Falcão e o Soldado Invernal: o sonho americano pode ser transmitido?

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É curiosa a trajetória do Capitão América como um símbolo norte-americano. Concebido por Joe Simon (1913-2011) e Jack Kirby (1917-1994), a primeira encarnação do herói vem na pele de Steve Rogers. Sua origem nos quadrinhos, em The Avengers #4 (1964) é similar a apresentada no filme Capitão América: O Primeiro Vingador (2011), um jovem franzino, frágil e debilitado, com muito amor por sua pátria deseja adentrar o exército norte-americano para combater as forças do Eixo em plena 2ª Guerra Mundial, um clássico herói da era de ouro dos quadrinhos.

Sem aptidão física, mas com muita determinação, um membro de alta patente enxerga potencial no garoto e o transforma em voluntário para o projeto do Soro de Supersoldado, isso tudo leva o personagem a se transformar no super humano conhecido como Capitão América. Isso, no entanto, não quer dizer que ele foi o primeiro a vestir esse manto. No mundo entroncado das editoras de quadrinhos onde os roteiristas vêm e vão, modificando as histórias e o passado dos personagens com frequência, era de se esperar que isso fosse acontecer e antes de Steve Rogers outro homem vestiu as roupas e o escudo icônico do herói – mas mantenha esse fato em suspensão.

Fonte: encurtador.com.br/qzKU4

Anos após a criação de Rogers, em Captain America #117 (1969), um dos primeiros heróis negros seria apresentado ao mundo, este era Sam Wilson, de alterego Falcão. No universo cinematográfico Marvel contemporâneo, Wilson seria apresentado no filme Capitão América 2: o Soldado Invernal (2014), um militar de carreira, que fazia missões aéreas arriscadas. A partir daí eles construíram uma relação de amizade e companheirismo, culminando no fim do filme Vingadores: Ultimato (2019), onde Steve decide – após viver longos anos de uma aposentadoria e um casamento feliz que envolve uma viagem no tempo e muito roteiro complexo – passar o manto de Capitão América para Wilson.

Esse ato simbólico, que na cena em questão é muito característico por um Capitão, em forma de idoso, longevo e sábio, passando o escudo, um item poderoso e significativo carregado de significados para um Sam jovem e relativamente inexperiente; o Mestre que passa o item chave e seus conhecimentos para o aprendiz. Esse fato culmina na trama do seriado Falcão e o Soldado Invernal, que vai tratar da recusa de Sam Wilson ao chamado a Jornada do Herói.

Fonte: encurtador.com.br/dxAW1

 

O Arquétipo do Herói e a Recusa ao Chamado de Sam

Joseph Campbell (1904-1987) trabalha e disserta meticulosamente acerca do arquétipo do herói em seu livro “O Herói de Mil Faces” (1949). Neste livro, que antecede porém converge com as idéias de Carl Gustav Jung em “Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo” (1959), o autor discorre acerca do monomito (jornada do herói), sendo esta uma narrativa plural e universalmente presente em todas as culturas, de maneiras diferentes de acordo com as influências de cada local. A jornada se dá em doze passos, fundamentais para o desenvolvimento do personagem, e crescimento individual, culminando na conclusão heróica de sua jornada.

Os passos dessa jornada, descrita por Campbell (2004) seriam em um primeiro ato: o Mundo Comum, o Chamado à Aventura, a Recusa do Chamado, o Encontro com o Mentor e a Travessia do Primeiro Limiar. A ordem dos fatores pode variar de acordo com as histórias, mas sem a alteração do produto. No caso de Sam Wilson vemos sua jornada como herói ser estabelecida em sua atuação como Falcão, porém ao ser defrontado com o manto de Capitão América, a responsabilidade e o significado do escudo o desmotivam a prosseguir.

No seriado Falcão e o Soldado Invernal (2021) é possível observar a continuidade desse processo, pois a série trata das consequências dessa fuga de Sam. Toda uma conjuntura é estabelecida, com a série tomando ponto de partida diretamente após a cena final de Vingadores: Ultimato (2019). Sam recebe o escudo, mas a única frase que consegue pronunciar acerca dele é “Parece que pertence a outra pessoa”.

Ricón (2006) descreve o processo da recusa como “o herói reluta em empreender a jornada”; Sam não somente recusa o manto de Capitão América como entrega o escudo, item emblemático, ao governo americano, ato que vai mover sua história ao longo dos episódios, pois vai sempre ser lembrado pelos personagens coadjuvantes que Steve Rogers o escolheu por bons motivos.

Fonte: encurtador.com.br/eAMR1

O Capitão que a América precisa

Nos capítulos finais da série, Sam Wilson deve lidar com seus demônios. A situação familiar na casa mundana do herói é uma analogia bonita para toda a narrativa complexa envolvendo super seres e política fantasiosa. Em sua casa no estado de Louisiana, uma problemática com o barco que pertenceu a seus pais, que está estragado e precisa ser vendido por sua irmã, é um dilema complexo.

Ao investigar mais a fundo o legado do Capitão América, descobre a trágica história de Isaiah Bradley, o primeiro a testar o soro de Supersoldado e a vestir o manto de Capitão América, um homem negro, que foi usado, injustiçado e logo após apagado da história como muitos outros semelhantes. Teria ele o ímpeto, como um homem negro que também é, de vestir o manto que representa um país que causou tanto sofrimento a seus semelhantes? Bradley revela a ele as atrocidades da guerra e impõe mais peso nos ombros de Sam.

 

Fonte: encurtador.com.br/ltyGJ

 

“O percurso padrão estabelecido por Campbell para a aventura mitológica é representado nos rituais de passagem: separação, iniciação e retorno. Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios sobrenaturais, onde encontra forças e obtém uma vitória decisiva, o herói volta de sua aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes. O herói composto do monomito é uma personagem dotada de dons excepcionais, frequentemente honrado pela sociedade de que faz parte, costuma também não receber reconhecimento ou ser objeto de desdém.” (GOMES, 2009, p.5)

O sofrimento do povo negro representado em Bradley, sua relação de amizade com Bucky Barnes e observar o mau uso que o governo fez do legado de Steve Rogers, o motivam a retomar sua jornada pessoal de heroísmo e o impulsionam a assumir outra Persona. Morre o Falcão e nasce um novo Capitão América. Sam finalmente é capaz de se libertar da fixação na fuga da jornada.

 

Fonte: encurtador.com.br/cejpx

 

REFERÊNCIAS

CAMPBELL, Joseph. Herói de Mil Faces, O. Cholsamaj Fundación, 2004.

GOMES, Vinícius Romagnolli Rodrigues; ANDRADE, Solange Ramos de. Um retorno aos mitos: Campbell, Eliade e Jung. Revista Brasileira de História das Religiões-ANPUH-Maringá (PR) v, v. 1, 2009.

RICÓN, Luiz Eduardo. A jornada do herói mitológico. In: SIMPÓSIO DE RPG & EDUCAÇÃO. 2006. p. 2-4.

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A Criança Sagrada no Superman de Zack Snyder

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O Superman, como é conhecido hoje, foi a público pela primeira vez na publicação Action Comics (1938) concebido por Jerry Siegel (1914-1996) e Joe Shuster (1914-1992). Surge então da primeira leva de super heróis nos quadrinhos norte-americanos; o personagem é criado como um alienígena que haveria caído na terra vindo de um mundo distante, chamado Krypto.

Em sua terra natal, é conhecido como Kal-El, no planeta terra, ao ser adotado por um casal de idosos do Kansas recebe o nome de Clark Kent. Aqui este desenvolveria poderes sobre humanos e passaria a vestir as cores do país que o acolheu, combatendo o crime.

Outro fato importante acerca da criação de Superman é a origem étnica do mesmo, não aquela postulada nas páginas das histórias em quadrinhos; mas a origem de quem o concebeu e a carga cultural implícita na representação do personagem. O contexto histórico era o da ascensão do facismo e nazismo na Europa e as Américas eram por muitas vezes um refúgio para quem se movia para longe do caos europeu.

Siegel e Shuster, de batismo Jerome e Joseph respectivamente, eram judeus, e todo o contexto conturbado vivido por eles na década de 1940 iria influenciar imensamente na concepção das histórias e na visão de mundo dos personagens.

Superman no Cinema e a Visão de Heroísmo de Snyder

Ao longo das últimas décadas, diversas adaptações cinematográficas foram feitas da origem do Superman, ou mesmo tentativas de adaptação de novelas gráficas clássicas do herói. A filmografia se inicia na virada da década de 50 com Superman (1948), Atom Man vs. Superman (1950), Superman And The Mole Men (1951).

Na década de 70 surge o filme dirigido por Richard Donner e protagonizado por Christopher Reeves, Superman – O filme (1978), este que resultaria em três continuações com o mesmo ator, aclamado por fãs. Após longo hiato, somente em Superman – O Retorno (2006) é que o herói veria as telas cinematográficas novamente, através da visão do diretor Bryan Singer (Bohemian Rhapsody, 2018). Mas é em Man of Steel (2013), que o diretor Zack Snyder (Watchmen, 2009; 300, 2006) traz a adaptação mais recente do personagem e com ela algumas particularidades.

Acerca das adaptações cinematográficas de Snyder, vale salientar sua preferência por adaptar uma visão bem específica acerca do arquétipo do herói. Ao traduzir para as grandes telas o filme 300 (2006) – este derivado de uma graphic novel concebida pelo autor Frank Miller de nome “Os 300 de Esparta” (1998) – que é uma releitura da trajetória do mítico rei Leônidas, o diretor deixa mensagens claras acerca do lado humano do rei, seus erros e sua personalidade que em essência não eram divinas e imaculadas, mas humanas e passíveis de erro; Sua derradeira queda nas mãos do rei Persa Xerxes solidifica essa narrativa.

Em Watchmen (2006), o diretor já deixa pistas de como interpreta o papel dos super heróis perante a sociedade, adaptando mais uma obra de Miller e retratando um mundo onde os vigilantes são temidos de muitas maneiras, por sua imprevisibilidade e por serem não deuses, mas seres humanos usando máscaras. Essa mescla entre a visão de Frank Miller e a de Snyder pavimentaram uma estrada narrativa que o cineasta abordaria em seu filme que contaria a origem do herói, faria então um recorte quase pessoal de sua visão sobre o mito do Superman.

O desenvolvimento se dá ao longo de três filmes: Homem de Aço (2013), Batman V Superman (2016) e Liga da Justiça (2021). Nessa jornada você acompanha uma versão diferente da origem do Superman, muito semelhante a original dos quadrinhos porém com diferenças pontuais no que se diz respeito à personalidade do herói.

O Clark Kent mostrado no primeiro filme é um homem que desconhece seu potencial e mesmo ganhando habilidades especiais, toma atitude de herói tardiamente em sua vida, nesse caso após o conturbado final de Homem de Aço. Aquele final também guarda um fato que impõe diferença entre esse Superman do filme para o das histórias em quadrinhos, que é a despreocupação do personagem com a cidade a sua volta, sendo que este acaba por passionalmente destruir o ambiente a seu redor – a cidade inteira sucumbe desastrosamente, enquanto em uma cena de gosto duvidoso, Clark beija sua amada após quebrar o pescoço do antagonista.

É uma cena forte, e com certeza destoa do tom otimista geralmente adotado no retrato deste personagem. Snyder muda o status quo do Superman, o transfigura em um novo produto, diferente daquele já inserido na coletividade mudando o arquétipo pelo qual o ele era mais frequentemente apresentado ao público. A partir disso, diversas questões imperam acerca desta mudança e essa realocação arquetípica faz parte da narrativa desse novo personagem.

Fonte: encurtador.com.br/acG38

A Criança Sagrada

Primeiramente um breve apanhado acerca dos arquétipos. Para Carl Gustav Jung (1875-1961) em sua publicação “Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo” (1957-2018), pode-se definir arquétipo como uma espécie de tendência instintiva que reside na psique dos seres humanos transmitida ao longo das gerações; como um instinto biológico que perpassa os ancestrais de uma espécie – o autor exemplifica com a tendência dos pássaros de fazerem ninhos ou viajarem para determinados locais em determinadas épocas do ano – assim também seria psicologicamente falando. Os humanos transmitem essas tendências a seus herdeiros e esses fenômenos são acessados através do inconsciente coletivo.  Um desses arquétipos é conhecido como a Criança Sagrada.

Como Jesus para os cristãos, ou o Imperador de Jade em algumas narrativas ancestrais chinesas, é a representação de uma criança que vem carregada de expectativas, imaculada, de futuro promissor. Jung, ao falar acerca desse arquétipo, nos diz:

Um aspecto fundamental do motivo da criança é o seu caráter de futuro. A criança é o futuro em potencial. Por isto, a ocorrência do motivo da criança na psicologia do indivíduo significa em regra geral uma antecipação de desenvolvimentos futuros, mesmo que pareça tratar-se à primeira vista de uma configuração retrospectiva. (…) Não admira portanto que tantas vezes os salvadores míticos são crianças divinas. Isto corresponde exatamente às experiências da psicologia do indivíduo, as quais mostram que a “criança” prepara uma futura transformação da personalidade. (JUNG, 1957-2018, p.165)

Logo, relacionar a Criança Sagrada com a narrativa do Superman, tendo como ponto de partida a cultura judaico-crisã, não é difícil e na verdade esse se demonstra um arquétipo recorrente. Como Moisés que é colocado em um cesto no Nilo – rio esse carregado de simbologias e mitos pelos Egípcios – e enviado a um futuro profético destinado a salvar os Hebreus, Kal-El é colocado por seus pais em uma nave e enviado a Terra a partir de seu planeta natal Krypton, com um destino heróico a sua frente. Esse paralelo deve ser aqui estabelecido para demonstrar o poder da simbologia judaica do Superman clássico e seus criadores fizeram ali impressão da ancestralidade de sua cultura.

Conclusão

A versão do Superman de Snyder trilha o começo do caminho da criança sagrada, mas por ser criado por seres humanos isso implica diretamente na maneira como este vê o mundo, ele está longe de ser o ser divino retratado em outras mídias onde ele paira sobre a humanidade como um ser protetor, muito pelo contrário.

Este Clark Kent voa longe para se isolar, pois se sente um pária, deslocado. E o peso do heroísmo cobra duras penas, pois no início de sua jornada, este se vê não aclamado por salvar o mundo dos invasores, mas temido por suas habilidades excepcionais e olhado com desconfiança por todos à sua volta. A promessa da criança sagrada não se cumpre, restando apenas um ser em meio a uma jornada heróica que passa pelo vale mais obscuro.

Fonte: encurtador.com.br/dgsvA

REFERÊNCIAS

CAMPBELL, Joseph. Herói de Mil Faces, O. Cholsamaj Fundación, 2004.

JUNG, Carl G. et al. O homem e seus símbolos. 1964.

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Puella Aeterna: consequências da fixação feminina na eterna juventude

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Ao longo da história e dos mitos que a humanidade traz consigo, muito se foi dito acerca da eternidade, da beleza e da juventude do ser humano, que em tantas histórias e contos se referenciou nos deuses, comumente representados como figuras eternas e que na psicologia analítica são vistos como arquétipos.

Os arquétipos são figuras que remetem a um conteúdo específico, uma forma, como por exemplo, o arquétipo materno representado por a grande deusa, a virgem, a esposa, a vó e também pode ser atribuída à lua e a terra, dentre tantas outras representações que são formadas no inconsciente (JUNG, 2002).

O arquétipo do Puer Aeternus se construiu em várias culturas através dos mitos, tanto orientais como ocidentais, sendo associado à beleza, juventude e eternidade, retratado em diversos deuses; sua maior associação é com o arquétipo do deus menino, sendo comumente atribuído aos deuses gregos Dionísio e Eros, seu significado é descrito como “juventude eterna” enquanto que na psicologia analítica pode ser também atribuído ao jovem que tem algum complexo materno incomum (VON FRANZ, 1992).

Portanto o indivíduo que se vê tomado pelo arquétipo do Puer Aeternus é retratado da seguinte maneira:

Em geral, o homem que se identifica com o arquétipo do puer aeternus permanece durante muito tempo como adolescente, isto é, todas aquelas características que são normais em um jovem de dezessete ou dezoito anos continuam na vida adulta, juntamente com uma grande dependência da mãe, na maioria dos casos (VON FRANZ, 1992, p. 3-4).

Na clínica junguiana, muito se trabalha com os aspectos arquetípicos nos quais encontram-se no inconsciente coletivo e podem levar aos complexos a partir das experiências pessoais que são atribuídas ao inconsciente individual, sendo melhor explicados por Jung (2002, p. 53) da seguinte forma:

O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo, portanto, uma aquisição pessoal. Enquanto o inconsciente pessoal é constituído essencialmente de conteúdos que já foram conscientes e no entanto desapareceram da consciência por terem sido esquecidos ou reprimidos, os conteúdos do inconsciente coletivo nunca estiveram na consciência e, portanto, não foram adquiridos individualmente, mas devem sua existência apenas à hereditariedade.

A partir da breve explicação, falaremos então acerca de um caso clínico relacionado ao Puer Aeternus, porém, aqui postularemos como a Puella Aeterna, ou a eterna menina, que é o aspecto feminino do Puer com algumas características que podem se diferenciar, sendo geralmente caracterizada como uma mulher que ainda vive com aspectos infantis, geralmente por consequência de pais passivos e em sua maioria por mães controladoras. Sendo assim Leonard (1998, p. 64) conclui:

[…] a eterna menina em geral adquire sua identidade a partir das projeções feitas pelos outros sobre ela, entre as quais: a mulher fatal, a boa filha, a esposa e anfitriã encantadora, a princesa maravilhosa, a musa inspiradora, e até mesmo a heroína trágica. Em lugar de assumir a força e o poder do potencial que lhe é inerente, e as responsabilidades que o acompanham, a eterna menina permanece frágil. Como uma boneca, permite aos outros fazerem de sua vida o que bem quiserem.

Fonte: encurtador.com.br/jlmW9

A partir de tal conceito, podemos seguir ao caso clínico que envolve uma paciente jovem de 18 anos na qual chamaremos de Hebe (nome fictício), que ao chegar no consultório se mostrou muito receptiva e falou acerca de seu acompanhamento clínico anterior, da sua vida familiar, um pouco da sua história, dos seus sentimentos e vivências, foi conversado com ela acerca da abordagem que seria utilizada na terapia (Psicologia Analítica), e questionamentos acerca de inclinações para artes e hobbies que a mesma poderia ter. A paciente relatou gostar de filmes “clichês” e também antigos. Outro aspecto relevante retratado foi acerca do gosto por desenhar, onde ela revelou gostar bastante, mas que não o fazia há algum tempo por receber críticas negativas da mãe acerca de alguns dos seus desenhos, que inclusive foram jogados fora por Hebe.

Podemos observar aqui um aspecto muito comum da Puella, onde a paciente demonstra reminiscências da infância tendo suas decisões tomadas a partir de influências dadas pela mãe, que notavelmente exerce um controle exacerbado sob a vida de Hebe, como citado por ela em um exemplo acerca de sua vontade de fazer uma faculdade fora, mas que não seguiu adiante com a ideia após sua mãe reforçar que ela não daria conta por ser uma pessoa de “mente frágil” para lidar com uma vida longe.

Hebe confirma verbalmente o que sua mãe disse a respeito dela, fala que se sente uma pessoa frágil emocionalmente e que sempre está sendo afetada por algo, portanto quando ocorre um evento que lhe afete negativamente ela costuma ir para um canto e ficar sozinha, ela relatou ser uma pessoa que não demonstra seus problemas, que geralmente se sente culpada em incomodar os outros e sente culpa até mesmo por problemas que são inevitáveis, como por exemplo uma doença recente que sua mãe passou, no qual Hebe disse de alguma forma sentir-se culpada por toda aquela situação. Acerca disso Leonard (1997, p. 81) nos traz que:

Um elemento comum a todos os padrões pueris é o apego a uma inocência ou uma culpa absolutizada que são os dois lados de uma moeda capaz de alimentar a dependência de outrem que reforce ou condene os atos. Existe em todos a relutância de responsabilizar-se pela própria existência, a ausência de tomada de decisões e discriminações; é o outro que se incube disso.

A paciente relata ter tido fortes crises de ansiedade e as situações nas quais teve, como por exemplo quando foi visitar sua mãe que estava internada e durante a crise que teve ela se viu tomada por um pânico que a deixou paralisada tendo inclusive que ser atendida por enfermeiras que estavam no local. Nesse momento ela diz ter tido muito medo de que sua mãe viesse a falecer. Esse aspecto muito nos fala acerca do medo terrível de separação da paciente com sua mãe, onde há visivelmente uma ausência de ruptura e o medo de encarar o mundo, sendo esse último aspecto relacionado à introversão.

Hebe diz que sua timidez é tamanha, que ela não costuma fazer amigos por dizer que não gosta de sair, tendo como explicação o fato de que todos que querem ser seus amigos sempre chamam para ir a festas e ela prefere não fazer amizades a ter que recusar os convites. Von Franz (1990, p.11) nos fala que:

No caso da atitude introvertida […] a pessoa tem a impressão de que um objeto opressor quer constantemente afetá-la, objeto do qual ela deve afastar-se de maneira contínua. Tudo se abate sobre a pessoa, que é constantemente oprimida por impressões, embora não perceba que secretamente está tomando energia psíquica do objeto e passando-a a ele através da sua extroversão inconsciente.

Fonte: encurtador.com.br/bemV8

A paciente relata que não costuma conversar muito com os irmãos, pois são pessoas que levam tudo na brincadeira, também não conversa muito com seus pais, porquê sua mãe é muito fechada e o seu pai, devido ao histórico do divórcio também não é muito amável. Segundo a paciente sua mãe passou a tratá-la de forma diferente após a separação dos pais, que as coisas ficaram diferentes, pois ela sente muita falta da época em que os pais moravam juntos.

O Pai de Hebe mora em outro estado, e por vezes abandonou a família sem dizer quaisquer coisa, isso, nas palavras da paciente, deixou-a insegura, e contou que certa vez o pai propôs que sua mãe, ela e os irmãos fossem morar com ele, ele deu o dinheiro para irem, porém, ao chegar lá ficaram cerca de dois meses e o pai os abandonara novamente em uma casa pequena sem dar quaisquer satisfações, deixando-os inclusive sem dinheiro algum até mesmo para voltar, e que apenas conseguiram voltar após contato com a família na cidade que moravam.

Essa história nos remete em partes ao que Leonard (1997) discorre acerca do padrão da Puella da “menina de vidro”, fazendo uma análise da peça “Zoológico de Vidro” de Tennessee Willians (1945) onde se observa a protagonista Laura, marcada por uma relação de um pai ausente que se mostra como uma garota de extrema timidez, com uma mãe que faz suas projeções nela tomando partido por suas decisões:

Para Laura, não existia relação com o masculino, não havia nenhuma influência ativa e consciente do pai, nenhum relacionamento com o mundo exterior […] Desprovida de projeções masculinas e de uma relação com o masculino, Laura cria seu próprio mundo, uma vida de fantasia que compensa seu isolamento em relação ao mundo exterior. (LEONARD, 1997, p.70)

Durante o atendimento com Hebe, ao mencionar que provavelmente falaríamos de sonhos, perguntei se ela costumava sonhar, e se recordar dos sonhos, ela mencionou que sim, logo após questionei se ela tinha algum sonho específico, logo ela me contou de um sonho que já se repetiu algumas vezes segundo ela, no qual ela se via em um apartamento que era somente dela, dado por sua mãe, com tudo para ela. Infelizmente não foi possível uma análise mais aprofundada do sonho, pois Hebe não pôde mais comparecer à terapia.

Portanto, após os relatos da paciente, podemos encontrar uma evidência no sonho de que o apartamento é a casa dela, representa seu ego. E apesar de ser algo próprio dela, quem deu foi sua mãe, isso pode nos revelar acerca da dependência materna por parte de Hebe, que demonstra fixação em uma fase anterior do desenvolvimento, na qual podemos novamente relacionar com a Puella.

Há também um constante medo inconsciente de encarar o mundo, uma necessidade de mudar a imagem amedrontadora que a paciente tem da mãe. Hebe demonstra uma recusa de buscar desenvolvimento de auto apoio para se tornar uma pessoa apta à vida adulta, é preciso dar-se conta de que esse trabalho não pode ser realizado por sua mãe, mas sim por ela mesma e para tanto a figura do terapeuta atua juntamente nesse processo.

Sendo assim para a transformação desse padrão de Puella, é interessante que o terapeuta convide à paciente, em primeiro passo, a tomar consciência de que está fora de contato com o self, ao reconhecer e sentir a existência da mais dimensões no próprio íntimo, um poder maior que a força dos impulsos do ego, onde ainda não se tem um vínculo, que pode ser revelado nos sonhos, essa conscientização gera sofrimento e então o segundo passo refere-se à aceitação desse sofrimento, tendo por fim o último passo, perceber que, apesar da nossa fraqueza há uma força interior que acessa esse poder superior, é uma aceitação do poder do self mas que parte das escolhas da própria paciente (LEONARD, 1998).

Vale ressaltar que na clínica Junguiana, o terapeuta irá atuar como aquele que estará ali para andar junto durante esse processo, vivenciar junto com o paciente e dar o suporte buscado na terapia para que o indivíduo possa lidar com as adversidades por si só, ou seja, até que o paciente possa caminhar sozinho. O analista por sua vez deve estar em constante aprimoramento, se possível, realizar também seu próprio processo terapêutico. Acerca disso Jung (1998, p. 6) discorre que “aquilo que não está claro para nós, porque não queremos reconhecer em nós mesmos, nos leva a impedir que se torne consciente no paciente, naturalmente em detrimento do mesmo.”

Podemos reafirmar então, que os arquétipos regem nossas vidas, mesmo que não tenhamos a consciência de sua existência, ainda assim, fazem parte do inconsciente coletivo, de uma forma ou outra, entram em contato com nosso inconsciente pessoal e acabam por interagir com os complexos pessoais. A terapia sob a luz da psicologia analítica nos ajuda a entender como funcionam os movimentos de nossa psique, nossa alma, e nos convida a nos compreender melhor e a trazer os aspectos inconscientes à consciência, com o intuito de auxiliar no processo de individuação e na busca do self que é pessoal à cada indivíduo.

Fonte: encurtador.com.br/jwABQ

REFERÊNCIAS

LEONARD, Linda Schierse. Mulher Ferida, a. 3ª edição. São Paulo: Summus, 1997.

JUNG, Carl Gustav. A Prática da Psicoterapia. 6ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 2ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.

VON FRANZ, Marie-Louise; HILLMAN, James. A tipologia de Jung. São Paulo: Cultrix, 1990.

VON FRANZ, Marie-Louise. Puer aeternus: a luta do adulto contra o paraíso da infância. Paulinas, 1992.

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Dificuldades existenciais no contexto pandêmico

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Os pesos ocultos da quarentena estão por vezes presos nas realidades de sofrimento, não divulgadas, não levadas em consideração, não fomentadas a partir do incentivo da fala de quem tem sofrido, independente dos pesos ou medidas que esse sentimento tem, em cada subjetividade. Os impactos visíveis ou invisíveis, nossas relações interpessoais, íntimas, estão em constante mudança, e este momento totalmente desafiador, nos joga na posição de necessidade da capacidade da resolução de problemas, ou, a paralisia das nossas faculdades antes normalmente executadas.

A relação cotidiana mudou, e por consequência nossos aspectos relacionais também experimentam neste fenômeno, necessidade de atualização, sendo este termo, longe de ser interpretado como juízo de valor (bom ou ruim), mas é a forma com que o sujeito se insere, ou se expressa, em um movimento orgânico e dinâmico, mas não unilateral, pois se diversifica a partir de uma estrutura psíquica individual e também coletiva, na busca dificultosa da homeostase.

encurtador.com.br/pqvVX

Posso talvez afirmar que cada um se insere da maneira que cabe, em suas possibilidades e angústias, alguns, o medo do incerto, da possibilidade da incapacidade de retornar a uma realidade antes vivenciada; outros, na precisão de estar sempre, e em constante produção; se Freud estivesse aqui diria que este é nosso sintoma? Seria nossa resistência para não ter contato com o desprazer? Estaríamos tomados pela estrutura egóica? Sabe-se lá se Skinner em um momento como esse, talvez fizesse paralelo sobre estes comportamentos, e diria que é fuga e esquiva, em uma tentativa de reduzir ou eliminar os estímulos aversivos.

Eu mesma, estou tentando pôr panos frios em meus sofrimentos, mas seria muito tolo da minha parte dizer que não estou constantemente lidando com o sofrer, e com a vida que me pressiona a uma glorificação de processos criativos para o sofrimento, as produções, afinal, estamos todos confinados, qual seria então minha desculpa? Nós avançamos no tempo, mas as questões não biológicas, estão constantemente sendo negligenciadas no processo de adoecimento, o que me faz pensar que não avançamos tanto assim.

encurtador.com.br/grDMS

Talvez o leitor esperasse que eu me embasasse em apenas uma teoria, enquanto eu misturava sistêmica, psicanálise, análise do comportamento, e agora, Gestalt e psicologia profunda; quem sabe eu só não esteja buscando incessantemente a quintessência, a pedra filosofal, a individuação, e uma possiblidade de me tornar um sujeito autêntico? Me disponho a deixar parte de mim aqui, e ser… não é sobre pontos finais, ao menos para mim, na maior parte do tempo é sobre interrogações, buscando estar aqui e agora, mas tendo também de resgatar lembranças no fundo do inconsciente, que vez ou outra sussurram ou gritam ao meu ouvido, pedindo atenção, para que eu volte novamente a dar atenção aos meus processos.

Eu enquanto acadêmica me sinto confusa diante de tantas formas de ver o mundo, e enfrentando eu mesma, ao mesmo tempo, para entender quem sou eu no mundo, e o que farei com estes sofrimentos latentes ou abafados pelas implicações sociais. Bem, o contexto não tem sido favorável, na verdade, não sei se algum dia foi, mas me força a crescer. Tive que lidar com o medo da perda de pessoas extremamente próximas, tive de ver o sofrimento de quem passa por uma doença nova, de grande enfermo, observar sobre meus olhos alguém que teve experiência de muito tormento, o que me fez recordar de Jung, e as experiências de “quase morte”, as imagens arquetípicas do self se manifestando.

encurtador.com.br/deIYZ

Mais que nunca, estamos sofrendo, e precisamos dizer, para que não seja tão solitário este sentir. Se eu refletisse nas fases do luto de Elizabeth Kubler-Ross, não conseguiria dizer com precisão em qual fase estou, mas felizmente não é necessária tal linearidade. De raiva a depressão, e talvez eu tenha conseguido chegar em parte, na gloriosa, mas não estável, aceitação… afinal, já entendo que preciso sofrer, e dar voz ao que não consigo dizer. E eu sinto muito por tudo que eu jamais diria neste relato, de tão vasto, vívido, e por ser tão confuso, nem sei como diria. Que sorte a minha seria ser analisanda… por mais doloroso que seja, é difícil fugir do que também sou eu, está comigo, mesmo que eu negue.

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Arquétipos e o Processo de Individuação

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Carl Gustav Jung nasceu em 26 de julho de 1875, em Kesswil, na Turgóvia (Suíça). A partir de seus estudos, Jung elaborou sua visão acerca da psique humana, a partir das observações das associações “complexas” ou emocionalmente carregadas.

Sua observação o levou a formular, ou reformular, segundo Bertrand (2019), diversos conceitos, como o inconsciente, arquétipos, complexos, persona, anima e/ou animus, compensação, sonhos, sincronicidade, criatividade, sintomas, tipos e funções psíquicas, a “numinosidade”, o self, e um sistema psíquico bem estabelecido.

Jung fundou a psicologia analítica, cuja base fundamental é os arquétipos e o inconsciente coletivo, a energia psíquica, os complexos e o processo de individuação. A partir desses temas derivam inúmeros outros que complementam seu modelo de psique humano. Jung publicou muitas obras durante sua vida, e suas ideias frutificaram para muito além do campo da psiquiatria, estendendo-se também à arte, literatura, religião física, quântica, biologia (BERTRAND, 2019).

A Psicologia Analítica, como qualquer teoria científica, surgiu e se desenvolveu em um determinado contexto histórico e cultural, a partir do qual deve ser compreendida. Jung situa a sua teoria em um longo processo histórico que teve início com a ativação do inconsciente coletivo no período da Revolução Francesa (SANT’ANNA, 2019).

O termo arquétipo, pauta principal deste trabalho, segundo Pieri (2002, p. 44), “é tirado da filosofia, onde ocorre para indicar o modelo, o exemplar originário ou, simplesmente, o original de uma série qualquer”. Etimologicamente, a palavra arquétipo é formada pela raiz arché, cujo significado é arcaico, antigo; e typos, que significa impressão, marca.

Fonte: encurtador.com.br/brOWY

A palavra arquétipo, para Hall; Nordby (2014, p. 33), “significa um modelo original que conforma outras coisas do mesmo tipo”, são os conteúdos do consciente coletivo e acrescentam (2014, p. 34): para uma correta compreensão da teoria junguiana dos arquétipos, “é muito importante que eles não sejam considerados como representações plenamente desenvolvidas na mente, como as imagens de lembranças de experiências passadas em nossa existência”.

Os arquétipos são universais, ou seja, herdam as mesmas imagens arquetípicas básicas e agindo como centro de um complexo, funcionam (os arquétipos) como um imã, atraindo para si as experiências significativas a fim de formar um complexo (HALL; NORDBY, 2014). Os arquétipos são dados à estrutura psíquica na forma de possibilidades latentes como fatores biológicos e/ou fatores histórico culturais. São prontidões psíquicas, tendências inatas à realização de determinadas ações e/ou imagens, que são resultado do processo evolutivo da espécie humana. Estão, portanto, limitados às experiências universais como nascer, morrer, a maternidade, a paternidade, a infância, a velhice, o desenvolvimento, a sobrevivência etc. (SANT’ANNA, 2019).

Apresentam uma condição estrutural da psique que, sob determinada constelação, interna ou externa, são capazes de produzir as mesmas formações, o que não tem a ver com a transmissão hereditária de imagens. As imagens têm semelhanças porque se baseiam no mesmo princípio formador e enquanto conjunto de prontidões vazias de conteúdo, o arquétipo em si se situa na esfera psicoide, ou seja, anterior à psique (SANT’ANNA, 2019).

Para que seja reconhecido e integrado à consciência, o arquétipo precisa ganhar apresentabilidade por meio de uma imagem (imagem arquetípica) cuja forma se constitui por meio de elementos oriundos da experiência do indivíduo e podem se manifestar simultaneamente em vários planos, fisiológico (emoção, comportamento), no plano psicológico (imagem) e no plano social (cultura) devido ao fenômeno da sincronicidade (SANT’ANNA, 2019).

Do ponto de vista do desenvolvimento humano, à medida que os processos maturacionais passam a exercer menor influência no comportamento e no funcionamento mental no final da adolescência, os processos de natureza psíquica e social passam a ser elementos reguladores mais importantes.

Sendo o arquétipo em si uma possibilidade e não uma manifestação, para que ele seja ativado e presentificado na psique são necessárias duas condições: um fator ativador, que pode ser de diversas naturezas (biológica, intrapsíquica, interpsíquica, histórica e cultural), e uma forma correspondente à sua dinâmica e ao seu campo de experiência. Por isto, não é possível pensar no desenvolvimento psicológico como um desdobramento natural da matriz arquetípica no plano intrapsíquico.

Alguns arquétipos têm importância grande na formação da nossa personalidade e do nosso comportamento, aos quais Jung dedicou especial atenção. Estes serão descritos a seguir.

Fonte: encurtador.com.br/tBDPU

 A Persona

A palavra persona, segundo Hall; Nordby (2014), significava originalmente uma máscara usada por um ator e que lhe permitia compor uma determinada personagem numa peça. Na psicologia junguiana, o arquétipo de persona atende a um objetivo semelhante, isto é, dá ao indivíduo a possibilidade de compor uma personagem que necessariamente não seja ele mesmo. Por ser compreendida como a máscara ostentada publicamente com a intenção de provocar a impressão favorável a fim de que a sociedade o aceite, ela também pode ser denominada de arquétipo da conformidade.

Ainda nas palavras de Hall; Nordby (2014, p. 36), “A persona é imprescindível à sobrevivência. Ela nos torna capazes de conviver com as pessoas, […]. Pode levar ao lucro ou a realização pessoal. É a base da vida social e comunitária”. E mais, “O papel da persona na personalidade, tanto pode ser prejudicial como benéfico”.

A Anima e o Animus

Enquanto a persona é qualificada por Jung como a “face externa” da psiquê, por ser vista pelo mundo, segundo Hall; Nordby (2014), a “face interna” recebeu o nome de anima nos homens e animus nas mulheres. Assim, “O arquétipo de anima constitui o lado feminino da psiquê masculina; o arquétipo de animus compõe o lado masculino da psiquê feminina” (p. 38).

Para Jung, de acordo com Hall; Nordby (2014), os arquétipos anima e animus tem valor importante para a sobrevivência e foram desenvolvidos no convívio e interação com o sexo oposto, ou seja, o homem desenvolveu seu arquétipo no relacionamento continuado com mulheres durante muitas gerações, e a mulher desenvolveu o seu arquétipo pelo relacionamento com os homens.

Por fim, cabe destacar que para que a personalidade seja bem ajustada e harmonicamente equilibrada, “o lado feminino da personalidade do homem e o lado masculino da personalidade da mulher devem poder expressar-se na consciência e no comportamento”, assevera Hall; Nordby (2014, p. 38).

Fonte: encurtador.com.br/dqsD2
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Um senhor estagiário sob a ótica junguiana

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O filme é de grande relevância para a compreensão do idoso em uma dimensão biopsicossocial.

O filme “Um senhor estagiário” conta a história de Ben Whittaker, um viúvo e executivo aposentado de 70 anos, que trabalhou durante 40 anos em uma empresa que produzia listas telefônicas. Ao sentir sua vida monótona, o aposentado vai em busca de um novo projeto de vida, e é nesse momento que descobre um programa de estágio voltado para a terceira idade oferecido pela Startup online, uma empresa que vende roupas pela internet e que teve um grande crescimento em seus primeiros 18 meses de funcionamento. Assim, Ben se inscreve no programa, pois enxerga essa oportunidade de estágio como uma possibilidade para mudar a sua rotina e se reinventar.

Ao ser aprovado na seleção para estagiários da terceira idade Ben começa a trabalhar como estagiário pessoal de Jules Ostin, a fundadora da empresa. Jules é uma jovem empresária que leva uma vida bastante atarefada devido às exigências do cargo que ocupa e por gostar de manter certo contato com o seu público de investidores e clientes. Ao conhecer seu estagiário a jovem fica desconfiada e se sente até mesmo desconfortável por achar Ben muito observador. Porém, com o passar dos dias, Ben se mostra um grande aliado por ser muito sábio em suas ações, e Jules passa a enxergá-lo como um amigo.

Outro ponto marcante no filme é o fato de Ben ter conquistado seus colegas de trabalho de forma muito rápida, os quais se mostram disposto a ajudar o idoso nesse novo desafio, bem como se mostram abertos a aprender o que Ben tem a ensinar com suas vivências. O filme se trata de uma comédia leve que tem 109 minutos de duração, e nele podemos analisar alguns aspectos que marcam a vida do idoso na sociedade e que podemos relacionar com o que já foi explanado na disciplina de Psicologia do idoso voltada a uma perspectiva Junguiana aplicada ao 9º período de Psicologia, e dirigida pela professora Ana Letícia Guedes.

De acordo com Anastácio (2019), a psicologia analítica trata-se de um ramo da psicologia, que apresenta conceitos específicos, tais como os conceitos de arquétipos, inconsciente coletivo e processo de individuação, pois, para Jung, a psicologia analítica é singular. Desse modo, utilizaremos alguns desses conceitos como método de análise das problemáticas enfrentadas pelos personagens do filme.

Fonte: encurtador.com.br/gzQZ9 

Analisando Ben Whittake,r o personagem principal, podemos afirmar que ele passa pela fase madura, a qual é caracterizada por ser um momento onde a pessoa faz um balanço de tudo o que se passou, além de romper laços com um trabalho formal e redimensionar o seu tempo. Silvestre (2019, p.16) pontua que “é um momento difícil de ser superado, essa reorganização do tempo e do espaço. Viver, como envelhecer, é saber renascer muitas vezes ao longo de uma caminhada pessoal e original.” Os aposentados sentem falta dos amigos e dos papéis desempenhados no trabalho, e por isso, procuram se ocupar (SANTOS E DIAS, 2008). Dessa forma, podemos dizer que Ben fez o balanço de sua vida e redimensionou o seu tempo ao estágio, pois o mesmo o fazia se sentir útil, uma oportunidade de socializar com pessoas de todas as idades e de compartilhar suas experiências.

Como visto durante a disciplina de Psicologia do Idoso, a velhice por muitas vezes é ligada a uma imagem estereotipada representada pela mídia, o cinema por meio de suas exibições e exerce influência nos valores, opiniões e comportamentos da sociedade. Silva (2009, p.14) afirma que “Ser idoso significa que foi possível sobreviver e adaptar-se com mais ou menos saúde mental e, portanto, com maior ou menor bem-estar e desafios específicos de outras fases da vida.” Desse modo, podemos afirmar que o filme aqui retratado é de grande relevância na desconstrução dessa imagem, pois o mesmo apresenta a velhice não como uma questão centrada na faixa etária, mas como um estilo de vida, onde o personagem principal tem 70 anos e uma vida autônoma, um envelhecimento ativo e saudável.

Durante o filme foi possível perceber questões relacionadas aos conceitos estudados dentro da teoria Junguiana, tais como: o processo de individuação, o chamado, o velho sábio, a metanóia etc. Esses aspectos são percebidos nos comportamentos e vivências dos personagens. Um exemplo disso, é a personagem Jules que enfrentava uma grande dificuldade em sua vida profissional por ser julgada inexperiente para comandar uma grande empresa e ao mesmo tempo, via seu casamento em crise, sentia que estava dedicando pouco tempo para seu marido e filha e descobriu que estava sendo traída pelo marido.

É no processo de individuação que acontece a integração do Eu com as demandas arquetípicas, e com as necessidades e exigências impostas pelo mundo externo no qual o sujeito está inserido (PENNA, 2003). Dessa forma, podemos afirmar que Jules estava passando pelo seu chamado, ou seja, por momentos difíceis para os quais teve que experimentar soluções e mudanças e assim, avançar em seu processo de individuação.

Fonte: encurtador.com.br/iluz1

Nesse contexto podemos identificar Ben Whittaker como o velho sábio, pois o mesmo representa uma figura sábia e mais vivida para outros personagens do filme, como por exemplo, para os seus colegas de trabalho e para a própria Jules que desabafa sobre seus obstáculos profissionais e problemas pessoais em busca de um direcionamento. Nesse contexto, Anastácio (2019) aponta que o arquétipo idoso apresenta-se na forma de um idoso sábio, ou seja, personagem que lembra a figura paterna ou materna seria alguém que ilumina a vida de outros ao seu redor, pela sua bondade e sabedoria, acrescentando ao personagem, o conhecimento pessoal, além da experiência da vida. Nesse sentido é importante ressaltar que o velho sábio pode ser se expressar em uma pessoa, porém ele também existe dentro de cada um de nós, de forma arquetípica.

Os personagens Ben Whittaker e Jules Ostin nos deixam valiosas lições, como a importância de não abrir mão dos próprios princípios, apontada pelo personagem Ben que mesmo ao ser inserido em um novo ambiente, com novas pessoas e diferentes formas de enxergar o mundo, maneiras essas que por vezes o considerava atrasado ou antiquado, não abriu mão de seus princípios, de sua autenticidade e fez com que os outros o respeitasse em sua singularidade. Além disso, Ben nos mostra a importância de agarrar as oportunidades quando surgem e superar os obstáculos que vem junto com tais oportunidades, pois mesmo sabendo que teria que reorganizar sua rotina, aprender a manusear objetos que não faziam parte de sua vida (como por exemplo, passar e-mails), e enfrentar o preconceito daqueles que enxergam a velhice como um período de estagnação, o personagem foi firme em todos os seus objetivos e obteve sucesso.

Fonte: encurtador.com.br/ctJX0

Outro ponto importante a ser destacado são as provações enfrentadas pelo herói, ou neste caso pela heroína Jules, onde a mesma teve que enfrentar sozinha, investidores que duvidavam da sua capacidade de comandar uma empresa em crescimento, bem como perdoar a traição do marido, pois queria sua família ao seu lado presenciando o seu crescimento profissional, por esse motivo, buscou por mudanças e estabeleceu a comunicação com o seu parceiro incluindo mais ele e a filha em seus projetos de vida e buscando ser incluída nos projetos dele. De acordo com Anastácio (2019, p.138) ‘O arquétipo do herói busca provar o valor para alguém, por meio de atos de coragem, buscando ser forte e competente para realizar feitos que provem o seu valor heroico, em prol da mudança do mundo, para  um  outro  melhor.” Dessa forma, no término dessa jornada, aliás, desse ciclo de provações, Jules conseguiu se manter na liderança de sua empresa e salvou seu casamento, e foi recompensada ao  mostrar-se mais sábia e feliz, e preparada para uma nova jornada.

Diante do exposto, conclui-se que a análise do filme “Um senhor Estagiário” é de grande relevância para a compreensão do idoso em uma dimensão biopsicossocial, já que a velhice pode ser uma fase da vida humana cheia de altos e baixos e de grandes realizações pessoais assim como outras fases da vida e do desenvolvimento humano. Dessa forma, é válido apontar que a sociedade deveria se preocupar em preparar-se para a velhice como uma fase ativa, e não com uma visão estereotipada como se observa na atualidade.

FICHA TÉCNICA

Um Senhor Estagiário - Filme 2015 - AdoroCinema

UM SENHOR ESTAGIÁRIO

Título Original: The Intern
Origem: EUA
Ano de produção: 2015
Gênero: Comédia
Direção: Nancy Meyers
Elenco: Robert De Niro, Anne Hathaway, Adam DeVine, Christina Scherer, Zack Pearlman

 

REFERÊNCIAS

ANASTÁCIO. Albertina Maria. Os mitos do cinema: Uma análise contrastiva da linguagem imagética cinematográfica, à da Psicologia Analítica de Jung, quanto ao estudo dos arquétipos. Revista Lex Cult, Rio de Janeiro, 2019.

PENNA, Eloisa Marques Damasco. Um estudo sobre o método de investigação da psique na obra de C. G. Jung. 2003. 225 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2003.

SANTOS, Ivanilza Etelvina dos; DIAS, Cristina Maria de Souza Brito. Homem idoso: vivência de papéis desempenhados ao longo do ciclo vital da família. Revista Aletheia, vol.27, 2008.

SILVA, Sara Gabriela Moura da Rocha Nunes da. Qualidade de vida e bem-estar psicológico em idosos. Universidade Fernando Pessoa, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, 2009.

SILVESTRE, Maria José Ponciano Sena. Psicologia Junguiana na contemporaneidade: estereótipos sobre velhice como negação do processo de envelhecimento. Faculdade de Ciências da Saúde de São Paulo, 2019.

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“O poço” – quão fundo pode alguém descer em si mesmo?

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Em cada nível uma dupla, um discurso, uma carga afetiva e energética, pois cada nível de consciência traz suas singularidades.

O filme “O poço” pode nos lembrar facilmente a mítica descida ao inferno com o propósito de resgate, a exemplo de Orfeu com Eurídice, ou a deusa suméria Inanna que de lá resgata seu irmão e esposo. A queda voluntária ou não, nos obscuros porões de si mesmo, resultaria em que? No inevitável encontro de si mesmo renascido? No encontro do si-mesmo? ‘O filho legitimo do abismo’, ou ‘O filho do abismo que se levanta’, Damuzi-absu ou Tammuz” (Joseph Campbell) poderia ser Goreng, que desperta no nível 48 do poço, em companhia de um homem velho, hostil, de quem ele consegue extrair informações de onde ele estava.

Em cada nível uma dupla, um discurso, uma carga afetiva e energética, pois cada nível de consciência traz suas singularidades. Uma plataforma descia através de um buraco central, passando de nível a nível, partindo com grande quantidade de comida, cuidadosamente preparada, a cada 24h, parando por 2 min. Cada nível comia o resto do anterior. O velho se lançava ávido na comida, procurando engolir o máximo, e cuspia no restante.

A cada mês um gás fazia os prisioneiros dormir e os redistribuía aleatoriamente, assim poderiam despertar em qualquer outro nível. Acima ou abaixo, o despertar noutro nível de consciência, o acordar para outro mundo pessoal, mais elevado ou mais obscuro, luz e sombra alternando-se eternamente. No nível 171 já não chega comida, então, num ato de canibalismo, o velho tenta comer a carne de Goreng, que acaba por matá-lo. Fome, devoramento, desespero, possessão. Goreng luta contra a insanidade, oscila a cada nível do poço, e a cada nível de consciência ou inconsciência encontra seus fantasmas. Como quem cai em depressão empurrado para um poço profundo e luta para subir em intensa euforia ou se deixa cair abandonando-se à morte.

Oscilam os níveis de consciência, alternam-se os estados mentais entre o mais elevado, nutritivo, único e iluminado e os mais obscuros, múltiplos, trevosos, moradas prováveis do abandono, do desamparo, da desnutrição em todas as suas formas. Mas Goreng, quando desperta no nível 6 em companhia do forte e enérgico Baharat, decide descer, descer e distribuir a comida, nutrindo todos os outros níveis. Ele não imagina quanto terá de descer para chegar ao fundo. Estima 250 níveis e desce abaixo disso, e abaixo. Passa pela fome extrema e suas consequências.

Fonte: encurtador.com.br/wCTV6

Os níveis da insanidade, do desmembramento e da morte. Quão fundo pode alguém descer em si mesmo? É preciso render-se voluntariamente à loucura para não enlouquecer! Com sua força heroica, representada por Baharat, Goreng desce e desce, assistindo a cada nível, a degeneração da consciência, da humanidade, até um vazio escuro de absoluta desolação, incompatível com qualquer possibilidade de vida, e, justamente lá, encontra uma criança, totalmente saudável. Goreng está esgotado, Baharat está morte, bem como o que ele representa. Goreng arrrasta-se, consegue colocar a criança na plataforma. Ele desce no nível mais baixo, Goreng morreu, é levado por seus fantasmas. A plataforma agora subirá rápido levando a criança aos níveis superiores de consciência.

Deixemos agora Jung falar do arquétipo da criança: “A ‘criança’ nasce do útero do inconsciente, gerada no fundamento da natureza humana, ou melhor, da própria natureza viva. É uma personificação de forças vitais, que vão além do alcance limitado da nossa consciência, dos nossos caminhos e possibilidades, desconhecidos pela consciência e sua unilateralidade, e uma inteireza que abrange as profundidades da natureza. Ela representa o mais forte e inelutável impulso do ser, isto é, o impulso de realizar-se a si mesmo. É uma impossibilidade de ser-de-outra-forma, equipada com todas as forças instintivas naturais, ao passo que a consciência sempre se emaranha em uma suposta possibilidade de ser-de-outra-forma. O impulso e compulsão da autorrealização é uma lei da natureza e, por isso, tem uma força invencível, mesmo que o seu efeito seja no início insignificante e improvável”. (Jung. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, §289)

“(…)Os destinos da ‘criança’ podem por isso ser considerados como representações daqueles acontecimentos psíquicos que ocorrem na enteléquia ou na gênese do si-mesmo. O ‘nascimento miraculoso’ procura relatar a maneira pela qual essa gênese é vivenciada. Como se trata de uma gênese psíquica, tudo tem que acontecer de um modo não empírico, como por exemplo através de um nascimento virginal, por uma concepção milagrosa ou então por um nascimento a partir de órgãos não naturais. O motivo da ‘insignificância’, do estar exposto a, do abandono, perigo etc., procura representar a precariedade da existência psíquica da totalidade, isto é, a enorme dificuldade de atingir este bem supremo.

Caracteriza também a impotência, o desamparo daquele impulso de vida que obriga tudo o que cresce a obedecer à lei da máxima autorrealização; neste processo as influências do ambiente colocam os maiores e mais diversos obstáculos, dificultando o caminho da individuação”.(Idem.§282)

Fonte: encurtador.com.br/wCTV6

FICHA TÉCNICA: 

O Poço (Netflix) - Filme 2019 - AdoroCinema

O POÇO

Título original: El hoyo
Diretor: Galder Gaztelu-Urrutia
Elenco: Ivan Massagué, Zorion Eguileor, Alexandra Masangkay, Antonia San Juan, Emilio Buale;
País: Espanha
Ano: 2019
Gênero: Drama, Ficção científica;

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Amadurecimento e “dissolução do ego”: aproximações entre a Psicologia Analítica e a Filosofia Oriental

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É possível renunciar à hegemonia do Ego, dando espaço para que outros componentes e estruturas da psique – até então inconscientes, mas tão importantes quanto o Ego – possam se manifestar

Depois que o Ocidente entrou em contato com as filosofias e religiões orientais, e com a crescente popularização desses conhecimentos, tornou-se bastante comum ouvirmos dizer que é preciso “abandonar o Ego” ou que é necessário que “o Ego seja dissolvido”. Do ponto de vista da Psicologia, essa concepção não está completamente errada, mas há algumas considerações que precisam ser feitas, de forma a evitarmos perigosos mal entendidos e compreendermos exatamente a que se referem esses termos. Para tanto, precisamos olhar para o processo de estruturação e consolidação dessa instância em nossa psique, sua função e importância, para depois podermos compreender o que significa essa “dissolução”.

De forma geral, o desenvolvimento e amadurecimento do Ego se dá a partir de três níveis (ou estágios) sucessivos e distintos entre si: um primeiro estágio de indiferenciação psíquica, um segundo estágio onde há o surgimento e estruturação do Ego e um terceiro estágio onde deve haver a tal “dissolução”, que é, na verdade, a subordinação do Ego à uma realidade maior, o Self, também chamado por Jung de Si-mesmo.

encurtador.com.br/foxI2

No momento em que nascemos e, mais ou menos, nos dois anos seguintes, a estrutura da psique ainda não está organizada. Não há um Ego, o que significa que não há ainda um senso de identidade, individualidade e existência. Estamos em identificação com a realidade inconsciente, ou seja, somos inconscientes: não há diferenciação entre nós e aquilo que nos rodeia, entre mundo interno e mundo externo. Vivemos a vida ao sabor dos instintos e dos impulsos psíquicos básicos e reagimos a partir deles. Quando somos confrontados por dificuldades nessa fase, sentidas por nós como insuperáveis e que impedem a manifestação desses mesmos impulsos e instintos, costumamos reagir com violência e descontrole emocional. É o tipo de comportamento característico das crianças pequenas e, também, de certos transtornos em indivíduos adultos, cuja estruturação egóica foi comprometida em algum ponto e medida durante essa fase do desenvolvimento. 

Em seguida, para que possamos dar conta das demandas da realidade objetiva, a psique inicia um processo de diferenciação dos seus componentes, através da organização de uma personalidade individual. O Ego vai emergindo lentamente da totalidade inconsciente, estruturando-se como centro da Consciência. Ele, então, torna-se o principal organizador das atividades psíquicas, entre elas o pensamento, o sentimento, a percepção, a intuição, a linguagem e a memória. Os desejos e impulsos instintivos se subordinam a ele, ficando sob o controle consciente. Surge o senso de Eu: nos reconhecemos como uma individualidade separada e começamos a sentir necessidade de nos afirmar e impor no mundo. É, portanto, uma fase bastante marcada pelo autocentramento e, também, pelo individualismo e competitividade, pelos medos e apegos, pelas inibições e restrições e pelos sentimentos de superioridade ou inferioridade, entre outros, pois o Ego percebe-se como algo separado de todo o resto. Quando enfrentamos alguma dificuldade, quando somos frustrados na satisfação dos nossos desejos, costumamos culpar fatores externos, o destino ou os outros, atitude considerada bastante normal para os padrões da nossa cultura. 

No entanto, esse modo de operar vai gerando uma carga cada vez maior de sofrimento, de modo que o Ego vai sendo conduzido para o próximo estágio do desenvolvimento. Agora, ele precisa começar a perceber suas verdadeiras dimensões e capacidades e a se experimentar, não mais como o centro da totalidade da psique e do mundo, mas apenas como uma pequena parte deles. É a fase do reconhecimento e subordinação ao Self, a realidade psíquica maior, que abrange tanto o consciente quanto o inconsciente, à qual o Ego deve se submeter e estar à serviço. É a hora de abrir espaço para que tudo aquilo que somos se manifeste, para que seja compreendido, assimilado e integrado.

encurtador.com.br/uyACI

Nesse estágio, começamos a perceber as dificuldades como verdadeiras oportunidades de crescimento. Procuramos encontrar as causas e as explicações para as restrições sentidas em nosso mundo interior, assumindo a responsabilidade pelos nossos problemas. E, na mesma medida em que o Ego – e suas imposições – vão gradualmente diminuindo de tamanho, vão também diminuindo nossos sentimentos de medo, inibição e limitação, dando lugar à sentimentos de aceitação, compreensão, cooperação, solidariedade, humildade, desapego, transcendência. Entramos para a fase da sabedoria e individuação, o caminho de nos tornarmos quem realmente somos.

Isso é o que muitas das antigas tradições orientais querem dizer quando falam do “abandono”, “morte” ou “dissolução” do Ego. Não que ele deva desaparecer, até porque isso significaria regredir ao estágio anterior a ele – identificar-se novamente com a totalidade inconsciente, ser dominado pelos instintos e impulsos psíquicos básicos, perdendo contato com a razão e a realidade objetiva – o que só acontece na insanidade. O que se propõe é que possamos chegar a um determinado nível de desenvolvimento em que seja possível “abrir mão” da sua hegemonia, dando espaço para que outros componentes e estruturas da psique – até então inconscientes, mas tão importantes quanto o Ego – possam se manifestar, contribuindo para nos tornarmos cada vez mais íntegros e em harmonia com a realidade interna e externa.

“Tudo acontece como se o ego não tivesse sido produzido pela natureza para seguir ilimitadamente os seus próprios impulsos arbitrários, e sim para ajudar a realizar, verdadeiramente, a totalidade da psique”, como disse Marie Louise Von Franz, principal colaboradora do Jung, em “O Homem e seus Símbolos”.

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Capitã Marvel em uma interpretação Junguiana

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A “inteligência suprema” age como o Self, que dentro da perspectiva de Carl Gustav Jung é o princípio organizador, que tenta manter o equilíbrio de todos os arquétipos psíquicos.

Capitã Marvel, nossa heroína, chegou aos cinemas quebrando recordes, sendo uma das maiores estreias de um longa-metragem estrelado por uma mulher. Os motivos para tanto sucesso são inúmeros, mas algo que não se pode negar, é o grande link que a história faz as bases teóricas junguianas. O enredo é trabalhado em função de uma condição psíquica da personagem, ao passo que ela vai desvendando os símbolos de sua mente tudo é explicado, e por fim, ela se torna uma das maiores forças do universo. As façanhas de sua subjetividade fazem dela grandes o suficiente (Atenção, alerta de spoiler).

Em primeira mão o mundo em que Danvers se encontra é a Hala, onde é treinada, preparando-se fisicamente e psicologicamente para a guerra marciana que acomete o espaço. As pessoas com quem convive são os Kress, a quem acredita fazer parte. Algo sempre dito a ela em seus treinos, pelo Yon-Rogg, é que seu descontrole emocional e raiva só serviam para seus inimigos. Mas algo que também lhe fazia mal, era não se deixar livre para sentir, isso fazia com que fosse facilmente controlada, o que impactava sua subjetividade. Danvers não se recordava de parte de sua vida, abrindo dessa forma, brechas para ser moldada pelos desejos alheios.

Apesar de sua mente ser controlada/vigiada por um chip da sua equipe que impedia a expansão de seu poder, a feição da “inteligência suprema” que lhe aparecia como um sonho ou devaneio, foi criada como estratégia de controle (com quem conversava mentalmente); os traços da mulher que surgia como expressão superior, a remetiam uma grande admiração, e o fato de não conseguir lembrar-se do motivo pelo qual se sente assim a deixava em estado de confusão.

Um dos importantes diálogos do filme deu-se logo no início, com Yon-Rogg, que afirmou que as vezes é melhor não se lembrar de fatos, pois poderia causar sofrimento, respondendo à pergunta de Danvers que não compreendia o simbolismo de seu inconsciente. Yon exprime a ideia do subconsciente, onde se encontra boa parte das experiências que por vezes foram reprimidas pela dor que causam.

Fonte: encurtador.com.br/eDLP1

Entretanto, esses símbolos emotivos de seu passado e a feição afável da mulher, dita como “inteligência”, chegam como um mensageiro da sua Psique, que tenta trazer à tona informações que devem se tornar conscientes, orientando-a ao que precisa ser resolvido. Porem, a não compreensão causou a Danvers angústia, assim como deslocamento, desta forma, esta fase tem grande importância, para que em dado momento ela experimentasse seu auge. A grande sacada do enredo é que por meio da repressão do “chip” (localizado em sua nuca) eles conseguiam acesso à sua mente, controlando-a, tudo isso para obter vantagens a fim de encontrar um dos tesouros que habitavam em suas memórias ainda adormecidas.

A “inteligência suprema” age como o Self, que dentro da perspectiva de Carl Gustav Jung é o princípio organizador, que tenta manter o equilíbrio de todos os arquétipos psíquicos. Observa-se que a inteligência sempre aparece sobre a água, uma analogia a um condutor universal, a representação do Self está ali também para conduzi-la. A água, a bem da verdade, também é uma representação das emoções na Psicologia Analítica. 

O Yon-rogg pode ser comparado ao Ego, que tenta suprimir memórias de sofrimento, buscando estar sobre o controle de todas as rédeas. A única diferença no filme é que ele não faz essa função em busca de proteção, como o Ego, mas sim procurando os interesses próprios. O controle da representação do ego sobre sua mente, demonstra o desequilíbrio dos arquétipos, enquanto os símbolos de sua real memória, vinda do subconsciente, tentam equilibrar a situação.

As recordações de suas memórias não eram vantajosas para os Kress, apenas o acesso restrito a elas seria positivo, para que obtivessem informações valiosas. Sua mente guardava algo de muito valor a todos os envolvidos na guerra.

Fonte: encurtador.com.br/nMTUZ

Os “inimigos” dos Kress eram os Skrulls, que invadiam planetas. Os detestados durante todo o filme na verdade eram os que mais precisavam de ajuda, e os grandes prejudicados. Antes dos Starforce (esquadrão de elite dos Kress) entrarem para o combate contra a invasão dos Skrulls, perguntaram como era vê-los/combatê-los face a face, responderam que era uma sensação terrível, era o mesmo que ver-se diante de si, sendo sua própria imagem seu inimigo. Isso acontecia, pois, essa linha alienígena tinha o poder de transformar-se em qualquer imagem, inclusive na aparência de seus combatentes.

Numa analogia psicológica, essa situação se refere a Sombra, que segundo Jung é a parte obscura da nossa mente, a parte mais feroz da personalidade, a qual não aceita regras ou juízo de valor. Quando muito reprimida esse arquétipo pode voltar-se contra a própria pessoa, ou seja, sendo o inimigo da sua própria imagem e/ou indivíduo.

Durante a batalha os Skruss acabaram conseguindo levar Danvers para sua nave, e nela utilizaram de uma máquina que dava acesso a sua mente. Estavam à procura das informações da médica Wendy Lawson; entretanto, ainda não se sabia o motivo disso. Conseguiram todas as memórias a nível consciente, porém, com o seu poder conseguiu se desprender da emboscada, e em meio a fuga acabou quebrando parte da nave, e todos tiveram de fugir por conta da pressão do espaço. Danvers escapou pegando uma nave defeituosa, e acabou caindo no planeta C-53 (referente ao planeta terra), que na verdade é sua terra natal, pelo qual foi raptada por Yon há 6 anos atrás, e por causa desse incidente estava mais próxima de se redescobrir.

Durante o tempo, Danvers claramente chamava atenção da polícia, pois além de não se vestir como uma mundana, ela caiu sobre a terra. Quem se aproximou dela foi Nick Fury, um policial a quem se torna amiga e aliada, que a ajudou na descoberta de sua própria identidade. Depois de algum tempo de investigação, eles descobrem que ela foi uma piloto da força aérea americana, que havia morrido em 1989 enquanto testava o motor da nave da Dr. Wendy Lawson, que também morre no incidente. A partir disso, e da correlação de datas, descobre-se que na verdade ela é humana.

Fonte: encurtador.com.br/kqsG5

Danvers e Nick cruzam os EUA para encontrar com a ex-piloto Maria Rambeau, a quem foi grande amiga e confidente, e assim descobre seu real nome que na verdade é Carol Danvers, anteriormente ela só era chamada de ‘Vears’ pelos Kress, pois é o nome que sobrou de seu colar depois que sofreu o acidente aéreo.

Em seguimento, os Skrulls invadem a casa de Maria, mas dessa vez, pedem que ela os ouça. Aceitando o pedido, eles relatam que durante todo esse tempo, só queriam encontrar um lar, pois seu mundo foi destruído, e eles encontravam-se desesperados em busca de ajuda. Além disso, revelam também que na verdade a Dr. Wendy não era humana (seu verdadeiro nome é Mar-Vell); ela era uma alienígena que estava buscando ajudar os Skrulls, por conta disso a Dra. montou um Tesseract (cubo cósmico) que permitiria que naves viajassem na velocidade da luz, acabando dessa forma com a guerra entre Kress e Skrulls, pois eles finalmente conseguiriam encontrar um local para viver.

Danvers descobre como adquiriu seus poderes; depois que Yon-Rogg atira em Mar-Vell, ela não consegue destruir sua criação (o Tesseract), e Danvers o destrói, e acaba absorvendo a energia dele, adquirindo assim os poderes da máquina, e pelo impacto, ela perde sua memória. Ao descobrir seu passado, finalmente entende o que eram os símbolos de sua mente. Por conseguinte, destruiu o “chip” que suprimia seus poderes, e finalmente restaurou o equilíbrio tanto de sua mente quanto do universo.

Assim como nos momentos de crise, e nas supressões psíquicas, a Sombra se volta contra nós mesmos, o Ego admite que não pode ter controle sobre a situação (da mesma maneira que Yon-Rogg quando percebeu a força incombatível de Danvers), e finalmente o Self (referente a Mar-Vell), através dos símbolos inconscientes, consegue restaurar o equilíbrio dos arquétipos. Tudo se restabelece quando ela compreende seu passado, e entende seu Self.

Fonte: encurtador.com.br/nvBLZ

Algo importante a ser lembrado é que no universo MCU (Marvel Cinematic Universe), Capitã Marvel é o vigésimo filme, sendo o primeiro a ter uma protagonista mulher. Durante todas as cenas, diferente da maioria das figuras heroínas, Marvel não aparece com roupas super decotadas ou marcadas, seu corpo ou suas relações amorosas não são “A trama” ou temática principal; na verdade, suas descobertas como indivíduo e o alcance de suas habilidades são surpreendentes, o ponto-chave que permeia o filme.

Seus trejeitos e a forma como se posiciona, demonstram um grande empoderamento, possibilitando a abertura de um novo contexto cinematográfico no mundo das heroínas, que não precisam estar acompanhadas de um homem para serem incríveis, ela por si só é uma grande protagonista, considerada uma das mais poderosas, dentro todos, no universo Marvel. Isso provoca grande representatividade para as meninas e mulheres que assistiram ao filme, que puderam ver uma longa que condiz com a força feminina, não mais precisando se vestirem de um herói masculino para se sentirem fortes e poderosas. Capitã Marvel nos deu essas possibilidades.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

CAPITÃ MARVEL

Título original:  Captain Marvel
Direção:   Anna Boden, Ryan Fleck
Elenco:  Brie Larson,Samuel L. Jackson,Jude Law
País:  EUA
Ano: 2019
Gênero: Ação, Fantasia, Ficção científica

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