pós-escrito de uma nova edição. Agora temos uma versão cinematográfica primorosa feita pelo diretor Todd Haynes (Longe do Paraíso, 2002), com interpretações permeadas de sutilezas do elenco, principalmente das protagonistas Cate Blanchett e Rooney Mara, que concorrem, respectivamente, ao Oscar 2016 de Melhor Atriz e Melhor Atriz Coadjuvante.

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Afrodite: o arquétipo da Deusa do Amor 

Uma verdadeira história de amor tem doses de idealismo e romantismo, permeados de sofrimento, prenúncios de tragédia e, por vezes, redenção no seu encalço. E se o imaginário coletivo já é carregado por arquétipos gregos, a cultura de massa explora esse sentimento que arrebata o coração empurrando romances e filmes, provocando suspiros, lágrimas e, apesar de tudo, esperança. É peculiar notar que tramas com tamanha dor representam a essência do sentimento mais desejado pelo ser humano.

O drama é incontestavelmente parte da experiência amorosa, no entanto, com tantos sinais de aviso sobre os caminhos tortuosos deste sentimento utópico, o indivíduo quer, procura e sonha tê-lo.  Mas qual seria a razão para o desejo de um sentimento que pode, aparentemente, significar a destruição daquilo que já conhecemos, das nossas certezas e, principalmente, da identidade? Certamente não obteremos a resposta utilizando a razão.

No primeiro encontro, Carol chega curiosa à bancada da menina que a encarava de maneira incisiva. Sua experiência enxerga em Therese uma possibilidade, há uma faísca no olhar da vendedora que a atrai. O jogo de sedução é iniciado a partir do momento que ela deixa as luvas sobre o balcão, – com as mãos nuas, ela demonstra implicitamente que está aberta para um contato verdadeiro; outra leitura presente é que nos remete a cultura do desafio do passado: ao retirar as luvas e jogá-las no chão, chama-se o oponente para um embate, a pessoa ao se abaixar e pegar estaria aceitando o duelo. Therese percebe as intenções e aceita, de forma juvenil, as investidas da sedutora mulher à sua frente. Carol quer saber até onde vai a ousadia da menina; Therese quer provar que é digna de atenção.

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O ponto de partida do romance entre as duas mulheres é de reconhecimento dos anseios da psique e sua completude. Em uma identificação com os arquétipos das deusas gregas, segundo Bolen (1990, p. 82), temos Therese como uma das três deusas virgens. “Ártemis representa um sentido de integridade, uma-em-si-mesma, uma atitude de ‘sei cuidar de mim mesma’ que permite à mulher agir por conta própria, com autoconfiança e espírito independente”. Em vários momentos do longa há investidas masculinas sobre Therese, e ela renega todas tal qual como a deusa da lua. Na década de 50, isto representa um avanço na personalidade feminina e os primeiros passos do feminismo. De acordo com Bolen (1990, p. 55).

“(…) a propaganda posterior à Segunda Guerra Mundial enfatizava o casamento e a maternidade. Era um tempo de realização para mulheres que tinham a necessidade de Hera de serem uma companheira, e para mulheres com instinto maternal de Deméter. Era uma época difícil para mulheres tipo Atenas ou Ártemis, que eram intelectualmente curiosas e competitivas, mulheres que queriam expressar superioridade ou realização em qualquer tarefa que não a de construir família.”

Carol encarna a deusa Deméter, mãe acima de tudo, seu amor e devoção estão todos voltados para a filha e ninguém mais. A deusa Hera também traz a maternidade como uma de suas características, mas diferente da nossa protagonista, a deusa nutre um amor passional pelo marido, Zeus, sentimento inexistente entre ela e Harge (Kyle Chandler). “A mulher com um forte arquétipo de Deméter deseja ardentemente ser mãe. Uma vez que se torna mãe, acha isso um papel realizador. Quando Deméter é o arquétipo mais forte na psique de uma mulher, ser mãe é o papel mais importante e funcional de sua vida” (BOLEN, 1990, P. 240).

Esses modelos não são fixos, mas podem ser limitantes, refletindo características da época que podem suprimir ou permitir o seu desenvolvimento. Esclarece Bolden (p. 54): “A vida das mulheres são modeladas por papéis permitidos e imagens idealizadas da época”. Historicamente temos exemplos dessa influência com a caça às bruxas na Idade Média e o advento do feminismo na modernidade. Mas a psique do indivíduo nem sempre precisa da autorização da sociedade para buscar sua individuação. “Uma deusa pode tornar-se ativada e nascer para a vida quando um arquétipo é trazido à tona por uma pessoa ou por um acontecimento” (BOLEN, 1990, P. 58).

A mulher necessita expressar de maneira equilibrada os seus três aspectos: das deusas virgens – Ártemis, Atenas e Héstia -, das deusas vulneráveis – Hera, Deméter e Perséfone -, e da deusa alquímica – Afrodite. “As deusas, representando três categorias diferentes, necessitam de expressão em algum lugar na vida da mulher, para que ela possa amar profundamente, trabalhar significativamente, e também ser sensual e criativa” (BOLEN, 1990, p. 39).

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Ao se encontrarem, Afrodite permeia a psique de ambas as mulheres. O desejo de transformação é inerente a elas naquele momento; há uma escolha, mas suprimir essa ânsia pela completude da alma pode trazer conseqüências mais graves do que se render a inconsciente vontade de transformação. Para Bolen (p. 48), “quando diversas deusas disputam o domínio sobre a psique de uma mulher, esta precisa decidir que aspecto de si própria expressar, e quando expressá-lo. Ela, aliás, será arrastada primeiro numa direção e depois noutra”. Temos no filme, então, duas mulheres em contato direto com suas deusas, Ártemis e Demeter, onde a necessidade de transformação será ativada pelo arquétipo da deusa do amor. “O arquétipo de Afrodite motiva as mulheres a procurarem intensidade nos relacionamentos, em vez da permanência neles: motiva-as a valorizarem o processo criativo e a serem receptivas a mudanças” (BOLEN, 1990, p. 41).

Então, quais seriam essas mudanças que almejam e que somente com o florescimento da deusa do amor e da sedução será possível? Segundo o analista Aldo Carotenuto (1994, p. 17), enxergamos no outro a nossa redenção e nossa maldição. Há um reconhecimento do inconsciente de uma parte da psique necessária para a transformação alquímica. “Ativam-se, pois na relação amorosa, elementos ocultos ou até desconhecidos, que são levados à luz da subversiva força da emoção.” Assim, o perigo de amar é não reconhecer e não permitir a mudança dos aspectos da psique até então atuantes e ligar-se de maneira doentia ao outro. O autor esclarece:

O amor que une os amantes liga indissoluvelmente as partes “doentes” dos dois indivíduos. Por isso podemos dizer que a relação de casal apresenta aspectos delinquenciais que, se reforçados por um particular contexto ou por uma disposição patológica de ambas as pessoas, podem fazer emergir de modo dramático as zonas de sombra (CAROTENUTO, 1994, p. 17).

Carol necessita sentir Ártemis através de Therese e esta precisa aflorar seu lado de adoção e vínculo propiciados por Deméter. Afrodite é o elo para a manifestação dessa mudança. A retidão das duas até consumar o relacionamento está relacionada ao poder por vezes incontrolável dos arquétipos que permeia a mulher sedutora, mas casada e com filhos. “As mulheres que são direcionadas por uma dessas três deusas devem aprender a resistir, porque fazer cegamente o que lhes dizem Afrodite, Deméter ou Hera pode afetar adversamente a vida de uma mulher” (BOLEN, 1990, p. 40).

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A ideia não é resistir, mas tomar consciência da experiência que deve se tornar um rito de passagem, uma porta para outro cenário de desenvolvimento da psique. A negação desses ritos pode trazer à tona de forma neurótica pressões internas para com o indivíduo e a todos que o cercam. Assim, é necessário uma atitude. Para Bolen (p. 49), “quando diversas deusas disputam o domínio sobre a psique de uma mulher, esta precisa decidir que aspecto de si própria expressar, e quando expressá-los”.

Por isso que o título do filme carrega o nome da personagem Carol, ao contrário de Therese que ainda seria uma lagarta lutando contra a crisálida que segura o seu verdadeiro EU; a personagem de Cate Blanchet é uma borboleta presa em uma teia de aranha, lutando inexoravelmente para se libertar de poderosa prisão, porque ela já vivencia várias personas impostas por uma sociedade patriarcal. Para Carotenuto, o amor é um meio para essa transformação e Bolen (1990, p.58) reforça isso:

Quando a mulher se apaixona, a mudança põe em perigo as prioridades anteriores. Interiormente, ao nível arquetípico, os padrões antigos podem não permanecer. Quando Afrodite torna-se ativada, a influência de Atenas deve enfraquecer, fazendo do progresso na profissão algo menos importante do que o seu novo amor. Ou os valores de Hera em favor do matrimonio podem ser superados, se houver infidelidade.

A negação, a repulsa e perseguição dos homens que permeiam o universo das duas é uma clara faceta do masculino diante das exigências, antes mudas, do feminino de demonstrar sua força individual. “Nas sociedades patriarcais os papéis aceitáveis são os da jovem (Perséfone), da esposa (Hera) e da mãe (Deméter). Afrodite é considerada “a prostituta” ou “a sedutora”, o que é uma distorção e desvalorização da sensualidade e sexualidade desse arquétipo.” (Bolen, 1990, p. 54).

É uma encruzilhada onde os dois caminhos são cobertos de dor, mas somente um leva a individuação e ao empoderamento do EU. E é este caminho que Carol e Therese decidem seguir quando viajam juntas.

O arquétipo de Afrodite não é o mais perigoso, qualquer uma das deusas quando não vivenciadas de maneira adequada tem seus efeitos colaterais. Mas ser regido pela deusa do amor e da sedução é se permitir guiar pela emoção e perder totalmente as rédeas da razão pode trazer consequências de peso muito maior que a psique possa suportar. Para Carotenuto (1994, p. 110), “se não temos certo nível psicológico, o instinto sexual se torna cruel na sua repetição, na tentativa desesperada de captar o outro.” Assim, corre-se o risco da busca constante da repetição do rito não pela experiência, mas pela sensação.

Explica Carotenuto (p. 110): “É típica do homem a possibilidade constante e ininterrupta de amar e desejar, não vinculada a fases ou ciclos, provavelmente a vicissitudes evolucionistas.” Mas uma via que torna essa busca desesperada em algo mais profundo seria através da ternura, que, para o autor, distingue o ato do rito sexual. O reconhecimento da anima seria a única forma de permissão da psique para a possibilidade de cativar de maneira íntegra o amado. “Só o feminino (tanto na mulher como no homem) consegue fazer isso. A ternura se contrapõe a uma grande ameaça: a que nos vem do sentimento de morte” (CAROTENUTO, 1994, p. 110).

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O amor 

A pressão que Carol recebe do marido, partindo da ameaça para o cerceamento são o reflexo da sociedade para aqueles que ousam ir além do que é padrão. Segundo o analista junguiano (p. 24), o amor ajuda a romper essas barreiras, “as leis não podem proibir os seres humanos de se enamorarem, mas é a própria sociedade que deixa morrer quem ousou transgredir levando uma centelha divina para o sulco sempre igual e cinzento da existência”. Ou seja, a mesma sociedade que enche as salas de cinemas para ver filmes como Carol e Romeu e Julieta é aquela que atira a pedra quando vê isto transposto para a realidade. A tragédia vem imbuída com sentimentos de inveja.

No filme, temos duas mulheres bem conscientes do mundo que as envolve. Therese olha curiosa, através de sua redoma – sempre, no início, observando através de janelas ou da sua câmera – a vida de Carol e deseja ardentemente tudo aquilo que ela poderá lhe proporcionar. E não hesita em nenhum momento a esse desejo, porque ele é sincero e não uma simples pulsão. “Quem ama se descobre mais forte e mais rico, sente-se inesperadamente capaz de enfrentar também as situações perigosas” (CAROTENUTO, 1994, p. 42).

Carol fica a mercê desse conflito interior, precisa manifestar sua independência e sua sedução, infelizmente seu marido não é o meio para isso. E é esse desejo de não permanecer à mercê de um padrão um exemplo de mudança individual que afeta o coletivo e, consequentemente, uma época.  Quantas mulheres casadas e mães não abdicaram de seus sonhos e desejos por medo de perder literalmente tudo. Carol pressente que os tempos são outros, que sua voz tem presença e sua ação, poder. Então ela vive e fala sobre seu amor, sem inibições, mesmo que signifique perdas; pior seria a morte de sua alma. O que sucede é um abraço a esse lado desconhecido de maneira íntegra, ciente de todas as conseqüências necessárias para exercer sua liberdade. “É verdade, o amor nos torna livres, livres para manifestar sem inibições não apenas o próprio lado emocional, mas também a própria inclinação ao negativo, aquela que com sugestivo termo junguiano é chamada Sombra” (CAROTENUTO, 1994, p. 18).

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A ruptura posterior entre as duas é necessária para o desenvolvimento saudável de suas psiques. A vivência de Afrodite para elas é um meio para chegar à completude e não um fim. Se ali, na viagem, terminássemos em um final feliz, teríamos um casal amarrado pela necessidade neurótica uma da outra, parasitas de suas próprias almas.

Therese teve sua experiência com o arquétipo de Deméter de Carol, mas não encarnou para si esse modelo. Após a dramática separação, surge o arquétipo de Atena, onde a calma e a racionalidade passam a ser características naturais de sua persona.  Bolden (1990, p. 120) esclarece que “quando a mulher reconhece o modo intenso com que sua mente trabalha como uma qualidade feminina relacionada com Atena, ela pode desenvolver uma autoimagem positiva, ao invés de se amedrontar de estar masculinizada, isto é, imprópria.” Assim a menina cura sua anima através da amorosa Deméter e aceita seu animus de maneira positiva.

Já Carol necessita da independência de Ártemis, porém a sociedade quer prendê-la no arquétipo de Deméter ou que a abandone a favor de Afrodite.  Mas Carol percebe que há outra possibilidade, que há necessidade de sacrifícios para manter a integridade do seu EU verdadeiro: trazer o arquétipo de Ártemis à tona, assumir sua liberdade e independência com todos os prós e contras que as escolhas trazem. Isso não a impede de ser mãe e muito menos de amar.

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Em uma história feita de escolhas, o longa de Todd Haynes ainda traz uma surpresa no seu belíssimo desfecho. A cena que inicia o filme e volta a se repetir nos minutos finais exige de Therese um sacrifício a altura daquele feito por Carol na luta pela guarda da filha. Carol, no restaurante chama Therese para morar com ela e antes da resposta surge um amigo que a fisga de volta aos anseios da sociedade; existe um dilema, seguir a razão ou o coração. Ambas já tiveram sua mudança alquímica completa, a partir dali os contornos que a vida daria seriam outros. O rapaz pousa a mão no ombro esquerdo da garota – o racional -, e Carol se despede tocando seu ombro direito – o emocional. Cabe a ela decidir quem vai determinar sua história: a sociedade ou sua sombra. Uma escolha a qual todos passam, em maior ou menor escala, onde geralmente a mão mais pesada é a vencedora. Por isso que histórias de amor são únicas culturalmente e raras na realidade, são poucos que escolhem seguir o seu coração.

REFERÊNCIAS:

BOLEN, Jean Shinoda. As deusas e a mulhernova psicologia das mulheres. São Paulo, 1990;

CAROTENUTO, Aldo. Eros & pathosamor e sofrimento. São Paulo, 1994.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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CAROL

Direção: Todd Haynes
Elenco: Cate Blanchett, Rooney Mara, Kyle Chandler, Jake Lacy;
País: EUA
Ano: 2015
Classificação: 14

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Brooklin: o amor e o processo de individuação

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Com três indicações ao OSCAR:

Filme,  Atriz (Saoirse Ronan), Roteiro Adaptado (Nick Hornby)

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A narrativa do filme Brooklin tem uma linguagem leve e envolvente. Uma jovem irlandesa chamada Ellis (Saoirse Ronan) se muda de sua terra natal para o Brooklyn, na busca pela realização de seus sonhos. No inicio de sua jornada nos Estados Unidos, ela sente muita falta de sua casa, de sua irmã e mãe, mas ela vai se ajustando aos poucos até conhecer e se apaixonar por Tony, um bombeiro italiano.

Conforme Carl Jung o processo de individuação ocorre de maneira espontânea e inconsciente e faz parte da natureza inata do indivíduo. Entretanto, esse processo só se torna significativo na medida em que o indivíduo se torna consciente e se compromete com ele. O processo é desencadeado pelo Self, centro da totalidade psíquica e também é exatamente o Self a meta da individuação. Ou seja, ele é o inicio e a meta.

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Nesse processo é importante a participação ativa do ego, que com as imagens e o conhecimento provindo do inconsciente vai ampliando a sua consciência e conseqüentemente auxiliando no processo de individuação. As relações amorosas ao longo da historia da humanidade possibilitam o encontro com o Self, pois ao se apaixonar o outro se torna sagrado, um objeto de adoração. Projetamos então o sagrado e divino em nós em outro ser.

Na Mitologia Grega, temos a figura do deus grego Eros, que representa o amor como força transcendente que leva a alma humana para o auto-desenvolvimento e para o mais profundo do seu ser. Eros é representado, algumas vezes, por um menino rechonchudo, com asas, que sai atirando suas flechas inconseqüentemente. E às vezes representado por um belo homem, como no mito de Eros e Psique. Algumas vezes também é retratado como filho do Caos, sendo um deus primordial. Outras vezes é filho da bela Afrodite.

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A verdade é que essas imagens destoantes e sua origem diversa causa certa confusão, mostrando o quanto ficamos confusos diante do tema amor. Ellis então é flechada por Eros e se apaixona. A moça que antes estava soturna se torna ativa e com sentido de viver em uma terra estranha e nova. Vemos no jovem casal o estado inicial do relacionamento.

Nesse estado, o de paixão, comum no inicio de namoro, os indivíduos ficam indiferenciados, encantados, conectados e vulneráveis à projeção do que imaginam e desejam ser o outro, sem condições conscientes de perceber o outro como ele realmente é. Um estado paradisíaco, no qual o outro se torna tudo o que vínhamos buscando até então.

O difícil nesse estado é perceber que o que vínhamos buscando é a nós mesmos. O que Ellis mais deseja, e que é a maior falta que ela sente em sua alma é de força. E Tony possui essa força. O rapaz banca suas escolhas, seus sentimentos e sua condição de imigrante. Essa força é que falta em Ellis para prosseguir em sua jornada de individuação e construir sua carreira, seus conceitos e sua própria família. Ela ainda é uma garota indefesa e insegura.

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Eros é quase sempre um Deus traquinas, inconseqüente e subversivo, mas também belo e irresistível. Ele muitas vezes causa discórdia e subverte a ordem. Mas também gera nova vida, e possibilita a unificação de opostos, sendo um elemento de transformação. Ser flechado por Eros pode nos levar a uma compreensão mais profunda de nós mesmos, pois somente o amor possibilita nos vermos através dos olhos do outro.

O tempo passa e o relacionamento dos dois vai se transformando. As projeções começam a se retirar. Ambos precisam sair dessa unicidade para se tornarem indivíduos autênticos dentro da relação. É a queda do Paraíso! Ellis passa uma vez por essa expulsão do paraíso ao sair da casa de origem. Ela sai do conforto original, do estado urobórico e precisa buscar sua autonomia.

E agora novamente precisa sair essa unidade com o ser amado. Sair da prisão da paixão e da indiferenciação. A paixão é de extrema importância, sem ela Ellis não teria suportado a vida em um país diferente e longe da casa materna. Esse amor a impulsionou a buscar seus sonhos e ampliar seu horizonte.

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É esse amor que fez Bela suportar a vida longe da casa e origem e amar a Fera. No entanto, assim como Bela, a mocinha faz um movimento de volta ao lar de origem. Ela realiza um movimento de regressão de libido após a morte de sua irmã. Quando uma projeção se retira, a libido antes investida em um objeto se volta para o inconsciente e ativa complexos arcaicos e mais primitivos.

Ellis retorna a casa da mãe e lá fica dividida com um novo interesse amoroso. Ela se encontra então dividida entre dois países e entre o amor e o dever. Esse é um momento delicado em qualquer relação, pois o individuo pode não aceitar o processo e tentar buscar aquela sensação de unidade em uma nova relação sem antes compreender o que é necessário para si.

O filme trata então de uma jornada de iniciação da mocinha. De amadurecimento e crescimento. Recolher suas projeções não é uma tarefa fácil. Nesse processo de crise, Ellis fica dividida entre dois opostos. O outro rapaz é o oposto de Tony e representa a zona de conforto da moça.

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Ao retornar ao lar original, ela já não é mais a mesma. Já não se encaixa mais no padrão anterior. Mas algo ainda a segura ao que é conhecido: o medo. O medo da grande transformação. Essa expulsão do estado indiferenciado e retorno, ou seja, progressão e regressão da libido é comum. Passamos por essa dinâmica diversas vezes em vários níveis.

Ao se relacionar com esse outro rapaz, Ellis volta a estar indiferenciada, mas não mais como anteriormente. Algo nela já mudou. Nesse instante Ellis passa a conhecer o bem e o mal em si. Ela passa a se questionar e encontra o insight de crescimento. Ao se confrontar com a megera para quem trabalhava, ela se conscientiza de que precisa retornar, que já não cabe mais ali. Ela precisa fazer o sacrifício de abandonar as emoções infantilizadas.

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Ela retorna ao Brooklyn e agora ao seu amor por Tony renovado e mais consciente e diferenciado. Ela percebe que essa relação a transformou em quem ela é e nas possibilidades de crescer ainda mais. Não há relação ideal e ela passa a perceber isso. É nesse separar e retornar com mais consciência que o Self começa a se manifestar.

Quando Eros aparece com suas asinhas e seu arco e flecha, ele vem nos ensinar que é necessário que conheçamos um novo centro. Se estivermos disponíveis à reflexão e abertos à experiência podemos encontrar nosso eu mais profundo e iniciarmos nosso processo de individuação.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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BROOKLYN

Direção: John Crowley
Elenco: Saoirse Ronan, Emory Cohen, Domhnall Gleeson, Julie Walters;
País: EUA
Ano: 2015
Classificação: 14

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No quintal do CAPSi: devir-criança e os cuidados na atenção psicossocial

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O trabalho relata a experiência de um CAPS infantil em São Paulo, versando sobre a importância dada ao brincar, ao ser-criança-além-do-diagnóstico, seja ele médico ou de outras especialidades. Como meios de ação, contamos com diferentes dispositivos da Atenção Psicossocial para evitar o fechamento de um modo de existência em um parâmetro de (a)normalidade.

Estes dispositivos podem ser investidos visando certa “resolutividade dos conflitos” ou “eliminação dos sintomas”. No entanto, destacamos a aposta em algo que escapa aos saberes e técnicas: o ato de “criançar”.

A aposta se funda na ideia do “lá em casa”, do “aconchego”, do “tem lugar pra isso também”, ou seja, em algo para além da Psiquiatria Reformada (que sairia do atendimento individualizante medicamentoso e passaria a atuar de maneira análoga), passando para a Reforma Psiquiátrica em seu viés contemporâneo que tem como um dos principais alvos de enfrentamento os manicômios mentais que cotidianamente questiona “é normal uma criança fazer isso?”.

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Como exemplo, apontamos os cuidados oferecidos às crianças e adolescentes com transtorno do espectro autista. Para eles, geralmente, oferece-se grupos de estimulação, linguagem, atividades de habilitação para a vida cotidiana, atendimentos do usuário e família, medicamentos, parcerias com a Rede e com as escolas.

Todas estas modalidades de atendimento são importantes e produzem efeitos. Apontamos, porém, outra dimensão da nossa aposta ética: o criançar, que consiste em proporcionar experiências da infância dita “normal” àqueles que apresentam limitações singulares e que, muitas vezes, são privados do brincar, do correr, do se lambuzar, do Serestar-Criança.

A estas experiências, oferecemos um espaço de cuidado (com a presença de técnicos e familiares), para que cada experimento potencialize o devir-criança, que neste caso, é a criança que brinca, cria, pergunta, aprende, (que se) descobre, que (se) afeta.

Nestas experiências, trazemos à cena, o quintal de casa, o banho de mangueira, o futebol de sabão. Experiências singulares e corriqueiras da vida que garantem o seu desenvolvimento e o seu convívio com as diversidades. Coerente com esta lógica, o espaço é compartilhado por crianças ou adolescentes e não por sujeitos que se representam pelas suas hipóteses diagnósticas.

Esta lógica aponta para a superação de um paradigma normalizador que proclama uma infância asséptica, protegida dos riscos e das possibilidades que a vida oferece.

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“A Noiva Cadáver” e o amor na psicologia analítica

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A Noiva Cadáver é uma animação de 2005 produzida por Tim Burton. A historia do filme é baseada em uma lenda russo-judaico do século XIX e é ambientada em uma fictícia Inglaterra da era vitoriana. A animação se inicia mostrando o jovem Victor Van Dort filho de novos ricos comerciantes de peixe, destinado a casar-se com Victoria Everglot, filha de aristocratas falidos, em uma pequena aldeia inglesa.

A ideia de um casamento arranjado angustia a ambos. Victoria se preocupa com o fato do noivo não vir a gostar dela. Instintivamente eles sabem que o amor é uma escolha pessoal e não um arranjo dos pais para se projetarem socialmente. E é em torno do tema do amor e união que o filme se baseia.

O amor para a psicologia analítica é um grande impulsionador do processo de individuação. Por meio dele há o encontro com o outro, que nos transporta para uma dimensão mais profunda de nós mesmos. Por essa razão o amor é pessoal, pois nos impulsiona a nos conhecermos e a sairmos de casa em busca da autonomia.

Mas Victor e Victória se apaixonam e desejam realmente se casar. Mas como na vida real o amor causa medo, por se tratar de uma força transcendente, maior que o ego humano e assim Victor se amedronta e arruína o ensaio de casamento, o que o leva a ir tentar repetir os votos, sozinho, na floresta. E assim ele repete incansavelmente os votos sem sucesso. No entanto, no momento em que alcança a perfeição, finaliza colocando a aliança no que parece ser um velho galho em forma de mão, mas que na verdade é o braço esquelético de noiva cadáver.

A noiva então toma forma e sai do mundo dos mortos. Convencida que Victor lhe acabara de pedir em casamento, leva-o para o mundo dos mortos, onde este lhe tenta escapar, sem sucesso. Podemos observar na animação a presença da influencia de aspectos de dois contos de fadas. O primeiro que podemos observar é a lenda da Mulher esqueleto, que conta a historia de uma jovem morta por seu pai que é trazida a vida por um pescador.

Essa lenda foi analisada por Clarissa Pinkola Éstes no livro Mulheres que Correm com os lobos, e lá a autora enfatiza a importância da morte no relacionamento amoroso. Com ela, aprendemos quando um ciclo deve ou não morrer dentro do relacionamento.

A mulher, assim como a anima (componente feminino na psique do homem), diferentemente do masculino, está a serviço da vida. A anima liga o homem à vida. Nos contos onde existe a figura daanima, esta raramente aparece sob um aspecto inteiramente mortal; pois ela é, acima de tudo, o arquétipo da vida para o homem (Von Franz, 2005).

Von Franz (2002) também aponta que uma anima no aspecto negativo provoca no homem uma espécie de apatia, um medo a doenças, à impotência ou a acidentes. A vida adquire um aspecto tristonho e opressivo. Este clima psicológico sombrio pode, mesmo, levar um homem ao suicídio, e a anima torna-se então o demônio da morte.

Esse aspecto é trazido por uma relação negativa com a mãe, uma vez que o caráter dma a anima, em geral é determinado pela relação do homem com a mãe. Se o homem sente que a mãe teve sobre ele uma influência negativa, sua anima vai expressar-se, muitas vezes, de maneira irritada, depressiva, incerta, insegura e susceptível (Von Franz, 2002).

Na animação observamos que Victor carrega esse aspecto depressivo, inseguro e melancólico e que a relação com o aspecto negativo com a anima – em forma de morte -transforma sua personalidade, deixando-o mais seguro para um casamento e a formação de uma família. Victor passa por uma espécie de rito de iniciação, onde encara a morte de frente para  que sua infantilidade morra e assim se transforme em homem responsável.

Outro aspecto que essa mulher-morte nos apresenta é o medo aterrorizante que o ato de apaixonar-se causa. Ao se apaixonar por Victoria o terror tomou conta de Victor. O amor tem mesmo esse caráter monstruoso. No mito de Eros e Psique, o deus do Amor é tido como um monstro e Psique ao se casar com ele é levada por seu pai, como se fosse entregue a morte. Esse sentimento de terror e cegueira da paixão, Éstes (1994) descreve de forma intensa, na lenda da Mulher esqueleto:

“Ele não se dá conta de estar trazendo à superfície a criatura mais apavorante que jamais conheceu, de estar trazendo mais do que ele tem condição de manejar. Ele não sabe que terá de se entender com a criatura, que está a ponto de ter todos os seus poderes testados. E o que é pior, ele não sabe que não sabe. É esse o estado de todos os apaixonados no início: são todos cegos como morcegos.”

Éstes (1994) também aponta que a natureza da morte tem o estranho hábito de surgir nos casos de amor exatamente no instante em que temos a sensação de ter conquistado alguém, exatamente quando sentimos que fisgamos “um peixe grande”.

Isso ocorre, porque o amor é uma força transcendente, que abarca e engole o ego. Eros, o amor, é um forte agente da operação alquímica solutio (Erdinger, XX) e o ego nesse processo pode sentir como estivesse afogando e prestes a morrer, diluído no mar de sentimentos e afetos. Pois bem, Victor está no mundo dos mortos tentando escapar quando ficamos sabendo da historia da Noiva Cadáver, que se chama Emily. A moça se apaixonou e foi noiva de um jovem chamado Lorde Barkis, um estranho que enriqueceu após matar Emily, ficando então com o seu patrimônio.

Victor também descobre que Victoria irá se casar com Barkis forçada pelos pais, que acreditam que ele seja rico. No entanto, ele gastou o dinheiro de Emily e intenciona fazer o mesmo com Victoria. Vemos aqui referências a outro conto famoso: O Barba Azul. Diz a lenda que as freiras guardavam a barba no convento e que essa barba pertenceu um dia a alguém de quem se dizia ser um mágico fracassado, um homem gigantesco com uma queda pelas mulheres, um homem conhecido pelo nome de Barba-azul.

Barba Azul é um homem rico e sedutor que matava suas esposas e guardava seus corpos em um quarto, até que um dia uma jovem recém casada com ele descobre seu segredo. Conforme Éstes (1994) Barba Azul nos dá a idéia exata do que fazer a respeito de um ferimento que não pára de sangrar, pois a chave do quarto dos corpos não parava de sangrar. Lorde Barkis é análogo ao Barba Azul. No conto não se tem o motivo da matança, mas na animação Barkis é movido pelo dinheiro, ou seja, pelo poder.

Na Psicologia Analítica, o animus (personificação masculina do inconsciente na mulher), apresenta, assim como a anima no homem, aspectos positivos e negativos. No seu aspecto negativo ele se aproxima do arquétipo da morte, ou do assassino, sendo O Barba Azul, um representante desse aspecto sombrio do animus.

Von Franz (2002) diz sobre essa manifestação:

“Sob esta forma, o animus personifica todas as reflexões semiconscientes, frias e destruidoras que invadem uma mulher durante as horas da madrugada, especialmente quando ela deixou de realizar alguma obrigação ditada pelos seus sentimentos. É então que ela se põe a pensar nas heranças de família e outros problemas do mesmo tipo — tecendo uma espécie de rede de pensamentos calculistas, de malícia e intriga, que a leva até mesmo a desejar a morte de outras pessoas.

É importante notar, e a animação mostra isso de forma bastante clara, que as figuras de anima eanimus são ativadas no momento da paixão. Esses aspectos negativos, sombrios e destrutivos vêm a tona, pois precisam ser compreendidos, integrados e diferenciados. Por essa razão o amor e a paixão causam tanto medo.

O pavor é causado pela não compreensão e pela inconsciência. Muitos fogem e se eximem de viverem essa experiência, fogem de medo, pois a sombra da morte está se aproximando. Mas essa é uma morte simbólica. A morte de aspectos do ego ainda infantilizados e presos em figuras parentais. Victoria, assim como Victor, cai presa na armadilha do animus negativo, ao se apaixonar. Ela precisará encará-lo, pois foi criada com pouco calor afetivo, pouco Eros, pouco sentimento. Sua mãe é uma mulher poderosa, rica e dominada pelo poder.

Os contos de fadas, que abordam o aspecto do animus, mostram que a mulher precisa cair presa dele para que possa desenvolver uma feminilidade mais profunda, um senso de valor a respeito dos seus sentimentos para conseguir “bancar” a escolha do parceiro. Victor, então ao saber do casamento de Victoria, decide se casar com Emily, abdicando assim da própria vida.

Ao decidir casar com a Noiva Cadáver, Victor desenvolve por ela sentimentos, como a compaixão. A história da Noiva Cadáver, assim como a da Mulher-esqueleto é uma dentre muitas histórias universais de “teste do pretendente”. Observamos esse teste em outros contos em que o belo assume a aparência de feio e monstruoso com o objetivo de pôr à prova a personalidade de alguém. Exemplo disso é A Bela e a Fera.

Éstes (1994) diz que em uma história desse tipo, os amantes precisam provar sua boa intenção e seu poder, demonstrando geralmente que têm os cojones ou ovários para encarar alguma força numinosa mais poderosa e assustadora, que transcende o ego humano. Victor fugiu dela, mas agora cogita se entregar a ela. Ela toca o coração dele e desperta o mundo dos sentimentos nele. Ele se enche de coragem, encara seus medos e passa no teste. Ele (e Victoria também) passa a entender que existe beleza no compromisso, e que o amor também é permeado pela realidade do dia a dia e que não é apenas romance.

Emily é então o símbolo de cura para o casal. Ao aceitar o sacrifício e a presença dela, Victor ganha a vida e é liberado do seu sacrifício. Aceitar a morte nos traz a vida. Ele então se torna o herói, salvando Victoria e dando a Emily a paz de espírito que tanto buscava. A vingança almejada.

Victor e Victoria podem se unir de forma mais amadurecida, ambos foram tocados pela morte, suas personalidades amadureceram, eles se afirmam diante dos pais, bancando o amor que sentem um pelo outro. Não precisam mais seguir convenções da sociedade e da família, dando assim,um grande passo rumo a individuação.

FICHA TÉCNICA

A NOIVA CADÁVER

Título Original (EUA): Corpse Bride
Direção: Tim Burton, Mike Johnson
Música composta por: Danny Elfman
Roteiro: John August, Caroline Thompson, Pamela Pettler
Ano: 2005

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Brasil à flor da pele: A cordialidade do brasileiro e o paradoxo entre amor e ódio

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Foto: Reprodução

O povo brasileiro é cordial, sempre escutei isso desde que me conheço por gente. Haja vista que as características que descrevem os brasileiros são: simpáticos, acolhedores, alegres, festeiros. A copa do mundo do Brasil foi um exemplo disso e é o que a maioria dos estrangeiros fala a respeito dos brasileiros quando visitam o país.

Mas esta cordialidade não revela, de fato, a verdade, a intenção e o pensamento por de trás da imagem transmitida. Cordialidade que serve, muitas vezes, de fachada, assim como afirma o sociólogo Antônio Cândido, “O homem cordial não pressupõe bondade, mas somente o predomínio dos comportamentos de aparência afetiva”.

Sergio Buarque de Holanda, um dos grandes historiadores deste país, nos revela o mito do homem cordial, descrito em “Raízes do Brasil”, livro de 1936. Cordial vem de coração, referente ou próprio do coração. Implica dizer que o brasileiro é um povo generoso, de coração, a ideia recorrente e desgastada de que possuímos o “coração de mãe”, sempre cabe mais um. Amamos de coração, o que dá intencionalidade e intensidade, mas igualmente, odiamos de coração. Somos cordiais também quando odiamos.

Mas reconhecer que odiamos é difícil porque não aceitamos este sentimento, ou melhor, reconhecemos o ódio, mas não reconhecemos em nós. Falar de ódio é mais cômodo quando atribuído ao outro. O professor e historiador Leandro Karnal define bem este pensamento quando diz que algumas pessoas parecem “ilhas de pureza e inocência” cercadas de ódio por todos os lados. Karnal fala do pacifismo do brasileiro, o que seria constituinte da nossa civilidade, ou a ideia que fazemos dela.

Este conceito de civilidade é efêmero, pois, cria um cenário fantasioso de que nossas famílias, nossa cidade é onde reside a civilidade e que a barbárie está fora dela. Uma falácia. Vivemos este mito do homem cordial e não nos damos conta que originamos, cultivamos e perpetuamos este ódio.

O Brasil, país que se revela cada vez mais reacionário através de seu povo e dá inúmeros exemplos para sustentar esta triste realidade. As eleições de 2014 é o exemplo mais recente. As pessoas discutem e manifestam suas opiniões partidárias, se esforçando com inúmeros argumentos, formulam teorias, desde as mais simplórias, denunciando falta de conhecimento sobre aquilo que defendem até mesmo teorias conspiratórias, embasadas no medo e possivelmente, na mesma falta de conhecimento.

Muitos são ponderados, demonstrando preocupação com o rumo do país e fomentando boas e saudáveis discussões. Infelizmente o que tem acontecido nas redes sociais são uma verdadeira segregação e a manifestação explícita do ódio. Um binarismo entre bem e mal, pobres e ricos, Norte e Nordeste contra Sudeste e Sul.

Visões deturpadas e violentas do outro que não deve ser entendido como rival ou inimigo, mas que deve ter sua opinião preservada e respeitada. Ter uma opinião diferente da sua não deveria ser ameaçador. Se for, talvez o problema esteja em você, afinal a diferença é agregadora e não segregadora e é você que não sustenta esta diferença por limitações suas.

Somos uma sociedade de pessoas que se esforçam para ser simpáticos, mas não empáticos. Retórica enfatizada por Karnal. O amor e ódio, que andam lado a lado, é a representação clara da dualidade emocional e que sustenta nossa contradição. Escutamos a opinião do outro, mas às costas dele, criticamos e detestamos o que acabamos de escutar. Uma raiva que surge por não concordar comigo e cresce até virar ódio, mas que está sempre nele e não em mim. Freud explica. É a morte na própria vaidade e no narcisismo descontrolado.

Este outro deveria ser diferente e como tal, ser respeitado por isso. O que acontece é que a intolerância à diferença é traduzida na necessidade doentia de tornar o outro igual, desqualificando suas opiniões e diminuindo-o como ser humano. Expressar a própria opinião e ter um posicionamento diferente do outro é recriminada como algo errado. Eu não posso ser eu, tenho que ser o outro senão sou retalhado, ao passo que é a diferença do outro que cria reflexo em nós e favorece o autoconhecimento.

Depois da reeleição da presidente Dilma Rousseff, as redes sociais foram bombardeadas com insultos, comentários racistas e xenófobos contra os nordestinos. Uma confusão entre preconceito e ressentimento social com liberdade de expressão. Mas o ódio é tão contundente que leva as pessoas, facilmente, a mostrar o que elas possuem de pior.

A necessidade de se encontrar os “bodes expiatórios”, termo da bíblia judaica, explica que no dia da expiação, dia do perdão, o bode era um animal levado aos templos para que a ele todas as mazelas e pecados da sociedade fossem atribuídas e depois sacrificado, abandonado ao deserto para ser morto. Reproduzimos, inconsciente e conscientemente, este movimento de encontrar “bodes expiatórios” para depositar nossas angústias.

O ódio cria unidade e agrupa as pessoas, pois é difícil amar, embora nos esforcemos, mas odiar é prazeroso, mesmo que sádico. Somos diferentes, mas se temos a quem odiar, nos tornamos irmãos, como bem evidencia o historiador Leandro Karnal.

A derrota do outro é mais saborosa do que a minha vitória, dialética reproduzida com maestria nas relações interpessoais. Fazer o bem e amar é me enfraquecer diante do outro. Requer sacrifício, gratidão e retribuição, logo, me sentir humilhado por isso. É insuportável a sensação de sentir-se diminuído diante do outro. Já o ódio não, ele dá motivos para me vingar, me torna poderoso e mais forte do que o outro, talvez por isso, aconselhado a comer cru, para melhor degustação.

François de La Rochefoucauld, aristocrata e moralista francês nos brinda com uma frase: “Nada é tão contagioso como o exemplo”. De fato, muitos que expressam seu ódio nas redes sociais se fortalecem à medida que ganham seguidores. Querem ser exemplos e enaltecidos como tal, na eloquência de pensamentos enfadonhos e na efervescência de seu desequilíbrio emocional, contagiando seus cúmplices com o pior que eles tem a oferecer. Talvez, de fato, não exista amor no Brasil.

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A complexidade do usufruto do amor na contemporaneidade

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Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que se ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade
É servir a quem vence o vencedor,
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade;
Se tão contrário a si é o mesmo amor?

Luís de Camões

 

Até o século XVIII, e não apenas na cultura ocidental, existia uma diferença entre o amor no casamento e o amor fora do casamento. Vários textos da cultura judaica e grega mostram que o amor não era necessário pra se casar, cuja função principal era a procriação. A fidelidade e a fertilidade da mulher eram importantíssimas na aliança entre as duas famílias envolvidas (ÁRIES, 2006).

Já na Europa pré- moderna a maioria dos casamentos eram feitos não sobre a atração sexual mútua, mas também visando a situação econômica. Todavia para os pobres, o casamento proporcionava o meio de organizar o trabalho agrário (GIDDENS, 1993).

Era consenso no século XII que no casamento poderia haver estima, mas nunca amor, porque o amor sensual, o desejo, o impulso do corpo é a perturbação, a desordem. Deve ser rejeitado no matrimônio que exige austeridade; a paixão não deve se misturar aos assuntos conjugais (LINS, 1997, p.63).

Segundo Ariés (1987), casamento sobe da escala social até a era moderna, estabelecido como regra básica é de proporção gradativa. A partir do século XVIII, o ideal de casamento passa a ser o amor romântico, a reserva tradicional é expulsa pelo erotismo. Conforme o sociólogo Anthony Giddens (1993), ao longo da modernidade as mudanças que vêm acontecendo no amor, no casamento e na sexualidade resultaram em transformações radicais na vida pessoal e na intimidade dos indivíduos. Não pautado pelas identificações projetivas e fantasias de completude o amor confluente é mais real que o amor romântico. O relacionamento centrado no compromisso, na confiança e na intimidade é um relacionamento puro. Implicando no dever de cada um proporcionar ao outro uma história compartilhada, por palavras e atos, garantindo que o relacionamento deve ser mantido por um indefinido período.

 

 

Diferentemente da ideia de casamento como uma condição natural, podendo a durabilidade ser assumida como certa, salvo em algumas extremas circunstâncias. Uma característica do relacionamento puro é que o mesmo pode ser rompido, mais ou menos à vontade, em qualquer época e por qualquer um dos envolvidos. O compromisso é necessário para que tenha A probabilidade de um relacionamento durar se dá pelo compromisso firmado entre os parceiros, mas não evita que qualquer um que se comprometa sem restrições corra o risco de no futuro muito sofrer, no caso de o relacionamento vir a desfazer-se. Nesse tipo de relacionamento, a própria relação é o que conta, dependendo do nível de satisfação de cada uma sua continuidade extraída da mesma. Atualmente podemos usufruir das possibilidades de escolha de como queremos levar um relacionamento a frente, bem como, outras formas de relacionamento sejam no contexto heterossexual ou fora dele.

A entrada do amor romântico fez do casamento o meio para as pessoas realizarem suas necessidades afetivas. Idealiza-se o par amoroso e, para manter essa idealização, não se medem esforços, o que acaba sobrecarregando a relação entre os cônjuges. Imagina-se que no casamento se alcançará uma complementação total, que as duas pessoas se transformarão numa só, que nada mais irá lhes faltar e, para isso, fica implícito que cada um espera ter todas as suas necessidades pessoais satisfeitas pelo outro (LINS, 1997, p.148).                       

Nas gerações mais atuais, fomos crescendo ouvindo contos infantis onde existia um príncipe encantado e quem disse que ele existe? Temos que separar o que é real do imaginário. Porque eles não existem, não podemos esperar perfeição, pois não somos perfeitos, somos seres da falta (FORBES, 1999). Temos que aproveitar o que há de bom no outro, exatamente como ele é cheio de falhas e virtudes abstraindo o seu melhor. “O amor não suporta a dúvida a crença lhe é fundamental” (MILAN, 1983, p.20). Não podemos depositar nossas carências no outro, agora quando escolhemos a pessoa e ela não condiz com nosso modelo imaginário, então, nesse momento não a mais interesse. Temos que aceitar experiências reais, porém, fica mais fácil encontrar uma pessoa especial quando nos abrimos a aceitar as possibilidades que nos surgem nas relações afetivas.

 

 

A psicanálise estendeu-se para além do campo de estudo da histeria (FREUD, 1911), entretanto foram com pesquisas referentes à histérica que se deram início as teorias de Freud.

A importância da mulher no modo de compreender e viver o amor se deu pelo posicionamento que a mesma teve com o movimento feminista, no século XIX, de modo que, o desenvolvimento de vários contextos de conhecimento e poder se deram através de discursos sobre o sexo. E a respeito disso, a sexualidade feminina foi imediatamente reprimida após seu reconhecimento (GIDDENS, 1993).

Referindo-se a alguns casamentos infelizes, Freud dizia que eles eram resultantes de uma união amorosa construída inicialmente a partir de uma escolha de objeto baseada no modelo do pai. Nestes casos, após um tempo de convívio, fazia-se presente no relacionamento uma repetição compulsiva e inconsciente da relação hostil pré-edipiana com a mãe (ALONSO, 2004, p. 132).

A perda do gozo é o preço que o sujeito barrado pela lei tem a pagar, para formular suas necessidades se passa pela via da fala, sendo nos dias atuais, a lei, apenas um constrangimento imposto ao sujeito pela linguagem. Estando os significantes alienados a linguagem tendo perdido o objeto de satisfação do corpo (PINHEIRO, 2003).  “Mas o caminho que vai dos sintomas da histeria até sua etiologia é mais trabalhoso, e passa por conexões bem diferentes do que se poderia imaginar” (FREUD, 1896, p. 191).

 

 

Segundo Zimerman (1999), Freud muito valorizou a sexualidade reprimida em torno do conflito edípico, concebendo a feminilidade como sendo governada por narcisismo acentuado. Decorrendo assim, algumas conseqüências: A preferência em ser amada e valorizar o culto ao corpo; o ideal de homem que escolhe pertinente ao que gostaria de ser; a existência constante da inveja do pênis¹ ; a satisfação da mulher estaria ancorada em gerar um filho. Freud (1933) menciona que a satisfação da mulher é adquirida quando ela substitui o desejo de ter um pênis por um filho, alcançando assim, a feminilidade.

A menina desliza – ao longo de uma equivalência simbólica poderíamos dizer – do pênis para o filho, e o seu complexo de Édipo culmina no desejo, mantido durante muito tempo, de obter como presente uma criança do pai, de dar à luz um filho seu. Resulta daí a maior dificuldade para podermos assinalar com clareza, neste caso, o momento do declínio do complexo (LAPLANCHE, 2001, p. 80).

O que nos liberta para amar os outros é nosso amor por nós mesmos, derivando assim, a importância de uma dose de narcisismo (como fora descrito por Freud), se dessa maneira não procede, o sujeito fica preso ao narcisismo arcaico e infantil. Não podendo prosseguir. Num relacionamento afetivo outros podem nos servir não como parceiros humanos, mas como peças que faltam ao nosso ser. Assim, o narcisista busca transferir a admiração que tem por pessoas admiradas a si próprio (VIORST, 2005). A compreensão do narcisismo é de suma importância quando nos referimos ao amor, pois o modo que os sujeitos o vivenciam será influenciado por conteúdos narcísicos.

O fato de você desejar o seu companheiro ou a sua companheira, de deleitar-se com ele, de não ver a hora de se atirar em seus braços, de ter prazer com sua presença, com seu sorriso ou com sua mais terna bobagem, não significa que você sofra de dependência afetiva. O prazer (ou melhor, a sorte) de amar e ser amado é para ser desfrutado, sentido e saboreado. Se a sua companheira ou o seu companheiro está disponível, aproveite ao máximo; isso não é apego, mas uma troca. Mas se o bem-estar se torna indisponível, a urgência em encontrar o outro não o deixa em paz, e a mente se desgasta pensando nele, bem-vindo ao mundo dos viciados afetivos (RISO, 2001, p.31-32).

 

As relações amorosas jamais poderão ser vividas padronizadas, pois cada experiência é única, pode haver comparações em termos proporcionais, contudo, a balança jamais marcará a mesma medida. “Assim, o conteúdo imaginário da representação se integra em uma fantasia já construída por nossos desejos inconscientes” (NASIO,1997, p. 92). Discorreremos no próximo subtítulo a respeito do amor no contexto social. Sabendo-se que a definição de amor foge ao controle de padrões sociais, pois falar de amor é falar de singularidade.

O modo de vivenciar o amor tem sido modificado no decorrer dos anos, crianças, adultos e idosos, cada grupo etário o vivencia de maneira peculiar, onde dentro de cada grupo as distinções também são visualizadas. A literatura, a arte, a música são meios aos quais o indivíduo tem acesso a vias amorosas, podendo ficar na esfera imaginária ou até mesmo atingir ao campo do real. E as fontes de prazer e sofrimento serão vividas e articuladas distintamente.

De fato, a ruptura de um laço amoroso provoca um  estado de choque semelhante àquele que é induzido por uma violenta agressão física: a homeostase do sistema psíquico é rompida, e o princípio de prazer abolido. Sofrendo a comoção, o eu consegue, apesar de tudo – como na dor corporal – autoperceber o seu transtorno, isto é consegue detectar no seu seio o enlouquecimento das suas tensões pulsionais desencadeadas pela ruptura. A percepção desse caos logo se traduz na consciência pela viva sensação de uma atroz dor interior (NASIO, 1997. p.25-26).

Conforme Kehl (2002), Freud concebe as evidências do falta-a-ser na origem do enigma do desejo do Outro, tomados pelo modelo do aparelho psíquico. Cabendo ao último móvel do aparelho psíquico ser o prazer, desembocando no pensamento, mesmo assim, não cabe ao sujeito pensante estar fora da condição da falta. Para Viorst (2005), é doce ter uma ligação consigo mesmo, mas com uma pessoa fora de nós é melhor ainda, apesar de ser bom é incompleto amar a si mesmo. A mãe é o primeiro amor do qual temos, nos dá referência e nos dá as primeiras lições de amor.

O amor é um conceito fundamental para psicanálise, por ser um pilar da existência. A relação primária de amor que ocorre entre mães e filhos na infância, dá suporte e constitutiva potencia tanto psíquica quanto biológica na existência da criança, ocorrendo que essa relação primária serve de base para as relações posteriores. No complexo processo psíquico de constituição do sujeito, no qual se instala a conjuntura narcísica do indivíduo, tornar-se objeto de amor do outro, relação na qual a figura materna é o protótipo, ou de si próprio. Contudo, Freud destaca que ao evitarmos o sofrimento, ou, ao buscarmos a felicidade o amor é uma das mais importantes “artes da vida”. No amor a ambivalência é constante ao aproximar o individuo da almejada ventura e das dores que a dependência provoca (GOMES, 2003).

Kehl (2002) sintetiza, que a condição do desejo e do prazer é uma das mais importantes contribuições oferecidas pela psicanálise ao constituir um novo saber erótico e insistir na castração como eixo de subjetivação.

Foucault tinha razão: o sexo não consiste somente nas práticas dos corpos; estas são necessariamente acrescidas de, ou formatadas por, toda uma produção de saberes e mitos a respeito do enigma do desejo e da diferença sexual. Essa falação a respeito do sexo foi intensificada, na história do Ocidente, pela repressão, imposta, sobretudo, pelo cristianismo. Algumas sociedades repressivas foram mais capazes de produzir saber erótico do que nossa época superpermissiva, que intensifica o apelo ao gozo sexual na mesma medida em que produz incontáveis modos de recusa da castração e da diferença (KEHL, 2002, p. 188).

Se não reconhecemos a polaridade entre narcisismo e amor de objeto pouco será entendido das complexas relações amorosas (GOMES, 2003). “Freud concebe então um modelo de aparelho psíquico marcado desde a origem pelo enigma do desejo do Outro, evidência de sua falta-a-ser” (KEHL, 2002, p.93).

Os modos pelos quais se constituem certas relações amorosas são reveladores desses impasses subjetivos. Há dificuldades cruciais na assunção dos papéis sexuais – novamente, isso não é uma crítica. Muitas vezes as relações se estruturam pela via da competitividade, outras pela especularidade ou pela lógica econômica, de perdas e de ganhos, exacerbada nas separações judiciais. Essa lógica, a do leilão, surge também como critério para a escolha do parceiro: “Quem dá mais?” (PINHEIRO, 2003, p. 120).

 

 

Segundo Navarro (2011), a reprodução do passado não mais é suficiente, um encontro sem idealizações é preciso para o outro se conhecer. Inventar uma nova arte de amar é que muitos gostariam de chegar a invenção e ao longo das histórias é possível identificar, se os precedentes existem corroboram para saber-se que é possível o fazer, para isso, novas estratégias e táticas precisam serem tentadas. O amor baseado na amizade é um desejo de tendências atuais. Antigamente a paixão significava escravidão (principalmente para a mulher), mesmo sabendo-se que existem pessoas que ainda vivem nessa dimensão do amor, a nova dimensão que surge do amor é a da busca pelo equilíbrio, onde há troca e os sacrifícios perdem espaço, pois os parceiros se relacionam de modo mais independente e autêntico.
Somos seres de limite, assim, as barreiras impostas pelo impossível e proibido, das quais não nos livraremos nos convencem que nem tudo é possível referindo-se as realidades do amor (VIORST, 2005).  Conforme Laplanche (2001), a operação psicológica é uma linguagem que evoca paralelamente o investimento psíquico definido como representação. Assim assinala-se:

Quando se fala de investimento de uma representação, define-se uma operação psicológica numa linguagem que se limita a evocar, de forma analógica, um mecanismo fisiológico que poderia ser paralelo ao investimento psíquico (investimento de um neurônio ou de um engrama, por exemplo). Em contrapartida, quando se fala de investimento de um objeto, opondo-o ao investimento de uma representação, perde-se o suporte da noção de um aparelho psíquico como sistema fechado análogo ao sistema nervoso. Pode-se dizer que uma representação está carregada e que o seu destino depende das variações dessa carga, ao passo que o investimento de um objeto real, independente, não pode ter o mesmo sentido “realista”. Uma noção como a de introversão(passagem do investimento de um objeto real a investimento de um objeto imaginário intrapsíquico) põe bem em evidência esta ambiguidade: a ideia de uma conservação da energia na ocasião dessa retirada é muito difícil de conceber ( p. 256).

A passagem da subjetividade passa pela transmissão escrita e oral, na qual o sustento é dado pela autoridade. (KEHL, 2002). “A presença do ódio no amor é comum, mas só reconhecida com relutância. Chega, porém, o momento em que o enfrentamos em nós mesmos” (VIORST, 2005, p.71).

[…] só o amor de transferência, que é uma criação prática do dispositivo freudiano, pode ser uma proteção contra os efeitos da pulsão de morte, ou seja, contra o que pode haver de destrutivo nno sujeito: se podemos esperar algo do futuro da psicanálise, é sob a condição de dar-nos como objetivo abalar o sujeito na sua relação com a pulsão de morte, e o único meio de conseguir é de levar em conta do que há de amor de transferência na análise (SYLVESTRE, 1987, p. 303, apud, LETRA CLÍNICA).

 

 

A repetição é um modo de o amor transferencial se apresentar na vida do sujeito mesmo que inconscientemente, seu valor não pode ser negado e muito menos sua importância diminuída ou subestimada. Aparentemente, esta desesperada demanda de amor estaria em contradição com o que próprio Freud define como a típica posição feminina diante do amor: o narcisismo [Freud, 1914 (1995) p.85]. Lacan elucida esta aparente contradição ao nos falar da duplicidade do gozo feminino, que permite com que uma mulher, para além do gozo fálico que obtém do parceiro, goze de um gozo fora da linguagem, fora da referência edípica. Freud (op.cit.1933, p.111) chamou de ligação-mãe pré-edípica a este gozo devastador, feito de angústia e pulsão de morte. Diz-nos Lacan:

De fato, por que não admitir que, se não há virilidade que a castração não consagre, é um amante castrado ou um homem morto (ou os dois em um) que, para a mulher, oculta-se por trás do véu para ali invocar sua adoração – ou seja, no mesmo lugar, para-além do semelhante materno, de onde lhe veio ameaça de uma castração que realmente não lhe diz respeito? [Lacan, 1960 (1998) p.742].

De fato, no texto freudiano sobre a psicologia do amor, já havia sido enfatizado que, do lado das mulheres, a tão típica forma de amor masculino na qual não se encontra a super-valorização do objeto de amor. Pelo contrário, diz ele, “na mulher se nota apenas uma necessidade de degradar o objeto sexual” [Freud, 1912 (1994) p.180]. É a própria castração do homem, seu furo, sua falta que a mulher busca invocar sua adoração. É o que vemos na clínica dia após dia quando encontramos mulheres apaixonadas por bandidos, marginais, homens desqualificados. O amor feminino, ao contrário do masculino, não visa salvar da degradação o objeto amado, mas sim, na própria falta adorá-lo, a marca da castração. É assim que a mulher se prende ao narcisismo, mesmo estando dividida em sua própria posição de gozo.

Mulheres e homens estão hoje mais próximos um do outro do que jamais estiveram. Se essa proximidade, por um lado, é condição do “amor sublime” elogiado pelo poeta Benjamin Peret, por outro, ameaça transformar mulheres e homens antes em colegas de trabalho e parceiros de conversa do que em amantes (KEHL, 2002:190)

A família nas últimas décadas foi se transformando. Na década de 1970, após a revolução sexual, começou a surgir um tipo novo de família. Onde pais separados formam uma nova união e juntam os filhos de casamentos anteriores com os filhos do atual casamento. Em pleno século XXI, vamos assistir a uma inédita sociedade de solteiros, onde cada vez mais homens e mulheres estão demorando a casar e não querem ter filhos (LINS, 2011, p.434).

Não só podemos alcançar a realização afetiva, junto com outro alguém. As mentalidades estão mudando, cada vez mais as pessoas decidem ficar sozinhas, ter filhos, etc… Segundo Roberto Freire (p.412), Navarro lhe custou muita dor, solidão e desespero aprender que sentir amor era uma potencialidade vital sua, produção criativa própria, e que para amar dependia apenas dele mesmo.

“Em minha inocência e ignorância, eu atribuía a algumas pessoas o poder de liberar, produzir, fazer exercer-se e se comunicar o amor em mim e de mim. Esse amor pertencia, pois, exclusivamente a essas pessoas, ficando eu delas dependente para sempre. Se, por alguma razão, me deixassem ou não quisessem produzi-lo em mim, eu secava de amor e – o que é pior- ficava em seu lugar, na pessoa e no corpo, uma sangrenta ferida, como a de uma amputação, que não cicatrizaria jamais.”

 

 

Segundo Jablonski (2009), nos grandes centros urbanos ocidentais encontra-se em maior ou menor número famílias: a) nas quais ainda o pai trabalha fora e a mãe, não; b) nas quais pai e mãe trabalham fora; c) compostas por pais ou mães em seus segundos casamentos; d) de mães solteiras que assumiram – por opção ou não – a maternidade e passaram à condição de “famílias uni parentais”; e) casais sem filhos – por opção ou não – ; casais que moram juntos sem “oficializar” suas uniões; g) casais homossexuais, com ou sem filhos, e, mais recentemente, f) os que vivem juntos de forma separada, pessoas embora se definam como casais, habitam em residências distintas (CARNEIRO, 2011:28).

Nas ultimas décadas estão ocorrendo várias transformações, jamais vistas que estão decorrendo das mudanças sociais. A partir da segunda metade do século xx, com as relações de gênero, em torno da função maciça da entrada da mulher no mercado de trabalho, essas são suas conseqüências – casamentos mais tardios, o número de filhos diminuiu e a forma como o homem participa dentro de casa, veio com esse conflito gerado, pela igualdade de direitos e a necessidade de participar também. Para Coltrane (2000), apesar do aumento das contribuições masculinas nas tarefas domesticas, a maiorias das mulheres trabalham duas vezes mais e cumprem todas as tarefas rotineiras do lar.  Segundo o autor as conseqüências injustas dessa divisão são geralmente insatisfação no casamento, depressão, injustiça e a grande diminuição da satisfação marital.

No texto Sobre o narcisismo; uma introdução (1914), o amor é abordado a partir da escolha de objeto. Em As pulsões e suas vicissitudes (1915), ele é apresentado a partir das diferenças e articulações com as pulsões. E psicologia de grupo e análise do ego (1921), Freud utiliza os conceitos de idealização e identificação para distinguir as formas de amar (Nadiá P. Ferreira. Apud JORGE, Marcos Antonio Coutinho. p. 19). Amor é uma força que tende a unir, numa relação onde duas vidas estão diretamente ligadas por esse sentimento.

Sabemos se amamos ou não alguém, mesmo que esteja escrito que é um amor que não serve que nos rejeita um amor que não vai resultar em nada. Costumamos desviar este amor para outro amor, um amor aceitável, fácil, sereno. Podemos dá todas as provas do mundo que não amamos uma pessoa e amamos outra, mas sabemos, lá dentro quem é que está no controle. A verdade grita. Provoca febres, salta aos olhos, desenvolve úlceras. Nosso corpo é casa da verdade, lá de dentro vêm todas as informações que passarão por uma triagem particular: algumas verdades a gente deixa sair, outras a gente aprisiona. Mas a verdade é só uma: ninguém tem duvidas sobre si mesmo” (Medeiros, 2010:16-17).

Nisso passamos a observar a importância do amor para o nosso funcionamento geral, o bem que nos causa e as qualidades boas que agrega em nossas vivências, se nossa vida estiver repleta de amor e sentimentos tão construtivos, estaremos no caminho certo para sermos felizes ou fazer alguém feliz. Passando assim por todo o processo construtivo de amar como sentir-se capaz de voar, leve com um floco de neve, capaz de vencer o mundo, saudável ao ponto de viver eternamente amando ao outro e capaz de fazer loucuras sem medidas e desmedidas.

 

 

NOTA

¹ – A inveja do pênis é decorrente do conflito edípico vivenciado na infância, para o menino a relação é vivida de um modo, já para a menina deve haver a troca de objeto de amor, sendo pontuado por Freud a complexidade  do desenvolvimento sexual da menina rumo a feminilidade (FREUD, 1925).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ÀRIES, Philippe. História social da criança e da família. Tradução de Dora Flaksman. 2 ed. – Rio de Janeiro: LTC, 2006.

ALONSO, Silvia Leonor; Mario Pablo Funks. Histeria. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.

LINS, Regina Navarro. A cama na varanda: Arejando nossas idéias a respeito de amor e sexo. Rio FORBES, Jorge. Da palavra ao gesto do analista. Rio de janeiro: Jorge Zahar ed.1999

FREUD, S. A etiologia da histeria (1896). Obras completas de Sigmund Freud: Rio de Janeiro: 1996.

FREUD, S. Feminilidade (1933). Obras completas de Sigmund Freud: Rio de Janeiro: 1996.

FREUD, S. Sobre a Psicanálise (1911). Obras completas de Sigmund Freud: Rio de Janeiro: 1996. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor & erotismo nas sociedades modernas. Tradução de Magna Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993.
KEHL, Maria Rita. Sobre ética e psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

LAPLANCHE, Jean. Vocabulário de Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes. 2001.

NASIO, J-D. O livro da dor e do amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1997.

PINHEIRO, Teresa (org.). Psicanálise e formas de subjetivação contemporâneas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2003.

RISO, Walter. Amar ou depender? Como superar a dependência afetiva a fazer do amor uma experiência plena e saudável. Tradução de Marlova Aseff. Porto Alegre, RS: L&PM, 2001.

VIORST, Judith. Perdas necessárias. Tradução Aulyde Soares Rodrigues. – 4. ed. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2005.

ZIMERMAN, David E. Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica – uma abordagem didática. Porto Alegre: Artmed, 1999.

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50 tons de cinza: porque o óbvio passa despercebido

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Concorre ao OSCAR de Melhor Canção Original

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Furor entre as mulheres. Este é o principal efeito do filme 50 tons de Cinza, que estreou recentemente no Brasil, embora uma boa parte do público já soubesse o final, devido ao fato da obra ser baseada na trilogia da escritora britânica E.L. James, um romance erótico que já vendeu mais de 100 milhões de cópias no mundo, e 5 milhões somente no Brasil (VEJA, 2015a).

O filme, uma adaptação de um livro de mesmo nome, conta a história de Anastasia Steele (interpretada por Dakota Johnson), uma ingênua e desastrada estudante de literatura de 21 anos que conhece o empresário Christian Grey (interpretado por Jamie Dornan), um bilionário de 28 anos. Apesar de sua inexperiência, Ana se mostra decidida se envolver com Christian e se entregar a relação amorosa que se inicia entre os dois. A estudante se deixa seduzir por um homem que ela idealiza como perfeito. Mas a medida que a relação se desenvolve, Grey mostra que tem gostos peculiares e é adepto a práticas sexuais sádicas.

Do ponto de vista do espectador que não leu o livro, e não faz ideia de como a trilogia se desenvolve, toda a trama parece desconcertante. Em vários momentos do filme, Anastasia se mostra hesitante. Não consegue compreender porque sente tanto amor e tanta repulsa pelo mesmo homem. Seus sentimentos estão confusos. Ao lado de presentes, passeios e aparentes demonstrações de afeto, estão a indiferença, o ciúme, a possessividade e uma violência psicológica sutil. Percebe-se claramente que ele atua por meio de um esquema de reforço intermitente, onde o reforço não ocorre após a emissão de um tipo de comportamento, mas forma aleatória (Skinner, 1972). Deste modo, a jovem Anastasia não entende porque o namorado tem comportamentos tão destoantes.

No entanto, Grey percebe intuitivamente que suas ações mantém o comportamento de interesse de Ana por mais tempo e diminui os riscos de uma extinção rápida. Apesar de ser uma ferramenta muito poderosa, este tipo de reforço (Pinto & Ferreira, 2005) apresenta conseqüências perniciosas, pois Ana se mostra cada vez mais confusa e mais incapaz de perceber o que está acontecendo, ao passo que se envolve cada vez mais intensamente com o milionário, experimentando práticas sexuais envolvendo violência.

Para um espectador mais atento, esta dualidade não passa desapercebida. Trata-se de uma relação doentia e perigosa, permeada por abuso físico e emocional (Grossman, 2015). O papel agressivo cabe ao homem, enquanto a Anastasia se limita a um papel passivo e defensivo. Tudo indica que se trata de um caso de perversão, em que Grey manifesta desejos sádicos, pois o que ele “sente, é tão somente o desejo de cometer atos violentos e cruéis em pessoas do outro sexo e uma sensação de volúpia” (Krafft-Ebing, 2009, p. 2) conjunta aos atos de crueldade

Nesse ponto do filme, o espectador começa a se perguntar se Anastasia é masoquista ou se não está compreendendo os desdobramentos dos encontros com Grey, que se tornam mais violentos a medida que se repetem. Pois no masoquismo “o sujeito se faz objeto diante do parceiro transformado em atormentador do seu fantasma, e goza pela erotização da dor infligida no seu parceiro” (VALAS, 1990, p.66). E a protagonista se mostra uma mulher bonita, mas que não percebe sua própria beleza, sendo extremamente ingênua e demostrando baixa autoestima.

Para além das especulações psicológicas, é preciso atentar-se para a fórmula midiática e comercial da mocinha boba que se apaixona por um homem poderoso, já vista outras vezes no cinema, como na saga Crepúsculo (MAIA, 2013; VEJA, 2015a). No entanto, a moça pretensamente ingênua, depois de experimentar o máximo de violência que Grey se diz capaz, resolve recuar e abandonar o relacionamento. O filme termina, e as luzes se acendem. O público sabe que haverá continuação da história, porque ainda faltam dois livros. As mulheres saem do cinema num frenesi desmedido. Mas, o que passou despercebido?

A problemática das relações de gênero. Mais uma vez a mulher está num papel de submissão. Há séculos a condição biológica feminina tem sido utilizada para legitimar processos sociais (PEDRO, 2005; SCOTT, 1995), em que homens e mulheres, são categorizados de forma diferente, onde o aquele ocupa uma posição de superioridade, dominação, racionalidade, e o último o de submissão e subserviência. Para Scott (2012) a dimensão social da relação entre homens e mulheres precisa ser problematizada, porque a “anatomia das mulheres não é o seu destino” (p.335), e os papéis e comportamentos determinados pelo nascer homem ou mulher devem ser discutidos.

O que 50 tons de cinza pode significar em termos de subjetividade? Que as questões de gênero encontram-se tão arraigadas, as normas culturais sexistas e androcêntricas estão institucionalizadas, que as próprias mulheres não conseguem perceber isso, excitando-se com cenas em que o feminino é tido como submisso, frágil, inocente e desprovido de auto-estima.

Para Fraser (2006) a desvantagem social das mulheres restringe sua “voz”, impedindo sua a participação igualitária nas esferas públicas e na vida cotidiana, inclusive na formação da cultura. Apesar da história ter sido escrita e roteirizada por mulheres, os críticos consideram que ainda se constituiu numa produção machista, devido a muita nudez feminina e quase nenhuma masculina (VEJA, 2015b). Se o filme foi criado para o público feminino, é possível que “elas iam querer ver a câmera se demorando mais em Jamie Dornan” (VEJA, 2015b, p.1), o ator que interpreta Christian Grey.

A reação do público feminino, que não percebe a dominação masculina, nem quando ela é escancarada em alta definição, corrobora com as questões postas por Bourdieu (1999):

A força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la. A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça (Bourdieu, 1999, p.19).

Trata-se de um círculo vicioso de subordinação cultural e econômica (FRASER, 2006), que, se não é percebido, não pode ser modificado. O que aponta que a injustiça de gênero deve ser combatida com mudanças não só na economia, como querem as mulheres de agora, mas também em outras esferas, como a política e a cultura (FRASER, 2006). Aguardamos as cenas dos próximos capítulos, ou melhor, da trilogia.

 

Referências:

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro, Bertrand do Brasil, 1999.

FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da Justiça numa era pós-socialista. Trad. Julio Assis Simões. Cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006.

Grossman, Miriam. A ‘carta de uma psiquiatra sobre 50 tons de cinza para os jovens. Trad. Marcos M. Dal Ponte. Psico On-line News, 2015. Disponível em: <http://www.psiconlinews.com/2015/02/a-carta-de-uma-psiquiatra-sobre.html>. Acessado em 25 fev. 2015.

KRAFFT-EBING, R.. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental,  São Paulo,  v. 12, n. 2, Jun.  2009.   Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1415-47142009000200012&script=sci_arttext>.  Acessado em 27 fev. 2015.

MAIA, Ygo. Resenha: 50 tons de cinza. Mergulhando na Leitura – Blogspot, 2013. Disponível em: <http://ymaia.blogspot.com.br/2013/05/resenha-cinquenta-tons-de-cinza.html>. Acessado em 27 fev. 2015.

PEDRO, Joana Maria.Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. Revista História, São Paulo, v.24, n.1, p.77-98, 2005.

PINTO, Rodrigo Diniz; FERREIRA, Lívia Freire. Ciência do Comportamento e aprendizado através de jogos eletrônicos. Anais do I Seminário Jogos Eletrônicos, Educação e Comunicação – construindo novas trilhas. UNEB, Salvador – Bahia, outubro/2005. Disponível em: <http://www.comunidadesvirtuais.pro.br/novastrilhas/textos/rodrigopinto.pdf>. Acessado em 28 fev. 2015.

SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, pp. 71-99.

SCOTT, Joan Wallach. Usos e Abusos do Gênero. Projeto História, São Paulo, n. 45, pp. 327-351, dez. 2012.

SKINNER, B.F. Tecnologia do Ensino. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1972.

VALAS, Patrick. Freud e a Perversão. Trad. Dulce Henrique Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.

VEJA. Quem é quem em ‘Cinquenta Tons de Cinza. Cinema, fev. 2015a. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/noticia/entretenimento/quem-e-quem-em-cinquenta-tons-de-cinza>.  Acessado em 28 fev. 2015.

VEJA. Diálogos de ’50 Tons de Cinza’ provocam risos em Berlim. Cinema, fev. 2015b. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/noticia/entretenimento/dialogos-de-50-tons-de-cinza-provocam-risos-em-berlim>. Acessado em 28 fev. 2015.

Trailer:

Mais filmes indicados ao OSCAR 2016: http://encenasaudemental.com/serie-oscar-2016


FICHA TÉCNICA 

CINQUENTA TONS DE CINZA

Título Original (EUA): Fifty Shades of Grey
Direção: Sam Taylor-Johnson
Roteiro: Kelly Marcel
Baseado em: Fifty Shades of Grey de E. L. James
Música: Danny Elfman
Estúdio: Focus Features
Ano: 2015

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