A Bruxa: o combustível do horror é a mente

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Bruxas e a moralidade de puritanos da América colonial do século XVII narrado com explícitas alusões à família que se autodestrói no filme “O Iluminado” de Kubrick e a referência visual do quadro de Goya “O Sabá das Bruxas”. Tudo leva a crer que “A Bruxa” (The Witch, 2015) é mais um filme do gênero terror com sustos, sangue e perseguições. Mas o estreante diretor Robert Eggers sabe que a mente é o verdadeiro combustível do horror: mantém o espectador no fio da navalha entre a realidade e a ficção: a dúvida se o elemento sobrenatural sugerido no filme é real ou se atmosfera claustrofóbica da moralidade puritana foi capaz de criar bruxas e demônios. O resultado é uma verdadeira psicanálise dos arquétipos do horror e das bruxas que sempre foram “bodes expiatórios” dos horrores que povoam nossas mentes.

Desde que Linda Blair vomitou um líquido verde e girou a cabeça em O Exorcista em 1973, o gênero terror acabou confundindo-se com efeitos especiais, monstros dismórficos e muito sangue e vísceras espirrando para a câmera. Foram décadas de serial killers do outro mundo como Jason e Fred Krugger, zumbis e bruxas cujas vassouras se transformam em arma mortal para decepar cabeças.

Décadas que acabaram fazendo o gênero esquecer os seus fundamentos no distante expressionismo alemão de Fritz Lang, Robert Wiene e Murnau onde o víamos o horror muito mais no rosto dos protagonistas (olhando para o contra-campo – aquilo que está fora do enquadramento), na cenografia fantástica e na atmosfera de pesadelo. O terror e o susto substituíram o horror humano diante do próprio Mal.

Mas o filme A Bruxa, na estreia do diretor Robert Eggers em longas metragens, resgata esse horror fundamental e esquecido nos últimos tempos: um profundo e inquietante conto do folclore da Nova Inglaterra em uma América colonial. Perturbador e totalmente inesquecível.

Mas um ponto fora da curva dentro das atuais convenções hollywoodianas do gênero. Tanto que o diretor encontrou dificuldades para encontrar financiamento. Entre outras produtoras, precisou também de uma produtora brasileira, a RT Features (responsável por filmes como Tim Maia e O Cheiro do Ralo), que apostou em um filme estranho aos clichês atuais gênero.

Nas entrevistas com a imprensa especializada, Eggers afirma que o filme foi, de um lado, o resultado de vinte anos de paixão e desconstrução do filme O Iluminado de Kubrick e, do outro, o fascínio pelos filmes de horror inglês da Hammer (produtora de filmes dos anos 1960) inspirados em contos do folclore daquele país.

O processo de autodestruição de uma família como em O Iluminado e as personagens das bruxas do folclore, cuja melhor tradução visual está nas pinturas de Goya, foram os principais elementos para a construção do filme A Bruxa. Para tanto Eggers fez uma extensa pesquisa sobre a vida familiar e o folclore da década de 1630 na Nova Inglaterra, algumas décadas antes do infame julgamento das bruxas de Salém – onde 20 pessoas, a maioria mulheres, foram julgadas e executadas.

Mas principalmente o filme A Bruxa busca o horror que está dentro de nós: a forma como projetamos no outro um bode expiatório para tentar expiar o Mal que instituições como a família e a religião criam e que levam elas próprias à autodestruição.

O Filme

A narrativa acompanha uma família de agricultores que foi excomungada de uma comunidade puritana depois de o pai William (Ralph Ineson) acusar os laços religiosos frouxos que sustentariam aquela sociedade. William muda-se com sua família para uma cabana isolada ao lado de uma floresta fechada e sombria, vendo a possibilidade de praticar uma vida mais próxima a Deus e dos fundamentos da religião puritana.

Mas o otimismo e o fervor religioso começam a ser postos em prova quando a filha adolescente Thomasin (Anya Taylor-Joy) não percebe o desparecimento do bebê da família enquanto brincava com ele. Então o espectador é introduzido a uma figura encapuzada correndo com o bebê através da floresta.

O que se segue é o centro do conflito do filme: a família luta em manter a fé em Deus diante de tal tragédia. Além disso, as coisas continuam a piorar com a pobre colheita do milho e o perigo da família morrer de fome com a aproximação do inverno.

A fé dos membros inclui a mãe Katherine (Kate Dickie), o filho pré-adolescente Caleb (Harvey Scrimshaw) e dois jovens gêmeos indisciplinados Jonas (Lucas Dawson) e Mercy (Ellie Grainger). O tempo inteiro oscilam entre as questões puritanas sobre o pecado original, o destino do bebê após a sua morte ou se eles foram redimidos aos olhos de Deus. É possível ir para o céu se você pecou? Podemos saber com certeza se Deus perdoa? O que significa permitir a entrada do pecado em sua vida? E como podemos identificar as consequências?

Essas dúvidas começam a atormentar cada vez mais os corações e mentes da família enquanto os infortúnios vão se sucedendo, o que se transformam em suspeitas de uns contra os outros. Alguém deve ser o responsável pela má sorte. Se não é Deus, com certeza será alguns deles.

O susto e o medo

O filme lida com o medo e não com sustos. O filme sugere que há alguma coisa de sinistra e sobrenatural no interior da floresta que cerca a cabana. Mas Eggers sabe que o verdadeiro poder de filmes como esse não é mostrar um vilão icônico e familiar para o gênero. Há uma dúvida sobre a existência real de algum círculo de bruxas no interior da floresta, ou se a própria floresta sombria não passa de uma projeção da crescente paranoia e ansiedades religiosas daquela família.

Há diversos sub-plots no filme (a relação de Caleb com o pai, a incompetência do pai em manter a subsistência da família, a crescente histeria religiosa da mãe, mentiras e hipocrisias que aos poucos vem à tona etc.).

Mas todos esse subtemas terminam na menina Thomasine. Ela está entrando na puberdade, tornando-se um fator de desequilíbrio na dinâmica familiar. Sutilmente, Eggers mostra como a natural sensualidade de Thomasine começa a afetar a todos, a cada um de uma maneira diferente.

O que impressiona é como a moralidade puritana torna cada membro daquela família duro consigo mesmo: se todos são filhos do pecado original, então somos naturalmente culpados e condenados ao inferno desde o início, tornando a vida uma série de gestos e penitências que buscam pedir o perdão de Deus.

O inferno puritano procura um bode expiatório

Com esse inferno psíquico puritano somada a série de infortúnios que atinge a família, a pressão torna-se cada vez mais insuportável para todos. Como em qualquer instituição social, essa pressão deve ser necessariamente aliviada pela busca do chamado “bode expiatório”- alguém deve ser o culpado por não ter fé suficiente ou de simplesmente ser um traidor.

O que Eggers faz no filme é uma verdadeira psicanálise dos contos de fadas, no melhor estilo do livro clássico Psicanálise dos Contos de Fadas de Bruno Bettelhein. A figura mítica da bruxa surge como um recurso desesperado para manter uma família ou comunidade coesas quando estão à beira da autodestruição. As acusações dos pais contra Thomasine onde tentam encontrar alguma lógica religiosa para acusa-la de bruxaria foram retiradas das pesquisas do diretor sobre os relatos do Julgamento das Bruxas de Salém. Somado ao assustador design de áudio e os sets unicamente iluminados por velas e lampiões, cria-se uma atmosfera claustrofóbica que em muitos momentos faz o espectador lembrar do filme O Iluminado.

A mente é o combustível do horror. Eggers sabe disso e mantém a narrativa e os espectador no fio da navalha – os constantes enquadramentos com os personagens olhando aterrorizados para o contra-campo; as sequências das imagens da floresta profunda sugerindo às vezes o horror sobrenatural e, outras vezes, apenas o medo natural diante das intempéries; a ameaça de alguma força demoníaca que parece crescer ao mesmo tempo em que se acumulam as tensões e são reveladas as mentiras e hipocrisias daquela família puritana. E a dúvida permanente do espectador entre a realidade e ficção, bruxas reais ou delírios de puritanos atormentados pelo culpa e pecado.

Eggers conseguiu fazer uma história arquetípica do horror da Nova Inglaterra após pesquisas junto a historiadores, museus de história natural e os arquivos do infame Julgamento de Salém. Mas, principalmente, também conseguiu fazer uma psicanálise dos colonos puritanos que iniciaram a América.

Assistindo ao filme, fica a questão que continua martelando a mente desse humilde blogueiro: qual as conexões desse horror gótico do século XVII com o mundo moderno? Como esses medos puritanos que, foram a base cultural da América, continuam presentes no mundo atual? Principalmente em um mundo onde a cultura norte-americana é irradiada para todo o planeta através da indústria hollywoodiana.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

A BRUXA

Diretor e Roteirista: Robert Eggers
Elenco: Anya Taylor-Joy, Ralph Ineson, Kate Dickie, Harvey Schrimshaw;
País: EUA
Ano: 2015
Classificação: 16

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A Bruxa Morgana e o matriarcado pagão

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Morgaine Le Fay ou Morgana Le Fay, ou simplesmente Morgana das Fadas, é um dos personagens mais intrigantes da antiga lenda do Rei Arthur, sendo apresentada como sua irmã, por parte de mãe.Seu nome Morgaine tem origem celta e quer dizer mulher que veio do mar.

A lenda conta que Morgana era filha de Igraine e Gorlois, Duque da Cornualha. Era uma sacerdotisa da Ilha de Avalon, sendo treinada por sua tia Viviane para se tornar a Senhora do Lago ou Senhora de Avalon.

Morgana teve um filho com seu irmão Arthur depois de um ritual sagrado. Essa criança se chamava Gwydion, tornou-se adulto e foi para a corte de Arthur, passando a se chamar Mordred. Mais tarde pai e filho se enfrentam como inimigos e se matam um ao outro em um duelo pela disputa do Reino. Morgana leva Arthur para Avalon, porém, ele morre ao avistar as praias da ilha sagrada. A lendária espada Excalibur é jogada no lago. A Ilha de Avalon se desliga quase por completo do mundo e a Bretanha cai numa era negra dominada pelos Saxões.

Uma das obras mais expressivas onde Morgana é apresentada é a colação de quatro volumes As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley. Morgana é retratada pela autora como uma sacerdotisa da Grande Mãe em uma cultura matriarcal e pagã. A obra coloca Morgana em uma posição de poder e conhecimento e relata a importante passagem do matriarcado pagão para o patriarcado cristão.

Mas o que é mais relevante é que em todos os relatos sobre a lenda Arthuriana, Morgana é um dos personagens mais expressivos e fortes. Como sua inimiga ou amiga, sua amante ou irmã, Morgana encanta, fascina, aterroriza e engrandece essa antiga lenda que povoa nossa cultura há séculos.

Como junguianos podemos cair na tentação de classificar Morgana como a anima de Arthur. E ela até pode ser assim descrita, mas sua análise ficaria limitada, pois Arthur é um Rei, um Herói.

Como rei ele pode ser considerado um símbolo do Self manifesto na consciência coletiva (Von Franz, 2005). Como Herói representa um arquétipo, mais especificamente um ego arquetípico. Ou seja, ele representa uma disposição arquetípica comum a todos, semelhante, que se manifesta de uma maneira ou de outra em cada ser humano e que é edificado pelo Self. Esse ego representados pelos Heróis, é um ego ideal, que permanece em harmonia com as exigências do inconsciente (VON FRANZ, 2010).
O Herói é aquele que vem restabelecer o equilíbrio psíquico, vem trazer vida a uma situação morta. Nas lendas, contos e mitos, ele traz renovação a Consciência Coletiva.

Arthur vivia em uma época pagã, onde imperava o Matriarcado e o culto a Grande Mãe Terra. Mas, não obstante Arthur é considerado a porta de entrada do cristianismo juntamente com o Patriarcado, onde predomina o arquétipo do pai.

Ao ser consagrado rei da Grã-Bretanha, Arthur, ao retirar a Excalibur, conhecida como “a espada do poder”, de uma sólida rocha, jurou fidelidade à bandeira pagã de Pendragon, seu pai. Mas ele a trai em favor da bandeira cristã, empurrado pela esposa Guinevere que possui formação cristã.

Morgana, então, se empenha em destruir o reino do irmão, pois juntamente com Merlin, ela simboliza o mundo pagão e o embate entre paganismo x cristianismo.

Arthur foi o representante da mudança na Consciência Coletiva, da Grã – Bretanha. Uma passagem essencial da era Matriarcal para a Patriarcal. Nessa época o modelo Matriarcal já não atendia mais as necessidades da consciência coletiva. A chegada do Patriarcado era indispensável para o desenvolvimento da consciência, que trouxe com ela a lei, a ordem e a tutela de um único Deus.

Vemos essa passagem em várias mitologias, como na babilônica com a morte de Tiamat pelo deus Marduk, que divide seu corpo em dois. A mitologia grega também apresenta Apolo matando Píton, e dividindo seu corpo em dois, como uma ação necessária para se tornar dono do oráculo de Delfos.

Arthur, assim como Apolo é representado como um símbolo solar, devido a sua ligação com a Excalibur, um símbolo da luz, consciência, e discriminação lógica.

A visão patriarcal instaurou na humanidade a ordem, o limite, as regras, a racionalidade e principalmente a objetividade, trazendo inúmeras melhorias e desenvolvimento em termos culturais, tecnológicos e sociais. Mas essa passagem e separação do período Matriarcal, mesmo sendo necessária para o desenvolvimento psicológico coletivo, ocorreu à custa da desvalorização do feminino que foi sacrificado e reprimido no mundo inconsciente.

E dessa forma, tudo o que está ligado ao Matriarcado como o paganismo, a magia, a sensualidade, os instintos e a valorização do corpo são considerados pecado, e Morgana, então, se converte em uma bruxa que conspira contra Artur. Basta lembra que as mulheres nessa época, como é relatado na história, passaram a ser consideradas bruxas e símbolos do pecado. Varias morreram queimadas devido a essa mudança.

Mas Morgana não é somente uma bruxa ou feiticeira, ela simboliza a dor do feminino desprezado. É tocante na obra As Brumas de Avalon, quando Morgana descobre que o culto a Grande Mãe não morreu, mas está apenas disfarçado e dormente, enquanto ela observa um grupo de freiras em adoração a Maria.

O que Morgana clama é novamente o reconhecimento das forças do feminino. Arthur como Herói tentou unir as duas forças, mas sucumbiu, uma vez que a humanidade não estava pronta para esse aspecto de Alteridade, onde masculino e feminino convivem em harmonia e respeito. Era necessário passar pelo pólo oposto.

E esse é hoje nosso maior desafio, resgatar essa sabedoria instintiva, do corpo, da terra e deixá-lo em consonância com o masculino, pois um depende do outro.

É importante lembrar que quando está para morrer Arthur é levado por Morgana para Avalon e morre em seus braços. E é assim com todos nós, no final seremos novamente recebidos pelos braços da Grande Mãe e retornaremos para seu ventre.

Referências:

NEUWMAN, E. A Criança. Cultrix. São Paulo: 1995.

NEUWMAN, E. A Grande Mãe. Cultrix. São Paulo: 2006.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo:2005.

VON FRANZ, M. L. O feminino nos contos de fada. Vozes. São Paulo: 2010.

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Mãe Gothel e a busca pela beleza eterna

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Atualmente existe uma profusão de filmes onde há uma revisitação dos contos de fadas. E isso é muito interessante, pois podemos observar que a Consciência Coletiva está buscando uma compreensão de si mesma por meio das imagens arquetípicas presentes nos contos de fadas e está tentando nos dizer o que há de diferente na atualidade e o que precisa ser trabalhado.

Esse é o caso do filme Enrolados, uma adaptação do conto de fadas Rapunzel. Que apesar de manter a estrutura do texto original nos mostra uma mudança significativa no comportamento feminino atual.

O filme começa com uma velha bruxa chamada Gothel que é a única a ver uma gota de pura luz de sol atingir o solo, criando uma flor mágica, com a capacidade de curar doentes e feridos. Ela a utiliza para manter-se jovem quando canta para a flor. Centenas de anos mais tarde, a rainha de um reino próximo adoece enquanto esperava um filho. Os seus guardas, em busca de uma cura, encontram a flor misteriosa. Eles fazem uma poção com a flor que cura a rainha e ela dá à luz uma menina chamada Rapunzel.

Gothel descobre que o cabelo dourado de Rapunzel mantém a habilidade de cura da flor (desde que não seja cortado), por isso ela sequestra a menina e a isola em uma torre, criando-a como sua própria filha.  Aqui há mudanças importantes em relação ao conto original.

A primeira é que, no original, Rapunzel é dada a bruxa devido a um acordo do pai com a mesma que o flagrou roubando hortaliças de seu jardim para sua mulher grávida. Além disso, a bruxa no original tem somente a intenção de ter a filha só para si. No filme Gothel sequestra a menina com a intenção de se manter jovem para sempre e a criança não é dada, ela é sequestrada.

Essa mudança da figura da bruxa demonstra uma mudança interessante no aspecto da consciência coletiva atual que é a busca da juventude eterna. Gothel é desesperada pela juventude e pela beleza eterna. Há uma fixação com o corpo, assim como em muitas mulheres hoje em dia!

Hoje é quase um sacrilégio envelhecer! E com isso muitas mulheres mutilam seus corpos em busca de juventude eterna. Esse aspecto da busca da juventude eterna já foi brilhantemente retratado no romance de Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray, que relata a estória de um jovem que devido a sua beleza física, se tornou modelo para uma pintura, e enquanto seu retrato definhava, revelando a decadência que é o seu interior, seu rosto continua com os traços angelicais dos seus 18 anos.

No caso de Gothel, ela faz isso por meio dos cabelos de sua filha, os quais ela impede cortar. Aqui podemos associar os cabelos ao cordão umbilical que a mãe insiste em manter com a filha. Pois impedindo a menina de crescer, ela teoricamente impede seu envelhecimento. E assim ela não deixa a menina viver a própria vida, impedindo-a de realizar seus sonhos.

Mas há outra diferença em Rapunzel. No conto original ela é muito mais submissa e somente enfrenta a mãe possessiva quando se apaixona. É nesse instante, quando a menina começa questionar a mãe que ela se transforma em Mãe Terrível e a expulsa do paraíso. Já em Enrolados ela anseia por sair e ver as luzes que sobem aos céus no dia do seu aniversário, e Gothel é desde o começo Mãe Terrível.

Isso demonstra que atualmente as mulheres anseiam em realizar seus projetos próprios e não somente se entregar ao amor. A fuga de Rapunzel é movida por um anseio e desejo além do âmbito do casamento. Por essa razão, na atualidade, a Mãe Terrível se constela na psique feminina mais cedo.

Além disso, Carl Jung em sua obra Os arquétipos e o inconsciente coletivo, levantou a questão da problemática do complexo materno na mulher. E um desses problemas é a exacerbação do feminino, o qual ele narra:

A exacerbação do feminino significa uma intensificação de todos os instintos femininos, e em primeiro lugar do instinto materno. O aspecto negativo desta é representado por uma mulher cuja única meta é parir. O homem, para ela, é manifestamente algo secundário; é essencialmente o instrumento de procriação, classificado como um objeto a ser cuidado entre as crianças, parentes pobres, gatos, galinhas e móveis. A sua própria personalidade também é de importância secundária; freqüentemente ela é mais ou menos inconsciente, pois a vida é vivida nos outros e através dos outros, na medida em que, devido à inconsciência da própria personalidade, ela se identifica com eles. Primeiro, ela leva os filhos no ventre, depois se apega a eles, pois sem os mesmos não possui nenhuma razão de ser.

Gothel é uma mulher presa ao complexo materno. Ela afastou o masculino de sua vida e dos cuidados da filha e assim como no conto Rapunzel é sua única razão de viver. Não há menção a qualquer outra atividade de Gothel a não ser vigiar e cuidar da filha. Atividades intelectuais que desenvolveria seu animus e a relação com o masculino não são cultivadas.

Mas mesmo aqui também há uma diferença pequena, mas significativa. Mesmo com o elemento masculino saindo de cena, o pai em Enrolados não entregaria sua filha tão facilmente e nem cairia na proposta da esposa e da bruxa, por isso a menina teve de ser sequestrada. E ao final ele reaparece na vida cotidiana, coisa que não ocorre no conto.

Isso significa que seu animus não é tão fraco, e ela tem a oportunidade de resgatar essa dimensão de sua psique quando rompe os laços com Rapunzel. Outra mudança digna de nota é justamente a figura masculina e a relação do feminino com ela.

No filme não há um príncipe, o mocinho é um ladrão chamado Flyn com jeito de malandro que roubou justamente a coroa da princesa no castelo. Além disso, ele não sobe na torre de Rapunzel por amor, mas para fugir de seus perseguidores. Aqui a figura do masculino se aproxima de Hermes, deus traquinas, padroeiro dos ladrões e senhor da inteligência e astucia.

No filme não há paixão à primeira vista e Rapunzel precisa fazer um acordo com ele para sair da torre. Se ele a levar para ver as luzes e trazê-la de volta em segurança, ela devolve a coroa a ele. O que há de interessante nessa mudança é que a mulher vem ao longo do tempo parando de sonhar com um príncipe encantado e com amor à primeira vista. Agora elas anseiam com uma relação mais real e que percebem que o amor é algo a ser construído por meio do conhecimento e aceitação da sombra um do outro.

Com o ingresso no mercado de trabalho ela teve de desenvolver características que antes eram restritas ao masculino como a inteligência, o intelecto, e a astucia. Observem que Rapunzel teve de aprender a negociar com seu aspecto masculino para que ele a tirasse da prisão. Somente iniciando uma negociação com seu animus é que a mulher pode se desligar do complexo materno. Pois, como é dito na psicanálise é o masculino que faz a interdição entre mãe e filho. E isso é bem significativo, pois é ele quem corta os cabelos (cordão umbilical) de Rapunzel ao final.

Ao final, quando há o corte do cabelo, a ligação de Gothel e Rapunzel se corta e a mãe tem de aceitar seu envelhecimento e maturidade. A figura da mãe terrível e seu aspecto castrador morre e Rapunzel pode estabelecer uma melhor relação com seu próprio feminino e o aspecto materno em si mesma.

Quando os filhos crescem e saem de casa é um aspecto desafiante para a mulher. Se a mulher não desenvolve uma objetividade, pode até cair em depressão.  Gothel que é a mesma figura que a Rainha, mostra que agora consegue se relacionar com os aspectos masculinos de sua psique, representados pelo Rei. O masculino a conscientizou que há ela pode buscar outros interesses em sua vida fora do âmbito da maternidade.

Além disso, temos no final quatro personagens, dois femininos e dois masculinos, em um equilíbrio de opostos. Ainda temos um longo caminho, mas podemos notar aqui, um protótipo da alteridade se desenvolvendo em nossa consciência coletiva.

 

Referências:

CORSO, D. L. & CORSO, M. Fadas no Divã – A psicanálise nas historias infantis. Porto Alegre. Artmed: 2006.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo:2005.

VON FRANZ, M. L. A individuação nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo:2002.

VON FRANZ, M. L. Animus e Anima nos contos de fada. Verus. Campinas: 2010.

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Úrsula e o arquétipo da Mãe Terrível

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Úrsula é a bruxa do mar no desenho Ariel – A pequena Sereia. Não sabemos qual é a sua história e nem suas motivações. Sabemos apenas que ela deseja o poder, ela anseia e passa a sua vida querendo ocupar o lugar do rei Tritão, sob a forma de vingança.

Por esse motivo precisamos analisar os outros personagens enquanto símbolos que se relacionam com Úrsula. Primeiramente é importante falarmos sobre o mar. O mar é um símbolo do inconsciente coletivo. E no desenho nele temos os seguintes personagens: o rei Tritão e suas sete filhas, sendo Ariel a caçula, a sua favorita e Úrsula.

Notem que não há uma rainha, mesmo com filhas mulheres não há um regente, e Tritão reina absoluto. Podemos especular, então que Úrsula poderia ser essa regente que foi esquecida e reprimida. Nesse caso, observamos que o inconsciente se encontra em um processo patriarcal e a vingança de Úrsula é motivada pelo desejo de ser reconhecida.

Interessante notar que no começo do filme não se houve falar dela, seu nome nem é mencionado. Somente quando Ariel decide ser humana que Úrsula coloca em pratica seu plano de vingança. Isso mostra que Úrsula é um arquétipo que foi constelado e emergiu a superfície da consciência, como veremos a seguir. Além disso, além de Ariel, temos o príncipe Eric no reino humano.

Eric é a peça chave para a compreensão de Úrsula e para o restabelecimento do equilíbrio masculino-feminino da estrutura psíquica. Enquanto príncipe, Eric representa a esperança de renovação da consciência. Não ouvimos falar sobre seu pai ou sua mãe e ele tem somente um tutor e vive com marujos ao mar. A atitude consciente aqui também se encontra unilateral, sem o elemento feminino.

Mas na noite do aniversário do Príncipe Eric, Ariel sob a superfície e se apaixona por ele. Em uma tempestade que se seguiu, o navio é destruído e Ariel salva Eric. A sereia canta para ele, mas rapidamente o deixa quando ele recupera a consciência para evitar ser descoberta. Fascinado pela voz que ficou em sua cabeça, Eric promete encontrar quem o salvou.

Antes de continuarmos a análise é importante falar sobre a figura da sereia. As sereias na Mitologia Grega eram seres extremamente perigosos. Seu canto levava os homens a se afogarem. Elas personificam um aspecto perigoso da anima, a ilusão destruidora. Esse aspecto da anima, representado pela sereia, simboliza um sonho irreal de amor, de felicidade, e de calor materno (o ninho) — um sonho que afasta o homem da realidade (JUNG, 2002).

Eric está preso nessa anima negativa e encantadora. Ele não consegue estabelecer uma relação com uma mulher real. Mesmo quando Ariel adquire pernas humanas, ele ainda vive preso ao ideal ilusório de mulher. Ariel da sua voz a Úrsula, em troca das pernas. Ou seja, para se humanizar ela perde justamente o encanto que leva os homens a destruição. Mas Eric ainda fica preso a essa ilusão representado pela mãe.

Ele é um puer aeternus, que não se compromete, não quer crescer. Nota-se isso no seu jeito infantil com que brinca com seu cachorro de estimação. Mas por trás dessa anima encantadora, está Úrsula, que aqui simboliza a Mãe Terrível, como aspecto regressivo da psique. O herói representado por Eric terá que lutar com ela para que a consciência se liberte da infância e sua anima possa se humanizar e se desenvolver.

Vários mitos e contos de fadas relatam essa passagem na jornada do herói, onde ele mata o dragão (ou outro anima terrível) e salva a donzela em perigo. Após, então, matar Úrsula, Eric liberta a psique do caráter regressivo e sua anima Ariel também é liberta do animus terrível, representado por seu pai.

Muitos contos de fadas relatam que a anima possui um guardião com aspecto de um deus terrível e até demoníaco, um “animus da anima” e o herói também precisa superá-lo.  E o filme termina com o casamento, e o estabelecimento do equilíbrio masculino e feminino na consciência. Úrsula, por meio de Ariel, obteve seu devido reconhecimento e agora pode se tornar Rainha novamente.

REFERÊNCIAS:

JUNG, C. G. Símbolos da Transformação. Vozes. Petrópolis: 1986.

JUNG, C., VON FRANZ, M. L., HENDERSON, J. L., JACOBI, J. & JAFFÉ, A. O homem e seus símbolos, 23 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

VON FRANZ, M. L. Animus e Anima nos contos de fada. Verus. Campinas: 2010.

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Oz – Mágico e Poderoso

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Oz: Mágico e Poderoso é prelúdio do livro do escritor americano L. Frank Baum, publicado em 1900 e que foi adaptado para o cinema em 2013. O filme começa com um circo itinerante onde trabalha o fracassado mágico Oscar “Oz” Diggs.

Oscar é um sujeito arrogante, com mania de grandiosidade. Vive flertando com as mulheres sem estabelecer laço com nenhuma delas – nem mesmo com a mulher que ele gosta – e trata seu fiel assistente com desdém.

Pode-se observar nas atitudes de Oscar traços de um intuitivo. Como o fato de viver no mundo das possibilidades e de não se comprometer com a realidade. Oscar vive com seu pensamento no futuro (intuitivo) e pouco valoriza os relacionamentos. Mostrando que a função sentimento também é pouco trabalhada em sua personalidade.

As atitudes de Oscar criam vários problemas para ele. E um dia quando arranja confusão com um grandalhão, que o persegue por ter flertado com sua mulher, foge em um balão de ar quente. Porém é sugado por um tornado que o leva para a mágica terra de Oz.

Se analisarmos o filme de forma literal podemos dizer que o mágico morreu e foi para o mundo dos mortos. Entretanto, o filme é uma fantasia por isso tomo a liberdade de analisá-lo de forma simbólica. Além disso, a análise dos personagens será feita em relação ao mágico, uma vez que ele é o herói da saga.

O tornado é uma força da natureza que simboliza que Oscar foi alçado aos céus em uma inflação destrutiva.

O mundo de Oz pode ser considerado como símbolo do inconsciente coletivo e seus arquétipos. O ego do mágico foi derrotado, ele perdeu o controle naquele balão e agora terá que lidar com algo desconhecido e trabalhar aspectos de sua personalidade antes ignorado.

Nesse novo mundo ele conhece a bela e ingênua bruxa Theodora, que acredita que ele é o mágico da profecia que irá destruir a bruxa má que matou o rei de Oz. Seguindo em direção a cidade das Esmeraldas, Theodora se apaixona por Oscar, mas sem ser correspondida (o que trará sérias conseqüências para o herói).

No caminho eles encontram o macaco voador Finley, que promete uma dívida de vida a Oscar quando ele o salva de um leão.

O macaco como animal simboliza os instintos. Nas sociedades orientais simboliza a agilidade, a inteligência e o desprendimento. Vide que na Mitologia Hindu há um deus com cabeça de macaco Hanumam, que simboliza a devoção, a dedicação e a força.

Já na sociedade ocidental o macaco é visto de forma negativa sendo considerado símbolo do homem degradado pelos vícios da malícia e da luxúria. Essa discrepância ocorre devido à cristianização que passou a considerar os instintos como algo sujo e demoníaco.

Portanto, vemos no macaco dois aspectos: o da inteligência e o dos instintos. No caso do filme, ele possui asas e uma extrema dedicação ao seu mestre. As asas demonstram que os instintos estão sendo espiritualizados e alcançando um nível mais elevado.

Oscar possui a característica de querer levar vantagem em tudo, com uma boa dose de astucia, o que representa o lado sombrio do macaco. Entretanto, com o macaco Finley ele irá aprender a lição da gratidão e da dedicação a alguém.

Na cidade das Esmeraldas, Oscar conhece irmã de Theodora; Evanora, que lhe diz que a bruxa má, Glinda, reside na floresta negra e pode ser morta, destruindo sua varinha, a fonte de seus poderes. Mas na verdade é Evanora que é a bruxa má e matou o rei, pai de Glinda.

Theodora, Evanora e Glinda formam uma tríade feminina, sendo respectivamente: A Bruxa Malvada do Oeste, A Bruxa Malvada do Leste e A Bruxa Boa do Sul.

Sobre Theodora é importante falar que inicialmente ela é boa, entretanto devido à manipulação de Evanora ela descobre que não é correspondida em seu amor por Oscar. Com isso ela se transforma em uma bruxa má com a pele verde.

Esse aspecto da mulher rejeitada que busca a vingança é um tema conhecido dos contos de fadas e dos mitos. Vemos esse tema na Bela Adormecida, onde a fada rejeitada busca vingança contra a princesa recém nascida. Deusas da mitologia grega como Hera, Afrodite e Artemistambém se vingavam quando eram traídas ou esquecidas em suas reverencias.

Nesse caso, percebemos uma predominância do elemento feminino no mundo de Oz e a ausência do elemento masculino que foi eliminado, mas que será compensado com a chegada de Oscar, o quarto elemento.

Mas antes disso, o mágico tem uma jornada onde deverá se transformar, principalmente em relação à função sentimento e o respeito pela força do feminino.

Oscar e Finley, então são unidos no caminho para a floresta a China Girl, uma pequena boneca de porcelana, cuja aldeia e família foram destruídas por Evanora.

A boneca é um brinquedo tipicamente feminino que geralmente recebe as projeções dos fantasmas da maternidade da menina, onde ela imita em suas brincadeiras sua relação com a mãe.

Mas no filme é o herói que terá que se envolver com essa figura. Nesse caso podemos, de forma criteriosa, dizer que a boneca de porcelana mostra a anima ainda em estado primitivo e frágil de Oscar. Porém, é por meio do relacionamento com ela que o mágico irá desenvolver seu sentimento e o cuidado que não havia nele antes.

A bruxa boa Glinda, então leva o grupo para o seu castelo onde ela confessa que sabe que Oscar não é um verdadeiro mago. Entretanto, a força da profecia pode fazer com que o povo lute ao lado dele, o que o força a superar sua ética duvidosa para convencer o povo de que ele é o herói necessário para libertar Oz.

Dessa forma, ele usa todo o seu conhecimento em ilusionismo para derrotar as duas bruxas.

É importante atentar que ele não mata nenhuma das duas, elas apenas são banidas, mostrando que o aspecto sombrio do feminino é necessário para o desenvolvimento da psique e não deve ser negligenciado. Sua força impulsiona o indivíduo para o processo de individuação, pois é nesse aspecto que o indivíduo é expulso do paraíso materno.

Para finalizar, Oscar após desenvolver uma ética interna e seu sentimento se torna rei, trazendo a renovação ao reino de Oz e o equilíbrio com o feminino por meio de sua união com Glinda.

O filme então nos mostra que cada um de nós tem um destino a cumprir e que ninguém deve seguir o de outro, mesmo com o medo e a insegurança advindo daquilo que nos é designado pelo inconsciente.

 

 

FICHA TÉCNICA

OZ: MÁGICO E PODEROSO

DireçãoSam Raimi
Música composta porDanny Elfman
ContinuaçãoThe Wizard of Oz
RoteiroMitchell Kapner, David Lindsay-Abaire
País de Origem: EUA
Ano: 2014

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